2022/06/12

Mudam-se os tempos, mas não se mudam as vontades

 


Mão amiga chamou-me a atenção para um livro recente sobre Churchill e apontou-me este artigo sobre a controversa figura. Parece não merecer contestação que, como refere o artigo citado "A Grã-Bretanha entrou na guerra, afinal, porque enfrentava uma ameaça existencial e não, principalmente, porque discordava da ideologia nazista."

Mas, entrou!

Uma "geringonça" ainda mais improvável, que uniu um anticomunista, meio racista, um trafulha, inspirador dos imperialistas hodiernos e o rebitador da "cortina de ferro," derrotou o palhaço do bigodinho,  E quando vejo agora a von der Leyen a pousar sorridente ao lado do Zelensky, tremo. E quando me lembro dos Edwards e outras figuras do género —"aristo-fascistas," como lhes chamam no artigo — volto a tremer. Este quadro está hoje bastante mais carregado.


 

E, pergunto-me: onde poderemos encontrar na Europa de hoje um Churchill que bata o pé aos novos Edwards, que por aí pululam, apesar das enormidades, das atrocidades que aquele cometeu noutros sítios, em nome do Império e de uma ideologia duvidosa, que não escondia a sua origem de classe? Certamente que não no Largo do Rato...

É que entre o pintor falhado e o comediante da treta e as respectivas entourages, há mais perturbantes semelhanças do que se pensa, mas ninguém com a estatura do controverso Churchill. Pousar junto a qualquer uma dos protagonistas deste conflito, fora da mesa da negociação, não augura nada de bom. Os pintores falhados tiveram o fim que mereciam. Mas o que fazer a estes comediantes da treta que agora dominam a engrenagem?  Repare-se que os mandantes, esses, continuam, então como agora, a ser exactamente os mesmos.

Que estamos à beira de uma catástrofe, já deu para perceber.

"Check-Up"


Acontece aos melhores. 

Dirijo-me ao Centro de Saúde António Arnauth, recentemente inaugurado, para marcar uma consulta com o meu médico de família. Passada a triagem inicial (senha e tal...) sou chamado ao "guichet" para marcar a consulta. Não pode ser quando eu quero, mas um mês mais tarde...como não era urgente, aceito a data proposta. Estamos em Abril deste ano.

Semanas mais tarde, perante o médico, este faz-me a pergunta clássica: "Então, qual é a queixa?". 

- Nada em especial. Acontece que tenho por hábito fazer um "check-up" regular e há três anos que não faço nenhum, devido à pandemia de Covid e à sobrecarga nos hospitais. Pensei que estava na altura de retomar a rotina...

E faz muito bem. Então, diga lá quais os exames que quer fazer...

- Bom, para além das análises habituais, sangue, urina, psa, etc..., exame cardiológico (electro-cardiograma),  radiológico (pulmões) e ecografias (rins, estômago...). Parece-me que é tudo...

Sim senhor. Só um momento, para escrever e imprimir. Quando tiver os resultados não se esqueça de passar por cá outra vez...

Passadas umas semanas, dirijo-me ao Hospital mais próximo, no caso uma extensão do "Lusíadas", uma cadeia de hospitais privados da região de Lisboa. Uma vez chegado e passada a triagem, dirijo-me ao balcão das marcações. As análises eram num edifício e as radiografias noutro. A funcionária, olha-me com ar de comiseração e pergunta-me se desejo fazer o "check-up" num dia só, ou se pode ser em dias separados...

- Bom, se puder ser num só dia, ou em datas próximas, preferia...

Pois é, mas no mesmo dia, só tenho datas livres em Setembro...posso marcar-lhe as análises em Junho e as radiografias em Agosto...Pode ser? 

- Que remédio. Então marque já para as datas que tiver livres. 

Imprime as respectivas marcações e agrafa-as em separado. Faço uma leitura transversal da papelada e volto para casa.

Na data indicada, regresso ao hospital para fazer as análises e duas radiografias marcadas para esse dia. A funcionária que me atende examina os papéis e diz-me: "Não estão aqui os pedidos do médico para as radiografias de hoje. Sem pedidos, não podemos fazer os exames. Volte ao andar de baixo e veja lá com a minha colega das marcações. O resto pode fazer aqui". 

Dirijo-me ao laboratório de análises. A enfermeira olha para mim e pergunta-me pela amostra de urina e se tinha comido alguma coisa de manhã...

- Não trouxe nada e comi esta manhã. Ninguém me disse nada e nas marcações não estava escrito que devia vir em jejum..

Bom, nesse caso, diga-me do que constou o seu pequeno-almoço. Acha que tem vontade para urinar outra vez, mesmo que seja pouco?...

-  Ok. Hei-de arranjar vontade. Com vontade, tudo se consegue...

Quando voltar a falar com o médico, explique-lhe o que se passou, porque os valores podem não estar correctos (açúcar no sangue, ácido úrico...). Se ele pensar que tem de fazer novos exames terá de cá voltar...

Saio dali e dirijo-me ao andar de baixo para fazer as radiografias. Mesma questão: sem guia do médico, nada feito. Onde estavam os pedidos do médico?

- Só trouxe comigo as marcações para hoje. As outras, são para o dia 1 de Agosto...

Ah, que pena. E mora perto? Se quiser ir buscá-las, eu guardo aqui a sua senha e pode fazer as radiografias esta tarde...

Saio a correr, apanho um táxi, vou a casa buscar as guias médicas e regresso meia-hora mais tarde. Desço à cave e mostro triunfante os pedidos do médico; "Aqui estão os pedidos!".

Mostre cá. Claro, já percebi, a minha colega das marcações agrafou mal as receitas e estão com as datas trocadas. Ainda bem que guardei a sua senha. Não se preocupe, entra já, depois daquele senhor. Espere que o chamem pelo número. 

Assim foi. Dez minutos mais tarde, estava a ser chamado. Duas radiografias e estava na rua. Os resultados iriam ser comunicados através de um SMS no meu telemóvel ou, se preferisse, podia ir buscá-los em mão. Volto ao primeiro edifício e falo com a funcionária das marcações. Pede-me desculpas pelo erro e pergunta-me o que desejo. 

- Bom, queria saber se é possível alterar os exames ECG e as Ecografias, marcados para 1 de Agosto, pois estou de férias nessa data. Pode ser para mais tarde...

Claro, não há problema. o dia 8 de Setembro é a data que tenho livre. Convém-lhe?

- Que remédio. Já estou por tudo...

Agradeço, recolho o papel com a nova marcação e volto para casa. Passados dois dias tinha o resultado das análises e das primeiras radiografias no telemóvel. Volto ao Centro de Saúde, para marcar nova consulta com o médico de família e mostrar-lhe os resultados. O funcionário que me atendeu, olha para mim e diz-me com ar paciente: "Dia 1 de Julho, às oito da manhã. É o primeiro do dia. Não se atrase..."

- Não pode ser antes? É só para mostrar umas análises...

Oh amigo, isto aqui não é quando a gente quer! Para além disso, o médico também vai de férias. Veja lá bem.

- Pronto, pronto. Dia 1 de Julho, está perfeito.  

2022/05/25

Da Guerra (das guerras...)

Passaram três meses sobre o início da guerra na Ucrânia e não se vê fim à vista. Pior, muitos analistas e estrategas destas coisas, pensam, inclusive, que o conflito pode durar semanas, meses ou até anos... Uma catástrofe de dimensões incalculáveis. Independentemente do resultado final ("vitória" de um dos lados, impasse no avanço das tropas no terreno ou um acordo tácito, para evitar perdas maiores e salvar, de alguma forma, a "face") todas as opções estão, neste momento, em aberto. 

Ainda que soubéssemos que, numa guerra (qualquer guerra!), "a primeira vítima é sempre a verdade", não podemos deixar de criticar a forma acéfala, como a maioria da Comunicação Social em Portugal (há excepções, claro) acompanha o conflito. Desde logo, na falta de imagens da guerra real (não há "acompanhamento" da maior parte das acções militares, por parte de jornalistas, como nas guerras do Golfo, por exemplo...) e, depois, pela impossibilidade de verificar os dados apresentados por Moscovo e por Kiev. Uns, não fornecem dados (quantos mortos, quantas perdas de material, etc...); e outros, dão dados sobre as perdas do inimigo o que, não sendo uma originalidade, é sempre difícil de confirmar. A acreditar em organismos de estratégia militar no Ocidente (UK, EUA), haverá hoje cerca de 300 000 soldados a combater (mais ou menos, 150 000 de cada lado). Desse total, já teriam perecido cerca de 10% dos combatentes. Ou seja, a acreditar nesta estimativa, terão perecido cerca de 30 000 soldados russos e ucranianos, até este momento (por comparação, 3 vezes mais do que soldados portugueses na guerra colonial, que durou 13 anos!). Não estão aqui contabilizados os civis de ambos os lados (dezenas de milhar?), as perdas materiais (tanques, canhões, carros de combate, aviões, helicópteros...) e, claro está, o património destruído (cidades inteiras), avaliado em milhares de milhões de euros! Finda a guerra, a "reconstrução" exigirá um novo "Plano Marshall" (palavras dos dirigentes da UE) que ninguém saberá ainda quanto custará e quem irá pagar. Os "empreiteiros" do costume, já estão na fila, para os chorudos contratos.

Para o bem e para o mal, a Ucrânia e a Rússia, vão continuar no mesmo sítio e a ter de partilhar fronteiras. Obviamente que só negociações poderão conduzir a um "status-quo" aceite pelas partes beligerantes, com concessões de ambos os lados. A não acontecer isso, todos sairemos pior no fim desta tragédia: desde logo o povo ucraniano (a principal vítima); a Rússia (metida num beco sem saída, que conduzirá ao seu isolamento internacional); e, finalmente, a Europa (leia-se UE) que, sem exército próprio e no meio de uma crise económica (inflação) e energética (dependência da Rússia), sairá sempre prejudicada e mais dependente deste conflito. A única grande potência ganhadora é, neste momento, os EUA (que vende armas, petróleo, gás e cereais à Europa) sem dar um tiro, ou sacrificar homens no terreno. Grande negócio. Tudo, em nome da "democracia", claro está. Ou seja, três "blocos" políticos em crise, que lutam entre si por um lugar entre as grandes potências, nesta guerra pelo controlo geoestratégico das riquezas do planeta. Enquanto isso, a China, a única potência verdadeiramente emergente, parece não tomar posição, num silêncio ensurdecedor, que vale mais do que mil palavras. 

