2020/04/19

Duas semanas noutra cidade (10): Modelos, Medos e Medidas Avulsas

photo NYTimes
A disseminação do coronavírus, agora de forma constante em todo o hemisfério Norte, obrigou a maior parte dos governos a tomarem medidas de acordo que, para além de sanitárias, reflectem o cariz de cada regime.
Depois do alarme ter soado na China (23 de Janeiro, n.r.), seguiu-se uma rápida reacção dos países limítrofes (Coreia do Sul, Taiwan, Japão...) que, alertados para o perigo de contaminação grave, rapidamente puseram em prática modelos sanitários, de detecção e prevenção, eficazes. Decisivo neste combate, foi o sistema de vigilância digital dos cidadãos que permitiu, em tempo real,  identificar quem estava infectado e avisar potenciais contaminados. Não é só na China, (portanto um estado totalitário) que os cidadãos são controlados no seu quotidiano. Também em sociedades asiáticas mais democráticas, o controlo digital é praticado, de forma semelhante, há muitos anos.
Em Taiwan, o estado envia simultaneamente a todos os cidadãos um SMS para localizar as pessoas que tiveram contactos com infectados e para informar sobre os lugares e edifícios onde houve pessoas contagiadas. Ainda numa fase inicial, Taiwan utilizou uma ligação dos diversos dados para localizar possíveis infectados em função das viagens que tinham realizado.
Na Coreia do Sul, quem se aproxima de um edifício onde tenha estado um infectado, recebe um sinal de alarme através de um "app", especial criado para o Coronavírus. Todos os lugares, onde havia infectados, estão registrados nesta aplicação. Não se tem muito em conta a protecção de dados nem a esfera privada. Em todos os edifícios da Coreia foram instaladas câmaras de vigilância em cada andar, em cada escritório, em cada loja. É praticamente impossível a movimentação em espaços públicos sem ser filmado por uma câmara de vídeo. Com os dados do telefone móvel e do material filmado por vídeo, pode criar-se o perfil de movimento completo de um infectado. Os movimentos de um infectado, são todos publicados. Nos escritórios do ministério coreano da saúde, existem pessoas, chamadas "trackers" que, dia e noite, não fazem outra coisa do que visionar o material filmado por vídeo para completarem o perfil do movimento dos infectados e localizar as pessoas que tenham tido contacto com estas.
Outra diferença fundamental, entre a Ásia e a Europa, são, sobretudo, as mascarilhas protectoras. Na Coreia do Sul, não há praticamente pessoas, que saiam à rua, sem mascarilhas respiratórias especiais, capazes de filtrar o ar do vírus. Não são as habituais mascarilhas quirocirúrgicas, mas mascarilhas protectoras especiais, com filtros, também usadas pelos médicos que tratam os infectados. Nas primeiras semanas, após o alarme, o tema prioritário na Coreia foi a distribuição massiva de máscaras à população. Perante as longas filas de espera nas farmácias, os governantes tomaram medidas radicais: foram construídas, à pressa, novas máquinas para fabricá-las. Aparentemente, com sucesso. Existe, inclusive, um "app", que indica quais as farmácias mais próximas que dispõem de máscaras.
Assim que souberam do vírus na China, as 4 fábricas farmacêuticas existentes, receberam dinheiro e autorização do governo, para fabricarem "kits" de teste. No pico da crise, chegaram a ser testados 20.000 cidadãos por dia. Para analisar os testes, foram criados 56 laboratórios especiais. As pessoas eram testadas nos hospitais ou em clínicas de proximidade, em casa e dentro dos próprios carros. Os infectados foram isolados em casa e o resto da população pode prosseguir a sua vida. Mais importante ainda, os sul-coreanos não esperaram por ajudas exteriores e fabricaram todo o material de que necessitavam em fábricas nacionais. O único país que fez mais testes do que a Coreia do Sul, foi a Alemanha (60.000/diários), graças a um bom sistema sanitário de prevenção e à capacidade industrial de que o país dispõe.
Na maioria dos países europeus e após um período de subvalorização da crise, o número de infectados e mortes disparou, tendo atingido números impensáveis há dois ou três meses, ainda que, comparativamente, o número de falecidos devido às gripes anuais, seja maior.
Dois meses após terem sido detectados os primeiros casos na Europa (Itália), o número de mortes por coronavírus continua a crescer nos países mais industrializados, sem que se veja um fim à vista: Itália (23.227), Espanha (20.453), França (19.323), UK (15.464), Bélgica (5.683), Holanda (3.684)...
Por outro lado, as medidas de contenção tomadas em cada país, divergem na sua aplicação e nos instrumentos postos à disposição pelos respectivos governos e serviços sanitários.
Uma das falhas, parece residir na capacidade de responder em tempo (material e logisticamente) a uma epidemia nova e com estas dimensões. Um dilema que atravessa a maioria dos países europeus, como bem exemplificou Erdad Balci, no semanário holandês HP/DeTijd do passado dia 23 de Março: "A Holanda, com a sua economia do conhecimento e o seu sector de serviços, viu-se reduzida a um país em vias de desenvolvimento, que tem de pedir materiais simples para que os seus súbditos não morram. É tempo de acordar". Utilizando a metáfora do "cavalo de competição que ganha sempre e que, por isso, continua a correr depois de perder...", o articulista prossegue: "na passada quarta-feira, chegou uma avião de mercadorias a Schipol, com um carregamento de 80.000 máscaras sanitárias vindas da China. Os chineses ofereceram as máscaras, porque tinhamos necessidade. Grande alegria à chegada das paletes, com direito a fotografia da tripulação chinesa e aplausos dos presentes. O carregamento gratuito é o espelho em que nos devemos mirar. Para obter uma coisa tão simples como máscaras orais, a Holanda teve de pedir a uma potência estrangeira que, na primeira oportunidade, também acaba com a nossa "open society" (em inglês, no texto). A chegada das máscaras, é o mesmo tipo de ajuda para o desenvolvimento, que um poço de água num aldeia africana. Sabíamos, há meses, da existência do vírus, mas não conseguimos fabricar máscaras para nos protegermos!". A razão, explica Balci, reside num factor muito simples: o desmantelamento progressivo da industria no Ocidente e a transferência de investimentos para a China e países límitrofes, onde a mão-de-obra é barata e os operários obedientes. Só que, agora, estamos todos nas mãos dos chineses. Esta constatação, leva-nos a outro tipo de questões que a crise epidémica levantou.
A pandemia põe à prova os regimes políticos em todo o Mundo.
A rivalidade entre USA e China, está a ser vista como uma competição entre dois modelos políticos opostos: A democracia e o autoritarismo. Qual deles respondeu melhor a esta crise e qual dos dois vai prevalecer depois da crise?
A China foi o primeiro país a registrar o contágio do Covid19. Em Novembro de 2019, ocorreu o primeiro caso em Wuhan, na província de Ubei, que seria abafado até começarem a correr notícias de que o médico que tinha detectado o vírus - Li Weng Lian - tinha sido afastado e, posteriormente, falecido devido à infecção, que alastrou em pouco mais de um mês. Em Janeiro deste ano, a China confirmava a epidemia e informava a OMS. As nações ocidentais não podem declarar que não sabiam da existência deste vírus.
Trump, como sempre, seguiu uma politica errática. Começou por fechar as fronteiras e abandonou o palco internacional, acusando a China de ser responsável pela disseminação do vírus, que apelidou de "vírus chinês". Xi Jinping seguiu uma política assertiva. Abre a China ao Mundo e quer ocupar o vazio deixado pelos EUA na liderança global.
A ideia que daqui resulta é a de que o autoritarismo é mais eficaz que a democracia e sairá reforçado desta crise.
Nesta crise, encontramos três componentes, que correspondem "grosso modo" a três tipos de regime  diferentes:
1) O Autoritarismo: do qual o melhor exemplo é a China. Começou por negar o problema, depois tentou escondê-lo, impedindo o médico de denunciar a doença, no que perdeu um mês que pode ter sido decisivo no combate à epidemia. Finalmente, tomou medidas draconianas e, uma vez controlado o surto,  fez aproveitamento político. Foi eficaz na resposta. Venceu o vírus (ainda que não saibamos se os números são exactos), enviou ajuda, material sanitário e médicos, para os países mais atingidos (Itália e Espanha). É o líder mundial desta crise.
2) As Democracias governadas por Populistas: Trump, Bolsonaro, Boris Johnson. Começaram por ridiculizar a gravidade da doença ("é só uma gripezinha", dizia Bolsonaro) contribuindo para a desinformação e adiando as soluções. Desvalorizaram o papel da ciência e as opiniões de médicos, em nome de uma suposta superioridade étnica. Finalmente, foram forçados a reagir, tarde e a más horas. Hesitaram entre o valor da vida humana e os interesses económicos.    
O resultado não foi o melhor. Em apenas quatro semanas, os EUA atingiram já os 40.000 mortos (metade das quais no estado de Nova Yorque) e os 30 milhões de desempregados (20% da força de trabalho). A maior percentagem dos últimos 10 anos!
Do Brasil, nem vale a pena falar: Bolsonaro, o pior presidente da história brasileira, continua a passear-se entre os seus adeptos, tão mentecaptos como ele e, entretanto, despediu o ministro da saúde, por este ousar criticar a sua gestão nesta crise. O país é um barril de pólvora, com milhões de pessoas a viver em condições infra-humanas nas favelas do Rio e São Paulo, para além dos 200.000 presos, confinados em prisões sobrelotadas. O caos é tão grande que os militares (chefiados por Mourão, vice-presidente) estão à beira de forçar uma demissão (por "impeachment" ou acordo) de Bolsonaro e da sua família, o que não augura grande futuro para o país.
Entre os populistas, há ainda quem se aproveite dos poderes de excepção para reforçar a autocratização do regime. É o caso de Orban (Hungria) que aproveitou a epidemia, para decretar o "estado de excepção" por tempo indeterminado. Quem desobedecer pode apanhar 5 anos de prisão! A Hungria passou a ser a primeira ditadura na União Europeia.
3) As Democracias Liberais: umas mais cedo, outras mais tarde, todas levaram o problema a sério e tomaram decisões com base na ciência, ainda que os "confinamentos" (lockdowns) sejam diferentes de pais para país. Os mais liberais (Suécia, Finlândia, Noruega, Holanda, etc...) optaram por um sistema semi-aberto, onde os cidadãos são responsáveis pelo seu comportamento; enquanto outros (Portugal, Espanha, Itália...) seguem guiões mais tradicionais e prolongaram os estados de excepção até à primeira quinzena de Maio.
Uma coisa, parece certa. Depois da pandemia, nada ficará como dantes. Resta saber se para melhor. Os indicadores, para já, são péssimos. Primeiro, assustaram as pessoas com o vírus e, agora, assustam-nas com a próxima crise económica. Como bem explicou Naomi Klein em "A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo do desastre", o sistema aproveita-se do medo, causado por crises (económicas, humanitárias ou outras) para manipular e reforçar o seu poder. Nuvens negras no horizonte.

