2020/07/21

Dezasseis semanas noutra cidade: Balanço, Quarentena e Programa Europeu de Ajuda


Após quatro meses de "exílio forçado" em solo espanhol, eis-me de volta à pátria, agora que a fronteiras ibéricas foram abertas, com pompa e circunstância, pelos mais altos dignitários de ambas as nações. Restam duas semanas de quarentena, obrigatórias por lei, que poucas pessoas praticam, já que o controlo parece mais remoto do que de um aparelho de televisão. Sim, as indicações sobre o comportamento individual e colectivo (leia-se "distanciamento social") existem e há quem as respeite. Mas nem todos o fazem e, o que é pior, não é fácil respeitá-las. Desde logo, porque a economia não pode parar e, sem o "mercado a funcionar", não haverá dinheiro para comprar melões, mas também vacinas, que ainda não existem e não sabemos quando existirão... Depois, porque a saúde, sendo a componente mais importante, é cada vez mais cara e as prioridades nem sempre são as pessoas. Dito de outro modo: só quando a economia fôr para as pessoas, e não as pessoas para a economia, poderemos encontrar o equilíbrio necessário ao tal "crescimento sustentável" de que toda a gente fala, mas tão pouca gente pratica.  
Este é hoje o dilema da maioria dos países confrontados com a pandemia que, nalguns casos, atingiu números impensáveis há uns meses atrás e que continua a progredir, agora com maior incidência em países como os EUA, o Brasil, ou a Índia, sem que tenha desaparecido da Europa e da Ásia, como as frequentes recidivas o comprovam.
Portugal, um país com graves problemas económicos e um estado social fraco, conseguiu numa primeira fase (estado de emergência) limitar os danos, a ponto de ter sido considerado uma excepção no panorama europeu, que lhe valeu os maiores encómios na imprensa internacional. A relativa prontidão na reacção à crise (encerramento de fronteiras, escolas, recintos desportivos, etc.), aliada à situação periférica do país e ao fraco fluxo turístico naquela época do ano, ajudam a explicar o sucesso sanitário, mas sabia-se que, mais tarde ou mais cedo, a situação iria alterar-se. Desde logo, porque, para atender os infectados com Covid e proceder aos testes necessários para a sua detecção, foi necessário mobilizar hospitais e pessoal médico para este tipo de patologia, para a qual muitos deles não estavam preparados; depois, porque, ao dar prioridade ao combate à pandemia, foram descurados outros serviços (operações, consultas, etc.) que não eram prioritários. É verdade que o sistema hospitalar não implodiu e esse objectivo foi conseguido, o que não deve deixar de ser assinalado, mas nem tudo são rosas...
Com o desconfinamento progressivo, propício ao relaxamento dos costumes, os contactos sociais aumentaram (nem outra coisa seria de esperar) e, com eles, o aumento do número de infectados. Agora, não são apenas os chamados "grupos de risco" (idosos com patologias específicas), mas jovens e pessoas de meia-idade que, por força das suas funções diárias, estão em contacto permanente nos seus locais de trabalho e em transportes públicos, onde não são cumpridos os mínimos desejáveis em tempo de contágio. Tudo isto é conhecido e não há meio de evitá-lo. Enquanto não houver uma vacina, que normalize a progressão da epidemia, esta conhecerá uma expansão, provavelmente com altos e baixos (mas sempre com mais mortes), independentemente do modelo ser o da "imunidade do rebanho" ou do "confinamento obrigatório", como estes seis primeiros meses o comprovaram. Esta é, de resto, a grande contradição de um sistema que, querendo combater o vírus, incentiva a economia aberta, como forma de evitar o colapso social e económico que se adivinha, independentemente dos avanços da epidemia.
Perante tal cenário e quando três das quatro maiores economias europeias (Itália, Espanha e França) estão já confrontadas com as maiores crises sociais do pós-guerra, a União Europeia parece ter acordado da sua longa letargia e reuniu os 27 países membros em Bruxelas, para aprovar o programa de recuperação económica, calculado em 750 000 milhões de euros, para os países mais afectados. 
Como se esperava, e apesar dos encontros bilaterais que antecederam a cimeira (entre Costa, Sanchéz, Conte, Rutte e Orbán) com vista a desbloquear as posições dos grupo dos "frugais" e do grupo de "Visegrado", o antagonismo entre as diferentes visões manteve-se durante os cinco dias que durou a reunião que só hoje, pela madrugada, terminaria.
Contas feitas, todas as partes cederam, naquele que já é considerado um acordo histórico, seja pelo montante das verbas envolvido, seja pelas discussões geradas ao longo desta maratona.
Resumindo: mantém-se o montante global de 750 000 milhões de euros, proposto inicialmente pela presidente da comissão, mas agora com uma nova divisão de verbas. Serão 390 000 milhões (em vez de 500 000 milhões) em forma de doações (a fundo perdido) e os restantes 360 000 milhões, em forma de empréstimos. Uma cedência de 110 000 milhões de euros às posições da Holanda e dos restantes países nórdicos, que sempre preferiram a fórmula "empréstimos" a "doações, que não poderiam controlar. Já as pretensões holandesas, que exigiam condicionar os empréstimos e doações à liberalização das leis laborais e à reformulação das pensões nos países do Sul, não foram satisfeitas, muito por intervenção de Merkel e de Macron (que apoiariam as posições de Itália, Espanha e Portugal).
Para Portugal, o balanço não parece ter sido negativo. Apesar de uma redução de 9000 milhões na verba inicialmente prevista (que era de 26 000 milhões), receberá 15 000 milhões do "fundo de recuperação" (a fundo perdido), podendo recorrer à restante verba, em forma de empréstimo. Junte-se a este "envelope" (para combater a crise pandémica), os 30.000 milhões do quadro do programa plurianual europeu para o período 2021-2027, e teremos um total de 45.000 milhões, que o país vai receber ao longo de 7 anos. Uma "pipa de massa", na opinião dos comentadores de serviço.
Na realidade, dinheiro europeu foi coisa que nunca faltou, ao longo dos últimos 35 anos. O que sempre faltou foi uma estratégia para o desenvolvimento do país. Por isso, estamos onde estamos. Será que é desta?

2020/07/19

Um Rio poluído


O dr. Rui Rio parecia ser um tipo um pouco menos bronco do que os seus predecessores. Sobretudo pela reacção que teve no início do problema da pandemia. De repente, certamente por causa do calor, perdeu o sentido de Estado, esqueceu as exigências da Democracia e aparece a dizer isto que se pode ouvir aqui
A questão principal nestas declarações é esta: sem uma ideia sequer para o seu País, sem uma única sugestão sobre o modo como aplicar convenientemente os fundos, que ele exige justamente que seja vigiado, é preciso que eles não faltem, nem que se tenha para isso de dobrar a espinha a esses senhoritos do norte, que tresandam a mediocridade, mas tentam disfarçá-la armando-se em grandes senhores. Mas vigiar o quê ó dr. Rio? O que é o que o senhor propõe?
Ah, how I long for yesterday... And I love the smell of troika in the morning!
Mas a verdade é que Rui Rio reconhece, ipso facto, enquanto membro de um importante partido político PORTUGUÊS, candidato à governação do país, não ter uma ideia na cabeça, ao mesmo tempo que demonstra não ter capacidade para corrigir os problemas que aponta. Nestas circunstâncias, prefere abdicar das suas prerrogativas enquanto membro de um partido candidato ao poder a favor de um bárbaro qualquer do norte.
Rio prefere esperar, subserviente, pelo subsídio da Europa. Mas para dar ar sério à opção, que seja com a supervisão dos outros países, não vá a coisa descambar e a malta perder a massa, que tanta falta faz para podermos continuar neste caldo de indigência nacional em que os políticos como Rio e partidos como o PSD gostam de se ir mantendo confinados.
Como iria, é justo perguntar, o País gastar esses fundos, se fosse o PSD a geri-los?
Faz lembrar aqueles que, no futebol, para não perderem as receitas da televisão, mas sem ideia sobre o jogo, sem chispa nem talento e jogando mal, culpam o árbitro pelas derrotas das suas equipas e vêm gritar depois, indignados, a pedir que se usem árbitros estrangeiros.
Um verdadeiro patriota, este Rio. Isto também diz bem do que é o PSD hoje. E abrindo o zoom, ficamos a perceber o que é, à direita, a oposição ao governo com que hoje podemos contar: vendilhões, boçais, amadores, criancinhas insolentes e fascistas. Um rico ramalhete.
Eu cá também acho que o PSD devia ser substituído por um partido da oposição de um país qualquer do norte...

2020/06/30

Quinze semanas noutra cidade: É a pobreza, estúpido!