Resta Portugal, um país periférico, sem política externa, sempre a reboque das decisões tomadas em Bruxelas e Washington, sejam estas boas para o país ou não. Neste quadro e na tentativa de mostrar "serviço", a visita de Costa a Kiev - para mais com promessas de ajuda de 250 milhões de euros (empréstimo, doação?) à Ucrânia, quando em Portugal não há médicos de família para 1 milhão de portugueses, onde 2 milhões de cidadãos vivem com 540 euros por mês e não existe habitação condigna para dezenas de milhares de habitantes - foi lamentável. Por outro lado, o ministro Cravinho (outra desilusão) veio confirmar a intenção de Portugal aumentar para 2%, a sua contribuição para a NATO: qualquer coisa como 4000 milhões de euros do PIB. Isto para não falar sobre a sua declaração de se opor à venda do clube Chelsea (do Chelsea?), como parte das sanções aos oligarcas russos (!?). É pena haver sempre dinheiro para a guerra (armamento) e "nunca haver dinheiro" para a saúde, a educação ou a habitação em Portugal. Uns tristes, estes políticos que nos governam. 

Sim, a guerra, continua a ser um bom negócio. Principalmente para quem decide, mas não combate, ao contrário dos que combatem, mas não podem decidir.

2022/05/19

Entre talk-shows e sitcoms

Diz-se que aquela prática de introduzir riso artificial nos programas de TV terá tido origem num técnico de som americano, chamado Charley Douglass, que trabalhava na CBS, nos primórdios da televisão. Douglass, diz-se, ficava irritadíssimo porque o público do estúdio que assistia, ao vivo, aos programas daquele canal americano, ria nos momentos errados, não ria nos momentos certos, ria alto demais ou por tempo demasiadamente longo. Lançou-se então ao trabalho e inventou uma "máquina de rir," provida de uma ampla variedade de risadas e gargalhadas, que eram metidas no programa quando julgado aproriado. Na altura, o truque servia para "ajudar" o público, pouco acostumado ainda às práticas televisivas. A "laugh track," como é conhecida, pegou, e à medida que o público se foi tornando mais habituado aos códigos da televisão, foi desaparecendo, para, mais tarde, voltar com esta ou outra variação, com mais máquina e menos público ou vive versa. A prática mantém-se e espalhou-se. Até a televisão portuguesa copiou o modelo.

Sem conhecer os bastidores deste estúdio onde se está a produzir esta comédia trágica, o mundo (particularmente a Europa) tem andado, desde fevereiro, a fazer o papel de "laugh track," como nas sitcoms americanas, perante os desenvolvimentos da guerra. O que poucos vêem, são os cartazes que dos bastidores mandam o público rir e muito menos as máquinas que, em pós-produção, introduzem a gargalhada, que induz o espectador a achar graça a coisas que, tantas vezes, não têm qualquer graça. 

Quando tudo pareceria nos conduziria à reacção mais correcta, a lágrima ou o grito de dor perante o que se está a passar e perante a nossa impotência, a máquina milagrosa do riso faz-nos rir do palhaço trágico. Nem passa, sequer, pela cabeça deste público manso e dúctil o futuro possível que pode resultar desta tragédia para onde estamos a ser conduzidos e, muito menos, a possibilidade que têm de parar de ver a série, esquecer as deixas dos assistentes de estúdio e encarar de frente as opções que temos pela frente.

A gargalhada de plástico impede, dizem os estudiosos destas coisas da comunicação, o público de ouvir a piada. Suscita-lhe apenas a reacção alvar. Impede-o, por exemplo, de fazer esta simples pergunta: e se a Rússia ganha mesmo esta guerra? O que vai acontecer aos folgazões que neste momento assistem a tudo isto, refastelados nos seus sofás, a virar minis e a comer tremoços, como se estivessem a assistir a uma partida de bola?

Não quero agoirar... mas muitos analistas, vêm avisando —sem "laugh track"— que as coisas não estão nada famosas para os lados da equipa da casa. Este analista, por exemplo, é peremptório: afirma que o Ocidente está arrumado. E explica claramente porquê. Os suecos e os finlandeses não terão percebido bem de que lado vem o vento e parecem não ter problema com as correntes de ar. Este outro esclarece: tal como Roma e Bizâncio, o actual império não tem, simplesmente, os meios para contrariar as hordas que vêm das estepes. E todos sabemos o que aconteceu a Roma e Bizâncio. Estes dois exemplos não têm relação editorial, digamos, mas são coerentes entre si. E este outro, também em consonância com os outros dois, diz, sem hesitar: a Rússia está no caminho para atingir todos os objectivos militares que se propôs atingir com esta guerra. Acrescentando que a Europa está, nesta altura, no meio de um "choque económico" que se pode "tornar muito pior do que já é." Muitos outros analistas se têm pronunciado de forma que aponta na mesma direcção. Infelizmente, distraídos com a "laugh track" muitos não perceberam ainda a "piada" de tudo isto. Este artigo, por exemplo, aborda o papel do média em todo este processo. a propósito da suposta gaffe de G.W. Bush, ao confundir o Iraque com a Ucrânia. A presença da "laugh track" e da distração que provoca, surge aqui perfeitamente clara.

E enquanto os talk-shows e sitcoms sobre o que se passa na Ucrânia se sucedem, com gargalhada a compasso, a pergunta que deixo no ar é: e Portugal? O que nos aconteceria (acontecerá?) se a horda vinda das estepes marchasse (marchar) mesmo por aí fora, como tantos receiam? Para onde nos andam a querer empurrar? A nós, aos filhos e aos netos da geração que foi empurrada para uma guerra totalmente traumatizante, nas colónias. A nós, que sabemos que a Europa, como disse o analista que referenciei acima, está no meio de um "choque económico," um "choque" que se pode tornar ainda pior. A nós que temos a certeza que não há PRR que possa cobrir mais est crise, a nós que já vivemos há tempo demais num país que anda sempre de calças na mão? O que nos aconteceria (acontecerá?) se a horda vinda das estepes se lembrar que os Portugueses abriram as portas da sede da Democracia portuguesa a um fascista, que levou a cabo uma purga política sem precedentes e totalmente antidemocrática no seu país, mantendo, a pedido, apenas uma força e conservando, simbolicamente, Bandera como herói nacional? Quem pode atribuir algum crédito a esta criatura e dar-lhe cobertura institucional?! Poderiam, o pressuroso Costa, o sibilino Silva e o talk-show host Sousa, desligar, por um momento, a máquina das gargalhadas e dizer-nos, olhos nos olhos, o que planeiam fazer, o que querem, em resumo, fazer de nós...? Vamos, governo e PR, digam-nos! E, já agora, publiquem também a vossa declaração de interesses neste conflito, para memória futura.

(NB- a imagem não é da RT; é da CNN e ilustra o caso pouco divulgado da chamada Ilha Zmiyinyy, também conhecida por Ilha da Cobra.)

2022/05/17

Taxi Driver (24)

Está livre? 

- Entre, entre...então, para onde vamos? 

Para a Buraca, s.f.f.

- Muito bem. Já vi que veio do hospital. Está tudo bem consigo?

Para já, parece que sim. Não me queixo. Há quem esteja pior; os ucranianos, por exemplo...

- Não se esqueça do que vai dizer...A propósito da Ucrânia, tenho um casal amigo, de nacionalidade ucraniana, que já mora cá há uns bons anos. Ainda esta semana estive com eles e disseram-me que muitos ucranianos estão a voltar para a Ucrânia. O senhor acredita nisto?   

Acredito. É natural, querem ajudar o seu país. Os homens principalmente. As mulheres ficam cá com as crianças. De resto, quem não saiu até agora, dificilmente poderá fazê-lo, dado que todos homens adultos (a partir dos 16 anos) estão mobilizados para o serviço militar. 

- Pois, já ouvi falar nessa lei. Penso que é geral. Não estou nada de acordo. Acho que não devemos obrigar ninguém a ir para o serviço militar. Eu odeio o militarismo. 

De facto, a guerra não interessa a ninguém, mas há muita gente a ganhar com isso...

- Olhe, eu fui obrigado a ir para a tropa, na altura em que não se podia recusar. Cheguei a falar com o tenente de serviço (estava em Mafra) e dizia: "meu tenente, não me obrigue a fazer estes exercícios que eu não sou capaz e não tenho jeito nenhum para isto". Sabe, o que é que ele fazia? Punha-me de castigo e não me deixava ir a casa nos fins-de-semana...meses a fio! A minha mãe chegou a ir ao quartel falar com ele e ele disse-lhe: "os quartéis são para homens! As mulheres, devem estar em casa a cozinhar"...

Mas, isso foi há quanto tempo? 

- Então, eu tenho 50 anos. Nessa altura tinha dezoito, faça as contas...

Mas, isso já foi depois do 25 de Abril. Do que sei, a tropa deixou de ser obrigatória há muitos anos. Agora, só vai quem quer. Só aceitam voluntários.

- Sim, mas naquela altura ainda éramos obrigados. Não estou nada de acordo. Eu era incapaz de pegar numa arma para matar alguém. Nem um animal. Quando a minha mãe matava um frango ou um coelho, eu saia de casa para não ver...

Ou ser morto...

- Ou ser morto. Mas eu preferia ser morto a ter de matar alguém. Nunca na vida! 

Percebo. Estou inteiramente de acordo consigo. Aliás, eu também não fiz a tropa, ainda que por razões diferentes. Não fui objector de consciência. 

-   Pois, o tenente, obrigava-me a ficar de fascina e a esfregar o chão do quartel. Todas as semanas, quando chegava a vez de distribuir as cadernetas de licença militar, chamava-me e dizia: "Ramos, está aqui a tua caderneta!". Rasgava-a à minha frente e dava-ma aos bocados. Acredita?

Sim, conheço muitas histórias dessas, mas do tempo da ditadura e da guerra colonial. 

- Uma coisa sem sentido nenhum, o serviço militar. Só devia ir para a tropa, quem tivesse vocação e quisesse fazer carreira daquilo. Não está de acordo? 

Não podia estar mais de acordo. 

- Isto é um massacre. Todos os dias na televisão a ouvir as mesmas notícias: Putin, Putin, Putin...

Certo. Uma "lavagem ao cérebro", feita por quem ganha com a guerra. E há muita gente que ganha e bem com a guerra. Com todas as guerras...

