2022/04/19

Portugal visto de Espanha...

 

É sempre bom o distanciamento do país real, pois ajuda a perspectivar questões que nem sempre merecem a atenção dos indígenas. Não acontece todos os dias, mas o diário "El País", publicou ontem (18 de Abril), três artigos (3) onde se fala de Portugal e nem sempre pelas melhores razões. 

Porque as matérias são importantes, ainda que independentes, detenhamo-nos em cada uma delas: 

A primeira diz respeito aos preços de energia eléctrica, praticados em toda a União Europeia e à recente proposta conjunta, de Espanha e Portugal, para rebaixar (durante o corrente ano) o preço da electricidade na península ibérica, a troco de uma sobretaxa da energia, importada de França, como compensação. "Como os governos espanhol e português anunciaram, o seu propósito é estabelecer um preço máximo de 30 euros por MegaWat hora (MWh) no preço de gaz usado na geração de electricidade, para que não contagie o resto das fontes energéticas (mediante as discutíveis subtaxas marginais, que fixam os preços de todas ao nível das mais caras) e poder assim baixar o preço final da luz nos lares e nas empresas" (El País, d.d.18/04/22). Tal medida, ainda que defendida pela presidente da Comissão, não tem sido bem acolhida pelos restantes países da União, o que provocou um "braço de ferro" entre os países ibéricos e os técnicos da Comissão, em vésperas de assinar um duplo-documento que prevê, por um lado, a fixação de preços máximos da energia (e dessa forma aliviar o consumidor final); e, por outro, compensar a França, da qual a península ibérica só depende em 2,8% da sua capacidade. Ou seja, aplicar dois preços, um interno e outro externo, à energia importada. O argumento do "lobby" de energia é conhecido: ao baixar os preços, os países ibéricos competem de forma desleal com os preços praticados no Norte europeu. Esquecem que os preços praticados na península (relativamente ao poder de compra de portugueses e espanhóis), foram sempre mais altos do que na maioria dos países europeus do Norte. A querela está longe de resolvida e aguardam-se decisões finais.

A segunda notícia, diz respeito ao negócio de passaportes (leia-se, nacionalidade), emitidos nos últimos dez anos, ao abrigo de uma Lei de 2009, que permite aos descentes de judeus portugueses sefarditas (independentemente da sua residência ou nacionalidade) obter a nacionalidade portuguesa, bastando para isso apresentar um documento que prove (!?) a sua ascendência judia e interesses (sentimentais, comerciais ou outros) em Portugal...A correspondente do "El País" em Portugal, publicou um texto, onde o tema é extensamente abordado, que se inicia assim: "O português mais rico do Mundo chama-se Román Abramóvich (actual dono do Chelsea). A imprensa portuguesa ironiza sobre o assunto, sempre que tem oportunidade, desde que o jornal "Público" denunciou que o multimilionário russo obteve a nacionalidade portuguesa em Abril de 2021, aproveitando a via aberta, na Lei da Nacionalidade, para os descendentes dos sefarditas  expulsos de Portugal em 1496 pelo rei D. Manuel I. O oligarca que, antes contratava Lady Gaga para concertos privados e agora tem os seus iates confiscados em vários portos ocidentais, devido às sanções provocadas pela invasão russa, é um dos 56.686 judeus, a maioria residente em Israel, que se converteram em portugueses entre 2015 e 2019" (...) "Cerca de 90% dos 137.087 pedidos apresentados nestes seis anos, partiram da Comunidade Judaica do Porto, a única (para além da Comunidade Judaica de Lisboa) autorizada legalmente a emitir certificados para obter a nacionalidade portuguesa. As suspeitas centram-se na comunidade do Porto, que viu crescer o seu poder financeiro e institucional desde que foi aberto o processo dos sefarditas. O seu rabino, Daniel Litvak, foi detido em Março e, no mesmo mês, foram abertas investigações pelo Tribunal Português. (...) A polícia desconfia que foram desviados 35 milhões de euros em doações recebidas pela organização religiosa. O segundo acusado, é o advogado Francisco Almeida Garrett, director da Comunidade Judaica do Porto e sobrinho da deputada e ex-ministra da saúde, Maria de Belém (PS), que defendeu uma lei mais tolerante para os sefarditas, negando que o seu trabalho legislativo tenha favorecido o familiar" (El País, d.d.18/04/22). Este caso era conhecido e foi trazido ao conhecimento público por outra deputada do PS (Constança Sá e Cunha) que, ao apresentar uma proposta para alterar a Lei de favorecimento dos Sefarditas, sofreu pressões de diversos "históricos" do seu partido, entre os quais Maria de Belém, Manuel Alegre, Vera Jardim e Alberto Martins. É caso para dizer: um quarteto de respeito ou, a Maçonaria, no seu melhor! 

Finalmente, o terceiro artigo, "La Izquierda frente al Apocalipsis", onde o autor (Juan Luis Cebrián), num longo ensaio, analisa as eleições francesas à luz do crescimento dos partidos e movimentos de extrema-direita por toda a Europa (Marine Le Pen, etc.) e a crise ideológica das esquerdas em geral, cujos partidos socialistas (em França, Itália e Grécia) deixaram de ser alternativa para os votantes. Cebrián baseia parte da sua argumentação na tese do historiador inglês T. J. Clark que, em artigo publicado na New Left Review, com o premonitório título "A uma esquerda sem futuro", antevê um futuro de violência nas sociedades ocidentais, onde os cidadãos, habituados a viver em democracia, se revoltariam contra a sociedade, procurando a cada momento testar os seus limites. Uma espécie de "doença infantil", da qual parecem padecer muitos dos líderes e partidos actuais. Neste deserto de ideias e objectivos, onde as satisfações mais básicas nunca parecem estar satisfeitas, as atitudes mais comuns são a apatia (desinteresse) ou a violência (fascismo) como alternativa. Pese o seu pessimismo, relativo aos partidos sociais-democratas europeus (excepção feita aos países escandinavos, onde prevalecem coligações liberais e partidos ecologistas), Cebrián vê uma "luz ao fundo do túnel" na península ibérica onde, apesar da regimes diferentes, a esquerda democrática se mantém no poder: "Só Portugal e Espanha parecem ser bastiões da resistência socialista, com uma diferença substancial: em Lisboa, o partido levou a cabo políticas de moderação que valeram a António Costa a renovação do posto de primeiro-ministro com maioria absoluta. O espanhol é, na realidade, um governo de Unidade Popular, que incorpora a extrema-esquerda e restos do partido comunista, que se sustém graças ao apoio de outros extremismos identitários e ideológicos" (El País, d.d.18/04/22). Para o autor, resta um conselho: "Se a social-democracia quer recuperar o imenso terreno perdido no continente, deveria aprender a lição portuguesa: a moderação é a base do triunfo e o reformismo é uma maneira de fazer a revolução". E esta, hein?

2022/04/08

Taxi Driver (23)

Olá amigo, para onde é a corrida? 

- Para a Buraca...

Tem ideia por onde quer ir? 

- Penso que é melhor ir pelo Monsanto, tem menos semáforos.

Também acho que é melhor. Vim agora do Principe Real e não se pode passar no Bairro-Alto... 

- Sim, à sexta-feira à noite está sempre cheio de turistas...

Uma loucura. Para mais, vem aí a Semana Santa e já começaram a chegar os espanhóis. Está a ver este carro (apontando para um carro descaracterizado que se atravessa à frente...)? É um UBER. Nem o código das estradas sabem!

- Os UBER têm vantagens e desvantagens...

Acha? Então porque é que apanhou um táxi? 

- Normalmente apanho táxis, até porque não tenho uma APP para chamar UBERS.

Não sabem nada. A maior parte deles trabalha a "negro" e nem sequer português falam. Ainda há poucos dias, fui buscar uns amigos que queriam ir jantar fora e escolhi um restaurante conhecido. Eles pediram um UBER e quando o homem chegou, nem o restaurante conhecia. Não falava português, era do Bangladesh e disse-nos que estava a substituir o tio que não trabalhava à noite...

- Sim, essas histórias são conhecidas. Ganham mal, são explorados e a UBER nem sequer paga impostos em Portugal. Paga na Holanda...

Sim, eu sei, uma vergonha. Mas, a culpa não é deles, é de quem os autoriza. Eu moro no Cacém e tenho um filho que joga futebol no Massamá. Como não posso perder tempo a ir levá-los e buscá-los, costumava chamar um UBER. Pagava 8 euros de ida e volta. Agora, a minha mulher que está em casa, pega no carro e vai lá levá-los. Muito mais barato. Sabe porquê?

- Sei, pagam de acordo com a distância e o número de clientes que procuram carro...

Isso. A tarifa é calculada através da Aplicação. Se houver muitos clientes, o preço aumenta. Por exemplo: nós levamos um cliente dos Olivais a Cascais por 40euros em média. Eles levam por 35euros, se houver poucos clientes. Mas, no fim-do-ano ou nos Santos Populares chegam a pedir 150 euros pela viagem! Uma roubalheira! 

- De acordo. Também prefiro um táxi, pois posso controlar o preço pelo táximetro. 

É como as trotinetes eléctricas. São um perigo! Atravessam-se à nossa frente e ainda há dias vi um casal de alemães na Rua do Arsenal, que ia ficando debaixo de um autocarro, porque caiu no empedrado da rua...

- É verdade, até andam duas pessoas numa trotinete, o que é proibido, por lei.

Duas? Eu no aeroporto já vi pior: dois turistas chegarem com uma mala, pegarem numa trotinete e lá foram todos contentes, com mala e tudo! Diga lá, se isto faz algum sentido? 

- Pois, mas se ninguém controla, ou multa...tudo é permitido, logo nada é verdadeiramente importante. 