Escrevo em vésperas do encontro transfronteiriço, entre os chefes de estado de Portugal e Espanha, marcado para o próximo dia 1 de Julho, em Badajoz. A cerimónia assinala a reabertura da fronteira terrestre entre os dois países, encerrada desde o passado 16 de Março devido ao Coronavírus.
Se tudo correr bem, a partir de amanhã, será possível voltar a atravessar a fronteira rodoviária, já que a linha ferroviária, entre Évora e Badajoz (80km), continua por construir. Um pequeno passo para a Humanidade, mas (aparentemente) um grande passo para Portugal que, apesar dos inúmeros programas de financiamento europeu, nunca considerou prioritário terminar uma linha ferroviária que ligasse o Alentejo à Extremadura espanhola. Só muito recentemente, foi dada "luz verde" à construção de uma linha de mercadorias entre Sines e Badajoz (via Évora) que - pasme-se! - quando estiver concluída, não passará por Caia, que já dispõe de uma estação (desactivada) de passageiros. Tudo indica que a linha será apenas para mercadorias. Será que receiam o vírus espanhol?
Entretanto, indiferente às fronteiras, o vírus continua a propagar-se pelo Mundo, agora a uma velocidade estonteante. Tedros Adhanom Ghebreyesus, secretário-geral da Organização Mundial da saúde (OMS) vem dizendo, há dias, que os países não podem confiar nas notícias da diminuição dos contágios. "Estamos numa fase nova e perigosa", repete. Quase metade dos novos casos, são oriundos do continente americano, mas os números do Sul da Ásia e do Médio-Oriente, não são menos preocupantes. Mais de dois terços, dos falecimentos recentes, ocorreram na América. Os EUA já ultrapassaram os 129.000 mortos, o Brasil 59.000, o México 22.000, o Perú 9.500 e o Chile 5.700.
A OMS alertou para o avanço imparável do vírus, na passada semana, quando se atingiu os 150.000 casos diários, pela primeira vez. Desde então, a situação continuou a piorar. No domingo passado, atingiu 183.000, a cifra mais alta desde o início da pandemia. Para ilustrar o ritmo, que está a atingir o Coronavírus, o director da OMS empregou uma comparação bastante gráfica: foram registados em todo o Mundo mais de 10 milhões de casos. Chegou-se ao primeiro milhão, depois de 3 meses de epidemia. O último milhão foi contabilizado apenas em oito dias. "Parece que todos os dias, chegamos a um novo e sombrio record", avisa Ghebreyesus. Muitos destes estados, já sofreram uma primeira onda de contágios e conseguiram controlá-los após alguns meses de confinamento. O epidemiologista Antoni Trilla não crê que possamos falar de uma "segunda vaga", em quase nenhum país e menos ainda em estados europeus como a Alemanha ou Portugal, considerados países-modelo há poucas semanas atrás. Trilla considera que ainda não saímos da primeira vaga de contágios. As recidivas que estão a acontecer, um pouco por todo o Mundo (China, Coreia do Sul, Taiwan, Alemanha, Islândia, Portugal) obrigaram países, como a Alemanha, a isolar um bairro inteiro (640. 000 pessoas) devido a um foco de contágio que atingiu 1.500 trabalhadores numa fábrica de carne. Não porque os alemães tivesse lidado mal com a pandemia, mas porque, apesar de terem feito tudo bem, não puderam evitar que houvesse uma recidiva. Já a situação nos Estados Unidos e na América Latina, é de uma gravidade extrema, assegura Trilla, não só porque estão a aparecer dezenas de milhares de casos todos os dias, como dentro em pouco terá início o inverno austral, uma "receita perfeita", com mais vírus circulando, mais frio, mais pessoas que permanecem em casa e menos possibilidade de haver condições de temperatura, de humidade e sol, que ajudam a desacelerar a transmissão do vírus.
Em Portugal, país considerado modelo, pela forma como conseguiu controlar a chegada da pandemia, também parecem estar agora mais preocupados com o ritmo de novos contágios. O governo impôs novas restrições (reuniões limitadas a dez pessoas) encerramento do comércio às 20h. e multas nos casos de incumprimento. Aparentemente, o alarme teria disparado depois de uma festa particular que infectou dezenas de jovens em Lagos e, posteriormente, uma "beach party" de mil jovens em Carcavelos, muitos dos quais apresentaram sinais de contágio nos dias seguintes.
Como é habitual nestas ocasiões, não faltaram as críticas dos moralistas de serviço, que logo associaram a "inconsciência" dos jovens festivaleiros ao surgimento dos novos focos de contágio detectados. É bem possível que alguns (muitos) desses jovens tenham contraído o vírus e sejam agora potenciais portadores do Covid. Acontece que, depois dos eventos relatados e amplamente difundidos e comentados pela Comunicação Social, os casos de contágio na Grande Lisboa e na margem Sul, aumentaram exponencialmente, ao ponto do diário espanhol "El País", ter feito uma notícia de primeira página, onde se podia ler que "3 milhões de portugueses da grande Lisboa, tinham voltado ao confinamento". Um exagero, claro, logo desmentido pelo governo português, já que notícias destas poderão afectar o turismo de Verão, agora que grande parte dos turistas nórdicos hesitam em passar férias no mediterrâneo e Portugal voltou a ser notícia por más razões.
Acontece que a "Grande Lisboa", de que fala o artigo de "El País", não é uma realidade uniforme, sendo constituída por diversas cidades-dormitório e bairros periféricos, onde habitam a maior parte das pessoas que trabalham na capital. Muitas delas, a maior parte, desloca-se diariamente para a grande cidade, em transportes suburbanos apinhados (comboios, autocarros, metropolitanos); e outros, em menor número, em carros privados. Também muitos destes trabalhadores, vivem em bairros degradados e desempenham funções de maior contágio (restauração, construção civil, limpezas em lares e hospitais); enquanto outros, durante o confinamento, não necessitaram sequer de sair de casa para desempenharem as suas funções (teletrabalho). Uns, a maior parte, têm os filhos em escolas publicas, onde muitas vezes não existem condições de salubridade e onde não há aquecimento; e outros, em menor número, têm filhos (em colégios privados) que transportam em carros privados. Um Mundo de diferenças.
É pois, natural, que a maior parte dos novos casos de infectados com o vírus, sejam da Grande Lisboa, onde vive um 1/3 da população do país. Como também é natural, serem os mais desfavorecidos (social e economicamente) os primeiros infectados. Dito de outro modo: haverá sempre mais casos de Coronavírus na Amadora, em Loures ou nas "Jamaicas" deste país, do que no Restelo, Telheiras ou Cascais.
Parece pois, óbvio, que, mais do que a inconsciência dos jovens e as festas da praia, o vírus que urge mesmo combater, é o vírus da pobreza (e da desigualdade), a maior das epidemias portuguesas. Combatam-se ambas com determinação e medidas adequadas e a imunidade dos portugueses melhorará de forma significativa. Prevenir, sempre foi melhor do que remediar.

2020/06/23

Catorze semanas noutra cidade: Pandemia, Balanço e Revelações


Três meses decorridos sobre as primeiras medidas do governo espanhol, para combater o vírus que assola o Mundo, a Espanha começa a abrir as portas - internas e externas - e a fazer o balanço desta crise sanitária, a maior desde a famosa "gripe espanhola", já lá vai mais de um século.
Depois de semanas em que o país ocupou os primeiros lugares do "ranking" europeu, de casos de infecção e mortes por Coronavírus, os números estabilizaram e começam a decrescer, como era expectável. De acordo com o Worldometer (OMS), a Espanha registou, até ao momento, um total de 293.840 infectados, dos quais teriam falecido 28.324, o equivalente a 606 mortes por milhão de habitantes. Mesmo assim, o país ocupa o 6º lugar do "ranking" dos países com mais infectados a nível mundial. Pior mesmo, só os EUA, o Brasil, a Russia, a Índia e o Reino Unido, onde o número da população infectada ainda não parou de crescer. Por coincidência, ou talvez não, os cinco primeiros países da lista, são todos governados por líderes populistas e autocráticos, que começaram por subestimar o perigo de contágio deste vírus e as evidências científicas que demonstravam o contrário. As razões deste comportamento, prendem-se com diversos factores, entre os quais devem ser realçados a extrema ignorância (Trump e Bolsonaro), o negacionismo religioso (Bolsonaro, Mori), a aposta na economia em detrimento da saúde (Trump, Bolsonaro, Johnson) e a dificuldade dos autocratas em lidar com a pandemia (Trump, Bolsonaro, Putin, Mori). Os resultados estão à vista, e, em países como os EUA, o Brasil ou a Índia, as catástrofes humanas são já imensuráveis. Esta é, de resto, a opinião do economista Dani Rodrik, esta semana laureado com o Prémio Princesa das Astúrias de Ciências Sociais (um dos mais prestigiados do Mundo) que, em entrevista, declarou não o surpreender que autocratas, como Bolsonaro, Trump e, até certo ponto, Boris Johnson, estivessem a responder pior à crise do Coronavírus: "Há uns anos publiquei uma investigação em que comparava sistemas mais democráticos e liberais com outros onde a classe política tinha maiores tendências populistas e autoritárias. A ideia de que esses regimes respondiam melhor a choques externos, que permitiam aos seus líderes tomar decisões rápidas, por não terem de negociar e chegar a acordos, não era sustentada pelas análises que fiz das crises ocorridas nos anos setenta e oitenta do século passado. Creio que isto é assim, porque os sistemas democráticos usam melhor a informação e porque contam com mecanismos em que todos os sectores da sociedade podem contribuir com os seus pontos de vista" (in El País d.d. 17/6/20).
As questões da informação e coordenação durante a pandemia estão, de resto, a ser alvo de avaliações solicitadas pelos orgãos do poder central e regional de Espanha, com vista a apurar responsabilidades por uma crise que, entre Março e Abril, chegou a registar mais de 300 mortos diários, a maior parte deles em lares de terceira-idade (as chamadas "residências"). De acordo com os mais recentes dados, só entre 8 de Março e 15 de Maio, teriam  morrido 15% dos residentes de centros de serviços sociais de Madrid. Dos 7.690 falecidos, foram apenas testados 1.203. Muitos idosos podem ter morrido por patologias diversas, que o vírus veio agravar. Neste período, o governo, teria intervido em 14 destes centros. Por comparação, no mesmo período, foram feitas 112 intervenções em centros nas Astúrias. Nestes dias, em que o pessoal sanitário não conseguia dar resposta ao número de internamentos, faltou tudo: camas, ventiladores, máscaras, testes e tiveram de ser feitas escolhas drásticas. Um vídeo, de uma sessão clínica no Hospital Infanta Cristina de Paria, em Madrid, revela como foram informados os médicos sobre frieza das medidas a tomar para evitar o colapso no centro de saúde e na UCI: "Vamos negar a cama àqueles que têm mais risco de morrer", foi a directriz dada. No vídeo, de 19 minutos, o instrutor alerta os médicos internistas de que, ao ritmo a que aumentavam os internamentos nos hospitais da comunidade de Madrid, a região ia entrar em 48h num colapso das suas UCI. O instrutor revela que a recusa de pessoas idosas, tinha sido imposta pelas autoridades sanitárias e que a única margem que restava para salvar vidas "era ser mais restritivo no internamento de pessoas jovens com bom prognóstico." ("El País" d.d. 18 de Junho).
Mas, as revelações não se ficaram por aqui (afinal, o "sacrifício dos mais débeis", sempre foi usado em tempo de guerra), já que esta semana, um novo caso, quiçá mais revelador, foi denunciado. Sob os holofotes, está agora a "alcaide" (presidente) da região de Madrid, Diaz Ayuso, que durante a pandemia se refugiou num hotel, a partir do qual exercia as suas funções, o que lhe valeu fortes críticas da oposição e do governo, do qual não faz parte. Pior, o responsável pela sanidade da região, Antonio Burgueño, nomeou a sua filha, Encarnación Burgueño, para coordenar as condições sanitárias nas "residências", já que esta teria manifestado desejo de fazer algo pela saúde dos seus concidadãos. Aparentemente, a senhora não teria grande experiência da coisa e, depois de criar uma empresa de apoio sanitário, fez um contrato com uma empresa de ambulâncias, que tratava dos transportes dos idosos para os hospitais, onde estes raramente podiam permanecer, dadas as prioridades de internamento estabelecidas. A coisa veio a lume, Antonio Burgueño demitiu-se e está a ser alvo de um processo, enquanto a sua filha, também demissionária do cargo, ficou a dever 16.450 euros à empresa de Ambulâncias Transmed, que agora exige ser ressarcida pelo trabalho feito.
Sem surpresa, a pandemia veio revelar o lado mais escuro do Homem. Para uns, a morte, para outros o negócio. O negócio da morte. Bem dizia o outro, que as crises podiam ser uma oportunidade. Nomeadamente para os oportunistas.