- E vou dizer-lhe uma coisa: conheço bem a comunidade ucraniana e ele há cada um que mete medo. Ele é assaltos, máfias e até fascistas. 

Essa vertente é conhecida. Era na Ucrânia, que muitos grupos europeus de extrema-direita se treinavam. Só que essa característica é comum a todos os países do leste europeu. Os russos não são melhores. 

- Lindo, lindo, lindo!... Era mesmo isso que eu queria dizer. Como é que se chama? 

Rui...

- Eu chamo-me Ramos. Você é o máximo! Agora é que disse a verdade! 

Tenho dias...quanto é que lhe devo? 

- Por ser para si, sr. Rui, são 4 euros e 45 cêntimos.

Obrigado. Boa tarde e bom trabalho.

2022/04/19

Portugal visto de Espanha...

 

É sempre bom o distanciamento do país real, pois ajuda a perspectivar questões que nem sempre merecem a atenção dos indígenas. Não acontece todos os dias, mas o diário "El País", publicou ontem (18 de Abril), três artigos (3) onde se fala de Portugal e nem sempre pelas melhores razões. 

Porque as matérias são importantes, ainda que independentes, detenhamo-nos em cada uma delas: 

A primeira diz respeito aos preços de energia eléctrica, praticados em toda a União Europeia e à recente proposta conjunta, de Espanha e Portugal, para rebaixar (durante o corrente ano) o preço da electricidade na península ibérica, a troco de uma sobretaxa da energia, importada de França, como compensação. "Como os governos espanhol e português anunciaram, o seu propósito é estabelecer um preço máximo de 30 euros por MegaWat hora (MWh) no preço de gaz usado na geração de electricidade, para que não contagie o resto das fontes energéticas (mediante as discutíveis subtaxas marginais, que fixam os preços de todas ao nível das mais caras) e poder assim baixar o preço final da luz nos lares e nas empresas" (El País, d.d.18/04/22). Tal medida, ainda que defendida pela presidente da Comissão, não tem sido bem acolhida pelos restantes países da União, o que provocou um "braço de ferro" entre os países ibéricos e os técnicos da Comissão, em vésperas de assinar um duplo-documento que prevê, por um lado, a fixação de preços máximos da energia (e dessa forma aliviar o consumidor final); e, por outro, compensar a França, da qual a península ibérica só depende em 2,8% da sua capacidade. Ou seja, aplicar dois preços, um interno e outro externo, à energia importada. O argumento do "lobby" de energia é conhecido: ao baixar os preços, os países ibéricos competem de forma desleal com os preços praticados no Norte europeu. Esquecem que os preços praticados na península (relativamente ao poder de compra de portugueses e espanhóis), foram sempre mais altos do que na maioria dos países europeus do Norte. A querela está longe de resolvida e aguardam-se decisões finais.

A segunda notícia, diz respeito ao negócio de passaportes (leia-se, nacionalidade), emitidos nos últimos dez anos, ao abrigo de uma Lei de 2009, que permite aos descentes de judeus portugueses sefarditas (independentemente da sua residência ou nacionalidade) obter a nacionalidade portuguesa, bastando para isso apresentar um documento que prove (!?) a sua ascendência judia e interesses (sentimentais, comerciais ou outros) em Portugal...A correspondente do "El País" em Portugal, publicou um texto, onde o tema é extensamente abordado, que se inicia assim: "O português mais rico do Mundo chama-se Román Abramóvich (actual dono do Chelsea). A imprensa portuguesa ironiza sobre o assunto, sempre que tem oportunidade, desde que o jornal "Público" denunciou que o multimilionário russo obteve a nacionalidade portuguesa em Abril de 2021, aproveitando a via aberta, na Lei da Nacionalidade, para os descendentes dos sefarditas  expulsos de Portugal em 1496 pelo rei D. Manuel I. O oligarca que, antes contratava Lady Gaga para concertos privados e agora tem os seus iates confiscados em vários portos ocidentais, devido às sanções provocadas pela invasão russa, é um dos 56.686 judeus, a maioria residente em Israel, que se converteram em portugueses entre 2015 e 2019" (...) "Cerca de 90% dos 137.087 pedidos apresentados nestes seis anos, partiram da Comunidade Judaica do Porto, a única (para além da Comunidade Judaica de Lisboa) autorizada legalmente a emitir certificados para obter a nacionalidade portuguesa. As suspeitas centram-se na comunidade do Porto, que viu crescer o seu poder financeiro e institucional desde que foi aberto o processo dos sefarditas. O seu rabino, Daniel Litvak, foi detido em Março e, no mesmo mês, foram abertas investigações pelo Tribunal Português. (...) A polícia desconfia que foram desviados 35 milhões de euros em doações recebidas pela organização religiosa. O segundo acusado, é o advogado Francisco Almeida Garrett, director da Comunidade Judaica do Porto e sobrinho da deputada e ex-ministra da saúde, Maria de Belém (PS), que defendeu uma lei mais tolerante para os sefarditas, negando que o seu trabalho legislativo tenha favorecido o familiar" (El País, d.d.18/04/22). Este caso era conhecido e foi trazido ao conhecimento público por outra deputada do PS (Constança Sá e Cunha) que, ao apresentar uma proposta para alterar a Lei de favorecimento dos Sefarditas, sofreu pressões de diversos "históricos" do seu partido, entre os quais Maria de Belém, Manuel Alegre, Vera Jardim e Alberto Martins. É caso para dizer: um quarteto de respeito ou, a Maçonaria, no seu melhor! 

Finalmente, o terceiro artigo, "La Izquierda frente al Apocalipsis", onde o autor (Juan Luis Cebrián), num longo ensaio, analisa as eleições francesas à luz do crescimento dos partidos e movimentos de extrema-direita por toda a Europa (Marine Le Pen, etc.) e a crise ideológica das esquerdas em geral, cujos partidos socialistas (em França, Itália e Grécia) deixaram de ser alternativa para os votantes. Cebrián baseia parte da sua argumentação na tese do historiador inglês T. J. Clark que, em artigo publicado na New Left Review, com o premonitório título "A uma esquerda sem futuro", antevê um futuro de violência nas sociedades ocidentais, onde os cidadãos, habituados a viver em democracia, se revoltariam contra a sociedade, procurando a cada momento testar os seus limites. Uma espécie de "doença infantil", da qual parecem padecer muitos dos líderes e partidos actuais. Neste deserto de ideias e objectivos, onde as satisfações mais básicas nunca parecem estar satisfeitas, as atitudes mais comuns são a apatia (desinteresse) ou a violência (fascismo) como alternativa. Pese o seu pessimismo, relativo aos partidos sociais-democratas europeus (excepção feita aos países escandinavos, onde prevalecem coligações liberais e partidos ecologistas), Cebrián vê uma "luz ao fundo do túnel" na península ibérica onde, apesar da regimes diferentes, a esquerda democrática se mantém no poder: "Só Portugal e Espanha parecem ser bastiões da resistência socialista, com uma diferença substancial: em Lisboa, o partido levou a cabo políticas de moderação que valeram a António Costa a renovação do posto de primeiro-ministro com maioria absoluta. O espanhol é, na realidade, um governo de Unidade Popular, que incorpora a extrema-esquerda e restos do partido comunista, que se sustém graças ao apoio de outros extremismos identitários e ideológicos" (El País, d.d.18/04/22). Para o autor, resta um conselho: "Se a social-democracia quer recuperar o imenso terreno perdido no continente, deveria aprender a lição portuguesa: a moderação é a base do triunfo e o reformismo é uma maneira de fazer a revolução". E esta, hein?

2022/04/08

Taxi Driver (23)

Olá amigo, para onde é a corrida? 

- Para a Buraca...

Tem ideia por onde quer ir? 

- Penso que é melhor ir pelo Monsanto, tem menos semáforos.

Também acho que é melhor. Vim agora do Principe Real e não se pode passar no Bairro-Alto... 

- Sim, à sexta-feira à noite está sempre cheio de turistas...

Uma loucura. Para mais, vem aí a Semana Santa e já começaram a chegar os espanhóis. Está a ver este carro (apontando para um carro descaracterizado que se atravessa à frente...)? É um UBER. Nem o código das estradas sabem!

- Os UBER têm vantagens e desvantagens...

Acha? Então porque é que apanhou um táxi? 

- Normalmente apanho táxis, até porque não tenho uma APP para chamar UBERS.

Não sabem nada. A maior parte deles trabalha a "negro" e nem sequer português falam. Ainda há poucos dias, fui buscar uns amigos que queriam ir jantar fora e escolhi um restaurante conhecido. Eles pediram um UBER e quando o homem chegou, nem o restaurante conhecia. Não falava português, era do Bangladesh e disse-nos que estava a substituir o tio que não trabalhava à noite...

- Sim, essas histórias são conhecidas. Ganham mal, são explorados e a UBER nem sequer paga impostos em Portugal. Paga na Holanda...

Sim, eu sei, uma vergonha. Mas, a culpa não é deles, é de quem os autoriza. Eu moro no Cacém e tenho um filho que joga futebol no Massamá. Como não posso perder tempo a ir levá-los e buscá-los, costumava chamar um UBER. Pagava 8 euros de ida e volta. Agora, a minha mulher que está em casa, pega no carro e vai lá levá-los. Muito mais barato. Sabe porquê?

- Sei, pagam de acordo com a distância e o número de clientes que procuram carro...

Isso. A tarifa é calculada através da Aplicação. Se houver muitos clientes, o preço aumenta. Por exemplo: nós levamos um cliente dos Olivais a Cascais por 40euros em média. Eles levam por 35euros, se houver poucos clientes. Mas, no fim-do-ano ou nos Santos Populares chegam a pedir 150 euros pela viagem! Uma roubalheira! 

- De acordo. Também prefiro um táxi, pois posso controlar o preço pelo táximetro. 

É como as trotinetes eléctricas. São um perigo! Atravessam-se à nossa frente e ainda há dias vi um casal de alemães na Rua do Arsenal, que ia ficando debaixo de um autocarro, porque caiu no empedrado da rua...

- É verdade, até andam duas pessoas numa trotinete, o que é proibido, por lei.

Duas? Eu no aeroporto já vi pior: dois turistas chegarem com uma mala, pegarem numa trotinete e lá foram todos contentes, com mala e tudo! Diga lá, se isto faz algum sentido? 

- Pois, mas se ninguém controla, ou multa...tudo é permitido, logo nada é verdadeiramente importante. 