(continua)

2020/04/15

Duas semanas noutra cidade (9): Espanha, Confinamentos e Estratégias


Rainha Máxima da Holanda e o marido Rei Willem-Alexander na Feria 2019 (foto Look)

Depois de uma semana "santa", em que o sol brilhou e a temperatura não baixou dos 22º, voltou a chover em Sevilha. Chuva e trovões, que o "criador" não parece ter gostado da forma como os citadinos voltaram à "festa"...
Mal passou a Quaresma, mudaram as regras sociais. O que antes era penitência e martírio, transformou-se em música pop e "sevilhanas". A explicação é simples: dentro de quinze dias, teria lugar a "Feria", este ano cancelada por motivos óbvios, pelo que os habitantes da cidade não podem reencontrar-se naquela que é considerada a maior festa tradicional andaluza: dez dias de feira popular gigante, visitada anualmente por milhares de pessoas, vindas de todo o país para ver e frequentar as centenas de tendas, agrupadas em colectividades culturais e associações de ganadeiros e agricultores da região, onde a entrada é exclusiva. Depois, existem as tendas públicas, onde se pode provar tudo o que é petisco regional e ouvir música ao vivo. Com sorte, é possível ver bons espectáculos de Flamenco e dançar "sevilhanas", em palcos espalhados pela Feira. Pelas largas alamedas, passeiam grupos de sevilhanas, deslumbrantes nos seus trajes de lunares, enquanto os ganadeiros da região ostentam riqueza, montados em "puros sangue" andaluzes e passeando em charretes descobertas, com cocheiros de libré. Anexo ao recinto principal, existe ainda um "lunapark", onde os mais jovens se divertem sob o olhar condescendente dos pais. A polícia, omnipresente, regula o trânsito e impede os excessos. Uma orgia de côr e música, que nenhum sevilhano que se preze, deixa de visitar uma vez por ano.
Desta vez, devido ao "confinamiento", restam as varandas e as açoteias dos prédios, onde todos os dias, pelas 20h, os habitantes da cidade agradecem aos profissionais da saúde, com uma longa salva de palmas e música: depois de uma semana de marchas e pregões religiosos, a alegria das "sevilhanas", transmitidas através de aparelhagens sonoras que são escutadas em todo o bairro. Uma festa contagiante.
Esta (genuína) alegria, não ignora a triste e dura realidade. Pesem as medidas draconianas, anunciadas e postas em prática pelo governo espanhol, de que somos testemunha diariamente (patrulhas de policias armados de metralhadora, controlo severo nos transportes públicos e unidades paramédicas instaladas em lugares estratégicos, para acudir aos necessitados), a verdade é que o número de infectados e mortes, causado pelo coronavírus, não pára de subir. Hoje, eram 177.633 e 18.579, respectivamente, o que faz de Espanha o segundo país com mais infectados e o terceiro com mais mortes, a nível mundial. A maior crise humanitária, desde a segunda guerra mundial.
Da situação, tentam tirar proveitos politicos os dois maiores partidos da oposição, que não perdem uma ocasião para criticar as medidas do governo. Enquanto, Casado (líder do PP, direita conservadora) acusa o governo de tomar decisões de forma unilaterar e declara não estar disposto a apoiar o governo ou assinar mais "Pactos de Moncloa" (acordo entre partidos parlamentares, em 1977, n.r.); Abascal (líder do Vox, fascista) acusa o governo de practicar uma "eutanásia feroz" e de ter uma "gestão criminosa", na contenção da pandemia do vírus. As declarações, deste homem defensor do "senso comum", têm sido acompanhadas por mentiras nas redes sociais, onde sugere que o governo censura as mensagens telefónicas relacionadas com o vírus, que os imigrantes são beneficiados no tratamento em hospitais, ou que a causa de morte dos infectados é devido à "peste chinesa", entre outros mimos. Nada que nos surpreenda, já que o nihilismo e as "fakenews", a par da negação da ciência e o ódio aos estrangeiros, faz parte do discurso de todos os populistas de direita. Veja-se o caso de Trump (USA) Bolsonaro (Brasil) ou, mais perto de nós, Orbán (Hungria), Le Pen (França), Wilders (Holanda) e Ventura (Portugal).

Acontece que o sucesso da China e de outros países asiáticos, no combate ao Coronavírus, se deve a factores culturais e políticos específicos, que explicam a forma como abordaram a pandemia, para a qual, de resto, a OMS já tinha alertado em 2016.
No excelente ensaio "Coronavirus y estado policial. La revolución viral",  publicado em 22 de Março último no El País, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, traça uma panorâmica da expansão do vírus e aponta as razões pelas quais, segundo ele, a Europa está a fracassar no combate à pandemia.
Um resumo: as cifras dos infectados não param de aumentar em Itália, Espanha, França, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Suiça ou Alemanha, onde diariamente morrem centenas de pessoas e têm de ser tirados ventiladores aos mais velhos para dá-los aos mais jovens, enquanto se decretam estados de excepção que, em última análise, legitimam o "estado soberano" (que decide sobre o estado de excepção) e fortalecem o nacionalismo. Segundo ele, esta é uma exibição de soberania que de pouco serve, da mesma forma que proibir a entrada de estrangeiros nesta altura, é um acto absurdo, já que a Europa é justamente o continente para onde ninguém quer vir agora. Seria muito mais útil a eficaz cooperação entre estados europeus e proibir a saída de europeus para outros continentes, uma vez que a Europa é o epicentro da epidemia.
Em comparação com a Europa, quais as vantagens que o "sistema asiático" pode oferecer na eficiência do combate ao vírus? Estados asiáticos, como o Japão, a Coreia, a China, Hong-Kong, Taiwan e Singapura, têm uma mentalidade autoritária que vem da sua tradição cultural (confucionismo). As pessoas são menos negativas e mais obedientes que na Europa. Também confiam mais no estado. Não apenas na China, mas também na Coreia e no Japão, a vida está organizada de uma forma mais estrita que na Europa. Sobretudo, para detectar o vírus, os asiáticos apostam fortemente na vigilância digital. Admitem que a "big data" pode encerrar um enorme potencial para se defender da pandemia. Poderia dizer-se que as pandemias na Ásia não são apenas combatidas por virólogos e epidemiólogos, mas sobretudo por informáticos e especialistas em macrodata. Uma mudança de paradigma, da qual a Europa não parece ter-se dado conta. Ou seja, a "bigdata" salva vidas humanas.
A consciência crítica, perante a vigilância digital, praticamente não existe na Ásia. Apenas se fala da protecção de dados em democracias liberais como o Japão ou Coreia. Ninguém se opõe à recolha de dados pessoais pelas autoridades. Na China, criaram um sistema de crédito social, inimaginável para europeus, que permite uma valorização e uma avaliação exaustiva dos cidadãos. Na China, não há nenhum momento da vida quotidiana que não esteja submetido a avaliação. Controla-se cada clic, cada cada compra, cada contacto, cada actividade nas redes sociais. A quem atravessar o semáforo vermelho, a quem tiver contactos com críticos do regime, ou a quem coloque comentários críticos nas redes sociais, tiram pontos. Nesse caso, a vida pode tornar-se muito perigosa. Ao contrário, a quem comprar alimentos sãos ou quem ler publicações do regime, dão pontos. Na China isto é possível, porque existe um intercâmbio, sem restrições, entre os provedores da internet, os telemóveis e as autoridades. Praticamente, não existe protecção de dados e não se conhece o conceito "esfera privada".  
Na China, 200 milhões de câmaras de vigilância, muitas delas dispondo de tecnologia de reconhecimento facial detalhado, permitem vigiar e controlar todos os cidadãos em espaços públicos. Ao sair do metro ou do comboio, as câmaras medem a temperatura corporal dos passageiros e avisam-nos, assim como aos restantes passageiros, do perigo de contágio. Este tipo de rastreio, permitiu isolar e testar potenciais infectados e dirigi-los para unidades hospitalares onde são tratados. Esta foi, de resto, uma das razões do sucesso do combate ao vírus, que em menos de três meses, limitou a epidemia, em Wuhan e em 12 cidades circundantes, a números residuais. Sobre isto e muito mais, no próximo "post".

(continua)

2020/04/10

Duas semanas noutra cidade (8): Eurogrupo, Pandemia e Portugal


É sexta-feira "santa" e não se vê vivalma nas ruas de Sevilha. Hoje, nem sequer supermercados abertos há. A excepção é uma "loja de conveniência" do Carrefour e a Farmácia do bairro. Esta, continua a fazer bom negócio e até já recebeu máscaras de papel e luvas. Só falta o álcool. Por alguma razão, a industria farmaceutica é a que mais lucro dá, depois da industria de armamento...
Entretanto, lá fora, o Mundo não pára.
Depois de três longos dias de (tele)trabalho, os ministros das finanças da Zona Euro chegaram a um consenso. O consenso possível, dizem todos. A decisão mereceu uma salva de palmas dos presentes. A ministra espanhola das finanças diz ter sido um "bom acordo" (!?), enquanto Centeno, nas declarações prestadas, disse ter sido um acordo "tirado a ferros"...
Tudo depende, afinal, de como vemos o copo: meio-cheio ou meio-vazio.
Antes da reunião, eram dois os cenários em cima da mesa:
O primeiro, defendido pela Itália, Espanha, França, Portugal e.o., apoiava a criação de um fundo europeu de solidariedade (também conhecido por Eurobonds ou Coronabonds); o segundo, defendido pela Holanda, Alemanha, Austria e Finlândia, recusava a criação de um fundo específico de solidariedade e defendia a utilização do FEE (Fundo Europeu de Estabilidade) criado e já utilizado noutras crises europeias (ex: "bailouts" das economias necessitadas).
Os "Eurobonds" são "Obrigações de Dívida Pública" emitidas por todos os países, dependendo do risco de cada país, ou seja uma emissão conjunta de "bonds" que permitiria, a países em crise, obter melhores condições de financiamento. No entanto, esta fórmula, não traria ganhos imediatos para a Holanda ou para a Alemanha (países com grande excedente de liquidez);
Já o acesso ao FEE, permite aos países ricos emprestarem dinheiro a juros mais altos, como aconteceu durante a última crise financeira de 2008, nos países intervencionados (Portugal, Espanha, Itália e Grécia).
Estas posições, que até à tarde de ontem pareciam intransponíveis, acabaram por ser amenizadas, após a intervenção dos ministros de França e da Alemanha, no que foram apoiados pelos respectivos chefes de governo.
O acordo obtido, cria 3 linhas de financiamento:
1. Apoio ao Trabalho, no valor de 100.000 milhões de euros;
2. Apoio ao Emprego, no valor de 200.000 milhões de euros (através do BEI)
3. Apoio do FEE, no valor de 240.000 milhões de euros
Contas feitas, um total de 540 mil milhões de euros para os próximos três meses.Depois, logo se verá...
Pontos a reter: a Holanda deixou cair algumas das suas exigências, como a "necessidade de reestruturação das economias dos países afectados" (nomeadamente em Itália). Os países do Euro poderão, agora, gastar até 2% do PIB em despesas com a saúde (combate à epidemia). Esta dívida terá de ser paga no prazo máximo de dois anos. No caso de Portugal, cerca de 4.200 milhões de euros. Por comparação, durante a última crise (2011-14) Portugal recebeu 78.000 milhões, que ainda estão a ser pagos.
Nicolau Santos (economista, n.r.) fez as contas e escreveu hoje um elucidativo artigo com o título "Palmas para quê?", em que desmonta a falácia desta solução para a crise europeia (27 países/500 milhões de cidadãos). Dá o exemplo dos EUA, onde Trump mandou libertar 3,2 triliões de dólares (a maior injecção de capital no pós-Guerra) para uma população de 350 milhões de habitantes. A solução encontrada no Eurogrupo favorece, uma vez mais, os países menos necessitados, que terão agora mais facilidade em obter fundos. Quando esta crise terminar, os países mais necessitados, para além da reposição dos 2% do PIB, terão de continuar a pagar a sua dívida estrutural, actualmente suspensa (no caso de Portugal, 122% do PIB), o que fará aumentar a dívida global e os juros respectivos no futuro. Ainda é cedo para fazer futurologia, mas vem aí uma crise económica de dimensões desconhecidas e os mais fracos serão os mais atingidos. De facto, não há muitas razões para bater palmas...

Outra coisa é a pandemia, propriamente dita. Os números não enganam, ainda que possam ser lidos de forma diferente, já que "as estatísticas, quando torturadas, confessam sempre". Para além da "worldometer" (que actualiza diariamente os números absolutos de infectados, recuperados e falecidos), outras há que nos dão uma perspectiva mais exacta. É o caso do site da Statista (Health Pharmaceuticals - State of Health), que estabelece uma relação entre total de mortes e mortes por milhão de habitantes. Visto deste prisma, a situação não é exactamente a mesma. Assim, de acordo com o site "Statista", o país com maior número de mortes por milhão de habitantes é a Espanha (14.045 falecidos/46.72 milhões de habitantes/300.6 mortes por milhão), seguido da Itália (17.127/60.43/283.41), da Bélgica (2.035/11.42/178.16), da França (10.328/66.99/154.18) da Holanda (2.101/17.23/121.93), etc...Estes são os cinco países com mais mortes por milhão de habitantes. Portugal, em 16º lugar em número de infectados a nível mundial, está em 13º lugar em número de mortes por milhão de habitantes (345/10.28/33.55). Notícias que não nos sossegam, o que terá levado o governo português a sugerir o prolongamento do confinamento até ao dia 15 de Maio.
Perante estes números, franceses (Radio France) e holandeses (De Volkskrant) interrogam-se sobre a  razão da baixa mortalidade em Portugal. Várias hipóteses: um relativo isolamento do país em relação ao epicentro da epidemia (Itália, Espanha e França); medidas de contenção tomadas em tempo, após serem conhecidos os primeiros 50 casos de infectados e a primeira morte confirmada (12 de Março); encerramento de escolas e cancelamento de eventos desportivos e culturais (13 de Março); encerramento de fronteiras (16 de Março), para além de haver menos turistas nesta época do ano. Também as medidas de coação, obrigando ao fecho do comércio e à proibição de trânsito privado, assim como a desertificação de grandes zonas do interior, explicarão as poucas mortes verificadas no Algarve, Alentejo e Beiras Interiores. Outra razão, parece assentar na relativa "facilidade" com que a população portuguesa aceitou as novas normas, o que daria lugar a interpretações que não cabem neste "post". Fica para uma próxima vez.