2020/06/16

Treze semanas noutra cidade: da Memória Histórica às Medidas do Pós-Confinamento


Com o progressivo levantamento das restrições impostas pelo Coronavírus, o território espanhol regressa lenta, mas seguramente, à situação existente antes de 16 de Março, data em que foi declarado o "estado de alarme" nacional.
Entre as muitas actividades, entretanto retomadas, destaque para os trabalhos de exumação de valas comuns das vítimas do fascismo, levadas a cabo em diversas regiões de Espanha, por iniciativa da Associação de Memória Histórica e Vítimas do Franquismo (AMHVF), com o apoio do governo central e das autoridades regionais respectivas. Um longo e penoso trajecto, iniciado no ano 2000, aquando da primeira exumação em territórios de Léon y Castilla. O posterior reconhecimento da Associação, pelo governo de Zapatero (2007), contribuiu para a sua implementação em todo o território e tem sido decisivo na recuperação e identificação de centenas de cadáveres, desde então exumados e entregues aos familiares que, finalmente, podem despedir-se dos seus entes queridos. Um trabalho meritório e ciclópico, que demorará anos, já que o número total de vítimas enterradas, está calculado em 115.000. A Espanha é o segundo país do Mundo, depois do Cambodja de Pol-Pot, com maior número de vítimas em valas comuns.
Pesem os percalços de percurso, durante os governos de Aznar e Rajoy, que sempre se opuseram a reabrir este "dossier" e reconhecer os crimes do Franquismo, os trabalhos da Associação de Memória, com mais ou menos dificuldade, nunca pararam e estão mais activos que nunca. Prova disso, foi a recente Assembleia Andaluza das Associações de Memória Histórica das Vítimas do Franquismo (que engloba 33 associações regionais), realizada no dia 14 de Junho (dia da memória histórica andaluza) no cemitério de S. Fernando (Sevilha), onde decorrem os trabalhos de exumação da vala de Pico Reja, que contém cerca de 1.500 corpos. No cemitério de S. Fernando, existem ainda outras valas, onde estarão enterradas mais de 4.500 pessoas, fuziladas pelas tropas franquistas entre 1936 e 1955. 
A cerimónia, onde participaram largas dezenas de familiares e activistas, teve o apoio de individualidades políticas, orgãos de imprensa local e seria retransmitida pela TVE. Foi ainda lido o Manifesto da Associação e houve tempo para intervenções de familares das vítimas que relataram episódios relacionados com o período dos massacres. Um exemplo de cidadania exemplar, marcado por uma Memória Histórica que urge preservar, em tempo de negação dos crimes do fascismo.


Com 70% do território na fase 3, a Espanha prepara-se para desconfinar completamente a 21 de Junho, data anunciada pelo governo para retomar todas as actividades suspensas. Algumas regiões, inclusive, como as Baleares e a Galiza, passaram já à fase 4 e podem receber turistas de todos os países Schengen, a partir de 15 deste mês. Todos, à excepção de Portugal que, aparentemente, receia o "contágio espanhol" e teme uma invasão de turistas do país vizinho (!?). Para além do insólito da medida (os espanhóis dizem que foi uma decisão unilateral de Portugal) não se percebe porque é que o governo português receia abrir fronteiras terrestres com Espanha e permite voos de Londres para Lisboa, para trazer mais turistas britânicos para o Algarve...A única coisa acertada entre os governos ibéricos, parece ser agora um almoço (há sempre um almoço antes, durante ou depois de um negócio com portugueses) na fronteira de Badajoz-Caia, marcado para o dia 1 de Julho, quando forem abertas as (últimas) fronteiras de Schengen. Se isto, não é excesso de zelo, só pode ser cretinice.   
Já os alemães, não estão com meias-medidas e inauguraram ontem uma "ponte aérea" que ligará os principais aeroportos da Alemanha, às Baleares e a Ibiza, onde muitos possuem segundas habitações. Só esta semana, são esperados mais de 9.000 alemães nas ilhas espanholas, cujos aeroportos foram adaptados com censores digitais para medir a temperatura dos turistas. Quem acusar positivo não entra no país. O "método chinês" começa a conquistar o Mundo...

Porque o turismo, este Verão, poderá ter quebras da ordem dos 50%, os países que mais dele dependem (caso de Espanha, de Itália, França, Croácia, Grécia e Portugal), começam a tomar medidas estruturais para evitar a crise económica e social que se anuncia para o período pós-confinamento. Em Espanha, onde a industria turística corresponde a 12% do PIB e o Banco Central projecta uma quebra de 15% do PIB para este ano, o governo prepara-se para pôr "toda a carne no assador" e anuncia reformas estruturais de vulto para combater a crise. O executivo debate um plano de estímulos e reformas, preparado pela ministra Calviño (presumível sucessora de Centeno no Eurogrupo), que prevê investimentos da ordem dos 150.000 milhões para combater a crise ao longo dos próximos dois anos. Trata-se, para já, de um "borrão" do documento final a ser enviado para Bruxelas, onde Espanha pretende aceder ao grande "fundo europeu de reconstrução" de 750.000 milhões, aprovado na generalidade e que será objecto de discussão na próxima sexta-feira.
Angela Merkel, que assumirá a presidência semestral da UE no próximo dia 1 de Julho, confia em fechar este acordo, sobre o Fundo Europeu de Recuperação, no primeiro mês de mandato. A urgência desta decisão, corresponde ao convencimento generalizado, tanto em Bruxelas como em Berlim e Frankfurt, de que a eficácia da resposta europeia à crise, não depende só da envergadura do fundo, mas também da sua rapidez operacional. O possível acordo do Conselho Europeu requer o visto do Parlamento Europeu, onde igualmente impera uma sensação de urgência. Os dois maiores grupos da Cãmara (PPE e PS) apoiam a proposta de Von der Leyen, mas mantêm divergências sobre as condições de distribuição dos 500.000 milhões em subsídios e dos 250.000 em empréstimos. Manfred Weber, líder do PPE, assinala que o "condicionalismo de ajuda, é a palavra-chave para o seu partido. Deve ser claro que o dinheiro é investido no futuro do país"; enquanto Iratxe García, presidente do PS, considera  que "o único condicionalismo aplicável ao Fundo, é destinar o investimento a políticas do futuro, como a sustentabilidade, a digitalização e o reforço industrial". Aguardam-se decisões.

2020/06/09

Doze semanas noutra cidade: Espanha a desconfinar com ajudas a aumentar


A transição espanhola para o desconfinamento total continua a bom ritmo, ainda que nem todas as regiões do país estejam na mesma fase.
Globalmente, passaram à fase 3 (a mais adiantada) as ilhas, as regiões do Sudoeste, do Norte e do Nordeste do país, enquanto na fase 2, permanecem as regiões da Catalunha, Valência, Madrid, Castilla-Léon e Castilla-La Mancha, onde, apesar da diminuição do número de infectados, continua a verificar-se a maior concentração de casos de Coronavírus.
Nesta terceira fase, ontem iniciada, já são permitidas passeios e actividades físicas sem horário; abertura do comércio a 50%; esplanadas a 75%; abertura de centros comerciais a 40%; mercados de rua a 50%; grupos turísticos até de 30 pessoas; espectáculos culturais e museus a 50%; treinos desportivos na ligas profissionais; casinos a 50%, bodas e funerais, limitados a máximos por espaço disponível. Também a mobilidade entre províncias (dentro da mesma região), passou a ser permitida  na Fase 3. Em termos práticos, isto significa que, numa região como a Andaluzia (8 províncias), os habitantes de Sevilha, onde me encontro, já podem ir à praia a Huelva ou Cadiz, onde muitos têm uma segunda casa e passam férias no Verão. São esperados milhares de veraneantes nas próximas semanas.
Após 3 meses de confinamento, a abertura de bares e esplanadas provocou uma corrida aos poucos lugares disponíveis, com longas esperas junto às mesas ou, em alternativa, reservas com antecedência, uma prática habitual por estas bandas. Nada que desmotive os sevilhanos e o seu ritual de "tapas" e "cañas" diárias, ainda que - sem turistas estrangeiros - a cidade esteja longe da alegria e movida habituais. Disso mesmo se queixa a hotelaria e a restauração, as áreas que mais sofreram com a crise pandémica. Também muitos bares e pequenos estabelecimentos de bairro, continuam encerrados, o que pode indiciar encerramento definitivo por falência ou incapacidade económica.
Após o programa de ajuda europeu, acordado na passada semana em Bruxelas, Christine Lagarde (BCE) veio esta semana anunciar um novo reforço de 600.000 milhões de euros, que o governo espanhol não deixará de aproveitar para distribuir pelas populações e regiões mais afectadas.
As regiões têm, agora, autonomia para gerir o dinheiro disponibilizado pelo governo (16.000 milhões de euros) com a condição de  reservarem 70% do novo fundo para saúde e para a educação. Simultaneamente, o parlamento espanhol aprovou a lei do "Ingreso Mínimo Vital" (IMV), um ordenado-base mínimo de €462 para indivíduos ou €1.015 para casais com 2 filhos. Uma medida histórica, saudada por todos as formações políticas e sindicatos, que possibilita a ajuda imediata a 850.000 famílias a viver no limite da pobreza.
Menos pressa, parece ter o governo em abrir as fronteiras terrestres. Apesar dos desejos manifestados pelos governos francês e português, Sanchéz mantêm-se cauteloso e, depois da ministra de transportes ter anunciado a abertura de fronteiras para 21 de Junho (data prevista para o fim do confinamento), o governo espanhol voltou atrás na decisão e, no mesmo dia, reafirmou a intenção de só abrir as fronteiras a 1 de Julho. De nada valeram os amuos em Portugal e em França, já que ambos os países dependem de Espanha para poderem abrir as suas fronteiras. O mesmo não se passa com Itália, portanto um dos países mais infectados pela pandemia que, entretanto, anunciou a abertura das fronteiras para o dia 15 de Junho. A questão fronteiriça está, de resto, a provocar uma discussão a nível europeu, uma vez que nem todos os governos seguem os mesmos critérios, o que pode provocar problemas de tráfego entre países que não fazem parte de Schengen e se regem por leis de circulação diferentes, como é o caso do Reino Unido, cujos súbditos podem viajar para Portugal, ao abrigo de um acordo unilateral entre os dois países. Como convencer um europeu, que o perigo de contágio no seu país é diferente do perigo de contágio noutro? Então, o vírus não é o mesmo?...