Pois é, mas quem se lixa é aqui o mexilhão, que chega a trabalhar 10 horas por dia, para levar para casa 50 euros e ainda tem que dar metade ao patrão. Agora, com o preço da gasolina, ainda vai ser pior, pois as tarifas vão ter de aumentar. Já viu, menos clientes para os táxis...

- Sim, tudo está a aumentar e esta crise, devido à guerra, ainda está no início. 

Não me fale mais em guerra! Quem entra aqui no táxi só fala em guerra! Mas, isto faz algum sentido? Um crime praticado por humanos. Deus deve ter desistido da raça humana...

- Deus não dorme, mas às vezes adormece...

Uma vergonha. Milhões de euros num só míssil, para matar pessoas. Veja bem quantos pobres podiam ser ajudados. Com os milhões que gastam nesta guerra, matavam a fome do Mundo...

- De acordo, mas quem é que está interessado nisso? As guerras dão muito dinheiro. A miséria de uns é a riqueza de outros. A ganância, sempre a ganância...

É verdade. A ganância. Não temos emenda. Ora cá estamos...Quer recibo? 

- Se não se importa.

2022/03/24

Por assim dizer...


Como não vejo "noticiários" nos dias que correm, teve que ser mão amiga a chamar-me a atenção para as declarações feitas por este comentarista de nome José Manuel Fernandes, ontem na RTP3 no 18/20. Delas retirei o extracto que pode ser visto e ouvido no vídeo supra. 

Ontem passámos, como tem sido amplamente divulgado, a ter mais tempo de Democracia que de ditadura. Tempo de Democracia que nos  trouxe muita coisa boa, incluindo o facto de as pessoas se poderem revelar livremente, sem medo de represálias.

Mas, no dia preciso em que o relógio da História marcou esta nova era, como que a fazer pouco da data, as declarações desta criatura inqualificável, fazem-nos reflectir sobre este regime em que nos vamos arrastando. 

O 25A trouxe a liberdade de expressão. Um privilégio que, como se pode ver a toda a hora, por todo o lado, dá para tudo. O significado da "liberdade de expressão" ficou patente com a crise da covid e está a ser possível percebê-lo agora, com o conflito na Ucrânia. São, diria, exemplos clros e inequívocos, mas é possível perceber isso noutros aspectos da nossa vida social, até na mais inocente conversa de café. Através do entendimento que cada um tem da "liberdade de expressão" é possível concluir o que aquele ou aquela que se exprime, entende por liberdade.

O que a criatura do vídeo revela, através do seu exercício da "liberdade de expressão," é mais, ou, pelo menos, tão grave quanto a privação dessa liberdade… E os exemplos mutiplicam-se, desde o mais notório órgão de comunicação, até ao mais banal mural de facebook, passando, como acima referi, por uma banal conversa de café. Só é preciso estar atento. 

Mas com tanta "liberdade de expressão," os desatentos, por mais notórios ou anónimos que sejam, por mais ou menos ingénuos que se revelem, transformaram-se, verdadeiramente, no mal maior. O que os leva a, por assim dizer, serem os carrascos do regime que lhes concede o exercício impune dos seus privilégios.

2022/03/11

Ninguém é inocente


Este é o tipo de gente que divulga 24/24h pretensa informação sobre a Covid, a Ucrânia, a Paz, a Guerra e… o Imagine. Este é o tipo de gente que “analisa”,  manipula, "entrevista" e deturpa a realidade, para depois massacrar com esse “produto” as pessoas, sem piedade, garantir o tacho e fazer o frete aos poderosos que lhes pagam. 

As pessoas gostam, são cúmplices e aceitam porque assim é tudo mais fácil, já vem tudo pré digerido. Pronto a vestir, pronto a comer, pronto a pensar! Depois é só assumir todo o seu preconceito, fazer sua toda esta ignorância e tornarem-se cúmplices e agentes dela. E aliviar a má consciência com uma bandeirinha na foto de perfil do facebook e mandando uns pacotes de esparguete e umas latas de salsicha para a frente de batalha.

O sentido de rigor e o conhecimento de jornalistas, comentadores e espectadores são hoje exactamente os mesmos que vemos neste video. Neste caso é fácil detectar a “qualidade” do tal "produto". E no resto?! 

Esta guerra está a ser tão instigada pelos espectadores de telejornal como pelos ditadores que a ordenaram… 

Ninguém é inocente.

2022/02/27

E a Ucrânia aqui tão perto...

foto JN

O Mundo actual é dominado por autocratas e psicopatas: Putin, Xi Jinping, Kim Jong-un, Trump, Biden, Bolsonaro, Erdogan, Lukashenko, Duterte, Mori, Maduro...(esqueci-me de alguém?) e não se vê fim à vista.

E não se pode exterminá-los?

A crise na Ucrânia, anuncia mais um desastre humanitário, de proporções imprevisíveis. 

Esta não é uma guerra de "bons" contra "maus", ainda que os generais de sofá pretendam ver nela uma justificação para os seus crimes de guerra. Esta é uma guerra de interesses geo-estratégicos, no tabuleiro do xadrez de políticas expansionistas e imperialistas, como sempre foram a maior parte das guerras. O que seria destes personagens, se não houvesse guerra? Ficam desempregados, claro: os generais na reserva e todos os comentadores de camuflado, que passaram  a ocupar as pantalhas televisivas, em substituição do exército de vírologistas e pneumologistas que deixaram de ter direito a "prime time". 

A actual situação, não augura nada de bom. Para além dos blocos políticos em disputa, a Europa está (mais uma vez) confrontada com um drama social e humano que poderá atingir milhões de vítimas. Seguir-se-á uma crise energética e económica que, de resto, já é sentida.  

E Portugal? Sem uma política internacional digna desse nome e "abrigado" sob o chapéu da beligerante NATO, resta-nos (!?) enviar uma fragata, um submarino e 1500 militares para as fronteiras orientais da Europa. Tudo em nome da defesa do "Ocidente" e da "solidariedade", claro está, porque outra coisa não podemos prometer. Pior, era difícil. 

2022/02/21

Portugal: uma relação difícil com migrantes

 foto Gérald Bloncourt

Como se não bastasse o "chumbo" do Orçamento de Estado para 2022, que conduziu à convocação de eleições antecipadas que ninguém desejava, Portugal vê-se confrontado com um novo (e inesperado) problema: o da repetição da votação do Círculo Eleitoral da Europa, destinado a eleger dois deputados para a Assembleia da República.

A necessidade da repetição decorre da ilegalidade detectada na contagem dos votos enviados por correspondência, o que levou vários partidos a recorrerem ao Tribunal Constitucional. O conteúdo de envelopes de votos, que chegaram sem fotocópia do cartão de cidadão, foi misturado com o conteúdo de outros que se faziam acompanhar, como manda a lei, por uma prova de identificação do eleitor. 

Recordemos: nos dias 8 e 9 de Fevereiro, as mesas de apuramento dos resultados, confrontadas com uma queixa do PSD sobre a legalidade da votação, tiveram entendimentos diferentes, sobre aceitar ou não como válidos os votos sem cópia do documento de identidade. Perante esta dúvida, a mesa do Círculo de Fora da Europa, indeferiu a queixa do PSD (decidindo aceitar todos os votos) e a da Europa recusou-os. Ou seja, os votos com fotocópia do Bilhete de Identidade foram misturados com os votos sem fotocópia e votos "maus" contaminaram os "bons". Resultado: toda a votação das 139 mesas espalhadas pelos países europeus acabou anulada e o Tribunal Constitucional mandou repetir o acto eleitoral nos dias 12 e 13 de Março. Uma trapalhada inadmissível, que reflecte a irresponsabilidade dos partidos (todos!) com assento na AR, que preferiram um "acordo de cavalheiros" (!?) à alteração da Lei Eleitoral, que podia ter sido feita após 2019, quando foram detectados problemas semelhantes nas últimas eleições. Em 2019, foram anulados 30.000 votos da emigração e, este ano, 157 000 votos! Um escândalo.

Consequências imediatas: enquanto os emigrantes do Círculo da Europa não votarem, a atribuição dos dois lugares disponíveis na AR, não poderá ser concluída, pelo que o governo não poderá ser nomeado. Contas feitas, a contagem dos votos só estará concluída na segunda quinzena de Março, pelo que o governo (PS) só poderá tomar posse em Abril. Até lá não haverá Orçamento de Estado (chumbado em Outubro) e o governo (em gestão), terá de governar com duodécimos (só pode gastar 1/12 do OE em cada mês). Sem governo e orçamento aprovado, os salários, pensões de reforma e outros apoios sociais, ficarão suspensos e só serão pagos (retroactivamente) em Maio. Ou seja, perante este calendário, o OE2023 nunca será apresentado e discutido antes de Junho ou aprovado antes de Julho! Pior, era impossível. 

Resta saber se os emigrantes da Europa, que viram os seus votos invalidados, estarão na disposição de votar de novo, depois desta triste experiência que nos devia envergonhar a todos. 

Mas não são apenas os emigrantes portugueses que se podem queixar da forma como são tratados pelo governo. Também os imigrantes que escolheram Portugal para melhorar as suas condições de vida (no fundo a razão última da migração para outros países) são confrontados com a burocracia e a exploração a que são submetidos em muitas zonas do país. É o caso dos imigrantes oriundos de países asiáticos  (bengalis, nepaleses, indianos, paquistaneses, mas também brasileiros) que trabalham em condições deploráveis nas estufas do Sudoeste alentejano. 

As más condições de trabalho nas explorações agrícolas em Odemira não são uma novidade. A novidade aqui é que houve 300 trabalhadores que perderam o medo e foram pedir explicações à administração, no fim da jornada de trabalho.   

Em 2021, as más condições em que imigrantes trabalhavam ou estavam alojados, nas próprias instalações de algumas grandes empresas, motivaram reacções quando um surto de Covid-19 entre os trabalhadores trouxe a realidade laboral em Odemira, para as primeiras páginas dos jornais. Desta vez foi diferente. As queixas fizeram-se ouvir pelos próprios trabalhadores: "No dia 11 de Janeiro, no final da jornada de trabalho, Birat Khatri (Nepal) e largas dezenas de trabalhadores dirigiram-se aos escritórios da empresa para falar com a administração. O movimento ganhou força pela visibilidade dada por uma reportagem da SIC (a estação que esteve no local refere 300 manifestantes). Neste protesto pacífico, em movimento compacto, quiseram perguntar por que motivo, para as mesmas horas de trabalho, receberam uma menor quantia no mês de Janeiro; entre 200 e 400 euros a menos consoante os casos" (in "Público" d.d.19 Fevereiro). Ainda de acordo com a reportagem, a justificação dada pela empresa foi que, a isso eram obrigados, devido a suposta aplicação de um imposto novo decidido pelo governo português (!?). Segundo Birat e outros trabalhadores, ninguém sabe de que imposto se trata e continuam à espera de uma explicação. 