Pois é, mas quem se lixa é aqui o mexilhão, que chega a trabalhar 10 horas por dia, para levar para casa 50 euros e ainda tem que dar metade ao patrão. Agora, com o preço da gasolina, ainda vai ser pior, pois as tarifas vão ter de aumentar. Já viu, menos clientes para os táxis...

- Sim, tudo está a aumentar e esta crise, devido à guerra, ainda está no início. 

Não me fale mais em guerra! Quem entra aqui no táxi só fala em guerra! Mas, isto faz algum sentido? Um crime praticado por humanos. Deus deve ter desistido da raça humana...

- Deus não dorme, mas às vezes adormece...

Uma vergonha. Milhões de euros num só míssil, para matar pessoas. Veja bem quantos pobres podiam ser ajudados. Com os milhões que gastam nesta guerra, matavam a fome do Mundo...

- De acordo, mas quem é que está interessado nisso? As guerras dão muito dinheiro. A miséria de uns é a riqueza de outros. A ganância, sempre a ganância...

É verdade. A ganância. Não temos emenda. Ora cá estamos...Quer recibo? 

- Se não se importa.

2022/03/24

Por assim dizer...


Como não vejo "noticiários" nos dias que correm, teve que ser mão amiga a chamar-me a atenção para as declarações feitas por este comentarista de nome José Manuel Fernandes, ontem na RTP3 no 18/20. Delas retirei o extracto que pode ser visto e ouvido no vídeo supra. 

Ontem passámos, como tem sido amplamente divulgado, a ter mais tempo de Democracia que de ditadura. Tempo de Democracia que nos  trouxe muita coisa boa, incluindo o facto de as pessoas se poderem revelar livremente, sem medo de represálias.

Mas, no dia preciso em que o relógio da História marcou esta nova era, como que a fazer pouco da data, as declarações desta criatura inqualificável, fazem-nos reflectir sobre este regime em que nos vamos arrastando. 

O 25A trouxe a liberdade de expressão. Um privilégio que, como se pode ver a toda a hora, por todo o lado, dá para tudo. O significado da "liberdade de expressão" ficou patente com a crise da covid e está a ser possível percebê-lo agora, com o conflito na Ucrânia. São, diria, exemplos clros e inequívocos, mas é possível perceber isso noutros aspectos da nossa vida social, até na mais inocente conversa de café. Através do entendimento que cada um tem da "liberdade de expressão" é possível concluir o que aquele ou aquela que se exprime, entende por liberdade.

O que a criatura do vídeo revela, através do seu exercício da "liberdade de expressão," é mais, ou, pelo menos, tão grave quanto a privação dessa liberdade… E os exemplos mutiplicam-se, desde o mais notório órgão de comunicação, até ao mais banal mural de facebook, passando, como acima referi, por uma banal conversa de café. Só é preciso estar atento. 

Mas com tanta "liberdade de expressão," os desatentos, por mais notórios ou anónimos que sejam, por mais ou menos ingénuos que se revelem, transformaram-se, verdadeiramente, no mal maior. O que os leva a, por assim dizer, serem os carrascos do regime que lhes concede o exercício impune dos seus privilégios.

2022/03/11

Ninguém é inocente


Este é o tipo de gente que divulga 24/24h pretensa informação sobre a Covid, a Ucrânia, a Paz, a Guerra e… o Imagine. Este é o tipo de gente que “analisa”,  manipula, "entrevista" e deturpa a realidade, para depois massacrar com esse “produto” as pessoas, sem piedade, garantir o tacho e fazer o frete aos poderosos que lhes pagam. 

As pessoas gostam, são cúmplices e aceitam porque assim é tudo mais fácil, já vem tudo pré digerido. Pronto a vestir, pronto a comer, pronto a pensar! Depois é só assumir todo o seu preconceito, fazer sua toda esta ignorância e tornarem-se cúmplices e agentes dela. E aliviar a má consciência com uma bandeirinha na foto de perfil do facebook e mandando uns pacotes de esparguete e umas latas de salsicha para a frente de batalha.

O sentido de rigor e o conhecimento de jornalistas, comentadores e espectadores são hoje exactamente os mesmos que vemos neste video. Neste caso é fácil detectar a “qualidade” do tal "produto". E no resto?! 

Esta guerra está a ser tão instigada pelos espectadores de telejornal como pelos ditadores que a ordenaram… 

Ninguém é inocente.

2022/02/27

E a Ucrânia aqui tão perto...

foto JN

O Mundo actual é dominado por autocratas e psicopatas: Putin, Xi Jinping, Kim Jong-un, Trump, Biden, Bolsonaro, Erdogan, Lukashenko, Duterte, Mori, Maduro...(esqueci-me de alguém?) e não se vê fim à vista.

E não se pode exterminá-los?

A crise na Ucrânia, anuncia mais um desastre humanitário, de proporções imprevisíveis. 

Esta não é uma guerra de "bons" contra "maus", ainda que os generais de sofá pretendam ver nela uma justificação para os seus crimes de guerra. Esta é uma guerra de interesses geo-estratégicos, no tabuleiro do xadrez de políticas expansionistas e imperialistas, como sempre foram a maior parte das guerras. O que seria destes personagens, se não houvesse guerra? Ficam desempregados, claro: os generais na reserva e todos os comentadores de camuflado, que passaram  a ocupar as pantalhas televisivas, em substituição do exército de vírologistas e pneumologistas que deixaram de ter direito a "prime time". 

A actual situação, não augura nada de bom. Para além dos blocos políticos em disputa, a Europa está (mais uma vez) confrontada com um drama social e humano que poderá atingir milhões de vítimas. Seguir-se-á uma crise energética e económica que, de resto, já é sentida.  

E Portugal? Sem uma política internacional digna desse nome e "abrigado" sob o chapéu da beligerante NATO, resta-nos (!?) enviar uma fragata, um submarino e 1500 militares para as fronteiras orientais da Europa. Tudo em nome da defesa do "Ocidente" e da "solidariedade", claro está, porque outra coisa não podemos prometer. Pior, era difícil. 

2022/02/21

Portugal: uma relação difícil com migrantes

 foto Gérald Bloncourt

Como se não bastasse o "chumbo" do Orçamento de Estado para 2022, que conduziu à convocação de eleições antecipadas que ninguém desejava, Portugal vê-se confrontado com um novo (e inesperado) problema: o da repetição da votação do Círculo Eleitoral da Europa, destinado a eleger dois deputados para a Assembleia da República.

A necessidade da repetição decorre da ilegalidade detectada na contagem dos votos enviados por correspondência, o que levou vários partidos a recorrerem ao Tribunal Constitucional. O conteúdo de envelopes de votos, que chegaram sem fotocópia do cartão de cidadão, foi misturado com o conteúdo de outros que se faziam acompanhar, como manda a lei, por uma prova de identificação do eleitor. 

Recordemos: nos dias 8 e 9 de Fevereiro, as mesas de apuramento dos resultados, confrontadas com uma queixa do PSD sobre a legalidade da votação, tiveram entendimentos diferentes, sobre aceitar ou não como válidos os votos sem cópia do documento de identidade. Perante esta dúvida, a mesa do Círculo de Fora da Europa, indeferiu a queixa do PSD (decidindo aceitar todos os votos) e a da Europa recusou-os. Ou seja, os votos com fotocópia do Bilhete de Identidade foram misturados com os votos sem fotocópia e votos "maus" contaminaram os "bons". Resultado: toda a votação das 139 mesas espalhadas pelos países europeus acabou anulada e o Tribunal Constitucional mandou repetir o acto eleitoral nos dias 12 e 13 de Março. Uma trapalhada inadmissível, que reflecte a irresponsabilidade dos partidos (todos!) com assento na AR, que preferiram um "acordo de cavalheiros" (!?) à alteração da Lei Eleitoral, que podia ter sido feita após 2019, quando foram detectados problemas semelhantes nas últimas eleições. Em 2019, foram anulados 30.000 votos da emigração e, este ano, 157 000 votos! Um escândalo.

Consequências imediatas: enquanto os emigrantes do Círculo da Europa não votarem, a atribuição dos dois lugares disponíveis na AR, não poderá ser concluída, pelo que o governo não poderá ser nomeado. Contas feitas, a contagem dos votos só estará concluída na segunda quinzena de Março, pelo que o governo (PS) só poderá tomar posse em Abril. Até lá não haverá Orçamento de Estado (chumbado em Outubro) e o governo (em gestão), terá de governar com duodécimos (só pode gastar 1/12 do OE em cada mês). Sem governo e orçamento aprovado, os salários, pensões de reforma e outros apoios sociais, ficarão suspensos e só serão pagos (retroactivamente) em Maio. Ou seja, perante este calendário, o OE2023 nunca será apresentado e discutido antes de Junho ou aprovado antes de Julho! Pior, era impossível. 

Resta saber se os emigrantes da Europa, que viram os seus votos invalidados, estarão na disposição de votar de novo, depois desta triste experiência que nos devia envergonhar a todos. 

Mas não são apenas os emigrantes portugueses que se podem queixar da forma como são tratados pelo governo. Também os imigrantes que escolheram Portugal para melhorar as suas condições de vida (no fundo a razão última da migração para outros países) são confrontados com a burocracia e a exploração a que são submetidos em muitas zonas do país. É o caso dos imigrantes oriundos de países asiáticos  (bengalis, nepaleses, indianos, paquistaneses, mas também brasileiros) que trabalham em condições deploráveis nas estufas do Sudoeste alentejano. 

As más condições de trabalho nas explorações agrícolas em Odemira não são uma novidade. A novidade aqui é que houve 300 trabalhadores que perderam o medo e foram pedir explicações à administração, no fim da jornada de trabalho.   