2020/06/02

Onze semanas noutra cidade: Pandemia, Recursos e Soluções


Há precisamente três meses (2 de Março) morria a primeira vítima de Coronavírus em Portugal. Por coincidência, nesse mesmo dia viajava para umas curtas férias em Espanha. Desde então, permaneço no país vizinho, aguardando a abertura da fronteira que, prevê-se, estará para breve.
Três meses de confinamento, a exemplo da maior parte dos países europeus com estratégias de contenção semelhantes, ainda que os resultados nem sempre tenham sido os mesmos. Da explosão da epidemia em Itália e Espanha, os países mais atingidos na fase inicial, à relativa contenção em países como Portugal e Grécia, o processo de confinamento revelou virtudes e defeitos, que terão de ser avaliados em conjunto, única forma de limitar recidivas, que se anunciam como prováveis e para as quais não haverá argumentos. Não basta culpar a China pelo encobrimento inicial da existência do vírus (detectado em finais 2019), mas perceber a razão da desvalorização da informação, quando esta já era conhecida a 23 de Janeiro deste ano. De então para cá, muito tempo se perdeu e essa é, provavelmente, uma das razões (não a única) porque hoje temos a lamentar tão elevado número de mortes. Uma prevenção atempada, aliada a meios sanitários de qualidade, são condições indispensáveis para combater qualquer epidemia e esta não é excepção. O facto de ser um vírus desconhecido e não haver vacina para combatê-lo, explica parte do problema, mas a montante há factores que não podem ser iludidos. Desde logo, a incapacidade da maioria dos sistemas de saúde pública para receber um número elevado de contagiados, seja a nível logístico (camas, ventiladores, máscaras...), seja a nível de pessoal (médicos e enfermeiros) seja a nível financeiro (descapitalização do sector público, após a privatização da saúde nos últimos anos). Para evitar o colapso dos serviços sanitários, muitos países tiveram de optar entre dar prioridade aos doentes infectados pelo vírus, ou tratar de doentes crónicos, que aguardam agora a sua vez de serem atendidos. Foi o caso de Espanha e da Itália, como o do Reino Unido e da Holanda (que chegou a pedir à Bélgica reforço de camas). É por isso que é importante a solidariedade na União Europeia, ainda que alguns países continuem a pôr reticências a um "pacote" de ajuda lançado na passada semana pela Comissão Europeia, que prevê a libertação faseada de 750.000 milhões de euros para ajudar os países europeus mais atingidos pela pandemia. Através da combinação de empréstimos e transferências, Von der Leyen pretende satisfazer os países mais atingidos pela crise (Itália e Espanha) e, simultaneamente, os chamados países "frugais" (Holanda, Austria, Suécia e Dinamarca). A chanceler Merkel e o presidente Macron, já tinham mostrado o seu apoio em respaldar um fundo de meio bilhão de euros, financiado com dívida europeia, que seria injectado em forma de subsídios, enquanto os "quatro frugais" aceitavam a criação do fundo, mas punham como condição limitá-lo a dois anos, desde que canalizado em forma de empréstimo. Nesta nova versão, também apelidada de "bazuka europeia", Von der Leyen propõs o aumento temporário do "plafond" orçamental da UE, que passaria de 1,2% para 2% do Produto Nacional Bruto. A margem adicional, de mais de 100.000 milhões de euros, seria utilizada em forma de garantias dos estados, para a emissão de uma dívida conjunta da UE. A emissão destas garantias (créditos) poderia oscilar entre 300.000 e 500.000 milhões e seria amortizada através dos orçamentos da União, num período de 20 a 30 anos. Esta primeira proposta, foi aperfeiçoada e, finalmente, apresentada no dia 28 de Maio.
O programa "Next Generation EU", como agora passou a ser apelidado, assenta em 3 pilares:
1) Apoio aos estados membros, com investimentos, onde se destaca um fundo de 560.000 milhões para investimentos  e reformas relacionadas e.o. com a transição verde e digital das economias;
2) Incentivos ao investimento privado;
3) Apoio às políticas mais castigadas pela crise, como a saúde, investigação e acção externa.
Contas feitas, de um total de 750.000 milhões, a Itália receberá 170.000 milhões (dos quais 80.000 em subsídios e 90.000 em empréstimos), enquanto a Espanha receberá 140.000 milhões (dos quais 77.000 em subsídios e 63.000 em empréstimos). Os 440.000 milhões que sobram, serão para os restantes países.
Para Johannes Hahn, comissário europeu de orçamentos, o "Fundo Europeu de Recuperação não é um altruísmo, mas um investimento", já que interessa a todos os membros da União que a Europa saia desta crise rapidamente. Nas suas próprias palavras: "A tarefa da Comissão é velar por um bom funcionamento do mercado único, não apenas agora, mas também no futuro. Se actuarmos com rapidez e prudência, não haverá risco de ruptura. Creio que Angela Merkel também assim o entendeu e, por isso, aceitou a nossa ideia (de um fundo com subsídios). A Alemanha é a "rainha das exportações", não apenas no Mundo, mas também na Europa. E, para exportar, faz falta um mercado. Sem mercados, não há clientes. Por isso, penso que a nossa proposta, não é só altruísmo, mas sim investimento" (in: "El País" d.d. 30 de Maio).
Melhor do que isto, só mesmo aquela conhecida definição do futebol: "são 11 contra 11 e, no fim, ganha a Alemanha".
        

2020/05/25

Dez semanas noutra cidade: Fases, Calamidades e Solidariedade Europeia


A Espanha entrou hoje, oficialmente, na fase 2 do "desconfinamiento".
À excepção das regiões de Madrid, La Mancha Y Léon e Catalunha, que permanecem na fase 1 devido ao elevado número de casos, o resto do país passará de imediato à fase seguinte.
Em termos práticos, isto quer dizer que, a partir de hoje, é permitido: reuniões de grupos até 15 pessoas; organizar visitas a residências de idosos; celebrar bodas; alojamento em hóteis e AL; frequentar lojas sem limite de superfície e centros ou parques comerciais;  sair a qualquer hora do dia, à excepção do horário reservado a maiores de 70 anos; ir à piscina ou à praia: organizar actividades turísticas e da natureza, até um máximo de 20 pessoas; ir a restaurantes ou cafés e esplanadas até a um máximo de 15 pessoas; visitar exposições, monumentos e equipamentos culturais; ir ao cinema, teatro e auditórios.
Nada mau, para quem há um mês atrás mal podia pôr um pé na rua, sem usar máscara, luvas e dentro de horários específicos. Um tormento, quiçás necessário, para o qual continua a haver muitas dúvidas, já que os resultados das diversas políticas seguidas - confinamento, semi-confinamento, "intelligent lockdown" e controlo digital - tiveram resultados diferentes. Os testes continuam a ser fundamentais para ajuizar da quantidade de infectados e fazer prevenção (sem testes não é possível saber quem está ou não infectado); da mesma forma que, a contagem de infectados e de mortes em consequência do coronavírus, continua a ser posta em dúvida, já que nem todos os países seguem as mesmas normas  (os números oscilam entre registos de mortes directamente causadas pelo vírus e registo de todas as mortes, patologias associadas, inclusive). No fim, espera-se, haverá uma avaliação da OMS, mas até lá haverá recidivas, ou não, uma vez que também neste campo não existe unanimidade. O próprio vírus, deve andar um pouco "baralhado", pois estava a contar com mais umas infecções enquanto não descobrem a vacina e corre o risco de ser "descontinuado" muito antes disso.

Até lá, a pandemia acelera em todo o Mundo, registando uma média de 100.000 contactos diários. Após a Ásia (onde tudo começou) e a Europa (onde o "pico" da crise parece ter passado) é na América do Norte (Estados Unidos) e na América do Sul (Brasil) que a pandemia atingiu os números mais altos e onde se espera o maior número de vítimas.
Por coincidência (ou talvez não) os 3 primeiros países da lista de infectados (EUA, Brasil e Russia), têm líderes populistas e autoritários, dois dos quais negam a ciência (Trump e Bolsonaro) e um (Putin) não olha a meios para atingir o poder absoluto. Neste caso, o "coronavírus" e as medidas de confinamento, são uma óptima ocasião para melhor controlar a população, a exemplo do seu homólogo Orbán, (Hungria) que aproveitou o "estado de emergência" para declarar o "estado de sítio" permanente. A dissidência paga-se caro, nos antigos países do Leste Europeu.
No Brasil, Bolsonaro um caso patológico de estudo, continua a refutar tudo e todos, numa desesperada tentativa de manter o poder que pode estar por um fio. Depois de negar os perigos de infecção e movimentar-se livremente por entre os seus apoiantes (desvalorizando dessa forma o contágio), perdeu os seus ministros de saúde, que recusaram aplicar medidas sanitárias contraproducentes e nomeou, para o mesmo ministério, um militar sem qualquer formação médica. No meio da polémica, perdeu ainda Moro (ministro da justiça) que denunciou a ingerência do presidente no seu departamento, para além de ter convocado uma manifestação (falhada) com vista a pressionar o Congresso brasileiro, o que lhe valeu um processo de "impeachment". De resto, não é o primeiro que lhe é movido o que, a acontecer, poderá provocar a sua queda.
A manter-se o aumento exponencial de infecções, provocadas pelo vírus, o Brasil corre sérios riscos de se tornar um país ingovernável a curto prazo: desde logo pela estupidez do seu presidente, um demente fascista, para quem a vida dos seus cidadãos nunca importou (sempre elogiou a ditadura e os seus torturadores); depois, pelos meios sanitários insuficientes para acudir a uma população empobrecida e desesperada em sobreviver, que pode vir a revoltar-se, se não tiver alternativas.
Temendo isso, os militares (com Mourão à cabeça) movimentam-se na retaguarda, construíndo cenários e fazendo ameaças, projectando já um futuro sem Bolsonaro. Mas, com quem? Essa é a grande questão neste país, dividido após o golpe contra Dilma, que permitiu aos fascistas chegar ao poder através de eleições.

Entretanto, na Europa, continuam as negociações para criar um fundo europeu de ajuda aos países afectados pela pandemia. Depois de um primeiro confronto no Eurogrupo, entre os defensores de "eurobonds" (Espanha, Itália, Portugal e França) e os defensores de empréstimos, através do Fundo de Estabilidade e Emergência Monetária (Holanda, Austria, Finlândia e Suécia), que opôs violentamente a Holanda e a Itália, conseguiu chegar-se a um acordo de intenções, que resultou na aprovação de um Fundo de 500.000 milhões de euros a fundo perdido (proposta da Comissão). Esta semana, a proposta foi, de novo,  alvo de discussão. Em princípio, os países pareciam estar de acordo, já que a crise actual não é uma crise económica (como a anterior), mas sanitária (que a todos afecta) e para a qual são exigidas medidas de solidariedade. Acontece que, a solidariedade europeia, já conheceu melhores dias. Os países do Norte (Holanda, Austria, Suécia e Dinamarca) só aceitam a subvenção a "fundo perdido" (uma variante da "mutualização da dívida") caso as contas dos países do Sul possam ser auditadas e controladas exteriormente...Subjacente a esta ideia, está a convicção de que a fraude é uma especificidade do Sul, como se os países do Norte fossem mais sérios. Basta lembrar a existência do "offshore" holandês, que enche os seus cofres com o dinheiro de impostos desviados do Sul, para constatar que a Holanda (e os restantes países que apoiam a sua posição), não tem qualquer moral nesta questão, pois pratica uma política de "olha para o que eu digo, mas não olhes para o que faço". Maior hipocrisia, era difícil.
Posto isto, qual a solução? 
A não ser que, mais uma vez, Merkel (e Macron) "ponha ordem" nesta inacreditável exigência por parte de países que se consideram "moralmente superiores" (como se não tivessem todos sido atingidos pelo mesmo vírus), não se vê uma saída airosa para esta crise. A menos que a Europa se divida ainda mais.  Nesse caso, terminará enquanto projecto europeu. Já faltou mais.