(continua)

2020/04/07

Duas semanas noutra cidade (7): Santos, Vírus e Testes


Em tempos normais, a semana da Páscoa é, por tradição, a mais celebrada e concorrida em toda a Espanha. Em Sevilha, o epicentro das comemorações, a "Semana Santa", congrega o maior número de devotos e forasteiros, ainda que haja celebrações nos principais centros urbanos do país.
A cidade pára literalmente durante a maior parte da semana, com serviços públicos, departamentos e escolas,  encerrados para o grande evento. A população, calculada em mais de 700.000 pessoas, prepara-se o ano inteiro para a celebração. Desde logo, através do "Consejo General de Hermandades e Cofradías de la cidade de Sevilla", orgão máximo, responsável pela organização dos rituais religiosos, que determina quais as confrarias participantes (são mais de cinquenta!), quais os percursos seguidos pelas procissões (todas passam, obrigatoriamente, pela Catedral de Sevilha e pelo "Ayuntamiento", onde são instaladas bancadas para os "vips" da cidade); quem transporta os andores nas procissões (constituídas por santos, virgens, mistérios, penitentes e crucificados); os "costaleros" (equipas de 30 moços que alternam, à vez, o transporte dos altares, que chegam a pesar toneladas); os "hermanos", representantes das dezenas de irmandades existentes na cidade; os "nazarenos", reconhecidos pelos seus capuzes ponteagudos de diversas cores, a lembrar os acólitos do "klu-klux klan"; para além de familiares e amigos, que encorajam e apoiam, com água e alimentos, os mais jovens. Toda a gente participa, dos veteranos aos mais novos, que vestem a rigor durante a semana: as mulheres, deslumbrantes nos seus trajes clássicos de "mantilla sevilhana"; os homens, em traje formal, de fato e gravata a condizer. As varandas, engalanadas para a ocasião, são alugadas com antecedência, não sobrando lugares nas açoteias e terraços nos percursos conhecidos. O turismo local, em colaboração com as diversas confrarias, edita pequenos guias em diversas línguas, sobre os locais e horas previstas da passagem de cada procissão, de modo a possibilitar, aos interessados, a possibilidade de escolher os melhores lugares para apreciar o evento. A maior parte das confrarias, são acompanhadas por bandas filarmónicas, que ensaiam todo o ano nas praças da cidade para o grande momento. As procissões têm lugar durante o dia, ainda que algumas só iniciem o seu percurso ao cair da noite, para terminar já de madrugada. Nessas ocasiões, as luzes apagam-se junto à igreja onde recolhe o andor e os estabelecimentos comerciais encerram. O único som audível, à distância, é o arrastar dos pés dos "costaleros", enquanto os "nazarenos", cobertos pelos seus capuchos e capas, empunham longas tochas de cera a arder e continuam a desfilar durante horas. Não raramente, as procissões nocturnas terminam com "saetas" flamencas, cantadas à capela por aficionados e profissionais das varandas mais próximas. Momentos de êxtase e "cante jondo" (canto profundo) sublimes.
A anormalidade, imposta este ano pelo "confinamiento", impediu a celebração centenária, mas não diminuiu a devoção dos habitantes de Sevilha. À falta de festa, os vizinhos do bairro esmeram-se, decorando as janelas e colocando altifalantes nas varandas, através dos quais transmitem "saetas", bandas filarmónicas e "pregões" (declarações) da Semana Santa. Os mais nacionalistas (estas coisas, andam sempre ligadas) mantém as bandeiras franquistas, que penduraram durante a crise catalã de 2018.
Não faltam episódios hilariantes nesta quarentena: desde o homem que saiu a passear o cão, vestido de nazareno e carregando uma cruz às costas (o vídeo tornou-se viral e a polícia acabaria por detê-lo); à mulher infectada, que fugiu de um hospital onde estava isolada (acabaria por ser presa e voltar à quarentena), passando pelo vizinho do condómino onde me encontro, que ameaçou filmar e denunciar outro morador à polícia (!?) por este ter ousado sair à rua sem máscara (há sempre um "pequeno homem" com medo, como escreveu Reich, num dos seus escritos mais citados). Encontra-se de tudo um pouco. Entretanto, na Galiza, foi roubado um carregamento de um milhão máscaras, no valor de 5 milhões de euros, destinadas a Portugal (!?). Em tempo de crise, "quem tem olho..."
A crise viral continua a dominar os noticiários e as preocupações dos espanhóis. O país é já o segundo com maior número de infectados e mortos a nível mundial, resp. 146.690 e 14.555, não se vislumbrando decréscimo na curva de infecções nos próximos dias. Perante a catástrofe anunciada (20.000 mortes na projecção mais optimista e 40.000 mortes na mais pessimista), a Espanha entrou na terceira semana de "confiniamento", agora prolongado até ao próximo dia 26. As pressões e as críticas ao governo de Sánchez, para que reabra o congresso (actualmente encerrado) e para diminuir progressivamente as medidas de quarentena, têm vindo a aumentar, ainda que não seja fácil tomar esta decisão, enquanto o número de infecções não diminuir. As mais acérrimas críticas vêm, como sempre, do "pequeno homem" Abascal (VOX), que diariamente grava vídeos através do Instagram onde ameaça processar Sanchéz pela prorrogação do período de isolamento. Ontem, em mais uma histérica comunicação ao país, anunciou com ar solene "cortar relações" com o governo, enquanto este não abrisse o Congresso. A estupidez continua a dominar o discurso dos pequenos líderes. 

Conforme nos explicam diariamente os "experts" na matéria, há 3 questões a considerar nesta crise pandémica: a vacina (que não existe), o distanciamento social (como forma de reduzir a disseminação do vírus) e os testes (para avaliar quem está infectado). Sobre a vacina, é consensual entre vírologistas e epidemiologistas, poder demorar entre 12 e 18 meses, até ser comercializada. Sobre o distanciamento social (tomando as devidas precauções, com máscaras, luvas, desinfecções diárias de roupa e calçado) é fundamental, mas não impede a contaminação. Mais, podemos estar infectados e não ter sintomas. Quando a febre surge, a infecção já existe e, entretanto, já infectámos outras pessoas.
Finalmente, os testes. Há dois tipos de teste: o de diagnóstico rápido (aplicado na maioria de países e populações) e o teste serológico (que é caro e não está ao alcance de toda a gente). No primeiro teste, este pode dar negativo, mas podemos contrair a infecção no dia seguinte; no segundo teste, a imunidade é garantida pelos anti-corpos já existentes, o que permite contactos com outras pessoas, sem as infectar. A experiência, levada a cabo nos primeiros países infectados (China, Coreia do Sul, Japão, Taiwan e Singapura) permitiu perceber que o isolamento, seguido à risca, pode resultar, ainda que só ao fim de alguns meses. Acontece que, em países de regime autoritário (como os países asiáticos referidos) é sempre mais fácil manter as populações confinadas, dada a obediência e disciplina existentes (confucionismo). Também o sentido colectivo e a confiança no estado é maior do que no Ocidente. Acresce que, em países como a China (portanto, um estado totalitário) a "data" existente, devido à ligação dos telemóveis pessoais às câmaras de vigilância em todo o país (mais de 200 milhões!) permite identificar, rapidamente, quem tem febre, através de um "app" que mede a temperatura do corpo. As pessoas assinaladas, são avisadas através do seu telemóvel e enviadas para quarentena. Essa é uma das razões, porque os países asiáticos conseguiram reduzir substancialmente a epidemia, enquanto na Europa e nas Américas, portanto mais atrasadas no uso da tecnologia existente, o surto viral continua a crescer exponencialmente. Preocupantes são, agora, os surtos em grandes países como os EUA e o Brasil, que não dispõem de sistemas de saúde de qualidade e onde o número de vítimas pode atingir proporções catastróficas. 

(continua)

2020/04/03

Duas semanas noutra cidade (6): Todavia, vivos...


Hoje, acordámos, com uma notícia previsível: de acordo com o "site" da OMG que monitoriza o "coronavírus" a nível mundial, o número de infectados, ultrapassou o primeiro milhão. Mais exactamente, 1.030.570 pessoas, das quais 54.226 falecidas.
Em Espanha, onde me encontro, o número de infectados era, esta manhã, 117.710 e, o número de mortes, 10.935. Em termos absolutos, a Espanha é já o segundo país com mais infectados a nível mundial e, em termos relativos, o primeiro país, com um total de 2350 infectados por milhão de habitantes.
Números terríveis, que entram diariamente pela rádio e tv dentro, em contínuos boletins emitidos pelo Ministério Nacional de Saúde, a partir da "task force" criada para esta pandemia, instalada no palácio de Moncloa em Madrid.
A Andaluzia, registrava 7.374 infectados e 408 mortos, um número relativamente baixo, quando comparado com as regiões mais infectadas (Madrid, Catalunha e País Vasco).
Em Sevilha, o hospital "Virgen del Rocío", criou dois circuitos paralelos de detecção e tratamento de potenciais doentes, onde estes são testados e internados. Comparativamente a Madrid, onde o número de mortes em lares de idosos ultrapassou as 3000 pessoas (infectados incluídos), a cidade de Sevilha também registava um número relativamente baixo: 57 falecidos. As agências funerárias não têm capacidade para responder atempadamente a esta calamidade e muitos corpos, tiveram de permanecer em morgues, antes de serem incinerados. Dadas as medidas sanitárias impostas, muitas pessoas não conseguem sequer despedir-se dos seus familiares. Um filme de terror, que fez manchete na comunicação internacional. Acresce, que a maioria dos "lares" são residências privadas, que não dispõem de equipas médicas permanentes, o que dificulta a detecção (e testes) dos residentes infectados.
Perante a situação, o governo já anunciou o prolongamento do estado de excepção, que durará até ao dia 26 de Abril. Entretanto, a polícia aumentou as medidas de coacção e, nos transportes públicos de Sevilha, passou a controlar os passageiros para avaliar da necessidade da sua deslocação. Quem não consegue justificar a viagem, pode ser obrigado a sair ou a pagar uma multa. A desobediência, pode custar entre 200 e 20.000 euros, no caso de automobilistas que infrinjam a lei.
Nem tudo é mau, no entanto. Diariamente, pelas 20h, milhões de cidadãos do país, continuam a assomar à janela, para agradecer aos profissionais de saúde que enfrentam esta luta sem desfalecer. Uma homenagem que, ontem, graças à temperatura amena de Sevilha, se prolongou no tempo. Após o ritual das palmas, os moradores permaneceram nas janelas e em açoteias vizinhas, onde aproveitaram para pôr a "conversa em dia", muitos deles pela primeira vez entre si. Não faltam críticas aos governantes, pois sempre há algo mau nos hospitais, nas farmácias ou nos supermercados. Habituados à sociedade de consumo, os espanhóis (como os europeus em geral) lamentam-se das "carências" e, o que é pior, temem pela sua existência, agora mais frágil. Um bom teste de sobrevivência e resiliência, quando comparado com a situação (essa sim, deplorável) dos refugiados, amontoados em campos gregos, italianos e líbios. É de esperar que este período de austeridade e confinamento traga, a todos, mais humanidade e solidariedade em tempos de crise.
Solidariedade tem sido, de resto, uma das palavras mais inflacionada por estes dias. Depois das reservas mostradas pelos chamados países do "bloco do marco" (Holanda, Alemanha, Austria e Finlândia) em apoiar a criação de um fundo europeu especial para esta crise (os chamados "coronabonds") seguiram-se as infelizes declarações do ministro holandês das finanças, que só vieram piorar as coisas. A reacção crítica e de repúdio por parte de António Costa, no que foi apoiado pelos restantes países do Sul, seria transcrita nos principais orgãos de informação europeus, como o El País, Le Monde, The Guardian, NRC, De Volkskrant, HP/Tijd (estes três últimos, holandeses).
No Público, a articulista Teresa de Sousa, especialista em assuntos europeus, resumiu bem a situação, num artigo intitulado "Se o Sul se afundar, o Norte opulento deixará de existir":
"Já não é apenas um caso entre António Costa e Mark Rutte e o seu ministro das Finanças. Nem apenas um caso entre Países-Baixos de um lado, e a Itália e a Espanha, os dois países europeus mais brutalmente fustigados pela pandemia, do outro. De repente, os Países-Baixos transformaram-se no lugar geométrico de prova de vida a que a Europa e as suas democracias, estão a ser sujeitas neste exacto momento da História. O debate interno ameaça a coligação de governo (holandês n.r.). A pandemia aproxima o sistema de saúde da ruptura".
As críticas europeias, acabariam por fazer "mossa" na frente germânica, que se apressou a "emendar a mão". Já esta semana, Mark Rutte (primeiro-ministro holandês) veio declarar que não tinha sido muito "diplomático" (a expressão é "bot", em neerlandês) e, ontem mesmo, Von der Leyen (presidente alemã da Comissão Europeia) reafirmou o apoio da Europa à Itália, anunciando um crédito sem limites ao país mais fustigado por esta crise. Algo é algo.