Mas, há mais: "Os trabalhadores sentem-se igualmente injustiçados por nunca lhes ter sido explicado como são contabilizadas as horas; e quando contabilizados os totais, não percebem porque são retiradas quantias (apresentadas como subsídios de vários tipos) aos 6,22euros que o trabalhador julgava ser o valor líquido a receber por hora. Enquanto descrevem a situação comprovam o que dizem mostrando os recibos de vencimento" (...) "O contrato prevê um horário flexível, em que o trabalhador é convocado de véspera. Da mesma forma, pode ser dispensado, se a mensagem pretendida pelo patrão for de penalização ou intimidação" (...) "Querem que a gente ande cada vez mais depressa, a colher as bagas com movimentos de braços sem parar. Estão em cima de nós a gritar: "Mais depressa, mais depressa", conta Thapa, também napalês, disposto a protestar" (...) "É muito duro. Estamos a trabalhar num ambiente quente, dentro das estufas, e só podemos beber a água que trazemos de casa. Às vezes por mais de oito ou dez horas. Se bebemos toda a que trazemos, pedimos, mas eles não nos dão, recusam. Se protestamos, chegam a mandar-nos para casa" (...) "Quem não cumpre o objectivo de encher um determinado número de caixas numa hora, ou percorrer uma determinada distância nesse mesmo intervalo, sem deixar uma só baga na árvore, é dispensado para o resto do dia e no seguinte, segundo o testemunho de alguns trabalhadores" (ibidem). Quem é dispensado, não tem direito a transporte para casa e tem de voltar a pé, muitas vezes quilómetros, até chegarem aos contentores onde a maior parte deles habita durante metade do ano. 

Muito mais haveria para denunciar nesta história, que nos envergonha. Até ao ano passado ninguém "sabia", mas toda a gente convivia bem com esta triste e degradante realidade. Agora, toda a gente sabe e não há desculpas. Nem mesmo a do famigerado ministro Cabrita, ex-responsável pela Administração Interna que supervisionava os actos eleitorais e as autorizações de trabalho concedidas aos migrantes. Portugal, um país de (e)migrantes não pode esquecer e tratar mal os (i)migrantes que fazem o trabalho que nós não queremos fazer. Só denunciando e penalizando estas prática de negreiros, poderemos ter moral para proclamar princípios civilizacionais que devíamos tomar como referência.

 

2022/01/31

Eleições: Balanço Provisório

Para além do PS, o grande vencedor da noite (com a segunda maioria absoluta da sua história), houve outros vencedores nestas eleições: os partidos de direita (Chega e Iniciativa Liberal), respectivamente o 3º e o 4º partido mais votados.

No campo oposto, os grandes perdedores da noite foram o PSD e CDS (à direita) e o Bloco de Esquerda e a CDU (à esquerda), com derrotas assinaláveis, que deixarão marcas.

Outro perdedor da noite, foi Marcelo Rebelo de Sousa, já que fica com menos margem de manobra e deixará de poder influenciar a governação, como sempre desejou. 

Também as empresas de sondagem perderam, dado que, até à véspera das eleições, davam como garantida uma disputa cerrada (com margens de erros dentro dos 3%) e nada disso se verificou.

Mal, esteve ainda a comunicação social, de uma forma geral, que levou a direita ao colo, nunca escondendo as suas preferências  político-partidárias.

Finalmente, uma nota positiva, para a mobilização dos eleitores que, em tempo de pandemia, ousaram  votar, o que contribuiu para uma abstenção inferior a 2019. 

Postas estas considerações gerais, o que nos aguarda a médio prazo?

Desde logo, um PS reforçado (117 deputados) que, a partir de hoje, poderá governar sem ter de fazer concessões aos partidos à sua esquerda ou à sua direita.

Uma esquerda (BE, CDU, Livre) reduzida a pouco mais de 10% na AR, que dificilmente poderá influenciar a governação e terá de fazer a sua "travessia do deserto", enquanto espera por melhores dias.

Uma direita (PSD, CDS) em queda livre, que deixou de ser homogénea e perdeu os seus líderes, o que obrigará a novas escolhas internas e novas estratégias.

Finalmente, uma direita populista e neoliberal (Chega e IL), que conseguiu votos suficientes, à custa dos partidos de direita em queda, para formar duas novas bancadas parlamentares.

Resumindo: ainda que a vitória do PS fosse previsível, a maioria absoluta pode ser explicada por duas razões: pelo"voto útil" ("transferência" de votos do BE e da CDU para o PS) e receio de que a "direita" pudesse obter uma maioria com os votos do "Chega". Nesse sentido, a estratégia de Costa resultou, pois "secou" os partidos à sua esquerda e afastou a direita do governo, por quatro anos. Resta aguardar pela governação, para podermos avaliar das suas intenções. O seu discurso de vencedor, foi abrangente e conciliador (não deixará de"falar" e de "ouvir" todos os partidos...), mas deve ser interpretado como uma declaração de circunstância já que ele, melhor do que ninguém, sabe não necessitar de consensos para governar. Em qualquer dos casos, este PS tenderá a aproximar-se mais de uma Europa Social-Democrata, da qual continua a necessitar enquanto houver fundos comunitários. Resta saber, como e por quem, estes fundos serão distribuídos. Conhecendo a história recente das maiorias absolutas em Portugal, não podemos descartar uma "mexicanização" de regime e o consequente aumento do clientelismo e do patrocinato, em que a sociedade portuguesa sempre foi pródiga. Estamos avisados.

2022/01/29

Reflexões

(Marcelo Rebelo de Sousa fotografado por Alfredo Cunha)


Terminaram as campanhas partidárias. 

Ao longo do último mês, os portugueses tiveram oportunidade de escutar, ao vivo e a cores, debates televisivos e radiofónicos, campanhas de rua por todo o país e opiniões diárias, de analistas e tudólogos, para todos os gostos. Ninguém pode queixar-se de não ter sido informado ou de ter faltado informação, ainda que esta nem sempre tenha primado pela isenção exigida. 

Houve de tudo, desde ataques "ad hominem", a discursos abertamente xenófobos, passando pela mudança de tácticas a meio do percurso, sempre que as sondagens não correspondiam ao efeito desejado. Assistimos às mais desencontradas opiniões e críticas do homem da rua que, não raramente, se indignava pela crise desencadeada com a reprovação do Orçamento e apelava à unidade de esforços conjuntos para evitar o regresso de uma direita de má memória, desta vez acompanhada por um partido populista, abertamente racista. 

Os partidos de esquerda, que até há pouco pareciam defender causas comuns, levaram as suas contradições para o debate público e não se coibiram de criticar-se mutuamente pela situação existente. Só nos últimos dias da campanha, parece ter havido uma inflexão nas suas posições, muito por causa das sondagens que apontavam para um despique cerrado entre os dois maiores partidos e respectivos blocos à sua esquerda e à sua direita. 

Chegados aqui e de acordo com as três últimas sondagens publicadas pela Universidade Católica/RTP/Público, ISCTE/Expresso/SIC e TVI/CNN/Pitagórica, parece que todas elas (sem excepção) apontam para uma vitória escassa do PS (2 a 3%), assim como para uma provável maioria parlamentar de esquerda (5 a 10 deputados). Há, no entanto, a ressalvar que as projecções, se situam dentro da margem de erro e não têm em conta a possível abstenção (derivada do confinamento provocado pelo COVID) o que poderá alterar os dados. Tudo em aberto, portanto...

Não vale a pena os parceiros da "geringonça" continuarem a incriminar-se mutuamente. Não há inocentes nesta história. Só houve uma "geringonça" (2015-2019) e esta só existiu porque, paradoxalmente, Cavaco Silva o exigiu, através de uma acordo escrito. Aparentemente, a fórmula resultou, pelo menos aos olhos da opinião pública. Se não resultou em 2019, isso deveu-se ao PS, que não quis governar sozinho com o BE (o PCP já se tinha afastado e não queria mais acordos escritos). A partir desse momento, cada partido foi à sua vida, até porque representam três visões/modelos diferentes de sociedade e a unidade, então encontrada, foi circunstancial (e de interesse mútuo) para afastar a direita do poder.  Esse ciclo acabou e dificilmente voltará.

O que provavelmente voltará, será o "bloco central de interesses" apadrinhado por Marcelo Rebelo de Sousa, o homem da "governabilidade", que nunca escondeu a sua agenda e não descansará enquanto não houver um acordo ao centro entre os dois maiores partidos. Vem aí muito dinheiro (cerca de 60.000 milhões de euros até ao fim da década) e os dois partidos do poder (70% dos votos) necessitam de alimentar as suas clientelas habituais (corporações diversas, maçonarias e quejandos) e não querem perder esta oportunidade. 

Por isso, parece-nos que nada de essencial irá mudar, já que não se trata apenas de políticas partidárias, mas de uma cultura de clientelismo e patrocinato, enraizada na sociedade portuguesa. Não perceber estas coisas simples, pode ser fatal. Como diria o conhecido assessor de Bill Clinton: "É a economia, estúpido!". 

2022/01/26

Córdoba ou o apogeu do Al Andalus (2)

 

Dizem os guias turísticos, que a melhor forma de entrar na cidade de Córdoba é pela margem esquerda do Guadalquivir, atravessando a Puente de San Rafael. Para quem vem de Sul, pela auto-estrada A4, essa foi uma escolha natural. De facto, a perspectiva da cidade, antes de atravessar a ponte, é determinante para ter uma ideia global do perímetro urbano, do casario que envolve o centro histórico e, no meio de tudo, os telhados da mesquita, encimados pela torre da catedral no centro. Um "bilhete postal" que dispensa apresentações. 