2020/05/18

Nove semanas noutra cidade: Vírus, Populismos e Alternativas


À entrada da décima semana de "confinamiento", imposto a 14 de Março, a Espanha iniciou uma descalada progressiva das suas medidas mais radicais. Uma longa marcha de isolamento e frustrações, salpicada de episódios dramáticos e caricatos, dada a imprevisibilidade e desconhecimento dos contágios existentes. Desde a subvalorização inicial, até ao pânico generalizado, devido à sobrecarga dos serviços hospitalares e à falta de material sanitário, houve de tudo um pouco. Os números de infeccionados e falecidos dispararam nas primeiras semanas, tendo atingido cifras alarmantes, só ultrapassadas pelas de Itália, o primeiro país europeu a sofrer os efeitos da pandemia do Coronavírus.
Pouco a pouco, as coisas foram-se estabilizando e, no início de Maio, começaram a surgir os primeiros sinais da famosa curva de "achatamento".  
A Espanha, que há poucas semanas ainda era o país com mais infectados a nível mundial, caiu, entretanto, para a 3ª posição do "ranking", com 277.678 casos, tendo sido ultrapassada pelos EUA e pela Rússia, com 532.861 e 290.678 casos, respectivamente.
Atrás dos nossos vizinhos, registe-se o 4º lugar do Reino Unido (246.406 infectados) e o 5º lugar do Brasil (244.135 infectados). Portugal, agora, em 26º lugar no "ranking" mundial, regista um total de 26.209 infectados e 1.231 falecidos (120 por milhão de habitantes), de acordo com o "worldometer" de hoje.
Se extrapolarmos estes números para a totalidade de infectados a nível mundial (4.845.102), verificamos que os EUA são "responsáveis" por 1/9 do total das infecções e que o Brasil para lá caminha, com 1/18 dos casos registados. Pese embora a dimensão e número de habitantes de ambos os países, os maiores do continente americano, a verdade é que os problemas relacionados com a rápida expansão da epidemia, não se devem apenas às suas características físicas e demográficas. Os problemas actuais dos EUA e do Brasil devem-se, em primeiro lugar, aos seus governantes, Trump e Bolsonaro, exemplos maiores da desgovernação populista que rege parte do continente americano.
Eles representam a cara e a coroa da "moeda" populista actual, ainda que possamos reconhecer características similares em ambos: impreparação total para o cargo, ignorância absoluta dos mais elementares princípios de governação, visão retrógrada e negacionista da ciência, ideologia nacionalista e proteccionista, reaccionarismo primário em questões civilizacionais como o racismo, a xenofobia, a misoginia, a igualdade de género, defensores do liberalismo mais selvagem, etc.
Há, no entanto, diferenças consideráveis entre ambos. Em recente entrevista, Glenn Greenwald (prémio Pulitzer e fundador da agência noticiosa Brasil-Intercept, que dirige a partir do Rio de Janeiro) declarou não gostar da comparação entre Trump e Bolsonaro. O segundo, estará mais próximo do ditador Duterte (Filipinas) e do general Si-Si (Egipto), do que de Trump. Pela ideologia e pelo modelo de sociedade que defende.
Trump não tinha uma ideologia. Era um empresário de sucesso, que queria fazer negócios proveitosos para si e para os EUA. Ao contrário, Bolsonaro, um medíocre militar de carreira, que passou décadas no congresso brasileiro sem nunca ter apresentado um projecto-lei, tinha 30 anos de ideologia fascista. Trump sempre teve uma política anti-estrangeiros e criticou a Europa por deixar entrar refugiados. Trump nunca fala sobre comunismo, mas apoia líderes europeus como Le Pen, que é contra os refugiados e contra os muçulmanos, Bolsonaro, sempre fala contra os comunistas (ideologia da guerra fria) elogiando a ditadura militar e os seus torcionários de 1964-1985.
Já no combate à pandemia, mostraram-se ambos irresponsáveis e incompetentes na gestão da crise sanitária, começando por ignorar o vírus, depois desvalorizando o perigo de infecção para, finalmente, terem um comportamento errático, que está na origem das centenas de milhares de mortos em poucas semanas. Um filme de terror, longe de terminar e que, para além das nefastas consequências para a saúde pública, causou a maior quebra do PIB e as maiores taxas de  desemprego, em ambos os países. A crise sanitária e social acabou por "infectar" a política e as demissões não se fizeram esperar: diversos conselheiros e secretários de estado, na Casa Branca; e a demissão de dois ministros da saúde e um da justiça, no Planalto. A cotização bolsista caiu a pique e os índices de popularidade de Trump e Bolsonaro estão, agora, pelas ruas da amargura. Para o primeiro, tudo se joga nas eleições, agendadas para Novembro. Para o segundo, que ainda mantém cerca de 30% de apoiantes, só resta organizá-los para manter o poder (as "camisas negras" do regime) ou ser deposto pelos militares que o apoiam. Nenhuma dos dois é alternativa para os seus países. 
Ao contrário, uma alternativa progressista, foi esta semana anunciada pelo DIEM25 e The Sanders Institute (fundado em 2017, por Jane Sanders, esposa do senador Democrata norte-americano Bernie Sanders) que apelaram a uma frente comum contra o autoritarismo. A Internacional Progressista pretende actuar em três planos: fomentar a mobilização social, despoletar a reflexão intelectual e promover a difusão de novas ideias progressistas, através de uma rede de meios de comunicação. Entre os "media" que aderiram a este projecto, figuram a norte-americana "The Nation", a italiana "Internazionale",  a francesa "Mediapart", a polaca "Krytyka Polityczna" e outras como "Africa is a country", "Brasil Wire", Lausane Collective" e "The Wire Índia". Entre os seus porta-vozes mais conhecidos, figuram Noam Chomsky, Naomi Klein, Yanis Varoufakis, Katrin Jakobsdóttir, Elizabeth Gomez Alcorta, Rafael Correa, Fernando Haddad, Celso Amorim, Álvaro Garcia Linera, Gael Garcia Bernal, Arundhati Roy, Srecko Horvat e Carola Rackete.
Uma palavra final, para três figuras públicas desaparecidas esta semana que, na política, na antropologia e no cinema, marcaram a minha existência: Julio Anguita, José Cutileiro e Michel Piccoli.
De Julio Anguita, guardo a imagem de um dirigente político progressista, culto e humanista, dirigente máximo do PC espanhol e fundador do partido IU (Esquerda Unida), que dirigiu até deixar a política activa, em 2000. Após a transição para a democracia, Anguita foi o primeiro alcaide comunista eleito em Espanha, por Córdoba, sua cidade natal, que governou entre 1979 e 1986. O seu mandato, valeu-lhe o cognome de "Califa Vermelho". Das suas múltiplas intervenções, ficará para sempre o memorável discurso "Anti-Sistema", pronunciado durante uma homenagem a José Saramago, na Extremadura (1999) que, por estes dias, se tornou viral nas redes sociais. Um personagem incontornável.
De José Cutileiro (ex-embaixador da UE), recordo o meu primeiro ano de Antropologia (1972), quando o professor e especialista do Mediterrâneo, Jeremy Boissevain, me sugeriu o livro "A Portuguese Rural Society", de um autor português, que eu não conhecia. Foi o primeiro livro de antropologia portuguesa que li e permanece, até hoje, como uma das melhores monografias da disciplina. Está publicado em português, sob o título "Ricos e Pobres no Alentejo". Perdeu-se um excelente antropólogo, ganhou-se um elogiado diplomata.
Finalmente, Michel Piccoli - monstro sagrado do cinema francês - e intérprete maior de filmes inolvidáveis como "Le Mépris", "La Belle de Jour", "La Grande Bouffe", "Belle Toujours", "Il Papa", entre tantos. Soubemos, hoje, da sua morte. Mais um ícone da século XX que se vai.
É assim a vida, que continua, apesar de tudo.

2020/05/11

Oito semanas noutra cidade: Começou a Fase 1...


Em Espanha, 51% da população entrou, esta semana, na Fase 1 do desconfinamento.
São 11, as actividades permitidas nesta fase, a saber:
Reuniões sociais até 10 pessoas; abertura de pequenos comércios; abertura de esplanadas (50% do espaço); abertura de hotéis e estabelecimentos turísticos; abertura de lugares de culto (30% de participantes); sectores agro-alimentares e pesqueiros; treinos de equipas profissionais; mercados ao ar livre; espectáculos culturais em sala (até 30 pessoas); espectáculos culturais ao ar livre (até 200 pessoas); visitas a museus (30% de visitantes); velórios (em círculo restrito).
De todas as medidas, a mais importante foi a abertura dos pequenos comércios. A razão é simples: abriram os barbeiros.  Pela primeira vez, em 3 meses, pude voltar a cortar o cabelo e a barba. Um luxo, com direito a reserva feita de véspera, e o primeiro cliente a ser atendido ainda não eram 9h da manhã!... Com um sorriso nos olhos, que a sua dupla protecção (máscara e viseira) denunciavam, o verdadeiro Barbeiro de Sevilha "despachou-me" em menos de meia-hora. Cá fora, enquanto aguardavam pela sua vez, dois clientes, de máscara posta, discutiam os inconvenientes do confinamento.
De facto, não tem sido fácil a vida nas últimas semanas, pesem as declarações dos principais responsáveis pela gestão da crise (governo e autoridades sanitárias) nesta luta contra o tempo em que todas as variáveis importantes (saúde, economia, apoios sociais) são avaliadas diariamente. Só no passado fim-de-semana foi possível desbloquear a resistência de dois partidos da oposição (Ciudadanos e PNV) às medidas anunciadas pelo governo para as diferentes regiões espanholas. Devido ao elevado perigo de contágio, ficaram de fora da fase 1 as regiões de Madrid, Cataluña, Valencia e Castilla y León. Em Andaluzia, uma das regiões com mais baixo índice de infectados, só Granada e Málaga, não passaram à fase 1. Todas as restantes regiões de Espanha (correspondendo a mais de 50% da população total) passou o primeiro teste. À medida que o número de infectados e de mortes decrescer, passar-se-á às fases seguintes, com a duração média de 15 dias por fase. De acordo com os últimos dados, a Espanha registava, este fim-de-semana, um total de 268.143 infectados, um total de 26.774 mortos e 123 novos casos registados, o mais baixo número desde o início da epidemia. Já em número de mortes por milhão de habitantes, o país regista 572 casos, uma das mais altas percentagens a nível mundial.
Porque as comparações são inevitáveis, o jornal "El País" dedicou uma página inteira, da sua edição de domingo, ao nosso país, sob o título: "Portugal: misma península, cinco veces menos muertes". No extenso artigo, da autoria de P. Linde e J. Martín de Barrio (correspondente em Lisboa), os articulistas perguntam-se: "?Cual es el secreto? ?Cuales son las diferencias entre dos países de cultura similar que comparten una misma península? Los expertos de uno y otro lado de la frontera señalan varios factores, como el menor trânsito de viajeros (especialmente con Italia), pero, sobre todo, coinciden en que los lusos actuaron antes. Tuvieron tiempo de ver lo que pasaba en otros países y, con un centenar de positivos y sin fallecimientos, declararon el estado de alarma, algo que en España se decidió com 4.209 positivos e 120 decesos. Para la epidemióloga Rita Sá Machado, "lo fundamental ha sido la anticipación y aplicación precoz de las medidas de salud pública, como el cierre de las escuelas". El Govierno lo ordenó el jueves 12 de Marzo (78 contagios en el país) y se aplicó el lunes 16 (331 contagios y la primera muerte). Una semana depués comenzaba el estado de emergencia (1.200 contagios e 12 muertes). "También fueron muy importantes la variedad de medidas aplicadas entonces, pues permitieron controlar la expansión de la epidemia".
O artigo contém ainda opiniões de Alberto Infante (especialista em saúde pública) e de António Pires de Lima (ex-ministro de economia de Passos Coelho). Ambos coincidem na leitura feita pela epidemióloga, elogiando a pronta reacção do governo, ainda que este (relativo) sucesso, seja temperado pelas avisadas precauções de Graça de Freitas, directora-geral da saúde, ao alertar para os perigos de uma recidiva, agora que a população portuguesa parece estar mais descontraída.
Entre as muitas vítimas do Coronavírus, a imprensa espanhola noticiou também a de Billy El Niño, do seu verdadeiro nome Antonio Gonzalez Pacheco, famigerado torturador da polícia franquista, que tinha dado entrada numa clínica de Madrid esta semana. Ainda que tenha passado apenas onze anos na Polícia Nacional (1971-1982) era um dos homens mais temidos nos calabouços da Direcção Geral de Segurança, situada nas Portas del Sol, em Madrid. Existem centenas de testemunhos de vítimas, que descrevem as torturas a que foram submetidos por El Niño. Ums das mais conhecidas é a de José Maria "Chato" Galante, que denunciou o polícia franquista à justiça argentina, num processo conduzido pela juíza Maria Servini, que serviu de fio condutor ao documentário "El Silencio de Otros", sobre as vítimas da ditadura franquista. Galante morreria no passado dia 28 de Março, também ele vítima do Coronavírus. No entanto, legalmente, Gonzaléz Pacheco estava blindado, uma vez que o processo instaurado pelo tribunal argentino, que pediu a sua extradição para ser julgado por crimes contra a humanidade, foi considerado prescrito em 2014.
Pesem as tentativas canhestras de apagar a memória da ditadura, alguns passos positivos vão sendo dados na boa direcção. Um dos mais importantes, pelo seu simbolismo, foi o do Conselho Andaluz de Cultura, ao declarar "Bem de Interesse Cultural" (BIC) o legado de Federico Garcia Lorca, depositado no centro, que leva o seu nome, em Granada. O legado do escritor, que chegou ao Centro Federico Garcia Lorca, enviado da Residência de Estudantes de Madrid, em Junho de 2018, integra 5000 objectos que incluem praticamente todos os manuscritos das suas obras teatrais, poética e em prosa. A partir de agora, o legado de Lorca em Granada, que pertence a uma fundação ligada à família do escritor, mas que pode ser consultado no Centro García Lorca, tem garantidas a "unidade e a sua conservação em optimas condições", segundo o Conselho de Cultura. Para Laura Garcia Lorca, sobrinha do poeta, esta protecção do legado "tem todo o sentido e é uma satisfação para a fundação, para a família e tem que sê-lo para Andaluzia".
Algo é algo, como dizia o poeta...

