2012/03/24

Exige-se esclarecimento

Agentes provocadores terão estado, segundo o grupo Anonymous Legion Portugal, na origem dos confrontos que se verificaram ontem entre os membros da Plataforma 15 de Outubro e a polícia.
Este assunto exige total esclarecimento e apuramento de responsabilidades e deve ser levado até às derradeiras consequências (ver aqui mais pormenores).
O que é que andam a fazer as forças de "segurança" deste país?



2012/03/21

Hoje mais do que nunca...


A poesía está por todo o lado, como muito bem declarou Maria Helena Vieira da Silva. Nos dias que correm muita gente parece bloqueada, dando, por vezes, a ideia que esqueceu esta verdade singela. A narrativa oficial contribui, estabelecendo uma espécie de censura que a impede de perceber e tomar como seu este facto. Mas, a poesia está de facto na rua e, como digo no título, hoje, mais do que nunca, é preciso (re)descobri-la. É um verdadeiro acto de resistência (re)descobri-la. E hoje, —diria também, mais do que nunca— é tão poeta aquele que faz poesia como aquele que tem coragem, que é capaz de a (re)descobrir. Façamos jus à ideia de que Portugal é um país de poetas.

Tonino Guerra (1920-2012)

2012/03/19

iPide

No Zimbabué, um tribunal prepara-se para ditar sentença num caso de seis cidadãos apanhados a ver vídeos sobre a chamada "primavera árabe". No país de Mugabe, esse grande democrata, é assim. E não há nada como alterar o curso das estações antes que seja tarde. Primaveras, no Zimbabué, nem em video.
E em Portugal, país do primeiro mundo, onde não há medo, a informação circula livre, cada um exprime opiniões e relata factos sem receio de represálias e os meios e as redes de comunicação não estão nas mãos de uma mão cheia de bandalhos, os mesmos que são donos dos cabedais, ditam as leis, dominam o comércio e cobram o imposto, como é em Portugal?
Portugal é pior que o Zimbabué.
Este caso dos seis do Zimbabué parece brincadeira quando se pensa no caso de Rui Cruz. Ao pé disto Mugabe passa por virtuoso. Não se consegue perceber que crime poderá ter o autor do TugaLeaks cometido para ser considerado arguido pela justiça (assim mesmo, com letra minúscula, como minúsculo é o respeito que, cada vez mais, me merecem as instituições oficiais deste país de opereta). Aliás, ele, pelos vistos, também não.
O TugaLeaks, criado por Rui Cruz, terá divulgado acções de supostos hackers que, segundo consta, terão alterado conteúdos de sites institucionais, suficientemente desprotegidos para que isso fosse possível. Divulgou também, segundo parece, dois ficheiros de dados pessoais de agentes da PSP retirados, um, de um servidor governamental e, outro, do computador de um sindicato, ambos, pelos vistos, também totalmente vulneráveis.
Em vez de ouvir a mensagem, as instituições oficiais atiram ao mensageiro. E a mensagem é, afinal, simples: a segurança informática em Portugal é uma treta! Entrar num site e colocar lá uma qualquer mensagem provocatória não revela grandes dotes e parece até pueril. Mas, quem garante, perante o amadorismo que todo este foclore revela, de um lado e de outro, que os servidores a sério, da justiça, das finanças, das câmaras, etc, não são igualmente vulneráveis? E que estes ou outros hackers, menos brincalhões e talvez ligados a outros interesses menos românticos, não dispõem de artilharia mais pesada e via aberta para atingirem outros alvos mais importantes? Querem ver que esta acção contra Rui Cruz não passa de uma manobra para esconder questões mais sérias?
Uma coisa é certa: o comportamento e os métodos usados pela justiça, neste caso, trazem-nos à memória dias que julgávamos passados. Para muita gente neste país, não parece ter servido para grande coisa a instauração do regime democrático.

2012/03/16

Onde se fala de outras interpretações para o conceito de volatilidade

A proposta de criação de uma comissão para averiguar o caso BPN, apresentada pelo BE, tinha como objectivo esclarecer todo este nebuloso assunto. Foi chumbada pela maioria, como se sabe. Seguiu-se-lhe uma outra de autoria do PS que, ao abrigo de procedimentos do Regimento da AR, não carecia de aprovação em plenário. Por isso, a maioria antecipou-se e propôs uma outra comissão, com um pequeno pormenor: remetia o início da sua entrada em funcionamento para depois de concluída a privatização.
O assunto causou, aparentemente, polémica. E, no final, depois de horas de discussão, no meio de alegadas ameaças de demissão e sentimentos de "crispação" entre os deputados, lá se criou uma única comissão.
Digo que o assunto causou "aparente" polémica porque, desconfiado como sou, fico com a sensação de que o consenso obtido ontem, as cedências feitas e a convergência de objectivos na criação de uma única comissão não passam, na realidade, de uma manobra para deixar tudo na mesma. O proto-evanescente caso BPN —a "maior fraude do século", como lhe chamam— é como o negócio da gasolina, segundo o presidente da Galp: volátil.
Em suma: much ado about nothing, para usar a imagem de Shakespeare...

2012/03/14

A estatística é uma batata

O Secretario de Estado da Saúde acusa "dirigentes partidários" de demagogia quando estes afirmam que o aumento do número de mortes por causa da gripe se fica a dever aos cortes na saúde e à diminuição dos recursos dos doentes. De facto não vi ainda estudos que sustentem essa tese. Admitamos portanto que o SES tem razão...
Ora, o SES cita números de 2008, supostamente relativos ao total de mortos por causa da gripe, e diz que são idênticos aos deste ano. Conclui, analisando apenas o número de mortes, sem contemplar outras variáveis, que este carácter excepcional da mortalidade deveria então aplicar-se (!) a esse ano. E admoesta os "dirigentes partidários" dizendo "que têm que ter muito cuidado relativamente às afirmações que fazem para não criar alarme e demagogia."
Para Fernando Leal da Costa a estatística é uma batata e o rigor tem dias.
Por que razão houve um pico em 2008? Estamos falar da mesma estirpe de vírus? Se, nesses e noutros aspectos, os números são comparáveis, onde estão então os estudos que comprovam que em 2012 é inequívoco que a mortalidade fora de comum não se deve mesmo ao facto de as pessoas não terem agora dinheiro para comprar medicamentos ou para se deslocarem aos centros de saúde, como faziam antigamente?
Quem, com um raio, é este Leal da Costa? Quem é que está a ser demagogo?