O mais difícil nestas coisas é sempre arranjar lugar para o carro, num centro histórico pejado de turistas, limitado na sua circulação e onde os "parkings", para além de caros, estão normalmente cheios. Depois de muito circular sem sucesso (a circulação faz-se num só sentido) foi necessário atravessar a Puente de Miraflores, em sentido contrário, para encontrar um lugar junto ao projectado Centro de Congressos. Até ao primeiro monumento da cidade, a Torre de La Calahorra, são cinco minutos. A Torre, um antigo forte construído pelos árabes, é hoje um dos "ex-libris" da cidade e alberga, para além da Fundação Roger Garaudy, o "Museu das Três Culturas" (Islâmica, Judaica e Cristã). A partir daí, a melhor forma de voltar ao casco histórico da cidade, é atravessar a Puente Romano, cujo tabuleiro e (parte dos) arcos que a suportam, datam da época romana. Depois, é sempre a subir, até à Mesquita-Catedral, o mais emblemático monumento da cidade.   

Visitar a Mesquita de Córdoba constitui, por si só, uma experiência inolvidável. Nas palavras de um guia local: "poderia descrever-se como o encontro com um Mundo já perdido, onde a sensualidade e a geometria constituía a porta preferencial de acesso ao sobrenatural". Consta que o rei Fernando III de Espanha, quando conquistou a cidade em 1236, não escondeu o seu assombro pelas dimensões do edifício. De tal modo, que deu ordem para preservar a mesquita e para construir um templo cristão embutido, no seu interior, de modo a sublinhar a convivência que durante séculos existiu entre as duas religiões da cidade. A primeira coisa que espanta, é a extraordinária dimensão da sua planta. Vista do lado oposto (Torre de Calahorra) a Mesquita parece um gigantesco mausoléu, dentro do qual estão escondidos séculos de História. Se pensarmos que à época do califado, Córdoba era a maior cidade europeia com cerca de 1 milhão de habitantes, podemos imaginar as multidões que acudiam à chamada do "muezzin".

No interior do edifício, encontramos um imenso mar de centenas e centenas de colunas, todas diferentes, que saem do solo, sem base a sustentá-las, para formarem onze naves paralelas com mais de 100 metros de comprimento. Dos seus capitéis, surge uma sucessão interminável de arcos em forma de  ferradura, sobrepostos até três níveis, que ascendem aos tectos (embutidos a madeira), como uma metafísica palmeira. No centro do edifício, surge a zona da Catedral, que os cristãos levantaram no século XV. Curiosamente, não existe qualquer barreira a separar os dois templos (incrustados um no outro) pelo que os visitantes, podem atravessar todo o edifício e escolherem o lugar preferido. À saída, tempo ainda para percorrer e admirar o famoso Pátio das Laranjas, outro lugar mágico, onde o cheiro das laranjeiras carregadas, cercadas pelo murmúrio da água corrente das fontes, completaram um dia perfeito.

Ainda que o centro histórico de Córdoba, seja relativamente pequeno, a quantidade de locais interessantes é assinalável. Destacamos os que pudemos visitar, já que o tempo era escasso. Desde logo, a Judiaria, a norte do perímetro histórico. Um intrincado labirinto de ruas e ruelas, extremamente bem conservadas, no centro da qual existe a única Sinagoga de Andaluzia. O antigo bairro judeu é hoje um dos pontos mais fervilhantes da cidade, com centenas de pequenos comércios e aprazíveis pátios exteriores, onde ao fim da tarde se juntam os locais e os turistas, em permanentes deambulações. Outro dos percursos obrigatórios, são os famosos "pátios", que podem ser visitados em Maio, durante o festival que atrai à cidade milhares de forasteiros. O evento, já foi reconhecido pela UNESCO, como Património Imaterial. Também o "souk" (bazar árabe) pode ser visitado, apesar de dimensões reduzidas, quando comparado com o de Granada, bastante maior. A não perder mesmo, são os "salmorejos" locais (um creme frio, da família do gaspacho, confeccionado com pão, azeite, tomate, alho, ovo cozido e presunto) considerados os melhores de Andaluzia. Depois de repetidas provas, só posso estar de acordo com a sua reputação. 

A percorrer também, é a Calle Cardenal González, uma animada rua onde estão situados os banhos árabes (hammans) diariamente frequentados por jovens locais e turistas, embrulhados nas suas toalhas turcas. Seguindo a rua, desembocamos na Plaza del Potro, lugar mítico da cidade, referido por Cervantes no romance "D. Quixote de La Mancha". Nesta praça, estão situados o Museu de Belas Artes e o Casa-Museu Julio Romero de Torres (1874-1930), notável pintor de Córdoba, famoso pelos retratos a óleo de mulheres andaluzas. Ainda na mesma praça, existe um dos poucos currais medievais existentes, este recuperado e restaurado. Numa das dependências do curral, funciona o Centro de Flamenco El Fosforito, famoso cantor flamenco do século passado (originário da cidade e vencedor e.o. da Chave de Ouro, um dos mais altos galardões da Arte Flamenca). Córdoba é, de resto, uma das cidades de grande tradição flamenca. Ali, existiram alguns dos mais famosos "Cafes Cantantes" da Andaluzia onde, em 1871, actuou o lendário Silverio Franconetti, um ícone da arte. Outros nomes famosos da actualidade, são os cantores El Pele e Juan Serrano, para além dos guitarristas Vicente Amigo e Paco Peña, todos oriundos da cidade. 

Por fim, a jóia da coroa do Al Andalus: a Medina Azahara (Madinat Al-Zahra). À semelhança dos califas orientais, Abderramão III fundou em finais do século IX, a 8km de Córdoba, uma cidade de excelência, como prova do poder político e económico do Califado Cordobés. Considerada a Versailles da Idade Média, chamaram-lhe a "Cidade Resplandecente" e ainda hoje deslumbra. A sua construção durou 25 anos e seria finalizada pelo filho do Califa. Foi fundada em 941, mas teve uma existência curta, já que em 1010 foi completamente arrasada pelas tropas berberes, que desafiaram o Califado, após o que a cidade seria parcialmente destruída e abandonada durante mil anos. No seu apogeu, chegou a ter 25.000 habitantes. São cerca de 1500m de comprimento por 750 metros de largo. Quase 112 hectares de superfície, dos quais somente 10% foram, até à data, postos a descoberto e recuperados, num dos mais belos museus ao ar livre da península. Desta vasta superfície, só é autorizado visitar a zona Norte da Medina, onde estava situado o palácio de Abderramão III e as moradias nobres da cidade. Os jardins, considerados os maiores e os mais belos de todo Al Andalus, podem ser vistos dos diversos miradouros, instalados na parte alta, mas devido aos trabalhos de arqueologia (que se iniciaram em 1911) e à pandemia vigente, estavam encerrados. 

Tudo isto e muito mais, a ver e repetir, pois a beleza não tem preço, nem limites. 

2022/01/25

Córdoba ou o apogeu do Al Andalus


A viagem estava prometida há anos. Aproveitando o interregno natalício, a escolha recaiu em Córdoba, uma das cidades míticas de Andaluzia. Três curtos dias não seriam suficientes para ver tudo, mas deu para aguçar o apetite e voltar na semana seguinte, tal o impacto da primeira visita.

Antes, porém, um pouco de História:

Córdoba (ou a "cidade do rio") foi fundada em 169 a.C. pelo general romano Claudio Marcelo que, numa colina do Guadalquivir, criou o primeiro assentamento militar da zona. Este pequeno núcleo populacional, daria origem à fundação da cidade romana de Corduba. Pouco a pouco, Corduba extendeu os seus limites e prosperou como cidade. Até que, em 45 a.C., a guerra civil entre César e os filhos de Pompeu, obrigou a cidade a escolher um dos lados. O apoio de Corduba aos pompeianos (e posterior derrota destes) provocou uma terrível represália que acabaria com a vida de 22.000 habitantes. 

Em pouco mais de vinte anos, Corduba recuperou o seu papel relevante. No ano 27 a.C. o imperador Augusto nomeou Corduba, a capital da Bética, importante província romana em Hispânia. Nos anos seguintes a cidade viveu uma época de esplendor a tornou-se uma das cidades mais importantes do império romano e da Europa. Nessa época, Corduba protagonizou um autêntico renascer urbanístico. Foram construídos grandes monumentos, o forum, o circo, o teatro, o templo romano, uma grande muralha que cercava toda a cidade e a ponte romana que conduzia a Roma, através da via Augusta. Alguns destes monumentos subsistem e podem ser visitados. Paralelamente, a cidade viveu um renascimento cultural, graças a filósofos como Sèneca e a poetas como Lucano, ambos oriundos de Corduba. 

Em meados do século XV, Corduba perde o estatuto de capital e sofre diversas revoltas que marcam o seu imparável declínio. No ano 572, os Visigodos conquistaram Corduba, dando início a quase dois séculos de domínio da cidade. Durante esse período, os judeus, que haviam gozado de liberdade de culto com os romanos, foram perseguidos e obrigados a abandonar a religião. Este facto, provocou o futuro apoio do povo hebreu às tropas muçulmanas, que invadiram a cidade em princípios do século VIII.

No ano 711, as tropas berberes do Norte de África, cruzam o estreito de Gibraltar e iniciam a invasão da Península Ibérica. Sete anos mais tarde, todo esse novo território (denominado Al Andalus) tornou-se uma província dependente do Califado de Omíada. Durante 20 anos, o exército berbere avançou até ao Norte, até ser derrotado em Tours (França). Esta batalha marcou o início do retrocesso muçulmano, o que viria a provocar conflitos internos entre berberes e árabes. 

No meio do caos, Abderramão l, o único sobrevivente do massacre da dinastia Omíada na Síria, fugiu de Damasco e fundou o primeiro emirado de Córdoba em 756. Desta forma, Córdoba tornou-se a capital do Al Andalus a ser independente do Califado, embora mantendo os laços religiosos. Nos 170 anos que se seguiram, sete emirados sucederam a Abderramão I. Durante esse período, a cidade viveu importantes transformações, urbanas e culturais: o bairro judeu, conhecido como Judiaria, ampliou-se e as suas ruas seguiram o traçado típico da arquitectura muçulmana, dando lugar a um labirinto de ruas e becos estreitos. Prosseguindo a ideia do "jardim do paraíso", os pátios das casas encheram-se de fontes e flores aromáticas. Esse novo modelo de residência foi mantido até aos dias de hoje, dando lugar aos famosos "pátios" de Córdoba. Também foram construídas mesquitas e banhos árabes (hammans) na capital assim como o templo mais importante do Al Andalus, a Mesquita de Córdoba. 