Em 2021, as más condições em que imigrantes trabalhavam ou estavam alojados, nas próprias instalações de algumas grandes empresas, motivaram reacções quando um surto de Covid-19 entre os trabalhadores trouxe a realidade laboral em Odemira, para as primeiras páginas dos jornais. Desta vez foi diferente. As queixas fizeram-se ouvir pelos próprios trabalhadores: "No dia 11 de Janeiro, no final da jornada de trabalho, Birat Khatri (Nepal) e largas dezenas de trabalhadores dirigiram-se aos escritórios da empresa para falar com a administração. O movimento ganhou força pela visibilidade dada por uma reportagem da SIC (a estação que esteve no local refere 300 manifestantes). Neste protesto pacífico, em movimento compacto, quiseram perguntar por que motivo, para as mesmas horas de trabalho, receberam uma menor quantia no mês de Janeiro; entre 200 e 400 euros a menos consoante os casos" (in "Público" d.d.19 Fevereiro). Ainda de acordo com a reportagem, a justificação dada pela empresa foi que, a isso eram obrigados, devido a suposta aplicação de um imposto novo decidido pelo governo português (!?). Segundo Birat e outros trabalhadores, ninguém sabe de que imposto se trata e continuam à espera de uma explicação. 

Mas, há mais: "Os trabalhadores sentem-se igualmente injustiçados por nunca lhes ter sido explicado como são contabilizadas as horas; e quando contabilizados os totais, não percebem porque são retiradas quantias (apresentadas como subsídios de vários tipos) aos 6,22euros que o trabalhador julgava ser o valor líquido a receber por hora. Enquanto descrevem a situação comprovam o que dizem mostrando os recibos de vencimento" (...) "O contrato prevê um horário flexível, em que o trabalhador é convocado de véspera. Da mesma forma, pode ser dispensado, se a mensagem pretendida pelo patrão for de penalização ou intimidação" (...) "Querem que a gente ande cada vez mais depressa, a colher as bagas com movimentos de braços sem parar. Estão em cima de nós a gritar: "Mais depressa, mais depressa", conta Thapa, também napalês, disposto a protestar" (...) "É muito duro. Estamos a trabalhar num ambiente quente, dentro das estufas, e só podemos beber a água que trazemos de casa. Às vezes por mais de oito ou dez horas. Se bebemos toda a que trazemos, pedimos, mas eles não nos dão, recusam. Se protestamos, chegam a mandar-nos para casa" (...) "Quem não cumpre o objectivo de encher um determinado número de caixas numa hora, ou percorrer uma determinada distância nesse mesmo intervalo, sem deixar uma só baga na árvore, é dispensado para o resto do dia e no seguinte, segundo o testemunho de alguns trabalhadores" (ibidem). Quem é dispensado, não tem direito a transporte para casa e tem de voltar a pé, muitas vezes quilómetros, até chegarem aos contentores onde a maior parte deles habita durante metade do ano. 

Muito mais haveria para denunciar nesta história, que nos envergonha. Até ao ano passado ninguém "sabia", mas toda a gente convivia bem com esta triste e degradante realidade. Agora, toda a gente sabe e não há desculpas. Nem mesmo a do famigerado ministro Cabrita, ex-responsável pela Administração Interna que supervisionava os actos eleitorais e as autorizações de trabalho concedidas aos migrantes. Portugal, um país de (e)migrantes não pode esquecer e tratar mal os (i)migrantes que fazem o trabalho que nós não queremos fazer. Só denunciando e penalizando estas prática de negreiros, poderemos ter moral para proclamar princípios civilizacionais que devíamos tomar como referência.

 

2022/01/31

Eleições: Balanço Provisório

Para além do PS, o grande vencedor da noite (com a segunda maioria absoluta da sua história), houve outros vencedores nestas eleições: os partidos de direita (Chega e Iniciativa Liberal), respectivamente o 3º e o 4º partido mais votados.

No campo oposto, os grandes perdedores da noite foram o PSD e CDS (à direita) e o Bloco de Esquerda e a CDU (à esquerda), com derrotas assinaláveis, que deixarão marcas.

Outro perdedor da noite, foi Marcelo Rebelo de Sousa, já que fica com menos margem de manobra e deixará de poder influenciar a governação, como sempre desejou. 

Também as empresas de sondagem perderam, dado que, até à véspera das eleições, davam como garantida uma disputa cerrada (com margens de erros dentro dos 3%) e nada disso se verificou.

Mal, esteve ainda a comunicação social, de uma forma geral, que levou a direita ao colo, nunca escondendo as suas preferências  político-partidárias.

Finalmente, uma nota positiva, para a mobilização dos eleitores que, em tempo de pandemia, ousaram  votar, o que contribuiu para uma abstenção inferior a 2019. 

Postas estas considerações gerais, o que nos aguarda a médio prazo?

Desde logo, um PS reforçado (117 deputados) que, a partir de hoje, poderá governar sem ter de fazer concessões aos partidos à sua esquerda ou à sua direita.

Uma esquerda (BE, CDU, Livre) reduzida a pouco mais de 10% na AR, que dificilmente poderá influenciar a governação e terá de fazer a sua "travessia do deserto", enquanto espera por melhores dias.

Uma direita (PSD, CDS) em queda livre, que deixou de ser homogénea e perdeu os seus líderes, o que obrigará a novas escolhas internas e novas estratégias.

Finalmente, uma direita populista e neoliberal (Chega e IL), que conseguiu votos suficientes, à custa dos partidos de direita em queda, para formar duas novas bancadas parlamentares.

Resumindo: ainda que a vitória do PS fosse previsível, a maioria absoluta pode ser explicada por duas razões: pelo"voto útil" ("transferência" de votos do BE e da CDU para o PS) e receio de que a "direita" pudesse obter uma maioria com os votos do "Chega". Nesse sentido, a estratégia de Costa resultou, pois "secou" os partidos à sua esquerda e afastou a direita do governo, por quatro anos. Resta aguardar pela governação, para podermos avaliar das suas intenções. O seu discurso de vencedor, foi abrangente e conciliador (não deixará de"falar" e de "ouvir" todos os partidos...), mas deve ser interpretado como uma declaração de circunstância já que ele, melhor do que ninguém, sabe não necessitar de consensos para governar. Em qualquer dos casos, este PS tenderá a aproximar-se mais de uma Europa Social-Democrata, da qual continua a necessitar enquanto houver fundos comunitários. Resta saber, como e por quem, estes fundos serão distribuídos. Conhecendo a história recente das maiorias absolutas em Portugal, não podemos descartar uma "mexicanização" de regime e o consequente aumento do clientelismo e do patrocinato, em que a sociedade portuguesa sempre foi pródiga. Estamos avisados.

2022/01/29

Reflexões

(Marcelo Rebelo de Sousa fotografado por Alfredo Cunha)


Terminaram as campanhas partidárias. 

Ao longo do último mês, os portugueses tiveram oportunidade de escutar, ao vivo e a cores, debates televisivos e radiofónicos, campanhas de rua por todo o país e opiniões diárias, de analistas e tudólogos, para todos os gostos. Ninguém pode queixar-se de não ter sido informado ou de ter faltado informação, ainda que esta nem sempre tenha primado pela isenção exigida. 

Houve de tudo, desde ataques "ad hominem", a discursos abertamente xenófobos, passando pela mudança de tácticas a meio do percurso, sempre que as sondagens não correspondiam ao efeito desejado. Assistimos às mais desencontradas opiniões e críticas do homem da rua que, não raramente, se indignava pela crise desencadeada com a reprovação do Orçamento e apelava à unidade de esforços conjuntos para evitar o regresso de uma direita de má memória, desta vez acompanhada por um partido populista, abertamente racista. 

Os partidos de esquerda, que até há pouco pareciam defender causas comuns, levaram as suas contradições para o debate público e não se coibiram de criticar-se mutuamente pela situação existente. Só nos últimos dias da campanha, parece ter havido uma inflexão nas suas posições, muito por causa das sondagens que apontavam para um despique cerrado entre os dois maiores partidos e respectivos blocos à sua esquerda e à sua direita. 

Chegados aqui e de acordo com as três últimas sondagens publicadas pela Universidade Católica/RTP/Público, ISCTE/Expresso/SIC e TVI/CNN/Pitagórica, parece que todas elas (sem excepção) apontam para uma vitória escassa do PS (2 a 3%), assim como para uma provável maioria parlamentar de esquerda (5 a 10 deputados). Há, no entanto, a ressalvar que as projecções, se situam dentro da margem de erro e não têm em conta a possível abstenção (derivada do confinamento provocado pelo COVID) o que poderá alterar os dados. Tudo em aberto, portanto...

Não vale a pena os parceiros da "geringonça" continuarem a incriminar-se mutuamente. Não há inocentes nesta história. Só houve uma "geringonça" (2015-2019) e esta só existiu porque, paradoxalmente, Cavaco Silva o exigiu, através de uma acordo escrito. Aparentemente, a fórmula resultou, pelo menos aos olhos da opinião pública. Se não resultou em 2019, isso deveu-se ao PS, que não quis governar sozinho com o BE (o PCP já se tinha afastado e não queria mais acordos escritos). A partir desse momento, cada partido foi à sua vida, até porque representam três visões/modelos diferentes de sociedade e a unidade, então encontrada, foi circunstancial (e de interesse mútuo) para afastar a direita do poder.  Esse ciclo acabou e dificilmente voltará.

O que provavelmente voltará, será o "bloco central de interesses" apadrinhado por Marcelo Rebelo de Sousa, o homem da "governabilidade", que nunca escondeu a sua agenda e não descansará enquanto não houver um acordo ao centro entre os dois maiores partidos. Vem aí muito dinheiro (cerca de 60.000 milhões de euros até ao fim da década) e os dois partidos do poder (70% dos votos) necessitam de alimentar as suas clientelas habituais (corporações diversas, maçonarias e quejandos) e não querem perder esta oportunidade. 