Sobre a volatilidade da comercialização de produtos voláteis

É um verdadeiro escândalo aquilo que se passa com os preços da energia em Portugal. Por mais voltas que se tente dar para perceber as razões que levam os preços dos combustíveis, da electricidade e outros, a atingir estes valores criminosos que temos hoje, deparamos sempre com um novelo intrincado. Ao tentar desembrulhá-lo a única coisa que se nos revela é um outro sistema fiscal, escondido, por detrás do sistema, já de si terrorista, aprovado no Orçamento de Estado. Um sistema que recorre a uma plêiade de outros instrumentos como a factura da electricidade, as taxas "moderadoras" na saúde, as portagens, etc.. Um contributo, nosso, uma verdadeira inovação, na vetusta arte da administração fiscal: a economia paralela de estado.
A novela "eléctricas"promete (leia aquiaqui, por exemplo). Mas há outras novelas e outros artistas.
O presidente da Galp dizia ontem à TSF que "estamos a viver num período de alta volatilidade, o negócio de produtos petrolíferos é totalmente globalizado, portanto, os preços não são definidos nem condicionados pela economia portuguesa." Pois... Não sei se a expressão utilizada "alta volatilidade" tem a ver com o produto ou se se trata de fazer humor negro. O que sei é que olhando para os preços no estrangeiro e em Portugal, comprovando as discrepâncias brutais de preços nas bombas, que cá se registam (repare-se, por exemplo, nas diferenças inexplicáveis de preço em bombas de gasolina urbanas e rurais, entre bombas situadas numa autoestrada e numa estrada normal, a escassas dezenas de metros, por vezes, uma da outra, ou nas diferenças entre os preços praticados pela omnipresente Galp e as outras), verificando o gráfico da progressão do aumento dos combustíveis, o termo volátil vem, sem dúvida, à mente...
Ferreira de Oliveira mostrou-se também preocupadíssimo com os postos de venda. Haverá centenas em perigo, o negócio escasseia, a situação é, concorda o presidente da ANAREC, grave, 250 postos de venda terão encerrado nos últimos dois anos e 300 estão em vias de encerrar. Perto de 2 500 postos de trabalho irão perder-se. Ferreira de Oliveira fala num tom que mais parece querer dizer que, mandasse ele, iríamos todos nós, desavergonhados sem sentido patriótico, ser obrigados a comprar mais gasolina, ainda mais cara, para que o sector se pudesse salvar.
Tudo isto se passa sem aparente controlo, sem visão estratégica, com o Estado em intrigante ponto morto, em nome sabe-se lá de que misteriosos desígnios.
Entretanto os preços dos combustíveis em Portugal estão "em linha com o resto da Europa," constata o Secretário de Estado da Energia (*). Claro que se exigiria mais neste domínio de uma economia que se pretende mais competitiva do que a do resto da Europa, mas para quê ser tão picuinhas? Há sempre a componente salarial para equilibrar a competitividade, constatamos nós.
A economia afunda-se, o preço dos combustíveis, um dos factores que mais contribui para a fraca produtividade da economia portuguesa, não pára de aumentar. O negócio dos combustíveis, esse, baixa, os comerciantes do sector fecham as portas e despedem pessoal, os portugueses arrumam os carros, as empresas tentam fazer reflectir nos preços dos produtos o preço irracional dos combustíveis e, com isso, afundam-se e afundam ainda mais uma economia já quase em hipotermia. O Estado deve certamente perder, na diminuição do negócio e nos encargos que terá de suportar com os despedimentos, o que ganha nos impostos (a componente mais pesada da factura da gasolina que pagamos; 60% no caso da gasolina e 50% no do gasóleo.)
É assim a liberalização dos preços, é assim a globalização, é, enfim, assim a volatilidade. São assim os estranhos caminhos da gestão...

(*) Não sei que "linha" é esta, mas, no caso dos combustíveis, deve-se escrever direito por "linha torta". Diz-se que a nossa é a gasolina mais cara dos 27...

2012/03/13

Da Grécia, com cultura

Pesem as notícias devastadoras que, por estes dias, nos chegam sobre a Grécia, o contrário também é verdade. E as boas notícias, ainda que menos espectaculares, surgem através da cultura. Assim e em voo de pássaro, registamos três momentos - dois musicais e um filmico - dignos da melhor tradição popular e clássica deste país-berço da civilização ocidental, a decorrerem entre nós.
Teve início em Guimarães, com a estreia mundial do concerto "Periplus" (deambulações luso-gregas), um projecto de Amélia Muge e Michales Loukovikas, posteriormente apresentado em Lisboa e, recentemente, editado num album que continua a ser divulgado por todo o país. Uma parceria inusitada, onde se revela o melhor de ambas culturas, cantado por dois intérpretes de excepção.
Igualmente a decorrer, está a retrospectiva "Elegia da Viagem" (A Grécia de Theo Angelopoulos), um tributo da Cinemateca Portuguesa a este realizador maior do cinema contemporâneo, recentemente falecido. O ciclo concentra-se nas duas primeiras décadas da obra de Angeloupolos e nele serão apresentados dez filmes, oito dos quais nunca estreados em Portugal. Destaque para "Dias de '36" (ontem estreado com a presença da viúva do realizador e da directora da Cinemateca de Atenas), "Reconstrução", "A Viagem dos Comediantes", "Os Caçadores", "Alexandre O Grande", "Viagem a Cítera", "O Apicultor" e "Paisagem na Neblina". O ciclo prolonga-se pelo mês de Abril.
Finalmente, programado para 24 de Março na Gulbenkian, o concerto "Eros Y Muerte" de Angelique Ionatos, conhecida de anteriores visitas ao nosso país. Uma excelente intérprete, esta grega residente em Paris, na melhor tradição de música "Éntekhno" (música de arte) que vem apresentar o seu último trabalho em disco.
Tudo boas razões para ver e crer que, da Grécia, podem também vir boas notícias.