P.S. Recebemos um mail da "COVID19", uma linha de apoio, aberta pelo MNE, para portugueses impedidos de regressar ao país. Pedem desculpa pelo atraso na resposta e perguntam se ainda necessitamos de ajuda (?). Vale mais tarde, que nunca. Claro que necessitamos de ajuda. Ainda estamos vivos...

(continua) 

2020/03/30

Duas semanas noutra cidade (5): "Confinamiento", Vírus e outras mortes

foto ABC Sevilla
A Espanha, entrou hoje no segundo período de "confinamiento". Até ao próximo dia 11 de Abril, na melhor das hipóteses, continuaremos "todos" em casa. Todos, é como quem diz. Diariamente, podem ser vistas pessoas na rua, fazendo compras ou, simplesmente, passeando os cães. Há cães que nunca devem ter saído tanto, tal o número de vizinhos a passear a trela...
As ruas de Sevilha, habitualmente fervilhantes de alegria, transformaram-se em tristes "calles", cujos únicos meios de transporte são, agora, os autocarros (vazios), os táxis e as ambulâncias. Nas principais vias de La Macarena, o bairro onde me encontro, há unidades para-médicas e carros de polícia em permanente estado de alerta. No centro (em redor da Plaza de Armas) o exército está de prevenção e colocou diversos blindados em pontos estratégicos, junto ao rio, para dissuadir os mais afoitos que por lá costumam passear.
Celebrações tradicionais, como a "Semana Santa" e a "Feira de Sevilha", atracções turísticas que, anualmente trazem milhares de forasteiros à cidade, foram este ano canceladas, com consequências que se prevêem desastrosas para a economia local.
Ainda que a Andaluzia, em termos relativos, mantenha uma baixa taxa de infectados quando comparada com as regiões de Madrid, País Vasco e Catalunha (as mais afectadas), os números não mentem. A Espanha passou a ser o 3º país com mais infectados a nível mundial (85.195) e o 4º país em número de mortes (7.340). Os dados são da OMS e podem ser consultados através da aplicação "worldometer". Uma catástrofe humanitária sem precedentes, a maior no país desde a 2ª guerra mundial.
Como em todo o lado, o oportunismo aproveita-se da crise. Os partidos mais à direita (PP e VOX) continuam a criticar o governo e a clamar por mais meios sanitários, ignorando deliberadamente a contenção de gastos e a privatização da saúde nos governos de Rajoy que, na eminente falência de La Caja, teve de pedir um resgate de 100.000 milhões de euros para salvar a banca (um dos maiores resgates na UE). Rajoy, acabaria por ser demitido, devido a uma moção de censura do Parlamento, tantos eram os casos de corrupção em que o PP estava envolvido. Na província foram, entretanto, reportados os primeiros casos de assaltos a moradias isoladas, por supostos agentes sanitários que se apresentaram aos moradores para inspeccionar as suas casas. Uma nota positiva: devido à diminuição do tráfico, a poluição ambiental, nas regiões mais industrializadas, caiu drasticamente. Nas ruas de Madrid, foram avistados os primeiros pavões e javalis, a passear à noite...
Nem todas as mortes, no entanto, são uma consequência do vírus. Outras mortes, por causas diferentes, vão chegando ao nosso conhecimento, através de amigos e da imprensa estrangeira. 
É o caso do cantor Pedro Barroso (1950-2020), pioneiro da "nova canção portuguesa" dos anos '60 (programa Zip-Zip) que tive o prazer de conhecer na Holanda. Lembro uma histórica intervenção em Nijmegen, organizada pelo grupo local de apoio à Reforma Agrária em 1976; uma curta digressão, que incluiu as cidades de Wageningen e Amsterdão em 1979; e, finalmente, em Amsterdão, onde voltaria a actuar em 1980, naquela que foi a sua última visita como cantor. Viria a reencontrá-lo em Lisboa, há dois anos atrás, durante um evento dedicado à cidadania, no páteo do Liceu Camões, liceu que ele frequentou em jovem. Estava já doente, afectado pela doença que viria a vitimá-lo este mês. A nossa amizade, apesar da distância física e temporal, manter-se-ia até final.
Da Holanda, chegam-me notícias de personalidades que acompanhei de perto e com quem me cruzei, durante a minha longa estada em Amsterdão. Registo quatro nomes importantes:
O político Harry van der Berg (1942-2020), deputado e ministro do PVDA (social-democrata), célebre por ter apoiado a causa dos refugiados e transportado diversas malas com milhares de escudos para Portugal (supostamente enviadas por Willy Brandt para ajudar Mário Soares na sua "cruzada" contra o comunismo). Mais tarde, veio a saber-se que o dinheiro era enviado pela CIA, que utilizava o deputado holandês, dado que este era detentor de um passaporte diplomático, o que não levantava suspeitas. O episódio, referido em todas as necrologias, já era conhecido há muito e está descrito, em detalhe, no livro "Contos Proíbidos: memórias de um PS desconhecido" de Rui Mateus, publicado pela editora D. Quixote, em 1996. O livro, que esgotou num ápice, nunca mais seria reeditado.  Vá lá saber-se porquê...
Outro personagem marcante, foi o professor Goudsblom (1932-2020) emérito sociólogo e conselheiro do governo holandês para questões sociais, que tive o privilégio de ter como docente na Universidade de Amsterdão, onde leccionava na década de setenta. Dos seus colégios, guardo a imagem do grande auditório da faculdade, repleto de "caloiros", que o escutavam religiosamente, enquanto nos iniciava nas ideias de Marx, Weber, Comte e Durkheim.
Da área da cultura, destaco a cantora Liesbeth List (1941-2020), representante da canção ligeira de qualidade, a solo e em duo, com Ramses Schaffy, o seu "partner" preferido. Cantou Teodorakis em holandês, à època preso pela junta militar grega. Relembro uma histórica actuação, num "meeting" de solidariedade com o povo grego, organizado no Hotel Kranapolsky em Amsterdão, no início dos anos setenta, onde seria a estrela da noite.
Destaque, ainda, para o jornalista Peter van Bueren (1942-2020), figura central da critica cinematográfica holandesa, durante mais de 40 anos, primeiro no diário de "De Tijd" e, mais tarde, no "De Volkskrant", onde terminaria a sua carreira em 2002. No mesmo ano, ser-lhe-ia atribuido o "Lifetime Film Achievement" pela sua contribuição para o cinema, durante o Internacional FilmFestival de Roterdão que eu, à época, acompanhava como colaborador do DN. O Peter morava no mesmo bairro de Amsterdão e encontrávamo-nos, frequentemente, no mercado da Ten Katestraat. Tinha um conhecimento enciclopédico e um humor cáustico, muito holandês, que nem sempre era apreciado por todos os colegas de profissão.  
Em Espanha, registo dois falecimentos de figuras públicas, na última semana:
A artista italiana Lucia Bosè (1931-2020), popularizada durante os anos do neo-realismo e cuja carreira se dividiu entre Itália e Espanha, onde vivia. No dia da sua morte, a televisão espanhola prestou-lhe homenagem, com a projecção do clássico "A Morte de um Ciclista", de Juan António Bardem" (1955), onde desempenha o principal papel.
Finalmente, a morte do activista Chato Galante (1948-2020), preso político durante o regime franquista e membro da "Asociación de Presos y Represaliados por La Ditadura Franquista". Era igualmente activista na ARMH (Asociación para la Recuperación de la Memoria Histórica). Vimo-lo recentemente na película "El Silencio de Otros" (prémio Goya 2019), documentário impressionante sobre o trabalho de exumação dos corpos fuzilados e enterrados em valas comuns, durante a guerra civil e durante a ditadura franquista. São mais de 115.000.   
A semana não terminaria, sem mais uma notícia alarmante, ainda que provável: o director do Centro de Coordenação de Alerta e Emergência, Dr. Fernando Simón, porta-voz do governo espanhol para a epidemia do Covid19, contraíu a infecção e encontra-se confinado em casa.  

(continua)


  

   