O oitavo emir de Córdoba, Abderramão III, rompeu definitivamente os vínculos religiosos com Bagdad no ano 929 e auto-proclamou-se Califa de Córdoba. Sob o seu mandato a cidade viveu uma época de esplendor sem procedentes e chegou a ser o principal centro cultural do Ocidente. Com quase 1 milhão de habitantes, Córdoba simbolizou a convivência de judeus, cristãos e muçulmanos. Em todo esse tempo, a cidade califal tornou-se um ponto de encontro de célebres cientistas, filósofos, astrónomos e matemáticos. Além disso, foram feitas importantes obras públicas, como o pavimento de ruas, esgotos e iluminação nocturna. Mas, sem dúvida, a obra mais importante da Córdoba califal, foi a construção, em 936, da Medina Azahara, uma cidadela vizinha a Córdoba. Abderramão III transladou o governo e a corte da cidade palatina e passou a gerir do seu palácio o funcionamento do califado, onde recebia os líderes internacionais e a conciliar as relações entre berberes, cristãos e judeus.

O seu sucessor no trono, foi Ad-Hakam II, que por sua vez deixou o trono ao filho Hisham II de apenas 11 anos. A sua inexperiência possibilitou a ascensão do fidalgo Almançor que ganhou cada vez mais protagonismo e poderio militar. Os constantes ataques de Almançor aos reis cristãos, fizeram com que se estes se unissem e desencadeassem um levantamento, que colocou fim ao Califado de Córdoba em 1031. Os berberes saquearam e incendiaram Medina Zahara e a comunidade muçulmana de Córdoba dividiu-se em pequenos reinos de Taifas. Depois da dissolução do Califado de Córdoba, a capital ficou dividida em 39 reinos de Taifas, o que fez com que o poder ficasse descentralizado. No século XII, o Império Almoada chegou à Península Ibérica e unificou todos esses reinos. Estes seriam, finalmente, dissolvidos pelos cristãos, dando lugar ao terceiro reino de Taifas. Finalmente, as tropas cristãs de Fernando III entraram em Córdoba e conquistaram este território em 1236. Embora a cidade tenha mantido a sua essência árabe, os muçulmanos foram expulsos, a Medina passou a ser uma vila medieval e foram construídas diversas igrejas cristãs. Córdoba iniciava, assim, a sua época cristã.

No século XV, os reis católicos instalaram-se em Córdoba, para dirigir da cidade a reconquista de Granada e, nessa altura, a cidade recuperou parte do seu esplendor. Em 1486, Isabel e Fernando receberam o marinheiro genovês Cristovão Colombo, no Alcácer dos reis cristãos, para escutar a sua inovadora rota rumo à Índia. A cristianização de Córdoba chegou em 1482, quando os reis católicos expulsaram os judeus e muçulmanos da Península Ibérica. Como consequência, em 1523, Carlos I autorizou a construção de uma catedral no interior da Mesquita. Nos anos seguintes foram também construídas as Cavalariças Reais, a Porta del Potro e a Plaza de La Corredera, lugares incontornáveis em qualquer visita. Córdoba teria, ainda, um papel de protagonista em 1808, quando as tropas do general Castaños venceram o exército francês na batalha de Bailén, naquela que foi a primeira derrota de Napoleão.

Desde meados do século XX que a cidade vive um renascimento económico e cultural que originou um crescimento considerável da sua população. Córdoba conta hoje com mais de 325.000 habitantes (a terceira maior cidade da Andaluzia). A UNESCO, declarou Córdoba Património da Humanidade em 1984. Recentemente, em 2008, o conjunto arqueológico da Medina Azahara foi declarado Património Mundial. 

(continua)

2022/01/14

Entre o PAN e o "Pântano", venha o diabo e escolha...

 

Terminadas as festas, começaram os saldos. Este ano, para além das promoções com desconto, temos as promessas eleitorais, que - a acreditar no Pai Natal - estão cheias de "presentes" para oferecer a quem se portar bem. Desde logo, o famigerado PRR (vulgo "bazuka") que é suposto "curar" grande parte dos nossos males e, lá mais para diante, os dinheiros dos programas europeus de coesão, que dão pelo nome de "20-20" e "20-30". No total, cerca de 60 mil milhões de euros, até finais da década. Ou seja, Portugal (se nos portarmos bem, lá está...) vai receber, só nesta década, tanto quanto recebeu desde a sua adesão à CEE, já lá vão 36 anos...

Por razões que a razão desconhece, a legislatura (que devia ter durado até 2023) foi interrompida a meio,  obrigando a eleições antecipadas (agendadas para o dia 30 de Janeiro). Até lá, teremos duas semanas de debates (que estão a decorrer neste momento) e duas semanas de campanha propriamente dita que, este ano, por via da restrições sanitárias, será mais contida no tempo e no espaço. 

Regressado do estrangeiro esta semana, perdi metade dos debates e, dos que restavam, vi os considerados mais importantes, entre os quais o frente-a-frente entre o actual primeiro-ministro (António Costa) e o "challenger" de serviço, o líder do principal partido da oposição (Rui Rio).

Primeira Nota: ao contrário dos restantes debates, que tiveram a duração média de 30 minutos, este debate durou 60 minutos. O dobro. Porquê? Claro que podemos sempre argumentar que se tratava do debate mais importante, já que um dos dois oponentes irá ser o próximo primeiro-ministro. Mas, se 60 minutos não dão para falar em mais de 4 ou 5 temas, como é que 30 minutos poderão ser suficientes para explicar o que quer que seja? A menos que os jornalistas de serviço estivessem interessados em aprofundar os temas em discussão, o que não era o caso.

Segunda Nota: para além de temas clássicos (economia, saúde, emprego, reformas...) e à excepção de temas marginais trazidos por partidos da extrema-direita (impostos, subsídios diversos, pena de prisão perpétua ou castração química de pedófilos...), nunca ouvimos falar de coisas tão importantes como: educação, cultura, habitação, transportes, mobilidade, ambiente, imigração, problema demográfico, descentralização e desertificação do interior. Isto, para não falar na política estrangeira (temos alguma?) ou da Europa, que nos subsidia há 36 anos. 

Terceira Nota: todos os oponentes, sem excepção, falaram no passado (virtudes próprias e defeitos alheios) sem apresentarem uma estratégia futura que nos permita ter uma ideia, ainda que geral, do que é que se propõem fazer, caso sejam governo. Mais, no caso dos partidos de esquerda, passaram o tempo a culparem-se mutuamente, pelo chumbo do Orçamento e pela consequente queda do governo. É verdade que existem programas partidários e, em tese, todos nós podemos lê-los e aferir do seu conteúdo. Mas, quem é que, nos tempos que correm, lê programas de 20 partidos?   

Quarta Nota: estamos em eleições legislativas para eleger deputados para a Assembleia da República. Só depois, saberemos a composição da AR. Porque razão é que, nestas eleições, António Costa, passou a afirmar que estamos a eleger o primeiro-ministro (!?). A menos que se trate de um "lapso freudiano", não se percebe esta afirmação, ainda que nela possa estar implícita a mensagem subliminar "votem em mim" (se querem que o PS governe...). 

Quinta Nota: do debate de ontem, algumas coisas parecem claras: Costa parece apostar numa maioria absoluta (usando o eufemismo "uma maioria estável") o que lhe permitiria dispensar alianças à esquerda e à direita; ou, caso não a obtenha, procurar governar com quem o apoiar (chegou a mencionar o PAN) ou continuar como até aqui, fazendo acordos caso a caso, como aconteceu durante o consulado de Guterres, no qual ele foi ministro dos assuntos parlamentares e que terminou no "pântano". Ou, terceira hipótese, aceitar o repto de Rio (governar com o apoio do segundo partido mais votado), o que ficou por esclarecer, já que ninguém sabe qual vai ser a composição da próxima assembleia.  

Sexta Nota: não é provável que qualquer dos dois maiores partidos (PS e PSD), ganhe as eleições com maioria absoluta. A acreditar nas sondagens publicadas entretanto, há uma tendência que se mantém constante em todas elas: existe uma maior polarização à esquerda e à direita e o PS ganhará as eleições, ainda que sem maioria absoluta. "De acordo, com os dados da sondagem do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP) da Universidade Católica Portuguesa, para o PUBLICO, RTP e Antena, entre os dias 6 e 10 de Janeiro, os socialistas poderão beneficiar de uma significativa transferência de votos de eleitores que em 2019 votaram na CDU, no Bloco de Esquerda, no Livre e no PAN, enquanto o PSD também faz uma boa "pescaria" nos eleitores do CDS, além de algumas franjas do Chega, Iniciativa Liberal e até do PAN" (in "Público" d.d. 14/01/22). 

Sétima Nota: De acordo com a mesma sondagem, o PS vencerá com cerca de 39%, o PSD terá cerca de 30%, o BE 6%, o Chega 6%, a CDU 5%, a IL 4%, o PAN 3%, o CDS 2% e o Livre 2%. Estes serão, em princípio, os partidos que elegerão deputados. A confirmar-se este cenário, não haveria grandes alterações na composição da AR, maioritariamente de esquerda, o que levantará de novo a questão de Outubro: se o Orçamento de Estado foi chumbado, porque é que o mesmo orçamento seria, agora, aprovado?

Oitava Nota: ainda que o debate de ontem não esteja contabilizado nas sondagens, não é muito provável que a opinião dos votantes se altere, já que a maioria tem o seu voto definido. No entanto, daqui até ao lavar dos cestos, é vindima. Pode acontecer o PS ganhar as eleições, mas a esquerda ficar em minoria no Parlamento; ou, o contrário: o PSD ganhar, mas a maioria do Parlamento continuar a ser de esquerda. Nesse caso, qual será a solução preconizada? Uma "geringonça" de direita, ou uma (segunda) "geringonça" de esquerda? E Costa, sairá do governo, se perder? E Rio, ficará como líder do PSD? As máquinas partidárias não costumam ser benevolentes para líderes perdedores. O mesmo é válido para os líderes de outros partidos, de resto.

Tempos interessantes. No dia 30, saberemos mais.

2021/12/22

No vacinar é que está o ganho (business as usual)

Como era expectável, o governo anunciou mais medidas restritivas para o período de festas que vai iniciar-se esta semana. A coisa já estava a ser preparada com alguma antecedência, mas a súbita explosão da variante Ómicron veio alterar os planos governamentais. Assim, em vez de confinarmos apenas na quadra natalícia e na primeira semana do ano, quando as escolas e a "vida normal" deviam recomeçar, eis-nos perante um novo plano de contingência.