Por isso, parece-nos que nada de essencial irá mudar, já que não se trata apenas de políticas partidárias, mas de uma cultura de clientelismo e patrocinato, enraizada na sociedade portuguesa. Não perceber estas coisas simples, pode ser fatal. Como diria o conhecido assessor de Bill Clinton: "É a economia, estúpido!". 

2022/01/26

Córdoba ou o apogeu do Al Andalus (2)

 

Dizem os guias turísticos, que a melhor forma de entrar na cidade de Córdoba é pela margem esquerda do Guadalquivir, atravessando a Puente de San Rafael. Para quem vem de Sul, pela auto-estrada A4, essa foi uma escolha natural. De facto, a perspectiva da cidade, antes de atravessar a ponte, é determinante para ter uma ideia global do perímetro urbano, do casario que envolve o centro histórico e, no meio de tudo, os telhados da mesquita, encimados pela torre da catedral no centro. Um "bilhete postal" que dispensa apresentações. 

O mais difícil nestas coisas é sempre arranjar lugar para o carro, num centro histórico pejado de turistas, limitado na sua circulação e onde os "parkings", para além de caros, estão normalmente cheios. Depois de muito circular sem sucesso (a circulação faz-se num só sentido) foi necessário atravessar a Puente de Miraflores, em sentido contrário, para encontrar um lugar junto ao projectado Centro de Congressos. Até ao primeiro monumento da cidade, a Torre de La Calahorra, são cinco minutos. A Torre, um antigo forte construído pelos árabes, é hoje um dos "ex-libris" da cidade e alberga, para além da Fundação Roger Garaudy, o "Museu das Três Culturas" (Islâmica, Judaica e Cristã). A partir daí, a melhor forma de voltar ao casco histórico da cidade, é atravessar a Puente Romano, cujo tabuleiro e (parte dos) arcos que a suportam, datam da época romana. Depois, é sempre a subir, até à Mesquita-Catedral, o mais emblemático monumento da cidade.   

Visitar a Mesquita de Córdoba constitui, por si só, uma experiência inolvidável. Nas palavras de um guia local: "poderia descrever-se como o encontro com um Mundo já perdido, onde a sensualidade e a geometria constituía a porta preferencial de acesso ao sobrenatural". Consta que o rei Fernando III de Espanha, quando conquistou a cidade em 1236, não escondeu o seu assombro pelas dimensões do edifício. De tal modo, que deu ordem para preservar a mesquita e para construir um templo cristão embutido, no seu interior, de modo a sublinhar a convivência que durante séculos existiu entre as duas religiões da cidade. A primeira coisa que espanta, é a extraordinária dimensão da sua planta. Vista do lado oposto (Torre de Calahorra) a Mesquita parece um gigantesco mausoléu, dentro do qual estão escondidos séculos de História. Se pensarmos que à época do califado, Córdoba era a maior cidade europeia com cerca de 1 milhão de habitantes, podemos imaginar as multidões que acudiam à chamada do "muezzin".

No interior do edifício, encontramos um imenso mar de centenas e centenas de colunas, todas diferentes, que saem do solo, sem base a sustentá-las, para formarem onze naves paralelas com mais de 100 metros de comprimento. Dos seus capitéis, surge uma sucessão interminável de arcos em forma de  ferradura, sobrepostos até três níveis, que ascendem aos tectos (embutidos a madeira), como uma metafísica palmeira. No centro do edifício, surge a zona da Catedral, que os cristãos levantaram no século XV. Curiosamente, não existe qualquer barreira a separar os dois templos (incrustados um no outro) pelo que os visitantes, podem atravessar todo o edifício e escolherem o lugar preferido. À saída, tempo ainda para percorrer e admirar o famoso Pátio das Laranjas, outro lugar mágico, onde o cheiro das laranjeiras carregadas, cercadas pelo murmúrio da água corrente das fontes, completaram um dia perfeito.

Ainda que o centro histórico de Córdoba, seja relativamente pequeno, a quantidade de locais interessantes é assinalável. Destacamos os que pudemos visitar, já que o tempo era escasso. Desde logo, a Judiaria, a norte do perímetro histórico. Um intrincado labirinto de ruas e ruelas, extremamente bem conservadas, no centro da qual existe a única Sinagoga de Andaluzia. O antigo bairro judeu é hoje um dos pontos mais fervilhantes da cidade, com centenas de pequenos comércios e aprazíveis pátios exteriores, onde ao fim da tarde se juntam os locais e os turistas, em permanentes deambulações. Outro dos percursos obrigatórios, são os famosos "pátios", que podem ser visitados em Maio, durante o festival que atrai à cidade milhares de forasteiros. O evento, já foi reconhecido pela UNESCO, como Património Imaterial. Também o "souk" (bazar árabe) pode ser visitado, apesar de dimensões reduzidas, quando comparado com o de Granada, bastante maior. A não perder mesmo, são os "salmorejos" locais (um creme frio, da família do gaspacho, confeccionado com pão, azeite, tomate, alho, ovo cozido e presunto) considerados os melhores de Andaluzia. Depois de repetidas provas, só posso estar de acordo com a sua reputação. 

A percorrer também, é a Calle Cardenal González, uma animada rua onde estão situados os banhos árabes (hammans) diariamente frequentados por jovens locais e turistas, embrulhados nas suas toalhas turcas. Seguindo a rua, desembocamos na Plaza del Potro, lugar mítico da cidade, referido por Cervantes no romance "D. Quixote de La Mancha". Nesta praça, estão situados o Museu de Belas Artes e o Casa-Museu Julio Romero de Torres (1874-1930), notável pintor de Córdoba, famoso pelos retratos a óleo de mulheres andaluzas. Ainda na mesma praça, existe um dos poucos currais medievais existentes, este recuperado e restaurado. Numa das dependências do curral, funciona o Centro de Flamenco El Fosforito, famoso cantor flamenco do século passado (originário da cidade e vencedor e.o. da Chave de Ouro, um dos mais altos galardões da Arte Flamenca). Córdoba é, de resto, uma das cidades de grande tradição flamenca. Ali, existiram alguns dos mais famosos "Cafes Cantantes" da Andaluzia onde, em 1871, actuou o lendário Silverio Franconetti, um ícone da arte. Outros nomes famosos da actualidade, são os cantores El Pele e Juan Serrano, para além dos guitarristas Vicente Amigo e Paco Peña, todos oriundos da cidade. 

Por fim, a jóia da coroa do Al Andalus: a Medina Azahara (Madinat Al-Zahra). À semelhança dos califas orientais, Abderramão III fundou em finais do século IX, a 8km de Córdoba, uma cidade de excelência, como prova do poder político e económico do Califado Cordobés. Considerada a Versailles da Idade Média, chamaram-lhe a "Cidade Resplandecente" e ainda hoje deslumbra. A sua construção durou 25 anos e seria finalizada pelo filho do Califa. Foi fundada em 941, mas teve uma existência curta, já que em 1010 foi completamente arrasada pelas tropas berberes, que desafiaram o Califado, após o que a cidade seria parcialmente destruída e abandonada durante mil anos. No seu apogeu, chegou a ter 25.000 habitantes. São cerca de 1500m de comprimento por 750 metros de largo. Quase 112 hectares de superfície, dos quais somente 10% foram, até à data, postos a descoberto e recuperados, num dos mais belos museus ao ar livre da península. Desta vasta superfície, só é autorizado visitar a zona Norte da Medina, onde estava situado o palácio de Abderramão III e as moradias nobres da cidade. Os jardins, considerados os maiores e os mais belos de todo Al Andalus, podem ser vistos dos diversos miradouros, instalados na parte alta, mas devido aos trabalhos de arqueologia (que se iniciaram em 1911) e à pandemia vigente, estavam encerrados. 

Tudo isto e muito mais, a ver e repetir, pois a beleza não tem preço, nem limites. 

2022/01/25

Córdoba ou o apogeu do Al Andalus


A viagem estava prometida há anos. Aproveitando o interregno natalício, a escolha recaiu em Córdoba, uma das cidades míticas de Andaluzia. Três curtos dias não seriam suficientes para ver tudo, mas deu para aguçar o apetite e voltar na semana seguinte, tal o impacto da primeira visita.

Antes, porém, um pouco de História:

Córdoba (ou a "cidade do rio") foi fundada em 169 a.C. pelo general romano Claudio Marcelo que, numa colina do Guadalquivir, criou o primeiro assentamento militar da zona. Este pequeno núcleo populacional, daria origem à fundação da cidade romana de Corduba. Pouco a pouco, Corduba extendeu os seus limites e prosperou como cidade. Até que, em 45 a.C., a guerra civil entre César e os filhos de Pompeu, obrigou a cidade a escolher um dos lados. O apoio de Corduba aos pompeianos (e posterior derrota destes) provocou uma terrível represália que acabaria com a vida de 22.000 habitantes. 

Em pouco mais de vinte anos, Corduba recuperou o seu papel relevante. No ano 27 a.C. o imperador Augusto nomeou Corduba, a capital da Bética, importante província romana em Hispânia. Nos anos seguintes a cidade viveu uma época de esplendor a tornou-se uma das cidades mais importantes do império romano e da Europa. Nessa época, Corduba protagonizou um autêntico renascer urbanístico. Foram construídos grandes monumentos, o forum, o circo, o teatro, o templo romano, uma grande muralha que cercava toda a cidade e a ponte romana que conduzia a Roma, através da via Augusta. Alguns destes monumentos subsistem e podem ser visitados. Paralelamente, a cidade viveu um renascimento cultural, graças a filósofos como Sèneca e a poetas como Lucano, ambos oriundos de Corduba. 