2020/03/28

Duas semanas noutra cidade (4): Países do Sul, Países do Norte

Seriati, Itália (foto Pakistan Latest News)
A pandemia viral não poupa ninguém. Salvo raras excepções, todo o planeta parece infectado e deixou de haver "santuários" protegidos. O encerramento de fronteiras (ainda que ajude) nunca resolverá este problema, pela simples razão que o vírus não conhece limitações geográficas e os portadores já se encontram, muitas das vezes, entre nós. Não conhecer o inimigo é, por isso, o maior medo.
John Carpenter, cineasta americano de culto, realizou um filme ("The Thing") onde explora este sentimento, provocado por um vírus desconhecido. No filme, a "coisa" vem do espaço e aloja-se no corpo de um cão, adoptado por um equipa de cientistas, numa estação de investigação no Ártico. A metáfora perfeita do Corona. Acontece, que não estamos num filme de ficção científica, mas numa realidade que ganhou a dimensão de uma pandemia.
Aparentemente, só há duas soluções para combater a situação: uma vacina (que ainda não existe) e o isolamento - voluntário ou forçado - das populações infectadas. Contrariamente ao que possa pensar-se, a segunda medida não se destina apenas a manter pessoas em casa, mas a isolar o grupo de risco que necessita de mais cuidados. Para determinar quem, dos infectados, necessita de cuidados prioritários, é preciso fazer testes e ter material sanitário adequado o que, como se compreende, não existe na maior parte dos países, nem é possível adquirir de um dia para o outro. Daí, o método chinês, que se revelou fundamental para circunscrever o vírus à região infectada (Wuhan).
Ao contrário de epidemias conhecidas (malária, ébola, dengue, sars, etc.) normalmente circunscritas a territórios pequenos em países africanos, asiáticos e sul-americanos (os chamados países em vias de desenvolvimento), o "corona" espalhou-se pelo Mundo Ocidental, com uma rapidez sem precedentes. Habituados a viver em estados mais assépticos, graças a sistemas de saúde funcionais e maior prevenção, os europeus descobriram que não estavam imunes à "coisa". Pior: porque a maioria dos países ocidentais desvalorizou o surto de vírus na China, não foram tomadas medidas atempadas e, agora, corremos "atrás do prejuízo": uns mais que outros, mas, inevitavelmente, todos na mesma direcção: maior número de infectados, maior número de mortes e o colapso da maior parte das unidades médicas existentes...
Como o vírus é "democrático", não escolhe países, classes sociais, ou protegidos do reino. Atinge toda a gente, ricos e pobres, novos e velhos, famosos e desconhecidos, Que o digam personagens como o monarca de Mónaco, o príncipe Charles de Inglaterra ou, mais recentemente, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, para citar três exemplos avulso. Que chatice.
Os europeus (e os norte-americanos por extensão) descobriram também que tinham de seguir uma disciplina férrea (há quem lhe chame "estado de emergência") se queriam sobreviver. Em países autoritários, como a China e em "democracias musculadas", como a Coreia do Sul e Singapura, é sempre mais facil, mas, à falta de melhor método, a coação e as multas ajudam. De um dia para o outro, ficámos todos confinados ao nosso pequeno espaço doméstico, com saídas limitadas e a privacidade ameaçada. Passámos, sem dar por isso, a exilados em casa própria. Agora, somos todos sírios. Após esta crise, veremos. Pode ser que a experiência nos torne mais sábios e solidários.
A solidariedade, no entanto, não parece ser interpretada da mesma maneira pelos governantes desta Europa a 27. Como era esperado, as clivagens entre Norte e Sul (leia-se países "ricos" e países "pobres") voltaram a fazer sentir-se. Nem uma crise humanitária, com estas dimensões, parece ter demovido os "empedernidos corações" calvinistas e luteranos na Holanda e na Alemanha. Perante o apelo de Sánchez, Conte e Costa, apoiados por Macron, para que fossem criados "bonds" europeus como forma solidária de combater a crise (os chamados "Coronabonds"), a Holanda, a Alemanha, a Austria e a Finlândia (o bloco do "marco"), opuseram-se firmemente, argumentando que o Mecanismo Europeu de Estabilidade, criado em 2012, poderia ser utilizado para este fim. Acontece, que a sugestão dos países do Sul, que pretendiam "dividir o mal pelas aldeias" (criando um fundo temporário àparte), não convém à Holanda e à Alemanha, mais interessados em emprestar dinheiro, do qual possam receber juros. Já Portugal, Espanha e Itália, países fortemente penalizados com os "resgates" sofridos, após a crise de 2008, não querem repetir a experiência e criticaram fortemente esta posição, que trará menos solidariedade e mais desigualdade entre os países membros.
Esteve bem Costa, ao criticar publicamente o ministro das finanças holandês (Wopke Hoekstra) que "sugeriu que a UE investigasse o que justifica alguns países não terem verbas suficientes (!?) para lidar com os impactos económicos da crise motivada pelo coronavírus". Depois do cretino Jeroen Dijsselbloem ter afirmado, em 2017, que os países do Sul "só pensam em mulheres e vinho" (!?), esta é a segunda vez que ministros holandeses repetem afirmações arrogantes, com base numa pretensa superioridade, sustentada pelo dinheiro. De resto, o primeiro-ministro Rutte é da mesma opinião, o que não espanta, vindo de um governo cuja ideologia neoliberal sempre defendeu o primado da economia sobre as pessoas. A situação agravou-se, com o crescimento de dois partidos de extrema-direita (leia-se neo-fascistas) o PVV (Wilders) e o FvD (Baudet),  o segundo dos quais tem a maioria na primeira câmara (Senado), o que pode explicar as reticências de Rute em libertar verbas de coesão, com medo de perder votos para a direita.
Azar dos Távoras: a Holanda, portanto um país com um dos melhores sistemas de saúde do Mundo, de acordo com os parâmetros da OMS, tinha (às 19h de hoje) um total de 9.762 infectados e 639 mortos pelo corona vírus,  sendo já 10º país com mais casos de infectados no Mundo (worldometer).
Muito mais haveria a dizer. Por exemplo, sobre a política de confinamento seguida, que permitiu a milhares de holandeses regressarem de férias sem serem testados, o reduzido número de testes praticado diariamente (cerca de 2000) e a política de comércio semi-aberto no início, o que facilitou o contágio, como, de resto, aconteceu em Inglaterra. Contrariamente, ao que possa pensar-se, Portugal, Espanha e Itália, são os países com as medidas mais drásticas da Europa, relativamente ao isolamento e aplicação da lei neste momento. Isso não evitou a propagação do vírus como sabemos (a Itália tinha hoje 86.498 infectados e 9.134 mortos e a Espanha 72.248 infectados e 5.812 mortos, respectivamente), mas os restantes países para lá caminham. É só uma questão de tempo.
Nem só do corona vírus, morrem pessoas, no entanto. Nas últimas semanas, foram muitos os conhecidos e alguns amigos que faleceram. Deles, falarei no próximo "post".

(continua)

Carta de um vírus em vilegiatura

Genoma do do coronavirus, 2019-nCoV de Wuhan (Instituto Pasteur)
Viva, estou a falar-te daqui do meio do muco que enche os alvéolos pulmonares de um tipo qualquer — não faço ideia quem seja.
É mais um.
Não me consegues ver, mas eu vejo-te muito bem.
Não me consegues ver, não nos consegues ver, mas nós estamos a ver-vos e somos muitos.
Somos, aliás, cada vez mais. Vamos sendo cada vez mais. Graças a ti e à tua estupidez.
Estamos a fazer exactamente aquilo que muitos de vocês fazem: a lutar pela sobrevivência, seja de que maneira for.
Mas temos uma enorme vantagem sobre vocês.
Tu, mesmo com os teus poderosos microscópios, mesmo com os teus sofisticados sequenciadores, não atinas comigo.
Eu já te tirei o retrato. De corpo inteiro.
E já percebi tudo o que me interessa sobre ti.
Mesmo que, aparentemente, tenhas sobre mim a vantagem de uma vida mais longa e os recursos que resultam do carácter poliforme do teu organismo, não tens hipótese comigo.
Nós fazemos rigorosamente apenas o que é necessário, unimo-nos, multiplicamo-nos e reproduzimo-nos mais depressa do que tu poderás alguma vez fazer. Somos mais ligeiros, mais simples e menos dados a distracções do que tu.
Estamos totalmente focados na nossa tarefa.
E estamos por todo o lado.
À espreita.
À primeira oportunidade vamo-nos agarrar a cada superfície do teu ambiente, a cada peça da tua roupa, vamos pousar em cada ponto do teu corpo, vamo-nos infiltrar por cada um dos teus tecidos, vamo-nos meter por cada um dos teus poros, furar as paredes de cada uma das tuas células. Vamos andar pacientemente à procura de cada uma dessas entradas. A nossa vida consiste em aprender como.
Só fazemos isso. Temos tempo.
Tu não.
O tempo que andas a perder com discussões inúteis, é o tempo que nós vamos aproveitar para te aniquilar. Não sobrará um único de vós.
Estavas talvez à espera de um meteoro? Algo vindo do além? Um “castigo” de uma qualquer divindade, dessas que vocês gostam de criar para vos consolar nas vossas frustrações?
Pois, não te canses mais.
Nós já aqui estamos.
Mesmo ao teu lado. Não nos viste?
Estamos aqui mesmo.
À espreita. 


A vigiar as tuas células.

Não vai sobrar um único de vocês.
E tu estás a ajudar, felizmente. Oh se estás!
A cada dia que passa, verifico que a tua ajuda é preciosa. Nem sei o que faria sem ela…
Tudo o que podias fazer de errado, fizeste-o no passado e continuas a fazê-lo agora. Estragaste tudo à tua volta. Mas, sobretudo, estragaste aquilo que te trouxe ao ponto em que estás — os teus laços com os outros.
Que bom que andem agora todos às cotoveladas!
Juntos, tu com os outros, sois imbatíveis. Mas, felizmente, fizeste tudo para quebrar esses laços. És tão estúpido!
E eu estou tão feliz por o seres.
Porque isso facilita imensamente a minha tarefa.
E traz cada vez mais lutadores para o meu exército.
Exército, sim.
Porque é, de facto, uma guerra que aqui estamos a travar. Mas tu vais perdê-la!
Repara como consigo liquidar já, sem qualquer dificuldade, os mais velhos. É canja. Consegui perceber logo isso.
Mas, não te iludas! Tu, falo contigo, jovem, vais a seguir!
Vou continuar a aprender e, em breve, nem os que ainda estão para nascer vão sobrar. A estupidez não vos vai permitir ter tempo para perceber como é que nós vos vamos liquidar a todos, com toda a  facilidade, velhos, novos ou fetos.
A estupidez não escolhe idades, e a tua idade não vai, de facto, ser impedimento para eu concluir a minha tarefa.
Nem há locais ou situações privilegiadas para te defenderes de mim.
Não deixaremos de cumprir o nosso destino. E tu? Qual é o teu?

Nós, tu e eu, estamos intimamente ligados, desde os tempos mais remotos. Os nossos destinos parecem desde sempre ligados. Não penses, portanto, que te vais livrar facilmente de mim.
Seja onde for, seja quem for, mais hora menos hora, repito: não vai sobrar um único de vocês!

A menos que…

A menos que, para meu azar, resolvas emendar a mão. E percebas que, sem vocês, nós também não vamos longe e que isto é uma guerra que, nem nós poderíamos ganhar sem a vossa existência. É que nós precisamos de vocês, mas vocês não precisam de nós, para nada.
Já viste?
O que estás a fazer então?
O que andas para aí a fazer, a perder tempo em vez de restabeleceres os teus laços com os outros? De trabalhares para os outros, como trabalhas para ti?
Talvez assim me conseguisses ver, finalmente,
Talvez assim conseguisses virar o desfecho desta fatalidade.
Mas, por enquanto, apenas eu te vejo a ti.
Não me consegues ver, a mim, é verdade, mas consegues ver os outros, teus semelhantes, à tua volta.
Repara como estão vivos. Repara como, no fundo, querem todos continuar vivos como nós.
Pensas que algum desses, que vês à tua volta, quer morrer às minhas mãos?
Oh que ingénuo! Todos querem o mesmo que tu.
A única diferença entre vocês, é que pensas que só tu tens o poder de escapar às consequências da minha luta pela sobrevivência. Que te vais safar. Mas, como te disse antes, não vais. Só terás o poder de te veres livre de mim se assumires que o não podes fazer contando apenas contigo.
Eu sou muito mais esperto que tu. A minha luta por permanecer vivo resume-se, simplesmente, a criar mais de nós. Por outro lado, repara, não há, entre nós, velhos e novos, pretos e brancos, ricos e pobres, do norte ou do sul. Somos muitos, somos rigorosamente iguais e, graças a ti, seremos sempre quantos formos necessários para sobreviver. É por isso que somos imbatíveis.
Cada um de vocês que tu, com a tua estupidez, sacrificas à minha determinação, é alguém que não vais poder substituir. Que te poderia ajudar. Alguém diferente. Alguém que te poderia talvez ajudar precisamente por ser diferente. É nisso que reside o teu poder, não vês?!
Nós estamos todos focados no mesmo objectivo e cada um de nós que tomba será substituído, à tua custa, por alguém exactamente igual a mim, com a mesma determinação, o mesmo propósito e a mesma sanha por te sugar o último traço do teu ADN.
Eu estou focado e só me interessa uma coisa. Cada um de nós que desaparece é substituído por uma multidão de outros, que toma o nosso lugar e se junta aos outros nesse propósito. É o nosso foco que mantém, justamente as nossas fileiras em crescimento. É o nosso foco, único, que nos dá a força de que precisamos. O teu foco enfraquece-te.
Vê os que estão à tua volta. Ou melhor, ouve-os! Ouve-os, a sério. Ouve-os como ouvias quando andavas a dar os teus primeiros passos nesta Terra. Eles dizem tudo o que é preciso saber para mudar o rumo das coisas e tu já não sabes ouvi-los.
Talvez ainda haja tempo. Mas apressa-te porque eu viajo ligeiro. Quase nada pode impedir o meu desígnio.
Eu e os meus irmãos temos a simplicidade das coisas que perduram, que se adaptam, que resistem. Vimos de longe. Temos o foco, o espaço e todo o tempo do mundo..
E tu?