2020/05/09

Justiça!


O argumento da "gripezinha" é conhecido. Os teóricos dos modelos também vieram afiançar que tudo não passava de uma conspiração. Não há razões para alarme, a economia não pode parar, siga a morte. Tudo aquilo a que assistimos hoje é o que acontece todos os anos com o influenza, etc. e tal, dizem os negacionistas da Covid19.

Sempre me pareceu, intuitivamente, que esta simplificação dos números constituia um argumento miserável. Já nem falo na sua manipulação ou falsificação. Mas só hoje tive tempo para ver os números reais. Com o surto de influenza nos EUA, em 2017-2018, terá havido um pico anormal, com cerca de 60 000 (não atingia esse valor há décadas) óbitos contabilizados. Em 2018-2019, terão ocorrido cerca de 35 000 óbitos.  São números relativamente elevados, claro. 
Mas as mortes pela "gripezinha," hoje 9/5, já rondam os 80 000!! 
No Brasil, a gripe gerou 1009 mortes no ano passado. Com a "gripezinha" já vai (hoje, 9/5) em cerca de 10 700 mortos. E isto é o que se sabe. Em dois meses! 

Claro que há responsáveis e responsáveis por tudo isto, a quem se deve exigir prestação de contas. O que se passa nos lares ingleses, nos países adeptos da tal teoria do rebanho ou nos outros onde as medidas de mitigação tardaram, é um escândalo. Mas, para além desses outros dirigentes, com largas culpas no cartório — que os cidadãos dos respectivos países não deixarão certamente de sancionar política ou criminalmente —, Trump e Bolsonaro têm de ser JULGADOS por crimes contra a Humanidade. O que está a acontecer nestes países é genocídio! Estão ao nível de um Pol Pot, de um Charles Taylor ou de um Ratko Mladić. 

Correm abaixo assinados, há muita gente que tem vindo a pedir estes julgamentos, mas creio que alguns não se terão apercebido, eles próprios, da verdadeira dimensão deste problema. 
E tão cedo o número de mortes pela COVID19 não vai parar de crescer...

2020/05/04

Sete semanas noutra cidade: começou a fase 0...


Depois do levantar o confinamento para "niños" até aos 14 anos, desde que acompanhados pelos pais ou tutores identificados, o governo espanhol "autorizou" os maiores de 70 anos (leia-se "grupo de risco") a saírem da quarentena, em períodos diferenciados do dia. Podem, agora, sair das 10h às 12h e das 19h e as 20h, diariamente. Uma alegria.
Durante o dia, só os adultos empregados em funções imprescindíveis (médicos, enfermeiros, maqueiros, bombeiros, condutores de transportes públicos, taxistas, polícia, ou serviços indispensáveis, como a água, electricidade e gaz) estão autorizados.
Para além destes grupos etários, as restantes pessoas (todas, portanto!) podem sair para tarefas indispensáveis: ir ao supermercado, à farmácia, ao multibanco, passear o cão e fazer "jogging", desde que mantenham o distanciamento social de dois metros e usem máscara e luvas. Para dentro de casa mantêm-se as recomendações iniciais: lavar as mãos com álcool ou gel (sabão azul e branco, também serve), mudar de roupa e acessórios quando se sai/entra em casa, lavar as máscaras e as luvas com desinfectante, etc. Uma trabalheira, para além da despesa implícita. Já vou na terceira versão da máscara e cada vez as compro mais caras. Há as ordinárias (misto de papel e têxtil) que custam 96c e são para usar e deitar fora; as de têxtil melhorado, que custam €5,90 e as profissionais ("bico de pato") que custam €6,60. As primeiras (quirocirúrgicas) evitam contaminar o parceiro, mas nós podemos ser infectados; as segundas, sendo mais seguras, exigem lavagens frequentes; as terceiras, que parecem viseiras da idade média, dada a sua forma ponteaguda, impõem respeito e mantêm as pessoas à distância. O pior é o calor na cara. Ontem, estiveram 35 graus em Sevilha e as máscaras profissionais são insuportáveis. Se o vírus não morrer com esta temperatura, morrem os cidadãos de certeza...

Fase 0
A Espanha entrou, oficialmente, na fase 0.
Entretanto, o governo deu a conhecer o programa de desconfinamento por fases. Serão cinco no total, com a duração de duas semanas, cada. Se tudo correr bem, em Julho terminará a quarentena. Se não (leia-se, aumento do número de infecções), volta tudo ao princípio.
A estratégia, subordinada ao título "A que horas posso sair à rua?", é a seguinte:   
Das 06h às 10h -  Maiores de 14 anos, sózinho ou acompanhado, num raio de 1km, sempre à distância de dois metros. Os desportistas individuais, não têm limite de circulação, dentro do município;
Das 10h às 12h - Maiores de 70 anos, sózinhos ou acompanhados.
Das 12h às 19h - Menores de 14 anos acompanhados.
Das 19h às 20h - Maiores de 70 anos, sós ou acompanhados.
Das 20h às 23h - Exercícios físicos ou passeios. Não são permitidos carros ou transportes públicos.
Estas medidas não se aplicam em municípios com menos de 5000 habitantes.
Consultada a tabela, verifico que posso sair em todos os períodos, à excepção daquele compreendido entre as 12h e as 19h, dedicado aos "niños". Nada mau...
Como era de esperar, pouca gente respeita as regras e não se vê tanta polícia como nas primeiras semanas de confinamento. Os carros de patrulha, passam agora discretamente pelos transeuntes e só interferem quando vêem grupos parados nos passeios. A ordem, nesta altura, é para circularem.
O plano gerou inquietação no mundo empresarial (indústria, hotelaria, restauração, imobiliárias e grandes armazéns) e os protestos não se fizeram esperar. Na melhor das hipóteses, só na 2ª quinzena de Maio e com restrições (ocupação de 1/3 dos lugares disponíveis, distanciamento mínimo nos hotéis, restaurantes, etc...), haverá um afrouxamento de algumas medidas. As reuniões e as petições contra as medidas do governo, já surgiram e os partidos políticos da oposição aproveitam o descontentamento dos empresários, para apertarem o cerco a Sanchéz/Iglésias, que tentam manobrar no meio da tempestade que se avizinha. O PIB deve cair 9% e tudo aponta para que a dívida espanhola ultrapasse os 120% do PIB, enquanto o desemprego pode disparar até 20% da população activa. A "tempestade perfeita", no dizer dos analistas. É por isso, natural, que o PP, o CCds e o VOX tentem explorar a crise. 
A boa notícia, é que o IFEMA (hospital provisório, construído em Madrid, para receber infectados) encerrou as suas portas, por não ter mais pacientes. Pelas suas instalações, passaram no último mês, mais de 4000 infectados. Ontem, foram registadas 164 mortes,  a nível nacional, o número mais baixo desde a primeira quinzena de Março.

Ainda que estejamos longe do fim da pandemia (que parece ter ultrapassado o seu pico na Europa, mas continua a deslocar-se para outros continentes), os métodos utilizados para combatê-la, podem ser reduzidos a três tipos de intervenção distintos: o do confinamento tradicional (exemplos: Portugal, Espanha, Itália, França, etc...); o do semi-confinamento ou sistema aberto (exemplos: Suécia, Holanda, UK, EUA) e o sistema asiático, de controlo digital (exemplos: China, Coreia do Sul, Taiwan, Japão e Singapura). Todos têm os seus adeptos e detractores, pelo que a polémica está longe de encerrada.
Na Ásia, onde o vírus foi detectado (China), os países mais atingidos debelaram o vírus com relativa rapidez e eficácia, graças ao sistema de controlo digital existente, que permite seguir todos os passos dos cidadãos, através de uma "app" instalada nos seus telemóveis que, por sua vez, estão ligados a um sofisticado sistema de cãmaras de vigilância. A "app", que serve para medir a febre do portador do telemóvel, está ligada ao sistema central de informação e, a partir de identificação pessoal, é fácil rastrear quem está infectado ou não. Dessa forma, foi possível confinar a população infectada e isolá-la do resto da população. Um êxito (só possível em estados fortemente centralizados e autoritários) onde os cidadãos, aparentemente, confiam no estado "protector" e não se importam de partilhar informação.
Método diferente, e mais consensual, é o do confinamento total (afinal, já usado na Idade Média) quando se desconhecem as causas (vírus) e não existe tratamento (vacina) para a cura. Isolam-se as populações em casa, coercivamente se necessário, de forma a diminuir o risco de contágio e a evitar o colapso das unidades hospitalares que, em caso de pânico, ficariam sobrecarregadas.
Finalmente, o sistema aberto (ou "inteligent lockdown") que tem os seus adeptos nos países europeus mais liberais e foi seguido e.o. pela Holanda, pela Suécia, pela Noruega, pelo UK e pelos EUA. Este sistema defende a "imunidade do rebanho" (herd's imunity) segundo a qual, a imunidade de grupo, é atingida quando 60% da sua população fica infectada. Nessa altura, o grupo-alvo, está imune. Isto, enquanto não houver vacina, claro.
Johan Giesecke, ex-director geral da saúde sueca e actual assessor para questões epidemiológicas naquele país, deu ontem uma entrevista ao "Público", onde defende o método sueco, aconselhando as pessoas a fazer a sua vida normal ao ar livre, ainda que mantendo o distanciamento social aconselhável. Também diz que a imunidade de grupo, na Suécia, rondará os 25% na região da grande Estocolmo (2,5 milhões de habitantes), o que quer dizer que cerca de 625.000 cidadãos suecos, já estarão imunes. Na mesma entrevista, afirma que, quando esta pandemia terminar, os números de mortes serão muito semelhantes em todo o continente europeu...
Fomos consultar os dados disponibilizados pela Organização Mundial de Saúde (site "worldometer"):
Dos 30 primeiros países da lista, só 6 países apresentam mais mortes em números relativos (mortos por milhão de habitantes) do que a Suécia: a Espanha (544), a Itália (478), o Reino Unido (419), a França (381), a Bélgica (684) e a Holanda (297). A Suécia tem 274/por milhão. Os restantes 23 países, entre os quais Portugal (104/por milhão), têm todos menos mortes.
Em ambos os grupos, há países que defendem o confinamento geral e países que defendem o sistema aberto. Portugal, que tem sensivelmente o mesmo número de habitantes da Suécia (10 milhões) e defende o confinamento geral, tem quase 3 vezes menos mortos que a Suécia, que tem um sistema aberto. Afinal, em que ficamos?
Numa coisa, estou de acordo com Giesecke. Ele alerta para os perigos dos estados de emergência, que os ditadores não deixarão de aproveitar para aumentar o seu poder. Dá o exemplo de Orbán (Hungria). É verdade. Por isso, para além de combater o vírus, também é preciso combater os ditadores.