2012/03/11

Cavaco Silva: publicidade enganosa



Os "analistas" dissecaram o tão badalado prefácio de Cavaco Silva, interpretam os seus sinais, exprimiram opiniões e descobriram, pelo caminho, as mais diversas consequências para aquelas 25 páginas que tresandam a maus fígados. O homem é, segundo estes "analistas", ressabiado, mesquinho, mentiroso, cobarde, não tem dimensão para ocupar o lugar que ocupa, apequenou-se com esta acção numa altura em que seria necessário um PR forte, lançou uma iniciativa extemporânea que pode ter efeitos perversos e prejudicar um País fragilizado, etc, por aí fora. As razões parecem ter todas fundamento. De uma modo geral, da direita à esquerda, a acção de Cavaco Silva é condenada com base num convincente conjunto de argumentos que revelam até uma estranhíssima e inusitada concomitância política.
Faltou, no entanto, tanto quanto posso perceber, procurar uma razão plausível para o surgimento deste escrito neste preciso momento. E ela reside num facto a que os "analistas" não deram, nem dão, importância, porque não deram, nem dão, importância à iniciativa que lhe está na origem: é que o "prefácio" surge na semana em que a Petição a pedir a demissão do PR foi apresentada na AR.
O facto de mais de 40 000 cidadãos, daqueles rigorosamente não colunáveis, terem, de uma forma tão naif e espontânea, mas tão categórica, demonstrado que não aprovam a actuação do actual PR e de pedirem, sem papas na língua, rodriguinhos de linguagem, ou malabarismos legalistas, "a sua imediata demissão do cargo de Presidente da República Portuguesa," deve certamente ter criado alguma ansiedade lá para os lados de Belém.
Acontece que o movimento Iniciativa Democrática (criado no Facebook e constituído pelos signatários da Petição) está em plena ascensão, parece ter conquistado aderentes para além daqueles que assinaram a Petição e ameaça tornar-se imparável. Pode causar estragos sérios e profundos na imagem do presidente. Não se sabe até onde tudo isto pode ir. Cavaco defende-se, atacando.
Não concordo com a teoria segundo a qual Cavaco é um simplório, mas probo e imune a influências, personagem político, que ascendeu, em consequência desses seus predicados, ao cargo de PR. Cavaco é tudo menos um simplório. Esta sua imagem foi construída com enorme cuidado e agressividade.
Surtiu efeito. Até agora.
O que um número crescente de cidadãos começa a perceber é que não bate a bota com a perdigota. Os predicados que enfeitam a sua imagem não batem certo com alguns factos, nunca devida e convincentemente explicados, da vida do Presidente da República. Mas, é sobretudo a sua actuação política que se revela um desastre e as incoerências do seu discurso que começam a tornar-se claras para a generalidade dos cidadãos. Cavaco está a revelar-se um exemplo de publicidade enganosa,  incapaz de assegurar o serviço contratado. A pintura começa a esborratar e o edifício habilmente construído apresenta sinais de desmoronamento iminente.
Esqueceram-se dele os "analistas", mas o Movimento criado em torno da Petição ameaça seriamente criar grossa mossa.