2020/03/26

Duas semanas noutra cidade (3): Fronteiras, Espanha e Pandemia

Foto Brunoticias

Após uma semana de espera, o segundo telefonema do Consulado Português em Sevilha. O interlocutor, simpático, começa por perguntar se já "regressei" a Portugal. Dada a resposta negativa, informa que os serviços consulares (leia-se MNE) não conseguiram reunir os 20 passageiros necessários, que justificasse o aluguer de um autocarro para um repatriamento colectivo. Pragmático, passou às alternativas existentes: apanhar um autocarro de carreira Sevilha-Ayamonte (15 euros) e, de lá, chamar um táxi que me leve a V.R. Sto. António (20 euros). A partir daí, tinha duas opções: comboio V. R. Sto. António-Lisboa (com mudança em Faro); ou autocarro, directo, até Lisboa. Outra opção (mais cara), seria alugar um carro com chauffeur, mais barato que um táxi, por um preço médio de 150 euros até à fronteira de V. Real. Acrescentou, que se trata de carros de luxo, agora a preço reduzido (!?), dada a escassez da procura. Perguntou-me qual a minha situação e se podia esperar em segurança. Respondi que sim. Realista, acrescentou: "nesse caso, deixe-se estar onde está, que está bem. Quanto mais viajar, maior o risco. De qualquer das formas, quando regressar, terá sempre de cumprir os 15 dias de quarentena, obrigatórios em Portugal." Na despedida, não deixou de sublinhar que eu tinha o seu número de telefone e que o Consulado estaria sempre à disposição para qualquer informação ou ajuda, se necessário...
Contas feitas, e na melhor das hipóteses, irei permanecer aqui até dia 11de Abril, quando o segundo período de quarentena no país terminar.
Com menos de 15 dias de quarentena (o primeiro período ainda não expirou), a situação em Espanha é de alarme generalizado. O país atravessa uma crise sanitária sem precedentes e as estruturas de acolhimento estão à beira do colapso. É o caso de Madrid (o mais grave) onde os hospitais públicos não têm meios humanos e materiais, para receber todos os infectados. O governo fez um apelo aos hospitais privados, alguns dos quais já disponibilizaram alas inteiras para tratamento dos mais necessitados e encomendou 14 milhões de euros em material sanitário. O pessoal médico começa a acusar o esforço titânico a que tem estado submetido e o contacto com os infectados já provocou as primeiras baixas que, nalguns centros, são da ordem dos 20% entre os médicos e enfermeiros! Os meios necessários (camas, máscaras, respiradores, kits de teste, desinfectantes) são manifestamente insuficientes para as proporções desta epidemia e os apelos ao governo são, por isso, constantes. Afinal, os médicos estão na primeira linha do combate e serão os primeiros infectados. São eles os heróis, nos dias que passam. Diariamente, a população de Sevilha, assoma às janelas pelas 20h. para agradecer com uma salva de palmas a dedicação demonstrada. Minutos impressionantes.
Nem tudo são palmas, no entanto. Também há "caçaroladas". A primeira, contra o rei Filipe VI, durante o discurso onde este animava o país, e que coincidiu com anúncio onde renunciava à herança do seu pai, por manifesta corrupção; a segunda, contra o governo, por ter decretado o prolongamento do estado de calamidade pública, agora reforçado com medidas austeras de circulação e multas pesadas para quem não obedecer. Os transportes públicos foram reduzidos a metade e a entrada nos únicos estabelecimentos abertos (supermercados e farmácias) é feita a conta-gotas, com filas de pessoas que guardam distância entre si. Pesem as medidas tomadas, o número de mortos não pára de aumentar. À hora de escrever este texto, o Worldometer (OMS) registava um total de 56 197 infectados e 4145 mortes em Espanha, o 4% país com mais infectados a nível mundial, depois da China, USA e Itália. Uma catástrofe sem precedentes. A infecção já está em 196 países, apesar de alguns não publicarem estatísticas fiáveis.
Países com maior número de infecções (short list):
China: 81.285 (3.287 mortes)
USA: 74.388 (1.072)
Itália: 74.386 (7.503)
Espanha: 56.197 (4.145)
Alemanha: 41.519 (239)
Irão: 29.406 (2.234)
França: 25.233 (1.331)
Suiça: 11.712 (191)
UK: 9.849 (477)
Coreia do Sul: 9.241 (131)        
Holanda: 7.431 (434)    
Portugal, aparece em 15º lugar com 3.544 infectados e 60 mortes.
A registar, pela positiva, a redução do número de mortos na China e na Coreia do Sul, onde a epidemia foi considerada controlada (o que pode ser explicado pela disciplina e pelas austeras medidas militares de contenção e prevenção); o baixo-número de mortos na Alemanha (o que pode ser explicado pelo sistema de prevenção existente: 160 000 testes/dia - mais do que na Coreia do Sul) - o maior número de camas por habitante (8/26) e menos mortes de pessoas idosas.
A surpresa, surge do Reino Unido (o país que criou o National Health Service), da Suíça e da Holanda, países com bons sistemas de saúde. Se, no primeiro caso, uma das explicações poderá ter a ver com a descapitalização do NHS e a atitude negligente do governo neoliberal de Boris Johnson, que, para manter a economia a funcionar, autorizou a abertura do comércio, para além do razoável (deixando a porta aberta aos contactos sociais que ampliaram as infecções); já na Suíça e na Holanda, países pequenos com grande densidade populacional, a possibilidade de contágio é um factor de risco. Acresce que, em ambos os países, a descapitalização e consequente privatização dos serviços públicos, também se fazem sentir o que, de resto, é transversal à maioria dos países europeus.
Portugal, em termos relativos ainda pouco atingido, confronta-se com o mesmo problema: depois de uma década de desinvestimento no sector público (anos da Troika, com Passos Coelho e anos de estabilização com Costa) não recuperou os níveis anteriores a 2011. A privatização da saúde (50% do sector) aumentou o fosso entre os "have" e os "have not", com as consequências conhecidas. Com a curva dos infectados a aumentar (ainda que abaixo das projecções mais pessimistas), o sistema do SNS está em risco de implosão e o governo deve tomar medidas que defendam a população. Desde logo a nível sanitário (comprando material e obrigando os privados a disponibilizar instalações e testes para a população) e, simultaneamente, criando medidas temporárias de apoio a desempregados e empresas em dificuldade. Estamos num tempo de solidariedade. A economia, fica para depois.
Este é, de resto, o apelo de Sanchez (PSOE) e outros líderes europeus, que pediu um novo "Plano Marshall" para a Europa, ao que a presidente da Comissão (Von der Leyen) respondeu que a Comissão dispunha de meios suficientes para suster a crise (!?). Quanto à comissária da saúde europeia, parece perdida em combate, já que ninguém ouve falar dela...
No meio do caos organizado em que se transformou esta pandemia, não faltam as vozes da oposição, para quem tudo o que os governos fazem está mal feito. No caso espanhol, o líder do Vox (extrema-direita) secundado pelo PP (franquista), falam todos os dias das suas casas, onde estão refugiados em quarentena. Abascal (Vox) criticou o governo por autorizar manifestações feministas no dia 8 de Março que, na sua "perspectiva", teriam aumentado o risco de contágio (!?); ontem, voltou a manifestar-se, exigindo que os imigrantes ilegais pagassem todos os gastos se fossem atendidos em hospitais públicos (!?). Esqueceu-se de referir os milhares de imigrantes legais, que trabalham nas estufas andaluzas, sem máscaras e sem luvas, onde são explorados e vivem em condições deploráveis de salubridade.
Outro palerma, é um médico de Granada, que dá pelo nome de Jésus Candel e coloca vídeos na Net. Começou por elogiar os serviços médicos nos primeiros dias, para mudar o discurso à medida que faltava material e o hospital onde trabalha deixava de responder às necessidades. O homem pensou que tinha graça e fez das suas intervenções diárias, uma espécie de "stand-up comedy", onde injuriava tudo e todos, a começar pelo primeiro-ministro. A idiotice (um caso de insubordinação inqualificável) foi criticada por colegas de profissão e Joan Planas, um comentador que (num vídeo viral) exigiu a Candel que pedisse desculpa ao povo espanhol. Já esta semana, Candel retratou-se e veio mudar o discurso, agora com lágrimas nos olhos. O medo e o pânico não poupam ninguém, mesmo os mais parvos.
Esta é, provavelmente, a maior lição desta pandemia. Atinge tudo e todos: doentes e médicos, pobres e ricos, famosos e desconhecidos: do monarca de Mónaco ao príncipe Charles de Inglaterra; de Irene Montero (Podemos), ministra da Igualdade a Carmen Calvo (PSOE), vice-presidente do governo espanhol, que, hoje mesmo, teve alta do hospital onde se encontrava internada devido ao Coronavírus. Também o juíz Garzón, se encontra hospitalizado com dificuldades respiratórias.

(continua)





 

2020/03/24

Duas semanas noutra cidade (2): isolamento, rotinas e notícias


Em dias de quarentena forçada, continuamos à espera de notícias do consulado de Sevilha, sobre um eventual repatriamento colectivo, organizado pelo governo português a partir da capital andaluza. 
Como era expectável, o governo espanhol decidiu prolongar o período inicial da quarentena, de 15 para 30 dias. O governo português fez o mesmo, o que de resto estava implícito no "estado de emergência" decretado no passado 15 de Março. A quarentena está para durar, pelo menos até dia 11 de Abril. A circulação, entre os dois países, foi drasticamente limitada (menos 99% de tráfico terrestre, segundo a imprensa espanhola) e as punições para os infractores podem atingir multas na ordem dos milhares de euros. As medidas mais drásticas da União Europeia, segundo Sánchez, o primeiro-ministro. 
Outros países tomaram medidas similares (o que, em si, é compreensível) e não tardará muito que a população europeia (quiçás mundial) fique confinada em casa, esperando pelo abrandamento da "crise sanitária". Se a "coisa" resultar, o confinamento pode ser uma tentação para ditadores em potência. Não por acaso, foram os partidos de direita extrema (Chega, CDS, etc...) os primeiros a exigir o "estado de emergência", apesar de não saber muito bem o que fazer com ele. Para já, os populistas estão desaparecidos em combate, ainda que o "desventurado" André, tenha andado pelos hospitais a tentar capitalizar o descontentamento dos médicos e utentes, na tentativa vã de culpar o SNS (leia-se, o governo) pelos infortúnios de uma sociedade pouco preparada para uma epidemia destas dimensões. Ninguém estava preparado. A prova é o crescimento exponencial do vírus a nível mundial, como pode ser observado diariamente na app "worldometer", que actualiza ao minuto as cifras disponibilizadas pela Organização Mundial de Saúde. Vão lá ver e depois falem.
Para já, há que seguir as indicações sanitárias aconselhadas e permanecer em casa. Parece fácil, mas não é. A principal dificuldade, é a falta de exercício. Compensamos com sessões de yoga diárias e subidas à açoteia que cobre todo o edifício (vantagens mediterrânicas), lugar de reunião dos condóminos e dos filhos em tempo de clausura. Uma vez ao dia, descemos para ir ao supermercado (falta sempre qualquer coisa), à farmácia ou ao ATM. Aproveito para comprar o "El País" impresso, já que nem todos os artigos estão disponíveis online. Os "workshops" na cozinha fazem parte da rotina diária e temo pelos quilos acumulados.  As leituras diárias, online e não só, são obrigatórias, dada a informação importante que circula, ainda que a opinião disparatada tenha aumentado em proporção. Podemos dividir as notícias que circulam em três grandes grupos: as catastrofistas, as cómicas e as cínicas. As primeiras, vêem na actual pandemia, um sinal do fim do Mundo (fundamentalistas religiosos e negacionistas em geral); as segundas, fazem circular anedotas, algumas delas geniais (o humor é importante nos dias que correm); finalmente, as terceiras, provavelmente as mais  pessimistas, ainda que, às vezes, com razão. Afinal, um pessimista é um optimista realista.  
Das centenas de notícias lidas, respigamos alguns assuntos que nos chamaram a atenção:
Desde logo, o "estado de excepção", promulgado pelo governo português, depois de um apelo do Presidente da República, após ouvir o Conselho de Estado no passado dia 18. A medida seria aprovada por uma maioria da AR, com abstenção do PCP, Verdes e IL. Uma lei polémica, já que é a primeira vez que  é aplicada em 44 anos de democracia (se exceptuarmos o período que se seguiu ao 25 de Abril, quando os militares, do MFA, garantiam a ordem democrática) e que continua a ser fortemente criticada em diversos artigos de opinião, e.o. por Raquel Varela, Manuel Loff, Rui Tavares (Público), Francisco Louçã (Expresso), Garcia Pereira (Diário de Notícias) ou Carlos Matos Gomes (Tornado). No seu discurso perante a AR, António Costa procurou serenar os ânimos, ao garantir que as liberdades fundamentais (leia-se, democracia) estavam salvaguardas. Resta saber se, ao prolongamento da situação de excepção, se seguirá uma situação de aceitação destas mesmas medidas, que poderão ser prolongadas caso a crise social e económica, que, inevitavelmente, virá a seguir, lance o pânico nos "mercados". Conhecemos o enredo: em situação de crise, a especulação aumentará exponenciamente e, a não serem tomadas medidas preventivas desde já (dos governos, mas também dos cidadãos que neles votaram) podemos vir a confrontar-nos com um dos dois pesadelos: ou controlo financeiro da economia e, por extensão da política, como aconteceu após o "crash" de 2008; ou o fascismo (implícito e explícito), que é a forma mais drástica do ditadura do capital. Como declarava, ontem, Yanis Varoufakis, em debate online organizado pelo movimento DIEM25, "a esta hora, em Budapeste, Orbán e os seus congéneres europeus, como Le Pen e Salvini, esfregam as mãos, à espera da próxima crise que facilitará os regimes autoritários."
Outras notícias, não menos importantes, são naturalmente os boletins clínicos e conselhos práticos fornecidos diariamente pela OMS e, no caso português, pela DGS. Pesem algumas discrepâncias em dados e opiniões abalizadas, algumas coisas começam, no entanto, a ser aceites pelo mundo científico. Assim, e contrariamente à notícia difundida em Janeiro, o Coronavírus pode ter sido originado noutro local, que não em Wuhan, apesar de ter sido num mercado dessa cidade que primeiro foi detectado. De acordo com cientistas chineses, japoneses, taiwaneses e norte-americanos, o vírus pode, inclusive, ter origem nos EUA, o único país onde foram (até agora) encontradas as cinco estirpes do Corona. O seu aparecimento na Ásia, não exclui a possibilidade de ter sido transportado para Wuhan, onde decorreram exercícios militares internacionais. Em todos os outros países asiáticos (China, Coreia do Sul, Japão, Taiwan, Singapura, etc.), o vírus tem apenas uma ou duas estirpes. Está tudo num artigo publicado no El Ciudadano.
Também sabemos que a China e a Coreia do Sul, os primeiros países (com o Japão) a serem atingidos pela epidemia, conseguiram o "achatamento da curva" de expansão dos infectados, reduzindo o número de mortos. Dos 1500 casos diários registados no pico da crise, Wuhan passou a 6 por dia! Uma das explicações para o sucesso, prende-se, naturalmente, com a disciplina asiática o que, num estado totalitário como a China, não será difícil de acatar. Já na Coreia do Sul (o segundo país asiático mais infectado), assim que souberam da situação chinesa, foi desenvolvida uma estratégia nacional: as 4 maiores fábricas farmacêuticas do país receberam meios e dinheiro para fabricar kits de teste, o que permitiu testar 20 000 cidadãos diariamente, em hospitais e unidades clínicas de proximidade. Simultaneamente, foram criados 56 laboratórios em todo o país, para analisar os resultados e, desta forma, separar os cidadãos infectados da restante população. Hoje, tanto os médicos chineses, como os sul-coreanos, estão na Europa (o continente mais afectado) a ajudar em países como a Itália e a Espanha. A prevenção e a disciplina, não bastam, mas ajudam.