Em meados do século XV, Corduba perde o estatuto de capital e sofre diversas revoltas que marcam o seu imparável declínio. No ano 572, os Visigodos conquistaram Corduba, dando início a quase dois séculos de domínio da cidade. Durante esse período, os judeus, que haviam gozado de liberdade de culto com os romanos, foram perseguidos e obrigados a abandonar a religião. Este facto, provocou o futuro apoio do povo hebreu às tropas muçulmanas, que invadiram a cidade em princípios do século VIII.

No ano 711, as tropas berberes do Norte de África, cruzam o estreito de Gibraltar e iniciam a invasão da Península Ibérica. Sete anos mais tarde, todo esse novo território (denominado Al Andalus) tornou-se uma província dependente do Califado de Omíada. Durante 20 anos, o exército berbere avançou até ao Norte, até ser derrotado em Tours (França). Esta batalha marcou o início do retrocesso muçulmano, o que viria a provocar conflitos internos entre berberes e árabes. 

No meio do caos, Abderramão l, o único sobrevivente do massacre da dinastia Omíada na Síria, fugiu de Damasco e fundou o primeiro emirado de Córdoba em 756. Desta forma, Córdoba tornou-se a capital do Al Andalus a ser independente do Califado, embora mantendo os laços religiosos. Nos 170 anos que se seguiram, sete emirados sucederam a Abderramão I. Durante esse período, a cidade viveu importantes transformações, urbanas e culturais: o bairro judeu, conhecido como Judiaria, ampliou-se e as suas ruas seguiram o traçado típico da arquitectura muçulmana, dando lugar a um labirinto de ruas e becos estreitos. Prosseguindo a ideia do "jardim do paraíso", os pátios das casas encheram-se de fontes e flores aromáticas. Esse novo modelo de residência foi mantido até aos dias de hoje, dando lugar aos famosos "pátios" de Córdoba. Também foram construídas mesquitas e banhos árabes (hammans) na capital assim como o templo mais importante do Al Andalus, a Mesquita de Córdoba. 

O oitavo emir de Córdoba, Abderramão III, rompeu definitivamente os vínculos religiosos com Bagdad no ano 929 e auto-proclamou-se Califa de Córdoba. Sob o seu mandato a cidade viveu uma época de esplendor sem procedentes e chegou a ser o principal centro cultural do Ocidente. Com quase 1 milhão de habitantes, Córdoba simbolizou a convivência de judeus, cristãos e muçulmanos. Em todo esse tempo, a cidade califal tornou-se um ponto de encontro de célebres cientistas, filósofos, astrónomos e matemáticos. Além disso, foram feitas importantes obras públicas, como o pavimento de ruas, esgotos e iluminação nocturna. Mas, sem dúvida, a obra mais importante da Córdoba califal, foi a construção, em 936, da Medina Azahara, uma cidadela vizinha a Córdoba. Abderramão III transladou o governo e a corte da cidade palatina e passou a gerir do seu palácio o funcionamento do califado, onde recebia os líderes internacionais e a conciliar as relações entre berberes, cristãos e judeus.

O seu sucessor no trono, foi Ad-Hakam II, que por sua vez deixou o trono ao filho Hisham II de apenas 11 anos. A sua inexperiência possibilitou a ascensão do fidalgo Almançor que ganhou cada vez mais protagonismo e poderio militar. Os constantes ataques de Almançor aos reis cristãos, fizeram com que se estes se unissem e desencadeassem um levantamento, que colocou fim ao Califado de Córdoba em 1031. Os berberes saquearam e incendiaram Medina Zahara e a comunidade muçulmana de Córdoba dividiu-se em pequenos reinos de Taifas. Depois da dissolução do Califado de Córdoba, a capital ficou dividida em 39 reinos de Taifas, o que fez com que o poder ficasse descentralizado. No século XII, o Império Almoada chegou à Península Ibérica e unificou todos esses reinos. Estes seriam, finalmente, dissolvidos pelos cristãos, dando lugar ao terceiro reino de Taifas. Finalmente, as tropas cristãs de Fernando III entraram em Córdoba e conquistaram este território em 1236. Embora a cidade tenha mantido a sua essência árabe, os muçulmanos foram expulsos, a Medina passou a ser uma vila medieval e foram construídas diversas igrejas cristãs. Córdoba iniciava, assim, a sua época cristã.

No século XV, os reis católicos instalaram-se em Córdoba, para dirigir da cidade a reconquista de Granada e, nessa altura, a cidade recuperou parte do seu esplendor. Em 1486, Isabel e Fernando receberam o marinheiro genovês Cristovão Colombo, no Alcácer dos reis cristãos, para escutar a sua inovadora rota rumo à Índia. A cristianização de Córdoba chegou em 1482, quando os reis católicos expulsaram os judeus e muçulmanos da Península Ibérica. Como consequência, em 1523, Carlos I autorizou a construção de uma catedral no interior da Mesquita. Nos anos seguintes foram também construídas as Cavalariças Reais, a Porta del Potro e a Plaza de La Corredera, lugares incontornáveis em qualquer visita. Córdoba teria, ainda, um papel de protagonista em 1808, quando as tropas do general Castaños venceram o exército francês na batalha de Bailén, naquela que foi a primeira derrota de Napoleão.

Desde meados do século XX que a cidade vive um renascimento económico e cultural que originou um crescimento considerável da sua população. Córdoba conta hoje com mais de 325.000 habitantes (a terceira maior cidade da Andaluzia). A UNESCO, declarou Córdoba Património da Humanidade em 1984. Recentemente, em 2008, o conjunto arqueológico da Medina Azahara foi declarado Património Mundial. 

(continua)

2022/01/14

Entre o PAN e o "Pântano", venha o diabo e escolha...

 

Terminadas as festas, começaram os saldos. Este ano, para além das promoções com desconto, temos as promessas eleitorais, que - a acreditar no Pai Natal - estão cheias de "presentes" para oferecer a quem se portar bem. Desde logo, o famigerado PRR (vulgo "bazuka") que é suposto "curar" grande parte dos nossos males e, lá mais para diante, os dinheiros dos programas europeus de coesão, que dão pelo nome de "20-20" e "20-30". No total, cerca de 60 mil milhões de euros, até finais da década. Ou seja, Portugal (se nos portarmos bem, lá está...) vai receber, só nesta década, tanto quanto recebeu desde a sua adesão à CEE, já lá vão 36 anos...

Por razões que a razão desconhece, a legislatura (que devia ter durado até 2023) foi interrompida a meio,  obrigando a eleições antecipadas (agendadas para o dia 30 de Janeiro). Até lá, teremos duas semanas de debates (que estão a decorrer neste momento) e duas semanas de campanha propriamente dita que, este ano, por via da restrições sanitárias, será mais contida no tempo e no espaço. 

Regressado do estrangeiro esta semana, perdi metade dos debates e, dos que restavam, vi os considerados mais importantes, entre os quais o frente-a-frente entre o actual primeiro-ministro (António Costa) e o "challenger" de serviço, o líder do principal partido da oposição (Rui Rio).

Primeira Nota: ao contrário dos restantes debates, que tiveram a duração média de 30 minutos, este debate durou 60 minutos. O dobro. Porquê? Claro que podemos sempre argumentar que se tratava do debate mais importante, já que um dos dois oponentes irá ser o próximo primeiro-ministro. Mas, se 60 minutos não dão para falar em mais de 4 ou 5 temas, como é que 30 minutos poderão ser suficientes para explicar o que quer que seja? A menos que os jornalistas de serviço estivessem interessados em aprofundar os temas em discussão, o que não era o caso.

Segunda Nota: para além de temas clássicos (economia, saúde, emprego, reformas...) e à excepção de temas marginais trazidos por partidos da extrema-direita (impostos, subsídios diversos, pena de prisão perpétua ou castração química de pedófilos...), nunca ouvimos falar de coisas tão importantes como: educação, cultura, habitação, transportes, mobilidade, ambiente, imigração, problema demográfico, descentralização e desertificação do interior. Isto, para não falar na política estrangeira (temos alguma?) ou da Europa, que nos subsidia há 36 anos. 

Terceira Nota: todos os oponentes, sem excepção, falaram no passado (virtudes próprias e defeitos alheios) sem apresentarem uma estratégia futura que nos permita ter uma ideia, ainda que geral, do que é que se propõem fazer, caso sejam governo. Mais, no caso dos partidos de esquerda, passaram o tempo a culparem-se mutuamente, pelo chumbo do Orçamento e pela consequente queda do governo. É verdade que existem programas partidários e, em tese, todos nós podemos lê-los e aferir do seu conteúdo. Mas, quem é que, nos tempos que correm, lê programas de 20 partidos?   

Quarta Nota: estamos em eleições legislativas para eleger deputados para a Assembleia da República. Só depois, saberemos a composição da AR. Porque razão é que, nestas eleições, António Costa, passou a afirmar que estamos a eleger o primeiro-ministro (!?). A menos que se trate de um "lapso freudiano", não se percebe esta afirmação, ainda que nela possa estar implícita a mensagem subliminar "votem em mim" (se querem que o PS governe...). 

Quinta Nota: do debate de ontem, algumas coisas parecem claras: Costa parece apostar numa maioria absoluta (usando o eufemismo "uma maioria estável") o que lhe permitiria dispensar alianças à esquerda e à direita; ou, caso não a obtenha, procurar governar com quem o apoiar (chegou a mencionar o PAN) ou continuar como até aqui, fazendo acordos caso a caso, como aconteceu durante o consulado de Guterres, no qual ele foi ministro dos assuntos parlamentares e que terminou no "pântano". Ou, terceira hipótese, aceitar o repto de Rio (governar com o apoio do segundo partido mais votado), o que ficou por esclarecer, já que ninguém sabe qual vai ser a composição da próxima assembleia.  