2012/03/08

8 de Março de 2012

(...) "Venho só a defender-me, e mostrar quão fora de razão andam todos os que me culpam do que penam, e da morte de Crisóstomo. Por isso, rogo a quantos aqui sois me atendais, que não será necessário muito tempo, nem muitas palavras, para persuadir de tão clara verdade os assisados. Fez-me o céu formosa, segundo vós outros encareceis; e tanto, que não está em vossa mão o resistirdes-me; e, pelo amor que me mostrais, dizeis (e até supondes) que esteja eu obrigada a corresponder-vos. Com o natural entendimento que Deus me deu, conheço que toda a formosura é amável; mas não entendo que em razão de ser amada seja obrigada a amar, podendo até dar-se que seja feio o namorado da formosura. Ora sendo o feio aborrecível, fica muito impróprio o dizer-se: “quero-te por formosa; e tu, ainda que eu o não seja, deves também amar-me”. Mas, ainda supondo que as formosuras sejam de parte a parte iguais, nem por isso hão-de correr iguais os desejos, porque nem todas as formosuras cativam; algumas alegram a vista, sem renderem as vontades. Se todas as belezas enamorassem e rendessem, seria um andarem as vontades confusas e desencaminhadas, sem saberem em que haviam de parar; porque, sendo infinitos os objetos formosos, infinitos haviam de ser os desejos; e, segundo eu tenho ouvido dizer, o verdadeiro amor não se divide, e deve ser voluntário, e não forçado. Sendo isto assim, como julgo que é, por que exigis que renda a minha vontade por força, obrigada só por dizerdes que me quereis bem? Dizei-me: se, assim como o céu me fez formosa, me fizera feia, seria justo queixar-me eu de vós por me não amardes? E de mais, deveis considerar que eu não escolhi a formosura que tenho; que, tal qual é, o céu ma deu gratuitamente, sem eu a pedir nem a escolher; assim como a víbora não há-de ser culpada da peçonha que tem, posto matar com ela, em razão de lhe ter sido dada pela natureza, tão pouco mereço eu ser repreendida por ser formosa, que a formosura na mulher honesta é como o fogo apartado, ou como a espada aguda, que nem ele queima, nem ela corta a quem se lhes não aproxima. A honra e as virtudes são adornos da alma, sem os quais o corpo não deve parecer formoso, ainda que o seja. Pois se a honestidade é uma das virtudes que ao corpo e alma mais adornam e aformosentam, por que há-de perdê-la a que é amada por formosa, para corresponder à intenção de quem, só por seu gosto, com todas as suas forças e indústrias, aspira a que a perca? Eu nasci livre; e para poder viver livre escolhi as soledades dos campos; as árvores desta montanha são a minha companhia; as claras águas destes arroios, meus espelhos; com as árvores e as águas comunico meus pensamentos e formosura. Sou fogo, mas apartado; espada, mas posta longe. Aos que tenho namorado com a vista, tenho-os com as palavras desenganado; e se os desejos se mantêm com as esperanças, não tendo eu dado nenhuma a Crisóstomo, bem se pode dizer que o matou a sua teima, e não a minha crueldade; e se se me objeta que eram honestos os seus pensamentos, e que por isso estava obrigada a corresponder-lhes, digo que, quando, neste mesmo lugar, onde agora se cava a sua sepultura, me descobriu a bondade dos seus intentos, eu lhe respondi e declarei que os meus eram viver em perpétua soledade, e que só a terra gozasse o fruto do meu recolhimento, e os despojos da minha formosura; e se ele, com todo este desengano, quis aporfiar contra a esperança, e navegar contra o vento, que muito que se afogasse no meio do golfão do seu desatino!? Se eu o entretivera, seria falsa; se o contentara, desmentiria a melhor intenção e propósito. Desenganado, teimou, desesperou sem ser aborrecido. Vede agora se é razão que da sua culpa se me lance a mim a pena. Queixe-se o enganado, desespere-se aquele a quem faltaram esperanças que tanto lhe prometiam. O que eu chamar, confie-se; o que eu admitir, ufane-se; porém não me chame cruel nem homicida aquele a quem eu não prometo, nem engano, nem chamo, nem admito. O céu por ora não tem querido que eu ame por destino; e o pensar que hei-de amar por eleição é escusado. Este desengano geral sirva a cada um dos que me solicitam para seu particular proveito; e fique-se entendendo daqui avante que, se algum morrer por mim, não morre de zeloso, nem desditado, porque quem a ninguém quer a ninguém deve dar ciúmes; desenganos não se devem tomar por desdéns. O que me chama fera e basilisco, deixe-me como coisa prejudicial e ruim; o que me chama ingrata, não me sirva; quem me julga desconhecida, que me não conheça; quem desumana, que me não siga. Esta fera, este basilisco, esta ingrata, esta cruel, e esta desconhecida, nem os há-de buscar, nem servir, nem conhecer, nem seguir de modo algum. Se a Crisóstomo o matou a sua impaciência e arrojado desejo, por que se me há-de culpar o meu honesto proceder e recato? Se eu conservo a minha pureza na companhia das árvores, por que hão-de querer que eu a perca na companhia dos homens? Tenho riquezas próprias, como sabeis, e não cobiço as alheias; tenho livre condição, e não gosto de sujeitar-me; não quero nem tenho ódio a pessoa alguma; não engano a este, nem solicito a aquele; não me divirto com um, nem com outro me entretenho. A conversação honesta das zagalas destas aldeias, e o trato das minhas cabras, me entretêm; os meus desejos têm por limites estas montanhas; e, se para fora se estendem, é para contemplarem a formosura do céu. São estes os passos contados, por onde a alma caminha para a sua morada primeira." Defesa de Marcela, D. Quixote (cap XIV), M. de Cervantes

2012/03/03

"Pessoal do Fisco é agredido ou espancado todos os dias"

O Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos afirma-o e diz mais: o pior está ainda para vir! É claro que cada um interpreta isto como quer. Alguns justificam as agressões dizendo que os funcionários abusam da sua posição. Dizem outros que, no actual quadro de crise e sendo a lei cega, se geram situações de injustiça inaceitáveis. Outros ainda criticam essa opção porque, em tese, as soluções violentas não são legítimas.
Há quem pense que os funcionários não têm a capacidade de avaliar cada caso que têm de tratar. Outros há que pensam que eles não sabem ter essa capacidade. Outros ainda pensam que isso lhes está simplesmente vedado pelo seu estatuto.
Todas estas diferenças de opinião servem indiferentemente para aplaudir ou condenar as agressões.
Mas, no final, a verdade é que o Fisco é o "rosto do Estado", o Estado não cumpre, e é justamente quem dá o rosto pelo "rosto do Estado" que paga as favas.
Quer os que criticam estas agressões quer os que as praticam, se esquecem que o cerne da questão não está nem no Estado, nem no seu "rosto". A falta de um debate sério sobre o papel do Estado —que temos de exigir— e a visão neoliberal que hoje prevalece e contribui para confundir ainda mais as pessoas sobre esta matéria —que temos de combater com unhas e dentes— isso sim, é o problema.
Por outro lado, não deixa de ser verdade que, mais cedo ou mais tarde, os agentes do Fisco vão ter de escolher, como os restantes agentes da autoridade do Estado, de que lado da barricada vão querer estar e de quem querem ser agentes...

Aos leitores do Face que, por acaso, sejam professores. E a todos os outros também...

Leia este apelo de Cheryl Angst, professora, escritora canadiana. Foi escrito no Canadá, podia ter sido escrito em Portugal. Na verdade, podia ter sido escrito em qualquer país "ocidental", nestes tempos de políticas neoliberais.

2012/02/29

U aqordu ortugrafiqu i u futuru da lingua purtugesa…

Não resisto a reproduzir aqui este texto, de autor desconhecido, que recebi via email.