Desta vez, António Costa, após auscultar o conselho de ministros, pôs o fato azul dos momentos solenes e anunciou, sem se rir, as novas medidas para a próxima quinzena. Estas incluem tele-trabalho obrigatório,  encerramento de escolas e ATLs para crianças, encerramento de bares e discotecas, limitação do número de clientes e distanciamento em restaurantes, proibição de ajuntamentos de mais de 10 pessoas na via pública, proibição de festas de fim-do-ano e de espectáculos e eventos desportivos. O controlo fronteiriço será retomado e os testes para entrar em determinados espaços passam a ser exigidos. Quem não fizer testes e não tenha certificado digital, não entra. Para pior já basta assim...

Para sublinhar a gravidade da situação, o primeiro-ministro pôs um ar ainda mais compungido e revelou os planos para a sua ceia de Natal que, este ano, não terá mais de 6 pessoas, a saber: ele, a mulher e a filha, o sogro, a mãe e o padrasto. De fora, ficará o irmão Ricardo (e respectiva família) que, à mesma hora, deve estar a fechar a edição da SIC-notícias. Era difícil imaginar pior cenário.

Depois de um ano memorável, em que Portugal começou com um dos piores índices de contágios a nível europeu, para se tornar o campeão da vacinação mundial, com uma percentagem de vacinados a rondar os 90% da população, eis-nos de volta ao local de partida! Mas, então, as vacinas não têm um efeito duradouro? E qual é a duração da vacina, que nos venderam como a solução milagrosa para os tempos mais próximos? E só algumas é que são efectivas, ou são todas? Ou, não é nenhuma? Estas e outras questões, são hoje alvo de polémica e acesas discussões nos Fora internacionais, com os especialistas das mais diversas áreas, a opinarem sobre o vírus e a melhor forma de o combater.

Uma das explicações mais óbvias, tem a ver com o aparecimento de novas variantes do vírus original, do qual já foram detectadas 4 ou 5 estirpes, entre as quais a Alfa, a Delta e, mais recentemente, a Ómicron. Porque o vírus se adapta e transmuta, é de esperar o aparecimento de mais estirpes num futuro próximo. Uma das formas de combatê-las, é através da vacinação. Neste campo, muitos progressos foram obtidos no último ano, com uma campanha de vacinação em massa a nível mundial. Só que, a sua distribuição, deixa muito a desejar. Num recente artigo sobre o tema, o cronista Daniel Oliveira (Expresso, d.d. 4/12), lança alguma luz sobre a desigualdade na distribuição das vacinas a nível mundial e os efeitos perniciosos desta política:

"O açambarcamento das vacinas para usar em grupos cada vez menos eficazes deixa o vírus à solta nos países mais pobres, que se tornam em viveiros de novas variantes potencialmente mais poderosas ou contagiosas". (...) "Mesmo com elevadas bolsas de resistência, 66% da população da UE tem a vacinação completa. Em África, são 6%. O número de pessoas dos países mais ricos que já receberam o recente reforço da vacina é quase o dobro dos que têm a vacinação completa nos países mais pobres. Gastamos dezenas de milhões de doses em crianças cada vez mais novas, com eficácia discutível, enquanto o vírus ganha força descontrolada nos países pobres". E, mais à frente: "uma das consequências da pandemia foi o reforço do poder dos Estados, que compreensivelmente limitam as liberdades individuais  e o funcionamento da economia. Mas, não beliscam as sacrossantas patentes de vacinas financiadas por fundos públicos. Junta-se a isto, o "neocolonialismo" denunciado há uma semana por Gordon Brown no "The Guardian": países que precisam de vacinas, como a África do Sul, são obrigadas a entregar à Europa as que eles próprios produzem. Em apenas um ano, a vacina Pfizer tornou-se o medicamento com maior volume de vendas em todo o Mundo: 36 mil milhões de dólares em 2021. É responsável por 80% das inoculações  na UE e 74% nos EUA". (...) "De acordo com o "Financial Times", longos meses depois do início da comercialização da vacina, a UE aceitou que o valor por dose passasse de €15,50 para €19,50. Numa nota aos accionistas, a empresa diz que conseguirá aumentar ainda mais as margens de lucro com o fim da pandemia" (...)

"Recusando abrir mão das patentes, a "solução" encontrada pelo G7 foi a doação. Mas o objectivo proclamado em Junho - 40% de vacinação para os 92 países mais pobres - está irremediavelmente comprometido. Os EUA estão em 25% do prometido, a UE 19%, o Reino Unido 11% e o Canadá 5%. Ao contrário do que acontecia no início, o problema já não é a produção, que está nos dois mil milhões de doses por mês. O problema é o açambarcamento. Os EUA têm 162 milhões de doses em stock, a UE 250 milhões e o Reino Unido 33 milhões. Que esta medida é completamente irracional, é o facto de 100 milhões de vacinas terem, entretanto, ultrapassado o seu prazo de validade em Dezembro, segundo a COVAX". (...) "O egoísmo vacinal está a concentrar as vacinas nos países mais vacinados. A Pfizer tem um esquema de preço distinto pelo nível económico dos países, variando entre os €19,50 na Europa, €9 nos países em via de desenvolvimento e €6 nos países mais pobres. É fácil perceber a quem lhe compensa mais vender e como as novas doses compradas pela UE para crianças e para a terceira toma passam à frente de encomendas mais antigas e mais urgentes dos países pobres". 

Ou seja, por mais vacinas que o Mundo desenvolvido produza e por mais vacinados que estejamos, as mutações do vírus vão continuar a infectar-nos, enquanto 1/3 da população mundial continuar por vacinar.  Nas palavras do articulista: 

"Tentamos combater a pandemia como não resolvemos as crises migratórias: julgamos que nada do que se passa "lá fora" nos incomodará. Mas, para o vírus não há muros ou o medo da morte no Mediterrâneo. Se não for a Ómicron a recordar-nos será outra variante qualquer". (...) "Mas, se o egoísmo mata, não deixa de ser lucrativo. E para boa parte dos governo o poder das farmacêuticas conta mais que o interesse comum".         

Moral desta história: quando virem o Costa, com ar circunspecto, a anunciar mais vacinas e mais um confinamento, pensem naqueles que nem sequer a primeira dose da vacina tomaram...

2021/12/15

It's a Pandemic, Sir!

O Intercidades, que liga Lisboa a Faro, tinha acabado de entrar na plataforma 4, como é habitual. Eram cerca das 13.45h e dirigi-me calmamente para a carruagem 81, a última da composição, normalmente ligada ao bar do comboio. Preparava-me para entrar, quando ouço uma voz em altos gritos: "Senhor, senhor, não pode entrar! Estão a fazer a limpeza da carruagem".  Acenei para o homem à distância e fiz-lhe um sinal que estava tudo bem. Afinal, ainda faltava meia-hora para a partida...

Enquanto consultava as mensagens no telemóvel, o mesmo homem (conductor) passou por mim aos gritos: "já pode entrar, já pode entrar!". Muito bem, respondi e dirigi-me para o meu lugar, que ocupei de imediato. O comboio, só sairia às 14.15h. Um ritual, que sei de cor, após anos a fazer este percurso. 

Em Albufeira, começaram a entrar os estrangeiros, como é habitual naquela estação, tendo o conductor dado início ao controlo dos bilhetes. Quando chegou a minha vez, depois de examinar o bilhete (tenho desconto de 50%) pediu-me o Cartão de Cidadão, só "para confirmar a idade"...

Lembro-me de ter adormecido, algures durante a travessia da serra algarvia. Já perto da Funcheira, fui acordado pelo referido conductor aos gritos: "O senhor tem de colocar imediatamente a máscara!". O homem estava a metros de mim e, sem saber a quem ele se dirigia, perguntei se estava a falar comigo. "Sim, é com o senhor, mesmo. A máscara é obrigatória e tem de cobrir o nariz!". Fiz-lhe um sinal de concordância e, ainda meio aturdido, puxei a máscara para cima.

Já acordado, fui ao bar beber um café e voltei ao meu lugar, onde iniciei a leitura de um livro, agora com máscara e óculos postos. Porque os óculos se embaciam, sempre que ponho a máscara, baixei ligeiramente a dita, mantendo o nariz de fora. A coisa, durou até Grândola, quando o homem, surgido detrás de mim, gritou-me ao ouvido: "O senhor tem de ter o nariz coberto e já é a segunda vez que o aviso! Não volto a avisá-lo outra vez!". 

Levantei-me, dirige-me ao sujeito e perguntei-lhe, já alterado: "Ouça lá, você fala assim com todas as pessoas? Aos gritos e dessa forma autoritária? Quem julga você que é? O dono do comboio? Isto aqui não é um nenhum quartel e muito menos uma escola primária!". O homem, olhou para mim, com os olhos muito abertos. Continuei: "Você pode dizer as mesmas coisas em tom cordial e pedir as pessoas para manterem a máscara. Qualquer pessoa percebe e não há nenhum problema nisso. Não gosto de pessoas autoritárias e, se volta a falar nesse tom, comigo não resulta. E agora, vá bugiar" (confesso que o termo foi outro)! E voltei à leitura, com a máscara correctamente posta. 

O homem, deu dois passos para trás, pôs-se ao lado da minha cadeira e começou a digitar freneticamente no seu telemóvel. Continuei a ler, enquanto o observava pelo canto do olho. Ao fim de alguns minutos, alguém deve ter respondido do outro lado e ouvi-o dizer em voz alta: "Sim, sou eu, desculpa incomodar-vos, mas tinha aqui um passageiro que se recusava a pôr a máscara (!?). Entretanto, o senhor já corrigiu e agora está tudo bem. Podes desligar". Posto isto, desapareceu.

Estávamos já perto de Lisboa quando o zelote reentrou na carruagem e parou em frente a mim. Receei o pior. Afinal, era para repreender um estrangeiro (americano?) que, supostamente, não teria a máscara bem posta. O infractor olhou para o conductor, aparentemente sem perceber patavina e disse: "I'm sorry, I don't speak portuguese"...

"You, don't speak portuguese? But, you speak english, right?". O outro olhou para a namorada e para ele e retorquiu com uma calma imperial: "Yes, I do".

"Well, sir, then you must know, that according to the portuguese law, you're obliged to wear a mask that covers you nose, inside the train". "Ok, ok, don't worry...", disse o americano, obediente. O zelote olhou triunfante para mim e, qual Arquimedes maravilhado com a sua descoberta, repetiu para quem o queria ouvir: "It's a pandemic, you know. It's a pandemic, sir!".