Sexta Nota: não é provável que qualquer dos dois maiores partidos (PS e PSD), ganhe as eleições com maioria absoluta. A acreditar nas sondagens publicadas entretanto, há uma tendência que se mantém constante em todas elas: existe uma maior polarização à esquerda e à direita e o PS ganhará as eleições, ainda que sem maioria absoluta. "De acordo, com os dados da sondagem do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP) da Universidade Católica Portuguesa, para o PUBLICO, RTP e Antena, entre os dias 6 e 10 de Janeiro, os socialistas poderão beneficiar de uma significativa transferência de votos de eleitores que em 2019 votaram na CDU, no Bloco de Esquerda, no Livre e no PAN, enquanto o PSD também faz uma boa "pescaria" nos eleitores do CDS, além de algumas franjas do Chega, Iniciativa Liberal e até do PAN" (in "Público" d.d. 14/01/22). 

Sétima Nota: De acordo com a mesma sondagem, o PS vencerá com cerca de 39%, o PSD terá cerca de 30%, o BE 6%, o Chega 6%, a CDU 5%, a IL 4%, o PAN 3%, o CDS 2% e o Livre 2%. Estes serão, em princípio, os partidos que elegerão deputados. A confirmar-se este cenário, não haveria grandes alterações na composição da AR, maioritariamente de esquerda, o que levantará de novo a questão de Outubro: se o Orçamento de Estado foi chumbado, porque é que o mesmo orçamento seria, agora, aprovado?

Oitava Nota: ainda que o debate de ontem não esteja contabilizado nas sondagens, não é muito provável que a opinião dos votantes se altere, já que a maioria tem o seu voto definido. No entanto, daqui até ao lavar dos cestos, é vindima. Pode acontecer o PS ganhar as eleições, mas a esquerda ficar em minoria no Parlamento; ou, o contrário: o PSD ganhar, mas a maioria do Parlamento continuar a ser de esquerda. Nesse caso, qual será a solução preconizada? Uma "geringonça" de direita, ou uma (segunda) "geringonça" de esquerda? E Costa, sairá do governo, se perder? E Rio, ficará como líder do PSD? As máquinas partidárias não costumam ser benevolentes para líderes perdedores. O mesmo é válido para os líderes de outros partidos, de resto.

Tempos interessantes. No dia 30, saberemos mais.

2021/12/22

No vacinar é que está o ganho (business as usual)

Como era expectável, o governo anunciou mais medidas restritivas para o período de festas que vai iniciar-se esta semana. A coisa já estava a ser preparada com alguma antecedência, mas a súbita explosão da variante Ómicron veio alterar os planos governamentais. Assim, em vez de confinarmos apenas na quadra natalícia e na primeira semana do ano, quando as escolas e a "vida normal" deviam recomeçar, eis-nos perante um novo plano de contingência.

Desta vez, António Costa, após auscultar o conselho de ministros, pôs o fato azul dos momentos solenes e anunciou, sem se rir, as novas medidas para a próxima quinzena. Estas incluem tele-trabalho obrigatório,  encerramento de escolas e ATLs para crianças, encerramento de bares e discotecas, limitação do número de clientes e distanciamento em restaurantes, proibição de ajuntamentos de mais de 10 pessoas na via pública, proibição de festas de fim-do-ano e de espectáculos e eventos desportivos. O controlo fronteiriço será retomado e os testes para entrar em determinados espaços passam a ser exigidos. Quem não fizer testes e não tenha certificado digital, não entra. Para pior já basta assim...

Para sublinhar a gravidade da situação, o primeiro-ministro pôs um ar ainda mais compungido e revelou os planos para a sua ceia de Natal que, este ano, não terá mais de 6 pessoas, a saber: ele, a mulher e a filha, o sogro, a mãe e o padrasto. De fora, ficará o irmão Ricardo (e respectiva família) que, à mesma hora, deve estar a fechar a edição da SIC-notícias. Era difícil imaginar pior cenário.

Depois de um ano memorável, em que Portugal começou com um dos piores índices de contágios a nível europeu, para se tornar o campeão da vacinação mundial, com uma percentagem de vacinados a rondar os 90% da população, eis-nos de volta ao local de partida! Mas, então, as vacinas não têm um efeito duradouro? E qual é a duração da vacina, que nos venderam como a solução milagrosa para os tempos mais próximos? E só algumas é que são efectivas, ou são todas? Ou, não é nenhuma? Estas e outras questões, são hoje alvo de polémica e acesas discussões nos Fora internacionais, com os especialistas das mais diversas áreas, a opinarem sobre o vírus e a melhor forma de o combater.

Uma das explicações mais óbvias, tem a ver com o aparecimento de novas variantes do vírus original, do qual já foram detectadas 4 ou 5 estirpes, entre as quais a Alfa, a Delta e, mais recentemente, a Ómicron. Porque o vírus se adapta e transmuta, é de esperar o aparecimento de mais estirpes num futuro próximo. Uma das formas de combatê-las, é através da vacinação. Neste campo, muitos progressos foram obtidos no último ano, com uma campanha de vacinação em massa a nível mundial. Só que, a sua distribuição, deixa muito a desejar. Num recente artigo sobre o tema, o cronista Daniel Oliveira (Expresso, d.d. 4/12), lança alguma luz sobre a desigualdade na distribuição das vacinas a nível mundial e os efeitos perniciosos desta política:

"O açambarcamento das vacinas para usar em grupos cada vez menos eficazes deixa o vírus à solta nos países mais pobres, que se tornam em viveiros de novas variantes potencialmente mais poderosas ou contagiosas". (...) "Mesmo com elevadas bolsas de resistência, 66% da população da UE tem a vacinação completa. Em África, são 6%. O número de pessoas dos países mais ricos que já receberam o recente reforço da vacina é quase o dobro dos que têm a vacinação completa nos países mais pobres. Gastamos dezenas de milhões de doses em crianças cada vez mais novas, com eficácia discutível, enquanto o vírus ganha força descontrolada nos países pobres". E, mais à frente: "uma das consequências da pandemia foi o reforço do poder dos Estados, que compreensivelmente limitam as liberdades individuais  e o funcionamento da economia. Mas, não beliscam as sacrossantas patentes de vacinas financiadas por fundos públicos. Junta-se a isto, o "neocolonialismo" denunciado há uma semana por Gordon Brown no "The Guardian": países que precisam de vacinas, como a África do Sul, são obrigadas a entregar à Europa as que eles próprios produzem. Em apenas um ano, a vacina Pfizer tornou-se o medicamento com maior volume de vendas em todo o Mundo: 36 mil milhões de dólares em 2021. É responsável por 80% das inoculações  na UE e 74% nos EUA". (...) "De acordo com o "Financial Times", longos meses depois do início da comercialização da vacina, a UE aceitou que o valor por dose passasse de €15,50 para €19,50. Numa nota aos accionistas, a empresa diz que conseguirá aumentar ainda mais as margens de lucro com o fim da pandemia" (...)

"Recusando abrir mão das patentes, a "solução" encontrada pelo G7 foi a doação. Mas o objectivo proclamado em Junho - 40% de vacinação para os 92 países mais pobres - está irremediavelmente comprometido. Os EUA estão em 25% do prometido, a UE 19%, o Reino Unido 11% e o Canadá 5%. Ao contrário do que acontecia no início, o problema já não é a produção, que está nos dois mil milhões de doses por mês. O problema é o açambarcamento. Os EUA têm 162 milhões de doses em stock, a UE 250 milhões e o Reino Unido 33 milhões. Que esta medida é completamente irracional, é o facto de 100 milhões de vacinas terem, entretanto, ultrapassado o seu prazo de validade em Dezembro, segundo a COVAX". (...) "O egoísmo vacinal está a concentrar as vacinas nos países mais vacinados. A Pfizer tem um esquema de preço distinto pelo nível económico dos países, variando entre os €19,50 na Europa, €9 nos países em via de desenvolvimento e €6 nos países mais pobres. É fácil perceber a quem lhe compensa mais vender e como as novas doses compradas pela UE para crianças e para a terceira toma passam à frente de encomendas mais antigas e mais urgentes dos países pobres". 

Ou seja, por mais vacinas que o Mundo desenvolvido produza e por mais vacinados que estejamos, as mutações do vírus vão continuar a infectar-nos, enquanto 1/3 da população mundial continuar por vacinar.  Nas palavras do articulista: 

"Tentamos combater a pandemia como não resolvemos as crises migratórias: julgamos que nada do que se passa "lá fora" nos incomodará. Mas, para o vírus não há muros ou o medo da morte no Mediterrâneo. Se não for a Ómicron a recordar-nos será outra variante qualquer". (...) "Mas, se o egoísmo mata, não deixa de ser lucrativo. E para boa parte dos governo o poder das farmacêuticas conta mais que o interesse comum".         

Moral desta história: quando virem o Costa, com ar circunspecto, a anunciar mais vacinas e mais um confinamento, pensem naqueles que nem sequer a primeira dose da vacina tomaram...

2021/12/15

It's a Pandemic, Sir!

O Intercidades, que liga Lisboa a Faro, tinha acabado de entrar na plataforma 4, como é habitual. Eram cerca das 13.45h e dirigi-me calmamente para a carruagem 81, a última da composição, normalmente ligada ao bar do comboio. Preparava-me para entrar, quando ouço uma voz em altos gritos: "Senhor, senhor, não pode entrar! Estão a fazer a limpeza da carruagem".  Acenei para o homem à distância e fiz-lhe um sinal que estava tudo bem. Afinal, ainda faltava meia-hora para a partida...

Enquanto consultava as mensagens no telemóvel, o mesmo homem (conductor) passou por mim aos gritos: "já pode entrar, já pode entrar!". Muito bem, respondi e dirigi-me para o meu lugar, que ocupei de imediato. O comboio, só sairia às 14.15h. Um ritual, que sei de cor, após anos a fazer este percurso. 