2020/04/29

Seis semanas noutra cidade: uma luz ao fundo do túnel...

foto Extra Venezuela
Pela primeira vez, em 6 semanas, as crianças espanholas puderam sair à rua depois de 42 dias de "confinamiento". Um acontecimento nacional, celebrado por todas as famílias com filhos menores, impedidos de ir à escola desde o dia 16 de Março. Na passada segunda-feira, as ruas de Sevilha encheram-se de pais atentos e cuidadosos, que passeavam de mão dada com os "niños", como se fora a primeira saída da sua vida. Milhares deles, pais e filhos, em grupos de 3 e 4 pessoas, a pé ou de bicicleta, nos parques e ruas da cidade. Uma festa!
O episódio gerou uma onda de anedotas nas redes sociais, das quais destacamos aquela onde um pai pressuroso, é interrogado por um polícia, que lhe pergunta: "onde vai o senhor, sózinho?"... "ah, pois, tenho de voltar, tenho de voltar...na pressa, trouxe os bilhetes de identidade, meu e do "niño", a licença paternal para poder acompanhá-lo, o "lanche", a garrafa de água, a máscara, as luvas, a mochila, a fita métrica para medir a distância permitida e... esqueci-me do "niño"!".  
Para que isto acontecesse, foram necessárias semanas de isolamento draconiano, preconizadas num dos países mais afectados pela actual pandemia: 236.899 infectados e 24.275 mortes, o que tornou a Espanha no 2º país com maior número de infectados e o 3º com maior número de mortes, a nível mundial. Tratam-se de números absolutos (fonte: worldometer), que não contabilizam os números relativos por país. Pior, só mesmo os EUA e a Itália (em número de mortes), ainda que, noutros países (França, UK, Alemanha, Turquia, Irão, Brasil, China, Bélgica, Holanda...) o número de infectados continue a crescer. Dado que os infectados são sempre mais do que revelam as estatísticas e sabendo que o número de testes está muito aquém do necessário, fácil é concluir que estamos longe de uma pandemia controlada. Isto, apesar dos sinais positivos que vão sendo dados nalguns países onde o "pico" da pandemia foi ultrapassado e onde se iniciou a chamada fase do "achatamento" da curva de infecções. Mas faltam muitos países de risco anunciado, como o Brasil (onde em poucas semanas, o número de infectados e mortos ultrapassou os da China), a Índia ou a Indonésia, países de grande densidade populacional, com graves problemas sanitários e onde os sistemas de saúde deixam a desejar. Uma longa marcha e ainda falta África...
Não está fácil o combate ao vírus, ainda que algumas análises pretendam desvalorizá-lo, apresentando estudos comparativos, onde demonstram que a gripe mata mais pessoas no Mundo inteiro do que o Covid19. É verdade, mas para a gripe há vacina e para o Covidis19 (ainda) não. Enquanto não for resolvido este problema (que pode demorar um ano ou mais) o vírus vai continuar a disseminar-se pelo Mundo e voltar a "atacar". Os especialistas (vírologistas, epidemiologistas...) já avisaram sobre a recidiva no próximo Inverno. Só negacionistas, como Trump e Bolsonaro, desprezam a ciência e, por isso, estão a pagar com "língua de palmo" a sua ignorância. Boris Jonhson, outro tonto, também pensava que o Reino Unido podia continuar com a "city" aberta, pois a economia não devia parar, mas a realidade foi mais forte que o "mercado de capitais". Resta saber se, depois da quarentena forçada a que foi obrigado, aprendeu alguma coisa com a infecção...
Em Espanha, independentemente das medidas que o governo anuncie, a oposição condena sempre. Sem poder constituir uma alternativa de poder, dada a composição parlamentar actual, os partidos de direita franquista (PP e Vox), alternam-se nas críticas ao executivo: ou porque faltam máscaras, ou porque estas são caras, ou porque faltam testes, ou porque a economia não pode parar, ou porque os apoios para as regiões são poucos, enfim, a lista é longa. Mesmo depois do pré-acordo, conseguido na passada semana em Bruxelas, que prevê a maior ajuda europeia para esta crise, o governo de Sánchez não parece ter a vida facilitada. O endividamento do país (dívida pública), o fraco crescimento económico e o desemprego, previsiveis após a crise sanitária, apresentam-se como os grandes obstáculos para uma recuperação rápida da economia e a oposição tudo fará para derrubar a coligação actual (PSOE/Podemos) no poder. Só não o conseguirá, se os catalães (uns cretinos, nesta crise) o não quiserem. Tudo em suspenso, em Espanha, pois.
Interessantes, têm sido as opiniões do homem comum e dos "media" espanhóis (El País, El Diario de Sevilla) sobre Portugal. Depois dos rasgados elogios do New York Times e da Euronews, à forma como Portugal tem enfrentado esta crise - um país com fracos recursos e um sistema de saúde fragilizado depois da crise de 2008 - é a vez dos espanhóis se "renderem" à eficácia do método português. Um excerto de um artigo, intitulado "La Excepción Portuguesa", no "El País" de ontem (dia 28 de Abril):
"Con la quarta parte de población que España, Portugal tiene una tasa de mortalidad por coronavirus del 3%, mucho más baja que las de España (10%), El Reino Unido (12%) o Francia (15%) y la razón de esta notable diferencia es analisada por el periodista Paul Ames, quien destaca que ni su aventejada población ni una sanidad con escasos recursos han impedido un éxito de gestión que ha mitigado el castigo de la Covid19". E o cronista, continua: "Los portugueses comprendieron de imediato que debían compensar sus limitaciones. El autor ha conversado con Ricardo Baptista Leite, médico especialista en enfermedades infecciosas y diputado del PSD, el partido de oposición de centroderecha, quien destaca la enorme solidaridad que han demonstrado por ser conscientes de que Portugal tenía que hacer un esfuerzo mayor que otras naciones si queria doblegar la curva de contagios". Ames aponta outra importante diferença, em relação a Espanha e Itália: " Al primer ministro, Antonio Costa, no le han disparado franco-tiradores de la oposición, porque los políticos se han dado una tregua muy envidiada em Madrid. Baptista Leite defiende que este es el momento de colaborar, no de confrontar, y de que públicamente se proyecte una imagen de unidad aunque en privado se hagan llegar al Gobierno críticas por algunas decisiones". 
Pois é, a cooperação, contra um inimigo comum.
Em Sevilha, onde me encontro há seis semanas em "confinamiento", as palmas diárias de apoio ao pessoal médico e sanitário, também são intercaladas por "panelaços" de saudosistas, que penduram bandeiras franquistas nas varandas. Já a música, em alto volume, é para todos os gostos. Há prédios que preferem "Sevilhanas" e outros que preferem "La Bella Ciao". É difícil agradar a Gregos e Troianos, neste país.  
                 
   

2020/04/25

(Apesar do confinamento) 25 de Abril, sempre!

gravura de José Santa Bárbara

Hoje não descerei a Avenida da Liberdade, como sempre fiz nos últimos 24 anos.
Há 46 anos atrás, também não o tinha feito, embora por razões diferentes. Nessa data - nesta data - estava exilado noutro país e impedido de regressar a Portugal.
Uma outra forma de "confinamento", nessa época protegido do "vírus" fascista que governava Portugal.
Nao é fácil protegermo-nos de vírus, ainda que a ciência ajude. Desde logo, com vacinas adequadas e, caso sobrevivamos, através da imunidade criada pelos anti-corpos.
Foi assim com as doenças infantis que todos contraímos na idade própria: do sarampo à varíola, da varicela à tosse convulsa. Para algumas, existia a vacina; para outras, o remédio era a quarentena forçada, que nos imunizava para o resto da vida. Também tomei a famosa BCG (contra a tuberculose), que em Portugal era obrigatória e que, nalguns países, nunca foi. Lembro-me bem, de ser chamado a um centro clínico holandês, onde aguardavam dezenas de refugiados portugueses para serem testados, dado que havia suspeitas que um de nós poderia estar infectado e contaminar os restantes. O médico, que me atendeu, ficou surpreendido por estarmos todos vacinados. Ninguém estava infectado. Nem o suspeito.
Durante os meus 8 anos de exílio, confirmei aquilo que já sabia. Não só estava imunizado contra as mais diversas doenças infantis, como tinha adquirido outras imunidades. Uma delas, contra o fascismo.
Uma "longa travessia", como cantou o Zé Mário, ao longo da qual vamos ficando mais fortes.
Esse vírus não apanhámos nós. E, aqueles que o apanham, são apenas a excepção que confirma a regra. 
Vem esta história toda, a propósito das comemorações deste ano, que vi em directo, através da NET.
Contrariamente a anos anteriores, estavam apenas 96 deputados e alguns convidados nas bancadas circundantes. Estiveram presentes, para além do PR, do PM e do Presidente da AR, representantes de todos os partidos.
Pese a tentativa grosseira de impedir a sessão, através de uma petição lançada em desespero pelo deputado fascista, a comemoração realizou-se na mesma. Da mesma forma que, como bem lembrou o PR, o Parlamento nunca fechou durante esta crise, também haverá celebrações do 10 de Junho, do 5 de Outubro e do 1ª de Dezembro, datas institucionais que não são pertença de ninguém em particular, mas pertencem aos portugueses em geral e por isso devem ser celebradas.
Foi bom seguir os discursos, ainda que à distância, desta vez forçada por um confinamento no estrangeiro. Nada a que não estivesse habituado, de resto.
Todos falaram. Até o fascista. Ainda bem. Prova que a democracia está forte e todos têm direito a expressar as suas opiniões, mesmo quando delas discordamos.
Confirmei aquilo de que suspeitava: estou imunizado contra o vírus do fascismo.   
Fascismo, nunca mais.
25 de Abril, sempre!