(continua)

2020/03/21

Comunicar em tempo de pandemia


Vivemos uma situação sem precedentes a nível mundial. Não, não me refiro ao famigerado vírus. Vírus, como chapéus, há muitos e a situação terá, mais tarde ou mais cedo, uma solução. O que me preocupa é que o mundo (não é aqui Benavente, Portugal ou a Europa, é o Mundo!) está neste momento metido em casa. Quem não está em casa, imagino, serão os marginais das sociedades modernas, os nómadas, eremitas, desterrados, velhos, loucos ou insociáveis, mais ou menos tradicionais, que já não contavam, e continuam a não contar, para o jogo perverso da globalização. As ruas das cidades, pelo que se consegue ver, estão desertas. Aquela imagem dos animais contidos entre baias, nas grandes unidades pecuárias, segregados e imobilizados, somos agora nós.

Estamos, cada cidadão, cada contribuinte, cada indivíduo, cada família mononuclear, mais ou menos hip, confinados, em todo o mundo, ao espaço trancado das nossas casas, com os movimentos rigorosamente controlados. É por bem, dizem. Será, concedo. Mas esta situação tem os contornos e carrega um tremendo potencial de abuso, comparada com a qual distopias como o Big Brother ou High Chancellor Adam Sutler, do V for Vendetta, pareceriam meninos de coro a cantar "The hills are alive!"

Ora, neste altura, a única coisa que mantém os “globalizados” juntos são as as comunicações. Não foram os telemóveis, os tablets e os computadores e, assim isolados, estávamos agora todos mergulhados numa escuridão e numa ignorância mais profundas que na Idade das Trevas. Na situação actual, de confinamento e isolamento forçados, numa dimensão e em circunstâncias nunca antes vistas, qualquer luz que se acenda nesta escuridão tem unicamente como suporte estes sistemas de comunicação. Mais do que simples objecto de desejo, por vezes, abusivamente omnipresente, este é o fino fio que nos liga presentemente a todos. É por ele que escrevo e é por ele que me lêem. É ele que vai garantindo as liberdades e um verdadeiro, mas geralmente pouco valorizado, exercício da democracia. Vencer as barreiras da comunicação é hoje um poder que já só parcialmente se mantém nas mãos de elites. Hoje está nas mãos de todos nós, mesmo que o exerçamos por vezes de forma pouco competente e que desse imenso poder não nos demos verdadeira conta. Não são as visitas virtuais, as leituras, os passatempos, músicas e outros “entretenimentos” que nos propõem para preencher este vazio forçado, que nos manterão ligados à realidade, mas a possibilidade de exprimir os nossos sentimentos livremente, de nos reunirmos, e, nesta altura, a troca de informações, o contacto com família e amigos, a possibilidade — que a publicidade e algum uso inapropriado fazem, por vezes, parecer insuportavelmente banal — de estar presente à distância. O vírus manté-nos à distância, o tal fino fio vence-a.

Lembremos, contudo, a morte do mensageiro. Lembremos as bombas nos emissores. Hoje ela pode ser substituída por uma simples ordem para premir um botão virtual.

O direito à livre circulação de informação, o direito à reunião e a liberdade de comunicação continuam, neste quadro de excepção, tão importantes como o direito ao trabalho e a um sustento digno, face a uma eventual crise que o vírus desencadeie — crise, de resto, cujos contornos não nos estão a ser bem explicados, mas isso é outro assunto. O direito à livre expressão e à circulação de informação é tão básico e vital como o acesso à energia eléctrica ou à água.
As tentativas de atropelo já começaram, mas por enquanto ainda sabemos o que vai acontecendo e podemos transmiti-lo aos outros e reagir. Imagine-se se a transmissão é cortada.

Se ficarmos sem comunicações (e os estados de excepção, dêem-lhe o nome que derem, têm uma enorme tendência para resvalar nisso) seremos náufragos, isolados, perdidos num qualquer oceano, sem qualquer contacto e com o nosso poder de acção seriamente cerceado. De facto, sozinhos em casa, não saberemos o que se passa lá fora, sem o acesso à infraestrutura de comunicações. Hoje ainda sabemos o que nos contam, beneficiamos das  conclusões que disso podemos tirar, da discussão que disso podemos (ainda) ter, uns com os outros. Neste momento não há testemunhas oculares. Mas, se nos tiram essa capacidade de comunicar e de exercer o nosso inalienável direito de nos organizarmos (organizar É comunicar!) estamos liquidados.

Por muito que tentem pintar o quadro de outras cores, não estamos em guerra. Não há segredos a defender, pelo contrário! Não há tácticas e estratégias de guerra para implementar, não há espiões, não há gente fardada e armada a querer invadir-nos as fronteiras. Nesse sentido, a metáfora da guerra usada por alguns governantes, é totalmente despropositada. Há um vírus. Uma doença que a todos atinge. A guerra pretende aniquilar, destruir e silenciar. A doença precisa de cura para os atingidos. Aquilo que se espera e exige hoje, pois, é solidarieadade e transparência totais.

Vivemos num estado democrático. Temos por isso que velar para que a infraestrutura de comunicações esteja disponível, tal como os outros serviços e direitos essenciais, e o seu uso responsável seja garantido durante este período de excepção sanitária. Se necessário for, com a sua nacionalização temporária e disponibilização gratuita. Comunicar, em tempo de excepção, não é um jogo online, é uma prerrogativa, da qual não podemos, em qualquer circunstância, abrir mão e que tem de ser garantida pelo Governo que elegemos.

2020/03/18

Duas Semanas noutra Cidade: Teatro, Flamenco, Vírus e Confinamento


No âmbito de um programa de intercâmbio, firmado entre a Escuela Superior de Arte Dramático de Sevilla (ESAD) e o Teatro da Rainha (Caldas da Rainha), deslocou-se na passada semana, à capital andaluza, a companhia portuguesa que, este ano, comemora o seu 35º aniversário.
Do programa pré-estabelecido, a apresentação da peça "Planeta Vinil" para além da observação-participativa em aulas de representação e na construção de títeres por professores e alunos de Sevilha que, em data ainda por determinar, retribuirão a visita com a representação de uma peça criada para o efeito, para além de "workshops" de voz e títeres, propostos pelo corpo docente da Escola.     
Quatro dias de intenso convívio e animação, cujo ponto alto constituiu a apresentação da peça portuguesa, da autoria de Cecília Ferreira, representada pelos actores Cibele Maçãs, Mafalda Taveira, Fábio Costa e Nuno Machado. A encenação esteve a cargo de Fernando Mora Ramos e a sonoplastia a cargo de Lucas Keating e António Anunciação.
A peça, uma metáfora sobre o planeta e o perigo de extinção da vida animal, não podia ser mais actual, em tempo de alterações climáticas. Nas palavras da autora:
"Uma criança ruiva, um peixe-napoleão, um escaravelho e uma galinha poedeira, fogem da Extinção. Não sabem ao certo quem ela é, mas pelo tom grave com que todos pronunciam o seu nome, e cada vez com mais aperto, estão certos de que se trata de uma criatura monstruosa e assustadora, que está a aproximar-se deles com largas e demolidoras passadas. Os quatro não decidiram fugir juntos, foi o caminho que os juntou. E nem sempre foi fácil a sua convivência, mas seguiram, guiados pelos seus instintos e convicções, em direcção à Porta do Fundo do Mundo, que lhes permitirá aceder, acreditam, ao Avesso - aquele que está limpo da Extinção e de outros monstros que tais.
Todos parecem saber como chegar até lá, mas o tempo excede-se, elucida e confunde, e o percurso cresce e inquieta" (do programa).
Anfiteatro da escola cheio, para apreciar esta peça para todas as idades que, nas palavras do seu encenador, pode ser vista por espectadores dos 7 aos 77.
Excelentes, as interpretações, de todos os actores, dirigidos desta vez por Mora Ramos, um actor de volta ao papel de encenador.
A representação mereceu rasgados elogios, tanto dos alunos como dos docentes presentes, após a qual se seguiu um debate entre os actores e o público.
A visita a Sevilha, não terminaria sem uma passagem pela Casa de La Memoria, para mais uma sessão de Flamenco, a cargo do corpo dos artistas residentes, que garantem a qualidade da arte neste centro de excelência da cidade.