"O acordo ortográfico e o futuro da língua portuguesa…
Tem-se falado muito do Acordo Ortográfico e da necessidade de a língua evoluir no sentido da simplificação, eliminando letras desnecessárias e acompanhando a forma como as pessoas realmente falam. Sempre combati o dito Acordo mas, pensando bem, até começo a pensar que este peca por defeito. Acho que toda a escrita deveria ser repensada, tornando-a mais moderna, mais simples, mais fácil de aprender pelos estrangeiros. Comecemos pelas consoantes mudas: deviam ser todas eliminadas. É um fato que não se pronunciam. Se não se pronunciam, porque ão-de escrever-se ? O que estão lá a fazer ? Aliás, o qe estão lá a fazer? Defendo qe todas as letras qe não se pronunciam devem ser, pura e simplesmente, eliminadas da escrita já qe não existem na oralidade. Outra complicação decorre da leitura igual qe se faz de letras diferentes e das leituras diferentes qe pode ter a mesma letra. Porqe é qe “assunção” se escreve com “ç” e “ascensão” se escreve com “s”? Seria muito mais fácil para as nossas crianças atribuír um som único a cada letra até porqe, quando aprendem o alfabeto, lhes atribuem um único nome. Além disso, os teclados portugueses deixariam de ser diferentes se eliminássemos liminarmente o “ç”. Por isso, proponho qe o próximo acordo ortográfico elimine o “ç” e o substitua por um simples “s” o qual passaria a ter um único som. Como consequência, também os “ss” deixariam de ser nesesários já qe um “s” se pasará a ler sempre e apenas “s”. Esta é uma enorme simplificasão com amplas consequências económicas, designadamente ao nível da redusão do número de carateres a uzar. Claro, “uzar”, é isso mesmo, se o “s” pasar a ter sempre o som de “s” o som “z” pasará a ser sempre reprezentado por um “z”. Simples não é?, e o som é “s”, escreve-se sempre com s. Se o som é “z” escreve-se sempre com “z”. Quanto ao “c” (que se diz “cê” mas qe, na maior parte dos casos, tem valor de “q”) pode, com vantagem, ser substituído pelo “q”. Sou patriota e defendo a língua portugueza. Não qonqordo qom a introdusão de letras estrangeiras. Nada de “k”. Ponha um q. Não pensem qe me esqesi do som “ch” . O som “ch” será reprezentado pela letra “x”. Alguém dix “csix” para dezinar o “x”? Ninguém, pois não? O “x” xama-se “xis”. Poix é iso mexmo qe fiqa. Qomo podem ver, já eliminámox o “c”, o “h”, o “p” e o “u” inúteix, a tripla leitura da letra “s” e também a tripla leitura da letra “x”. Reparem qomo, gradualmente, a exqrita se torna menox eqívoca, maix fluida, maix qursiva, maix expontânea, maix simplex. Não, não leiam “simpléqs”, leiam simplex. O som “qs” pasa a ser exqrito “qs” u qe é muito maix qonforme à leitura natural. No entanto, ax mudansax na ortografia podem ainda ir maix longe, melhorar qonsideravelmente. Vejamox o qaso do som “j”. Umax vezex excrevemox exte som qom “j” outrax vezex qom “g”- ixtu é lójiqu? Para qê qomplicar?!? Se uzarmox sempre o “j” para o som “j” não presizamox do “u” a segir à letra “g” poix exta terá, sempre, o som “g” e nunqa o som “j”. Serto? Maix uma letra muda qe eliminamox. É impresionante a quantidade de ambivalênsiax e de letras inuteix qe a língua portugesa tem! Uma língua qe tem pretensõex a ser a qinta língua maix falada do planeta, qomo pode impôr-se qom tantax qompliqasõex? Qomo pode expalhar-se pelo mundo, qomo póde tornar-se realmente impurtante se não aqompanha a evolusão natural da oralidade? Outro problema é o dox asentox. Ox asentox só qompliqam !

Se qada vogal tiver sempre o mexmo som, ox asentox tornam-se dexnesesáriox. A qextão a qoloqar é: á alternativa? Se não ouver alternativa, pasiênsia. É o qazo da letra “a”. Umax vezex lê-se “á”, aberto, outrax vezex lê-se “â”, fexado. Nada a fazer. Max, em outrox qazos, á alternativax. Vejamox o “o”: umax vezex lê-se “ó”, outrax lê-se “u” e outrax, lê-se “ô”. Seria tão maix fásil se aqabásemox qom isso! Porqe é qe temux o “u”? Se u som “u” pasar a ser sempre reprezentado pela letra “u” fiqa tudo tão maix fásil! Pur seu lado, u “o” pasa a suar sempre “ó”, tornandu até dexnesesáriu u asentu. Já nu qazu da letra “e”, também pudemux fazer alguma qoiza :quandu soa “é”, abertu, pudemux usar u “e”. U mexmu para u som “ê”. Max quandu u “e” se lê “i”, deverá ser subxtituídu pelu “i”. I naqelex qazux em qe u “e” se lê “â” deve ser subxtituidu pelu “a”. Sempre. Simplex i sem qompliqasõex. Pudemux ainda melhurar maix alguma qoiza: eliminamux u “til” subxtituindu, nus ditongux, “ão” pur “aum”, “ães” – ou melhor “ãix” - pur “ainx” i “õix” pur “oinx”. Ixtu até satixfax aqeles xatux purixtax da língua qe goxtaum tantu de arqaíxmux. Pensu qe ainda puderiamux prupor maix algumax melhuriax max parese-me qe exte breve ezersísiu já e sufisiente para todux perseberem qomu a simplifiqasaum i a aprosimasaum da ortografia à oralidade so pode trazer vantajainx qompetitivax para a língua purtugeza i para a sua aixpansaum nu mundu. Será qe algum dia xegaremux a exta perfaisaum?"

2012/02/20

Zeca Afonso 25 anos depois

Passam, esta semana, 25 anos sobre a morte de José Afonso. No ano em que nos deixou, foi igualmente fundada a Associação José Afonso, que tem como objectivos "perpetuar a memória viva do poeta-cantor José Afonso; contribuir para a difusão da sua obra e do seu exemplo de vida e prosseguir nos planos cultural e cívico, a obra de José Afonso" (dos estatutos).
Para celebrar este duplo acontecimento, estão previstas, ao longo do ano, diversas actividades a nível nacional, tanto da iniciativa da Associação e dos seus núcleos regionais, como da iniciativa individual e colectiva que, a esta efeméride, se quiserem associar.
Neste âmbito, a Associação Académica de Coimbra, organiza uma semana dedicada a José Afonso, sob o lema "José Afonso, o rosto da utopia", que inclui uma exposição sobre a sua obra discográfica "Desta canção que apeteço", debate com a participação de Joaquim Vieira, Adelino Gomes e Rui Pato e diversas sessões de poesia e canto afonsino.
Em Lisboa, na próxima quinta-feira, dia 23, o recém-criado núcleo da AJA, assinala a efeméride com um concerto-maratona na Academia de Santo Amaro em Alcântara, com a participação e.o. de Hélder Costa, Francisco Fanhais, Francisco Naia, Couple Coffee, Zeca Medeiros e o Coro da Casa da Achada.
No Porto, o núcleo da AJA-Norte, organiza diversas iniciativas em redor do manifesto "Amigos, maiores que o Pensamento" onde, para além de José Afonso, se recorda Adriano Correia de Oliveira, desaparecido há 30 anos.
Todas as informações sobre estas iniciativas e sua calendarização, podem ser seguidas através do "site" da AJA.