2020/04/19

Duas semanas noutra cidade (10): Modelos, Medos e Medidas Avulsas

photo NYTimes
A disseminação do coronavírus, agora de forma constante em todo o hemisfério Norte, obrigou a maior parte dos governos a tomarem medidas de acordo que, para além de sanitárias, reflectem o cariz de cada regime.
Depois do alarme ter soado na China (23 de Janeiro, n.r.), seguiu-se uma rápida reacção dos países limítrofes (Coreia do Sul, Taiwan, Japão...) que, alertados para o perigo de contaminação grave, rapidamente puseram em prática modelos sanitários, de detecção e prevenção, eficazes. Decisivo neste combate, foi o sistema de vigilância digital dos cidadãos que permitiu, em tempo real,  identificar quem estava infectado e avisar potenciais contaminados. Não é só na China, (portanto um estado totalitário) que os cidadãos são controlados no seu quotidiano. Também em sociedades asiáticas mais democráticas, o controlo digital é praticado, de forma semelhante, há muitos anos.
Em Taiwan, o estado envia simultaneamente a todos os cidadãos um SMS para localizar as pessoas que tiveram contactos com infectados e para informar sobre os lugares e edifícios onde houve pessoas contagiadas. Ainda numa fase inicial, Taiwan utilizou uma ligação dos diversos dados para localizar possíveis infectados em função das viagens que tinham realizado.
Na Coreia do Sul, quem se aproxima de um edifício onde tenha estado um infectado, recebe um sinal de alarme através de um "app", especial criado para o Coronavírus. Todos os lugares, onde havia infectados, estão registrados nesta aplicação. Não se tem muito em conta a protecção de dados nem a esfera privada. Em todos os edifícios da Coreia foram instaladas câmaras de vigilância em cada andar, em cada escritório, em cada loja. É praticamente impossível a movimentação em espaços públicos sem ser filmado por uma câmara de vídeo. Com os dados do telefone móvel e do material filmado por vídeo, pode criar-se o perfil de movimento completo de um infectado. Os movimentos de um infectado, são todos publicados. Nos escritórios do ministério coreano da saúde, existem pessoas, chamadas "trackers" que, dia e noite, não fazem outra coisa do que visionar o material filmado por vídeo para completarem o perfil do movimento dos infectados e localizar as pessoas que tenham tido contacto com estas.
Outra diferença fundamental, entre a Ásia e a Europa, são, sobretudo, as mascarilhas protectoras. Na Coreia do Sul, não há praticamente pessoas, que saiam à rua, sem mascarilhas respiratórias especiais, capazes de filtrar o ar do vírus. Não são as habituais mascarilhas quirocirúrgicas, mas mascarilhas protectoras especiais, com filtros, também usadas pelos médicos que tratam os infectados. Nas primeiras semanas, após o alarme, o tema prioritário na Coreia foi a distribuição massiva de máscaras à população. Perante as longas filas de espera nas farmácias, os governantes tomaram medidas radicais: foram construídas, à pressa, novas máquinas para fabricá-las. Aparentemente, com sucesso. Existe, inclusive, um "app", que indica quais as farmácias mais próximas que dispõem de máscaras.
Assim que souberam do vírus na China, as 4 fábricas farmacêuticas existentes, receberam dinheiro e autorização do governo, para fabricarem "kits" de teste. No pico da crise, chegaram a ser testados 20.000 cidadãos por dia. Para analisar os testes, foram criados 56 laboratórios especiais. As pessoas eram testadas nos hospitais ou em clínicas de proximidade, em casa e dentro dos próprios carros. Os infectados foram isolados em casa e o resto da população pode prosseguir a sua vida. Mais importante ainda, os sul-coreanos não esperaram por ajudas exteriores e fabricaram todo o material de que necessitavam em fábricas nacionais. O único país que fez mais testes do que a Coreia do Sul, foi a Alemanha (60.000/diários), graças a um bom sistema sanitário de prevenção e à capacidade industrial de que o país dispõe.
Na maioria dos países europeus e após um período de subvalorização da crise, o número de infectados e mortes disparou, tendo atingido números impensáveis há dois ou três meses, ainda que, comparativamente, o número de falecidos devido às gripes anuais, seja maior.
Dois meses após terem sido detectados os primeiros casos na Europa (Itália), o número de mortes por coronavírus continua a crescer nos países mais industrializados, sem que se veja um fim à vista: Itália (23.227), Espanha (20.453), França (19.323), UK (15.464), Bélgica (5.683), Holanda (3.684)...
Por outro lado, as medidas de contenção tomadas em cada país, divergem na sua aplicação e nos instrumentos postos à disposição pelos respectivos governos e serviços sanitários.
Uma das falhas, parece residir na capacidade de responder em tempo (material e logisticamente) a uma epidemia nova e com estas dimensões. Um dilema que atravessa a maioria dos países europeus, como bem exemplificou Erdad Balci, no semanário holandês HP/DeTijd do passado dia 23 de Março: "A Holanda, com a sua economia do conhecimento e o seu sector de serviços, viu-se reduzida a um país em vias de desenvolvimento, que tem de pedir materiais simples para que os seus súbditos não morram. É tempo de acordar". Utilizando a metáfora do "cavalo de competição que ganha sempre e que, por isso, continua a correr depois de perder...", o articulista prossegue: "na passada quarta-feira, chegou uma avião de mercadorias a Schipol, com um carregamento de 80.000 máscaras sanitárias vindas da China. Os chineses ofereceram as máscaras, porque tinhamos necessidade. Grande alegria à chegada das paletes, com direito a fotografia da tripulação chinesa e aplausos dos presentes. O carregamento gratuito é o espelho em que nos devemos mirar. Para obter uma coisa tão simples como máscaras orais, a Holanda teve de pedir a uma potência estrangeira que, na primeira oportunidade, também acaba com a nossa "open society" (em inglês, no texto). A chegada das máscaras, é o mesmo tipo de ajuda para o desenvolvimento, que um poço de água num aldeia africana. Sabíamos, há meses, da existência do vírus, mas não conseguimos fabricar máscaras para nos protegermos!". A razão, explica Balci, reside num factor muito simples: o desmantelamento progressivo da industria no Ocidente e a transferência de investimentos para a China e países límitrofes, onde a mão-de-obra é barata e os operários obedientes. Só que, agora, estamos todos nas mãos dos chineses. Esta constatação, leva-nos a outro tipo de questões que a crise epidémica levantou.
A pandemia põe à prova os regimes políticos em todo o Mundo.
A rivalidade entre USA e China, está a ser vista como uma competição entre dois modelos políticos opostos: A democracia e o autoritarismo. Qual deles respondeu melhor a esta crise e qual dos dois vai prevalecer depois da crise?
A China foi o primeiro país a registrar o contágio do Covid19. Em Novembro de 2019, ocorreu o primeiro caso em Wuhan, na província de Ubei, que seria abafado até começarem a correr notícias de que o médico que tinha detectado o vírus - Li Weng Lian - tinha sido afastado e, posteriormente, falecido devido à infecção, que alastrou em pouco mais de um mês. Em Janeiro deste ano, a China confirmava a epidemia e informava a OMS. As nações ocidentais não podem declarar que não sabiam da existência deste vírus.
Trump, como sempre, seguiu uma politica errática. Começou por fechar as fronteiras e abandonou o palco internacional, acusando a China de ser responsável pela disseminação do vírus, que apelidou de "vírus chinês". Xi Jinping seguiu uma política assertiva. Abre a China ao Mundo e quer ocupar o vazio deixado pelos EUA na liderança global.
A ideia que daqui resulta é a de que o autoritarismo é mais eficaz que a democracia e sairá reforçado desta crise.
Nesta crise, encontramos três componentes, que correspondem "grosso modo" a três tipos de regime  diferentes:
1) O Autoritarismo: do qual o melhor exemplo é a China. Começou por negar o problema, depois tentou escondê-lo, impedindo o médico de denunciar a doença, no que perdeu um mês que pode ter sido decisivo no combate à epidemia. Finalmente, tomou medidas draconianas e, uma vez controlado o surto,  fez aproveitamento político. Foi eficaz na resposta. Venceu o vírus (ainda que não saibamos se os números são exactos), enviou ajuda, material sanitário e médicos, para os países mais atingidos (Itália e Espanha). É o líder mundial desta crise.
2) As Democracias governadas por Populistas: Trump, Bolsonaro, Boris Johnson. Começaram por ridiculizar a gravidade da doença ("é só uma gripezinha", dizia Bolsonaro) contribuindo para a desinformação e adiando as soluções. Desvalorizaram o papel da ciência e as opiniões de médicos, em nome de uma suposta superioridade étnica. Finalmente, foram forçados a reagir, tarde e a más horas. Hesitaram entre o valor da vida humana e os interesses económicos.    
O resultado não foi o melhor. Em apenas quatro semanas, os EUA atingiram já os 40.000 mortos (metade das quais no estado de Nova Yorque) e os 30 milhões de desempregados (20% da força de trabalho). A maior percentagem dos últimos 10 anos!
Do Brasil, nem vale a pena falar: Bolsonaro, o pior presidente da história brasileira, continua a passear-se entre os seus adeptos, tão mentecaptos como ele e, entretanto, despediu o ministro da saúde, por este ousar criticar a sua gestão nesta crise. O país é um barril de pólvora, com milhões de pessoas a viver em condições infra-humanas nas favelas do Rio e São Paulo, para além dos 200.000 presos, confinados em prisões sobrelotadas. O caos é tão grande que os militares (chefiados por Mourão, vice-presidente) estão à beira de forçar uma demissão (por "impeachment" ou acordo) de Bolsonaro e da sua família, o que não augura grande futuro para o país.
Entre os populistas, há ainda quem se aproveite dos poderes de excepção para reforçar a autocratização do regime. É o caso de Orban (Hungria) que aproveitou a epidemia, para decretar o "estado de excepção" por tempo indeterminado. Quem desobedecer pode apanhar 5 anos de prisão! A Hungria passou a ser a primeira ditadura na União Europeia.
3) As Democracias Liberais: umas mais cedo, outras mais tarde, todas levaram o problema a sério e tomaram decisões com base na ciência, ainda que os "confinamentos" (lockdowns) sejam diferentes de pais para país. Os mais liberais (Suécia, Finlândia, Noruega, Holanda, etc...) optaram por um sistema semi-aberto, onde os cidadãos são responsáveis pelo seu comportamento; enquanto outros (Portugal, Espanha, Itália...) seguem guiões mais tradicionais e prolongaram os estados de excepção até à primeira quinzena de Maio.
Uma coisa, parece certa. Depois da pandemia, nada ficará como dantes. Resta saber se para melhor. Os indicadores, para já, são péssimos. Primeiro, assustaram as pessoas com o vírus e, agora, assustam-nas com a próxima crise económica. Como bem explicou Naomi Klein em "A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo do desastre", o sistema aproveita-se do medo, causado por crises (económicas, humanitárias ou outras) para manipular e reforçar o seu poder. Nuvens negras no horizonte.

(continua)