Como era inevitável, a pandemia existente dominou todas as conversas. A Espanha é, de resto, o segundo país europeu em números de casos detectados e o quarto a nível mundial. Os alarmes nos meios de comunicação social sucedem-se ao minuto e os números de infectados e de vítimas cresce exponencialmente. Também por esse motivo, os membros da companhia optaram por regressar mais cedo que o previsto.
Prevendo o pior, tentámos a habitual reserva num dos autocarros que fazem a ligação entre a cidade e  Faro. Debalde. Tinham sido cancelados e só havia lugares no último autcarro que saía à meia-noite de segunda para terça-feira.
A segunda hipótese seria alguém levar-me à fronteira de carro. Telefonámos para a Guardia Civil. Não era permitido o trânsito, à excepção de ambulâncias, carros da polícia ou de empresas e pessoas que trabalham em ambos os lados da fronteira. Multa para prevericadores: 600euros.
Terceira tentativa: o avião. Preços obscenos e horas de espera infinitas de "tranfers" em Madrid. Exemplo: a Ryanair (não por acaso, considerada a pior companhia "low-cost" nos "rankings" internacionais) oferecia voos directos e via Madrid, a partir de185euros. Uma mala no porão, 70euros. A escolha de lugar, em classe económica, 17 euros. Custos administrativos, pela operação bancária, 7 euros. Ou seja, na hipótese mais barata, com 4 horas de espera em Barajas, a módica quantia de 280 euros...  
Quarta tentativa: o "Blablacar". Para nossa surpresa, ainda funcionava. Escolhido o dia (terça 17) e paga a passagem, restava a confirmação. Confirmado na mesma noite, para as 15h, com 5 horas de viagem "nonstop" até Lisboa. Só que...algumas horas mais tarde, a viagem foi canceldada pelo operador, com os habituais pedidos de desculpa e a promessa de devolução do dinheiro.
Quinta tentativa: um autocarro para Lisboa. Ainda restava um lugar, no último autocarro antes de fechar a fronteira. Reserva feita, pela NET, restava o pagamento. Só podia ser efectuado, mediante a inscripção como aderente da empresa. Preenchido o formulário de viajante frequente, voltámos à página de reserva. Tarde demais: o último lugar tinha sido comprado!
Sexta tentativa: um voo alternativo. Uma obscura companhia de voos internos, em colaboração com a Ibéria, voava a partir de Jerez de La Frontera, para Lisboa via Madrid (3 horas no total). Preço 128euros. Melhor, era impossível. Reservado e comprado.
Entretanto, na televisão espanhola, assisto ao discurso do primeiro-ministro português, em deferido, anunciando o fecho das fronteiras. Duas horas depois, um email da Iberia a anunciar o cancelamento do voo. Devolverão o dinheiro, claro.
Em desespero de causa, consulto o "site" do Ministério de Negócios Estrangeiros. Como esperado,  noticia a abertura de uma "linha de apoio a portugueses no estrangeiro". Fornecem um número de telefone e um mail: Covid19@mne.pt. O telefone está permanente ocupado. O mail foi enviado.
Sexta tentativa: telefonema para o Consulado em Sevilha. Respondem que pouco podem fazer. Informam que, se eu conseguir chegar à fronteira, deixam-me entrar (era melhor!). Depois poderei pedir um táxi para me levar a V. R. Sto. António. Aguardam instruções de Lisboa.
Passaram mais de 36 horas. Esta manhã, telefonema do Consulado: se eu puder esperar, o Consulado está a organizar o regresso de autocarro para portugueses que se encontram em Espanha. Estão a tentar agrupá-los em Sevilha, dada a proximidade da fronteira. Necessitam de 20 pessoas, no mínimo, para justificar o aluguer de um autocarro. A viagem será garantida até Faro. Se eu quiser esperar...

2020/02/27

Taxi Driver (21)

- Bom tarde, para onde vamos?
Para S. Bento...
 - Muito bem. Vamos embora. Pelas Amoreiras?
Sim, parece-me o melhor caminho.
(No rádio, ouvem-se notícias sobre a epidemia do Coronavirus)
- Espantoso. Todos os países tomam precauções. Só Portugal, nada...
Bom, não é bem assim. O que se passa é que não foram detectados casos positivos e, os poucos suspeitos, estão em quarentena. Só há sete portugueses em quarentena...
- Pois, mas eu ainda hoje ouvi o presidente da Federação Nacional de Médicos dizer que Portugal não estava preparado...
Também ouvi essa declaração, mas a Organização Mundial da Saúde já declarou que nenhum país está preparado para uma pandemia. Há que tomar precauções e esperar que descubram uma vacina.
- Vacinas, já há. Eles não querem é que nós saibamos...
Penso que não. Entretanto, o melhor é tomar precauções: lavar as mãos, evitar contactos físicos desnecessários, manter uma certa distância de pessoas com gripe, enfim, as recomendações que vão sendo transmitidas. Também convém não comer morcegos, claro...
- Os chineses comem tudo. Mas, não são só os morcegos. E os porcos e as galinhas? Se há bichos que comem toda a porcaria, são os porcos e as galinhas, que é o que nós mais comemos...
Tem razão. Comemos muitos produtos duvidosos. Mas, pode-se sempre melhorar...comer mais legumes, mais fruta, menos carne vermelha...
-  Sabe qual é o bicho mais higiénico?
Não...
- A caracoleta. Se vir um monte de porcaria, passa sempre ao lado e vai comer ervinha. Não é como as galinhas que debicam tudo. E os porcos, então, nem falar...
Faz sentido, a caracoleta é um herbívoro e só come ervas.
- Eu sou um viciado em caracoletas. Também gosto de caracóis, mas só de vez em quando.
Estou a ver. E come-as no restaurante?
- Não. Faço-as em casa. Se for a um restaurante, levam-me 12euros por um prato, com 12 caracoletas. Se levar a família, gasto uns 60euros, ou mais, por uma refeição. Estão ao preço do bife...
Não fazia a mínima ideia. E onde é que as compra?
- Há ali uma boa loja, à entrada da rua de Campolide, está a ver? Agora, está fechada, mas abre no dia 1 de Abril. Vou lá todas as semanas. Um quilo, custa 12 euros e são para aí umas 85, 87 caracoletas. Se comprar 2 quilos, são quase 200 caracoletas, por 24 euros. Dá para a família toda. Só eu, como metade.
Nem que me pagassem...
- Há muita gente que não gosta. Mas, há que saber o que se compra. Há dois tipos: as brancas e as negras. Eu nunca compro das brancas (são de viveiro). Compro sempre das negras. São mais selvagens e muito mais saborosas.
E como é que as cozinha?
- Fácil. Cozo-as ou frito-as e preparo um molho à parte, com piripiri...
Grande banquete!
- Não esquecer a cervejinha, claro. Só bebo Superbock. São mais caras, mas muito melhores que a Sagres que incham a barriga...
Lá isso é verdade, a Sagres tem mais gás que a Superbock. Todas as cervejas comerciais têm mais químicos. Um mal geral.
- Já comprei duas grades, em promoção, que estão lá guardadas debaixo da mesa, para quando começar o "tempo das caracoletas". Convido uns amigos e eles trazem as bebidas, ou então vou a casa deles e levo as caracoletas.
Já vi que é um especialista. E come muitas durante o ano?
- Muitas? Quilos! Todas as semanas e, às vezes, mais do que uma vez por semana. Quando a minha mulher vai à loja, digo sempre para ela trazer das negras, mas uma vez foi enganada. Voltei lá e perguntei à dona da loja, que já conheço há anos: houve lá, pensas que eu não sei o que são caracoletas? Estas são brancas, queros das negras! Pediu desculpa e trocou-me o saco por um de negras. É assim, a mim ninguém me engana.
Estou impressionado. Já vi que percebe do assunto.
- Oh amigo, nestas coisas de petiscos, temos de ser espertos. E comer o que é bom. Por isso, não tenho medo do vírus. Alimento-me bem...
Convém não abusar, mas se se sente bem, quem sou eu para duvidar?
- É como lhe digo. Dêem-me um bom prato de caracoletas negras e dispenso o bife.
Já percebi. Dessa maneira, não há vírus que entrem consigo...
- Pois não. É preciso é saber. Obrigado pela conversa.
Eu é que agradeço.

2020/02/24

Zambras Granaínas, Payos Flamencos

"Zambra" é o flamenco tradicional de Granada.
O seu "coração" situa-se no bairro cigano de Sacromonte, distrito de Albayzin, face ao Alhambra.
"Sacromonte" (a montanha sagrada) deve o seu nome a um cemitério muçulmano existente na área. Uma das suas características, são as habitações, escavadas na rocha, onde continuam a viver pessoas de etnia cigana, as famosas "caves". Vistas de fora, parecem casas normais, mas, uma vez dentro, apercebemo-nos da forma como foram construídas. As fachadas são parte integrante da rocha.
Após a conquista de Granada pelos reis católicos, os muçulmanos viram-se obrigados a abandonar as muralhas da cidade e a refugiar-se na "montanha sagrada". Uma vez aí, misturaram-se com os ciganos, uma tribo nómada que tinha chegado a Sacromonte anos antes, pelas mesmas razões. A partir de então, ambas as culturas coexistiram e misturaram-se em diferentes aspectos. Entre as muitas afinidades, o facto de serem considerados marginais, à luz da conversão iniciada pelo catolicismo. Em 1499, uma lei decretada pelos reis católicos, forçou os ciganos a abandonar a vida nómada. Por esta razão, e a posterior expulsão dos muçulmanos, Sacromonte tornar-se-ia um bairro exclusivamente cigano.
O nome "Zambra", deriva de "zumra", que significa "festa", o ritual tradicional dos casamentos marroquinos, proibido pela Inquisição no século XVI. Continuaram, no entanto, a ser celebrados clandestinamente. Os ciganos, acabariam por integrar esta tradição nas suas celebrações. Estes ciganos são, hoje, os únicos praticantes desta surpreendente dança marroquina.  
Entre os séculos XVII e XIX, quando os escritores e poetas românticos começaram a chegar a Granada, a Zambra e o Flamenco, já eram apreciados na cidade. Foi este reconhecimento, que transformou o Flamenco numa disciplina e num género musical. Tal popularidade, não agradou a toda a gente. Alguns intelectuais da chamada "Geração de 27" (García Lorca, Manuel de Falla), organizaram, inclusive, o "1º Concurso del Cante Jondo" (Granada, 1922) cujo objectivo primeiro era defender o "cante puro" que, argumentavam, se diferenciava do Flamenco popular, demasiado desligado da verdadeira arte. Posteriormente, Lorca, um apaixonado e especialista do género, aprofundaria o seu ponto de vista na famosa conferência "Arquitectura del Cante Jondo", apresentada, pela primeira vez, em 1932 (Salamanca).
Por sugestão do proprietário da loja de discos mais antiga de Espanha, situada junto à Catedral de Granada, visitámos uma Zambra, a histórica "Maria La Canastera". La Canastera, do seu nome, Maria Cortés Herédia, nasceu em Granada em 1913. Foi "bailaora" e "cantaora" e era conhecida por "La Canastera",  porque o seu pai era artesão e fabricava canastros. Desde muita nova dançava nas Zambras de Sacromonte. A primeira saída, que realizou como "bailaora", foi com 16 anos, à exposição Universal de Barcelona, integrando a Zambra de Manolo Amaya, tendo actuado ao lado da lendária Carmen Amaya, por muitos considerada a maior "bailaora" da história do Flamenco. Compartiu o cartaz, com outras figuras míticas do Flamenco, como La Niña de los Peines, Angelillo, Pepe Marchena e Pepe Grillo, entre outros. Gravou 19 albuns no total. Em 1953, tornou-se dona de uma "cueva" (cave) de Sacromonte, para fundar a sua própria Zambra, por onde passariam personalidades de todo o Mundo. Confirmámos a popularidade do local, nas centenas de fotografias que cobrem as paredes. O espectáculo presenciado, pese ambora a boa prestação de uma das "bailaoras" e do guitarrista que acompanhava o "ensemble" residente, deixou francamente a desejar, mas a experiência valeu a pena. De La Canastera, resta a estátua, uma homenagem da autarquia granaína, a meio da Avenida da Constituição, o "boulevard" mais sofisticado da cidade. Uma referência.
Outra referência na arte flamenca, é a "cantaora" catalã Mayte Martín. Vimo-la em Sevilha, no Teatro de La Maestranza, a sala de visitas da cidade. Esta foi a terceira vez que tivemos o privilégio de ouvir esta extraordinária intérprete, uma das melhores do género, que canta igualmente bem boleros, poesia espanhola e os seus próprios temas. Desta vez, num concerto comemorativo do 20º aniversário do seu terceiro disco "Querencia", editado em 2000. Sobre Maite, já quase tudo foi dito. Se dúvidas houvesse sobre a qualidade dos cantores "payos" (brancos), relativamente aos cantores de origem cigana (um debate mantido por muitos puristas do género), estas desvaneciam-se ao primeiro tema do concerto. Ainda que o programa fosse centrado no album que lhe deu o nome, Mayte passou em revista alguns dos seus maiores sucessos, incluidos numa discografia que conta com 9 albuns. Sobre "Querencia", a cantora explicou: "...Además, querencia es una palabra poco conocida. Mucha gente piensa que tiene que ver con el querer y no es asi. Significa esa tendencia a volver al origen, al lugar del que procedes...".
É isto. A evolução na tradição, implica conhecer bem as origens. Coisa que Mayte Martín continua a conhecer bem.