2012/02/13

Atenas já está a arder?

O acordo, a que chegaram ontem os principais partidos gregos, só aparentemente é um benefício para a Grécia. É verdade que o país vai receber 130 mil milhões de euros e, para já, evitar a bancarrota e permanecer na zona Euro. Mas, o reverso da medalha não é menos verdadeiro: novos aumentos de impostos, novas reduções de vencimentos, novas reduções de reformas e mais despedimentos que, só este ano, deverão atingir 15.000 funcionários públicos. O acordo prevê ainda um despedimento gradual de 150.000 funcionários, até 2015.
Curiosamente, no mesmo dia em que o parlamento grego discutia as medidas draconianas impostas pela Troika, o multimilionário norte-americano Soros (conhecido pela sua actividade especuladora na bolsa) declarava em entrevista que Merkel estava a conduzir a Europa por caminhos errados e, se a Grécia falisse, era o próprio projecto europeu que estaria em causa. Ora aqui está um homem que sabe do que fala...
Para além dos habituais protestos da rua, ontem particularmente violentos, devem ser registados os votos contra de 43 deputados do Pasok e da Nova Democracia, que recusaram apoiar as medidas preconizadas pelo governo. O acto valeu-lhes a expulsão dos respectivos partidos, mas deu mais força e razão aos protestos de um povo que chegou ao limite da resistência. Seguem-se novas eleições em Abril e, a acreditar nas sondagens, nada ficará como dantes. As forças mais à esquerda do parlamento ganham nas intenções de voto, o que pode significar a perda da influência dos partidos do centro (principais responsáveis pela crise actual) e um novo impasse político daqui a dois meses. Nada garante que a Grécia saia reforçada desta crise, o que aumentará o perigo de contaminação às economias mais fracas do Euro, no caso Portugal, Irlanda, Espanha e Itália. A Europa, ou o que dela resta, está avisada.

2012/02/10

Honradez: parolice ou má fé

O grande argumento usado pela "laranjada", apêndices e demais apaniguados para o cumprimento dos acordos com a troika e para apertar o garrote ao povo português é o da honradez. "Assinámos" o acordo, dizem eles, os prestamistas estão a fazer o favor de nos "ajudar", argumentam, portanto, o que "Portugal" tem de fazer é submeter-se aos ditames deles, "cumprir" o acordo e mais nada. Honradez! O argumento é instalado, de forma mais ou menos subtil, no inconsciente dos portugueses, tentando dar uma patina moral a um problema imoral.
Sim, honradez, na nossa vida privada, no cumprimento das regras a que nos submetemos voluntariamente ou que, por via dos compromissos que assumimos de boa fé, nos cabe honrar.
Mas, o que devemos nós pensar deste argumento da honradez colectiva quando é justamente este pequeno grupo de vigaristas que nos conduziu a este lamentável estado de coisas, que o justifica por necessidade de obediência a princípios que nos implicam a todos? O que pensar deste grupo de vigaristas que aperta o garrote à generalidade do povo português, em nome de princípios falaciosos, repetidos até à exaustão, mas que passa impune às suas responsabilidades sobre aquilo que agora tentam corrigir e escapa aos efeitos da suas próprias medidas? O que devemos nós pensar dos que estabeleceram esses princípios sem legitimidade inequívoca para o fazer, mentindo ou iludindo os portugueses sobre os seus propósitos quando se apresentaram a sufrágio? O que devemos nós pensar dos que dizem que têm de os cumprir, mas que, para se furtarem à legítima ira dos que têm de sofrer os seus injustos efeitos, dizem não estar de acordo com eles? E o que devemos nós fazer quando se mete pelos olhos dentro que a aplicação destes princípios coloca em perigo, justamente, o seu próprio cumprimento ao impedirem a única solução que este problema tem, i.e., impedirem os geradores de riqueza –os únicos capazes de resolver o problema que o Estado criou– de cumprir o seu papel? O que buscam? O incumprimento, para assim melhor exercerem o seu livre arbítrio? Quase que somos então levados a concluir que o acordo foi estabelecido de má fé logo para começar, para melhor suscitar o seu incumprimeto e justificar a continuação do garrote...
Que raio de estúpido argumento é este da honradez colectiva?
O argumento é duplamente inaceitável. Se usado no pressuposto de que há má fé, os seus proponentes devem simplesmente ser levados à Justiça pelo mal que estão a causar. Se os seus proponentes o estão a fazer de boa fé, o argumento revela então uma mesquinhez indigna de quem é responsável pela governação de um país. É, digamos, um argumento piegas...
O sentido da honradez não pode ser aplicado a um povo. É pequenino demais e, dir-se-ia, meio parolo,  aplicar este conceito a um fenómeno desta escala. Um estado não é um indivíduo. Os conflitos, dilemas e contradições individuais são resolvidos pelo indivíduo, com implicações para ele e para o círculo restrito de indivíduos com quem mantem relações. Um estado é uma entidade complexa, cujos conflitos, dilemas e contradições, por transcenderem os indivíduos no espaço e no tempo, têm de ser resolvidos por estruturas supra individuais. É para isso que existe a Justiça, é para isso que existe o Estado, garante da aplicação da Justiça. O conceito da honradez aplicado a um povo é um absurdo tão grande como tentar curar um cancro transformando todas as céluas do corpo em células malignas. Ou, vendo a metáfora por outro lado, impedindo os sistemas de defesa do corpo de exercerem o seu papel de modo a preservar o cancro, custe o que custar...
A Islândia é um exemplo que ilustra de forma excelente o modo correcto de lidar com estas questões. E ninguém pode acusar o Povo Islandês de falta de honradez.
Portugal está a ser um mau exemplo.

2012/02/07

De que é que te queixas, pá?