Em Albufeira, começaram a entrar os estrangeiros, como é habitual naquela estação, tendo o conductor dado início ao controlo dos bilhetes. Quando chegou a minha vez, depois de examinar o bilhete (tenho desconto de 50%) pediu-me o Cartão de Cidadão, só "para confirmar a idade"...

Lembro-me de ter adormecido, algures durante a travessia da serra algarvia. Já perto da Funcheira, fui acordado pelo referido conductor aos gritos: "O senhor tem de colocar imediatamente a máscara!". O homem estava a metros de mim e, sem saber a quem ele se dirigia, perguntei se estava a falar comigo. "Sim, é com o senhor, mesmo. A máscara é obrigatória e tem de cobrir o nariz!". Fiz-lhe um sinal de concordância e, ainda meio aturdido, puxei a máscara para cima.

Já acordado, fui ao bar beber um café e voltei ao meu lugar, onde iniciei a leitura de um livro, agora com máscara e óculos postos. Porque os óculos se embaciam, sempre que ponho a máscara, baixei ligeiramente a dita, mantendo o nariz de fora. A coisa, durou até Grândola, quando o homem, surgido detrás de mim, gritou-me ao ouvido: "O senhor tem de ter o nariz coberto e já é a segunda vez que o aviso! Não volto a avisá-lo outra vez!". 

Levantei-me, dirige-me ao sujeito e perguntei-lhe, já alterado: "Ouça lá, você fala assim com todas as pessoas? Aos gritos e dessa forma autoritária? Quem julga você que é? O dono do comboio? Isto aqui não é um nenhum quartel e muito menos uma escola primária!". O homem, olhou para mim, com os olhos muito abertos. Continuei: "Você pode dizer as mesmas coisas em tom cordial e pedir as pessoas para manterem a máscara. Qualquer pessoa percebe e não há nenhum problema nisso. Não gosto de pessoas autoritárias e, se volta a falar nesse tom, comigo não resulta. E agora, vá bugiar" (confesso que o termo foi outro)! E voltei à leitura, com a máscara correctamente posta. 

O homem, deu dois passos para trás, pôs-se ao lado da minha cadeira e começou a digitar freneticamente no seu telemóvel. Continuei a ler, enquanto o observava pelo canto do olho. Ao fim de alguns minutos, alguém deve ter respondido do outro lado e ouvi-o dizer em voz alta: "Sim, sou eu, desculpa incomodar-vos, mas tinha aqui um passageiro que se recusava a pôr a máscara (!?). Entretanto, o senhor já corrigiu e agora está tudo bem. Podes desligar". Posto isto, desapareceu.

Estávamos já perto de Lisboa quando o zelote reentrou na carruagem e parou em frente a mim. Receei o pior. Afinal, era para repreender um estrangeiro (americano?) que, supostamente, não teria a máscara bem posta. O infractor olhou para o conductor, aparentemente sem perceber patavina e disse: "I'm sorry, I don't speak portuguese"...

"You, don't speak portuguese? But, you speak english, right?". O outro olhou para a namorada e para ele e retorquiu com uma calma imperial: "Yes, I do".

"Well, sir, then you must know, that according to the portuguese law, you're obliged to wear a mask that covers you nose, inside the train". "Ok, ok, don't worry...", disse o americano, obediente. O zelote olhou triunfante para mim e, qual Arquimedes maravilhado com a sua descoberta, repetiu para quem o queria ouvir: "It's a pandemic, you know. It's a pandemic, sir!". 

2021/12/10

Em Sevilha, a "movida" portuguesa...

Não é todos os dias que assistimos à promoção da cultura portuguesa no país vizinho. Neste campo, Sevilha, teve o privilégio de receber a visita de diversos "embaixadores" culturais da área da música e da literatura, que ali se deslocaram no espaço de duas semanas. 

Tudo começou no dia 25 de Novembro, com o concerto "Todos os Nomes" pelo cantor Vitorino, precedido de leitura de textos de José Saramago, pelo actor António de La Torre, organizado com o apoio da Fundação Saramago, do Consulado de Portugal em Sevilha e da Universidade Sevilhana, no quadro do centenário do nascimento do escritor José Saramago. Um excelente concerto onde o cantor, acompanhado pela formação habitual (piano, acordeão, guitarra clássica e baixo)  apresentou temas do seu reportório, que incluiu modas alentejanas, tangos, música cubana e poemas de Lobo Antunes, entre outros. O concerto foi organizado no salão nobre do Consulado, por onde passam, anualmente, outros convidados das letras e da música portuguesa.  Seguiu-se, no dia 26, o concerto "Memorial Flamenco", também no Consulado Português, organizado com o apoio da Universidade de Sevilha, interpretado pelos músicos Vicente Gelo, Sebastian Cruz e Pau Vallet, em que foram interpretadas versões flamencas dos textos de Saramago.  Ambas as sessões, dedicadas ao escritor, contaram com a presença de Pilar Del Rio, viúva de Saramago e actual presidente da Fundação José Saramago, que se deslocou à capital andaluza para inaugurar o ano de comemorações do centenário. Os concertos tinham lugar à tarde, enquanto, de manhã, tinham lugar debates e sessões literárias, que decorriam na Universidade. 

Aproveitando a visita de Pilar Del Rio, o diário "El Pais", publicou uma extensa entrevista, onde esta revelou algumas das histórias menos conhecidas do grande público, como a da atribuição do Prémio Nobel, que ela soube antes do próprio laureado. A história, conta-se em poucas palavras: na véspera do anúncio do prémio, Saramago encontrava-se na Feira do Livro de Frankfurt, quando Pilar recebeu um telefonema da Academia sueca a perguntar pelo marido. Como este não se encontrava, o interlocutor anunciou-lhe que Saramago iria ganhar o prémio, mas pediu-lhe segredo, pois era ele que ia escrever o discurso oficial da Academia. Se soubessem na Suécia, quem a tinha informado, seria despedido. Pilar optou por não contar a conversa a Saramago, pois não queria que ele tivesse uma "noite agitada" e foi assim que, no dia seguinte, já a entrar no avião a caminho de Lanzerote, o escritor seria confrontado com a notícia, dada pelo seu editor da Caminho. 

Seguiram-se duas noites de Fado, respectivamente a 30 de Novembro e 1 de Dezembro, no âmbito de mais uma edição do Festival de Fado, organizado anualmente pela sala Lope de Vega, cujas primeiras sessões foram preenchidas por Carminho (em substituição de Katia Guerreiro, incapacitada por doença) e pela dupla Hélder Moutinho/Maria Emília, que constituiriam a grande surpresa da noite. Enquanto Carminho, (que é visita regular do Lope de Vega) conta com um público fiel, Moutinho e Maria Emília cantaram em Sevilha pela primeira vez. Perante uma sala bem preenchida, os fadistas apresentaram-se simultaneamente em palco, onde foram acompanhados pelo trio habitual de Hélder, entre os quais se deve destacar o notável Ricardo Parreira, uma caso sério na guitarra portuguesa. Excelentes, as actuações de ambos os cantores, que se apresentaram em palco em "modo" flamenco, (sentados em fila), numa encenação arriscada (o fado canta-se, normalmente, de pé)  que aqui resultou em pleno. Bom concerto, amiúde sublinhado pelo público presente com "olés" de agrado, o que prolongaria a sessão para além das duas horas, com direito a vários "encores". A canção lisboeta ganha, deste modo, mais adeptos em Sevilha, que não regateiam aplausos aos intérpretes que, por aqui, têm passado.  

Finalmente, e de novo nas instalações do Consulado de Portugal, está prevista para a próxima semana, a visita do escritor Luís Peixoto, que ali irá apresentar o seu último livro (auto-biografia). 

Duas semanas de excepção, numa cidade habituada à "movida" cultural, agora com  maior contribuição da cultura portuguesa. Não há fome que não dê em fartura...

2021/11/16

Sob o signo da memória histórica

Oitenta e cinco anos depois da guerra civil em Espanha e dos crimes cometidos pela ditadura franquista que se seguiu, a sociedade espanhola continua presa aos fantasmas, nunca esconjurados, que teimam em regressar sempre que a memória é mais forte que a "lei del olvido" instaurada com a democracia.

Esta é uma consequência da Lei de Amnistia, aprovada em 1977, que procurou, numa sociedade dividida e traumatizada por 40 anos de ditadura, inculcar a ideia de que todas as vítimas eram iguais, já que houvera mortos dos dois lados...

Não é verdade e os saudosistas da ditadura sabem-no bem. Por isso, tentam escamotear a verdade dos factos, criando a falsa ideia de que a memória não deve preocupar-se "apenas" com os 115.000 mortos fuzilados e enterrados em milhares de valas comuns, mas com todos os mortos, procurando dessa forma minimizar as responsabilidades da ditadura. Como se morrer em combate ou assassinado com uma bala na nuca, seja a mesma coisa. Nunca o será. 

Para lembrar esta verdade dramática, que envergonha o país com mais valas comuns em todo o Mundo (depois do Camboja) foi criada, em 2000, ano da descoberta das primeiras valas, a ARMH (Associação Recuperação Memória Histórica de Espanha), que conta hoje com centenas de núcleos espalhados por todo o território espanhol, continuando o hercúleo trabalho a que se propôs: encontrar e desenterrar os mortos assassinados pela ditadura franquista e prestar-lhe a homenagem a que têm direito, como vem sido exigido pelos familiares das vítimas. 