Baixaram-te o salário? Tiraram-te metade dos subsídios? Perdeste metade da reforma? Pagas mais taxas nos hospitais? Foste despedido? Acabou o teu subsídio de desemprego? Diminuiram o teu Rendimento Social de Inserção? Deixaste de poder pagar a prestação da casa? Dependes do Banco Alimentar para comer? Já dormes na rua? A tua empresa foi à falência? Não arranjas emprego? Vais emigrar? Vão tirar-te os feriados?...
Não vês que é tudo para teu bem? Não sejas piegas, pá!

2012/02/03

O frio humano

Vem aí uma vaga de frio, diz-se, e surgiram de imediato notícias que dão conta de acções de apoio aos sem-abrigo. Os sem-abrigo, sabem, aqueles que "vivem" debaixo de pontes, em pequenas reentrâncias de edifícios, em vãos de escada ou em edifícios abandonados, quando têm sorte. Embrulhados em jornais ou caixas de cartão desmanchadas, uma observação atenta revela-nos seres humanos, vivos, com braços, pernas, troncos e cabeças, tal e qual como todos os outros seres humanos, vivos.
A Protecção Civil distribui cobertores, alguns deles recusam. Uma Misericórdia não sei aonde vai "recolher" estes sem-abrigo e colocá-los num qualquer espaço mais abrigado onde possam melhor sobreviver ao frio.
Quando o frio acabar irão certamente voltar ao "domicílio" anterior. Não se sabe quando, mas, é mais que certo, mal o tempo aqueça um pouco, voltam para "casa". Não vai durar muito o direito à "protecção" e à "misercórdia".
Mal o Sol desponte transitarão da sua condição de com-abrigo em precária, de novo para a condição de sem-abrigo em solitária.
E nós vamos continuar a assobiar para o lado quando tropeçarmos num destes corpos embrulhados numa caixa de cartão no meio da rua e haverá sempre uma alma misericordiosa que, quando o mercúrio dos termómetros baixar para níveis considerados de alarme, os vai proteger civilmente para evitar o seu congelamento.

2012/02/02

E a Grécia aqui tão perto...(2)

Theo Angelopoulos, recentemente falecido (1935-2012), foi certamente o mais importante cineasta grego do século passado. Dele, poucos filmes foram distribuidos em Portugal e não consta que a Cinemateca Portuguesa lhe tenha dedicado algum ciclo em vida. Tal lacuna será, este fim-de-semana, parcialmente colmatada pela Medeia Filmes em Lisboa.
Associando-se às inúmeras homenagens que, um pouco por todo o Mundo, começam a surgir, o cinema Nimas programou para os dias 3, 4 e 5 de Fevereiro, um curto ciclo das obras mais recentes do realizador. Todos os filmes foram distribuidos em Portugal e poderão ser vistos cronologicamente: "O passo suspenso da cegonha" (1991); "O olhar de Ulisses" (1995); "A eternidade e um dia"(1998) e "A poeira do tempo" (2009).
Para quem não viu os filmes (ou deseja revê-los) eis uma excelente oportunidade de conhecer este cineasta de excepção, cuja obra ancora na tradição da grande cultura clássica europeia. Um "must".

2012/01/28

E a Grécia aqui tão perto...

A exigência alemã de retirar a soberania orçamental à Grécia, com o argumento de que os gregos não conseguem tomar conta das suas contas, é uma redundância, pois qualquer país intervencionado perde, por definição, essa soberania. Veja-se o caso de Portugal.
Mas, representa ainda outra coisa: a imposição do diktat alemão para a resolução desta crise, à revelia de qualquer decisão democrática tomada no seio da União Europeia, uma posição que, a cada dia que passa, se torna mais evidente.
Pressionada pelos bancos alemães (os principais credores da Grécia) e maioritariamente apoiada pelos eleitores, Merkel prossegue a cruzada luterana contra os "preguiçosos povos do Sul" que, supostamente, vivem acima das suas possibilidades.
Adiada, parece ficar, mais uma vez, uma solução que a maioria dos especialistas considera exequível e que consiste no aumento das reservas do FEEF, com o aval do BCE. Seriam ainda emitidos títulos de crédito, os chamados "eurobonds" e, dessa forma, os países em incumprimento não seriam obrigados a endividarem-se a taxas de juros incomportáveis, permitindo dessa forma cumprir com as suas obrigações e crescer economicamente. A prosseguir nesta estratégia autista e autoritária, Merkel não só se desqualifica, como retira aos países intervencionados qualquer possibilidade de recuperação económica a médio prazo. A Grécia está a um passo de sair da Euro e Portugal está avisado.

2012/01/27

Economia Cromagnon

Em várias freguesias de Freixo de Espada à Cinta foi decidido desligar a iluminação pública durante a noite para "poupar". Os habitantes queixam-se que têm de se iluminar como antigamente, com velas e candeias, quando saem para o trabalho de madrugada ou quando têm alguma emergência nocturna e pretendem chegar a algum destino para resolver os seus problemas.
O estilo de "governação", quer ao nível autáquico, quer ao nível central, e o tipo de "soluções" encontradas para poupar e cobrir os défices gerados por gestões danosas têm sempre um denominador comum: os pobres que paguem a "crise".
Dou daqui um conselho muito sério a todos os que nos lêem: aprovisionem o stock de peles e de coups de poing, e, simultaneamente, procedam ao recenseamento exaustivo de árvores e cavernas disponíveis que se revelem adequadas à habitação nas vossas zonas porque a austeridade vai dar lugar ao retorno a um período Cromagnon da economia.
Esperemos que, ao mesmo tempo, venha aí mais um período glaciar para congelar estes novos "neandertais" apanhados desprevenidos, que acreditam que ficando eles com aquecimento central e roupa de marca vão conseguir sobreviver melhor à crise.

2012/01/21

Cavaco Silva: impugnação de mandato é imperiosa

Não ficaria de bem com a minha consciência se não juntasse a minha voz à de todos os que manifestaram a sua indignação pelas palavras proferidas pelo Presidente da República. Pouco depois da sua "delfina" ter insultado os portugueses, ao sugerir a eutanásia para os hemodialisados pobres, Cavaco vem juntar novo insulto nesta tentativa de se comparar a um qualquer pensionista carenciado.
É demais!
Não sei em que termos ou, sequer, se a impugnação do mandato de um Presidente da República é possível em Portugal. Nem sei a quem caberia tal iniciativa. Não sei, nem quero saber! Sei que Cavaco Silva já há muito —pelo seu comportamento político e pelas relações mal explicadas— merece ver o seu mandato impugnado, que merece passar pelo supremo vexame de ser corrido do lugar de PR. Disso não me resta a mínima dúvida!
E sei também que não seria só a ele que uma impugnação de mandato castigaria. É esta espécie de regime ditatorial de pantufas, de que ele é o chefe supremo, que está no banco dos réus.
Chegou a hora de o povo português dar um murro na mesa. Talvez por temer a inevitabilidade deste murro este falso "provedor" mostre tanto empenho em fingir que é "do povo".

Ps- Se quiser passar das palavras aos actos (aCtos!) subscreva esta Petição.

2012/01/18

Voando sobre um ninho de cacos

Ia alta a madrugada, diz-se, quando foi assinado o acordo de des-concertação social. Os obnóxios do costume, certamente já meio a dormir, deram a mão aos representantes dos subsídio-dependentes, parasitas, patrões do comércio e da indústria e deram a mão ao governo. Ficaram todos contentes. De mãos dadas. No fim sorriram certamente para a objectiva de algum fotógrafo noctívago ou para o telemóvel do Catroga de serviço, exibindo as olheiras da noite mal dormida.
Em tempo de reacções, uns sublinharam o falso problema que está em jogo neste acordo, lembrando que os custos com o trabalho não são a componente principal do défice da nossa economia e que mesmo que se mude a legislação laboral todos os anos nada se alterará enquanto não existir um novo modelo de desenvolvimento económico, enquanto outros se congratularam com o acordo alcançado, cantando loas à "coragem" do ministro e da tendência sindical da vergonha. Lembraram ainda outros que este acordo dá uma imagem boa para os mercados.
Este parece ser o dilema em Portugal: governar a sério, com novo rumo, enfrentando os verdadeiros problemas do país com verdadeira coragem e elevando a voz na Europa, ou governar para a imagem, navegando na velha rota, com o mesmo navio e a tripulação de piratas do costume, escaqueirando ainda mais as condições de vida dos trabalhadores portugueses.
O governo, os patrões e os seus serventuários escolheram.
Resta-nos tudo fazer para lhes escaqueirar a vida deles também.

2012/01/17

A doutrina do choque

O acordo laboral, esta madrugada assinado, entre os denominados "parceiros sociais", representa um dos mais brutais ataques ao mundo do trabalho dos últimos anos: redução de dias de férias e dias feriados, eliminação das chamadas "pontes", criação de uma "bolsa" de 150 horas (a utilizar de acordo com os interesses do empregador), despedimento por ausência em dias próximos a feriados, etc.
O argumento, dizem, é "flexibilizar" a economia, essa receita mágica com que o patronato julga poder resolver os problemas estruturais do mundo do trabalho em Portugal.
Trata-se, objectivamente, de embaratecer o factor trabalho, com vista a poder concorrer com a mão-de-obra dos países emergentes, coisa que nunca conseguiremos, a menos que os trabalhadores portugueses passem a ganhar o mesmo que os trabalhadores chineses ou indianos (o que já esteve mais longe de acontecer).
Depois da redução drástica do poder de compra (através de cortes substanciais dos ordenados e subsídios de férias) e do aumento de impostos e preços dos bens essenciais, o governo vem agora (com a cumplicidade da UGT) penalizar os trabalhadores empregados, obrigando-os a aceitar medidas draconianas a troco de uma mirífica retoma económica.
Nada faz supor que, findo o período de austeridade, a economia portuguesa esteja melhor do que hoje (veja-se o exemplo da Grécia); ou que estas medidas venham sossegar os "mercados" internacionais. Se dúvidas houvesse, a recente qualificação de "lixo" atribuida pela S&Ps ao nosso país mostra até que ponto as agências ignoram as medidas tomadas pelo actual governo. Portugal, há muito que deixou de ser interessante para o investimento estrangeiro, pelo que não se esperam grandes mudanças neste sector.
As medidas anunciadas visam apenas destruir o aparelho produtivo e já foram ensaiadas noutras latitudes, sempre com o mesmo efeito: o empobrecimento acelerado da população com vista à aceitação de medidas cada vez mais brutais, numa estratégia que Naomi Klein apelidou de "A doutrina do choque" (2009) e que foi testada em realidades tão díspares como o Chile e a Russia, ou a Grécia e Portugal. A lógica é simples: uma vez aterrorizada, a população tende a aceitar mais facilmente as medidas impostas pelos governantes, mesmo que, para isso, as liberdades formais tenham de ser restringidas e a democracia musculada. Estamos a caminhar para lá...

2012/01/15

Eutanásia

O tema foi lançado por Manuela Ferreira Leite e penso que é oportuno e urgente organizar um intenso debate à sua volta. Não é a sustentabilidade do SNS que está em causa, é, de facto, um problema ético mais vasto que precisamos de discutir: deve ou não ser admitida a eutanásia?
Os comentários da deputada não foram, infelizmente, feitos no âmbito de uma sua qualquer iniciativa legislativa sobre esta matéria, mas é urgente que a iniciativa surja. Ela própria devia, coerentemente, fazê-lo.
Em Portugal o assunto não tem sido verdadeiramente discutido, as forças políticas que se reclamam do progresso e do futuro têm, pois, aqui uma oportunidade de ouro para tomar iniciativas legislativas e fomentar o debate, na falta de uma acção coerente da deputada. Manuela Ferreira Leite deu o mote, o tema é vital. Aproveitemos a ocasião.
Tenho uma particular curiosidade em saber o que sobre as recentes opiniões de MFL pensam a Igreja, os movimentos pró-vida e as associações de famílias.
A pergunta que devemos fazer —inspirada numa conversa que tive com o meu amigo S.P.— é muito simples: eutanásia, incluindo os hemofílicos descartáveis da sociedade, sim ou não?