Neste contexto, diversos foram os eventos, marcadas para a semana de 8 a 15 de Novembro último, nomeadamente em Sevilha, epicentro das manifestações onde o tema da memória seria mais uma vez escrutinado

A primeira destas manifestações, teria lugar durante o Festival Europeu de Cinema de Sevilha, onde foram exibidos dois filmes marcantes: "Horacio, El Ultimo Alcalde" (de María Rodriguez e Mariano Agudo) sobre a figura de Horacio Hermoso Araújo, o último alcaide de Sevilha, assassinado e enterrado numa das valas comuns do cemitério da cidade; e "Pico Reja, la verdad que la Tierra Esconde" (de Remédio Malvárez e Arturo Andújar) sobre a vala Pico Reja, situada no cemitério da cidade, onde se supõe estarem enterrados mais de 2000 corpos. Uma sessão histórica, no clássico teatro Lope de Vega, que contou com a presença de Horacio Filho, o guardião da memória de seu pai, que subiu ao palco debaixo de uma estrondosa ovação. Igualmente presente, a cantora flamenca Rocio Marquez, que interpreta o tema musical do filme. Cá fora, esperavam-nos dezenas de activistas e familiares que, nessa noite, encheram a sala do velho teatro, exibindo retratos dos familiares mortos. 

Outro momento marcante, seria a visita guiada à vala de Pico Reja, no cemitério de San Fernando onde, desde 2019, decorrem as escavações e exumação de milhares de corpos. Os técnicos presentes  (arqueólogos e antropólogos forenses), falaram em mais de 1800 corpos encontrados até ao momento. Impressionante a visão daqueles esqueletos amontoados, a maior parte deles deitados de boca para baixo, sinal de que tinham sido fusilados à queima roupa (muitos dos crânios apresentam perfuração de balas), para além de outras escoriações, visíveis nos ossos, das torturas a que foram sujeitos. Uma visão macabra e de indignação, que o director da equipa de escavações, Juan Manuel Guijo, sublinhou no final da visita, ao referir que, para além da indignação, havia que preservar a memória, única forma de combater a injustiça no futuro. Do grupo de visitantes, fazia parte uma delegação de militantes Zapatistas de Chiapas (México), em visita a Andaluzia, que tomava nota de todas as informações prestadas. 




Finalmente, a grande manifestação de sábado passado, uma iniciativa conjunta da Coordenadora Andaluza pela Memória Histórica e Democracia e da Assembleia Memorial Andaluza, que reuniu cerca de 5000 pessoas, vindas de toda a Andaluzia, para exigir ao governo da região a aplicação de medidas prometidas e consignadas na Lei de 2017, aprovada por maioria no executivo anterior (PSOE). O actual executivo, uma coligação de direita e extrema-direita (PP, Ciudadanos e VOX)  recusa a "Lei da Memória Histórica" e quer substitui-la pela designação "Lei Inclusiva", forma encontrada para pôr no mesmo plano vítimas e algozes. Sob as palavras de ordem "Verdade, Justiça, Reparação", a marcha percorreu os dois quilómetros que separam a Praça Nova do Palácio de São Telmo (sede do poder executivo), onde, num palco improvisado, discursaram a presidente da Coordenadora e o ex-magistrado Baltasar Garzón. Este último, que leu o Manifesto apresentado pelas associações organizadoras da marcha, reforçou as exigências da Coordenadora, acrescentando que "A lei deve estar acima da ideologia do momento. Os governos, o que têm de fazer, é aplicá-la, em respeito pelas vítimas. E há que reivindicar essa memória, que todavia custa a muitos reconhecer".

Uma semana inesquecível, em defesa de uma memória que urge preservar.

2021/10/28

Venham as eleições!

foto JN

O que ontem assistimos, não foi bonito de ver. Ninguém estava à espera de uma crise institucional, ainda que os sinais da crise estivessem aí há muito tempo. Só não dava por eles quem não queria vê-los. Era por demais evidente o desgaste do governo neste último ano e todos os sintomas de "fim de ciclo", desta governação, apontavam na mesma direcção. Nada que analistas de vários quadrantes não tenham previsto, logo em 2019, quando a constituição de uma segunda "Geringonça" falhou e o PS não conseguiu obter a maioria absoluta. Marcelo Rebelo de Sousa (o analista-mor do reino) chegou a profetizar que, a meio do mandato, por volta das eleições autárquicas, seria o momento de ruptura mais provável...

Bem, a ruptura aconteceu e, agora, não faltarão as acusações do costume, pois ninguém quer ficar mal na fotografia e há que culpar o "outro", ainda que não haja inocentes nesta história. 

Relembremos o óbvio: a "Geringonça" só existiu (por acordo escrito imposto por Cavaco Silva) entre 2015 e 2019. Ainda antes das eleições de 2019, o PCP recusou mais acordos escritos e o PS recusou reeditar a "Geringonça" apenas com o BE. 

Portanto, formalmente, nunca existiu uma "Geringonça" entre 2019 e 2021. Houve, sim, negociações entre os três partidos (PS, PCP e BE) e acordos pontuais, que resultaram (ou não) durante a legislatura, o que é natural entre partidos que têm ideologias e projectos políticos diferentes.  

Ou seja, qualquer dos partidos era (é) livre de defender os seus pontos de vista (leia-se princípios) sem qualquer compromisso à priori. Foi isso que aconteceu durante a negociação do Orçamento e isto é uma coisa natural em democracia. Como diria o outro "é a democracia a funcionar". 

Foi mau? Foi. Ninguém queria uma crise "nesta altura do campeonato". Acontece na maioria dos países europeus com democracias e parlamentos consolidados e não vem daí mal ao Mundo. Na Holanda, as últimas eleições foram há 7 meses (sete!) e ainda não conseguiram constituir governo; a Bélgica esteve cerca de 2 anos sem governo (dois!); A Alemanha teve eleições há mais de um mês e os partidos vencedores (3) ainda não conseguiram formar governo.  Alguém morreu por isso? 

A verdade é que a erosão governamental era visível e era previsível que, mais cedo ou mais tarde, a crise surgisse. Surgiu agora, provavelmente por calculismo político de alguns partidos (governo incluído). É caso para dizer que "vale mais uma boa crise do que uma má solução". 

Restam as eleições. Venham as eleições!

Instantâneos

Há dois momentos, fixados nestas duas fotos que roubei daí algures, que, por uma vez na vida, valem mais do que mil palavras. 

O primeiro é o momento da votação do OE2022. A foto é da SICN. NUNCA me passou pela cabeça ver o PCP e o BE a votarem ao lado do Ventura. NUNCA ! Por mais retórica que despejem sobre a decisão, a nós, só nos resta concluir uma coisa: estão loucos!

E para que o jogo da política ficasse ontem completo, tivemos este outro momento, fixado nesta outra foto. Marcelo PR passa a ronda ao palácio (a foto é do DN.) Aproveita para pagar não sei o quê no Multibanco e leva um batalhão de jornalistas atrás. Não abre boca. Para quê? "Meninos, entregaram-me o controlo das operações (como se eu já não tivesse pouco...) e, agora, obrigadinho ó PCP e BE!" Parece ele dizer, enquanto certamente ri, cínico. A máscara não deixa ver com clareza...


Bonito serviço! Agora vou ali ter um AVC e, se escapar, vou finalmente cuidar da horta...


2021/10/25

E agora?

António Costa, ao não querer repetir a experiência da "Geringonça" em 2019 (talvez pensando que poderia obter uma maioria absoluta do seu partido nas eleições desse ano) sabia que teria sempre de negociar (à esquerda ou à direita), caso o PS tivesse uma maioria relativa.

Como também anunciou não querer fazer acordos à direita, depois de serem conhecidos os resultados eleitorais de 2019, só lhe restava a esquerda para negociar. Ele próprio o declarou em plena Assembleia da República.

Bom, houve negociações à esquerda (como de resto já tinha havido em 2020) com a diferença que o OE do ano passado foi aprovado (devido à abstenção do PCP) e, o deste ano, corre o risco de ser chumbado, devido à reprovação do PCP. O BE já estava fora das negociações, pelo que o governo não contava com os seus votos e só restava o PCP/Verdes e os pequenos partidos (PAN, independentes) que anunciaram a sua abstenção. Em termos aritméticos, são votos insuficientes para aprovação do Orçamento. 

Tudo aponta para o chumbo deste Orçamento, o que poderá levar o Presidente da República a dissolver o parlamento e a convocar novas eleições. Não é formalmente necessário (em caso de reprovação, o governo poderá apresentar uma 2ª versão deste OE), mas Marcelo já anunciou a sua intenção: não há Orçamento, haverá Eleições. 

Conhecidas todas as posições, a menos de dois dias da votação final, surgiram as reacções esperadas: os partidos, à esquerda do PS, culpam o governo por ser inflexível e não atender às exigências apresentadas; o governo (PS) culpa o BE e o PCP/Verdes, por defenderem exigências maximalistas (leia-se irrealistas) ao não terem em conta o período pós-pandémico que atravessamos, o qual não contempla mais despesa (leia-se dívida e déficit) que "desagrada" a Bruxelas. A direita, no meio de uma crise interna dos seus principais partidos (PSD e CDS) deseja eleições, mas sabe não estar preparada e, dificilmente, voltará ao poder. O único partido que poderia ganhar algo com novas eleições, seria o "Chega", que não tem qualquer proposta séria, mas está interessado na confusão, apanágio dos populistas de direita. 

Acontece que, independentemente do que possamos pensar sobre este episódio (que, de resto, nem sequer é novo na política nacional) não se percebe porque é que os partidos (organizações que representam interesses diferentes) hão-de ter opiniões semelhantes (!?). Para terem opiniões semelhantes, não eram necessários partidos. Bastava um, como na antiga União Nacional de Salazar, onde toda a gente estava sempre de acordo. Houve negociações e falharam. Paciência. É a democracia a funcionar, como diria o outro. Na próxima quarta-feira, saberemos o desfecho.