2023/09/06

Taxi Driver (28)

Boa noite, para onde vamos? 

- Para a Buraca, sff.

Muito bem. Pelo Monsanto, não? 

- Sim. A esta hora não há tráfego.

É verdade. Já se nota o fim das férias. Os turistas são cada vez menos, Há um mês atrás não se podia andar em Lisboa... 

- Eu sei. Ainda por cima, com a visita do Papa pelo meio... tive de fugir para longe. Lisboa parecia uma feira. Já era uma feira antes, mas, com as Jornadas, piorou.

Nem me fale disso. Se fosse só o Papa! Eram os peregrinos, os turistas, os "ubers", os tuk-tuk, as trotinetes, eu sei lá. Nem se podia circular. Passei o tempo todo a fazer serviços para estrangeiros. Nem sei onde é que eles conseguiram meter tanta gente...

- Em casas particulares, em conventos, em pavilhões desportivos, em quartéis... nalgum lado foi. Mas Lisboa está na "moda" e toda a gente quer vir cá... Em si, não é mau, o pior é que a cidade está a "rebentar pelas costuras" e não há casas baratas para viver.

Para os estrangeiros, há. Eles podem pagar. Olhe, ainda este Verão apanhei um casal francês com um bebé, que andava à procura de casa em Lisboa. Estiveram numa casa do Bairro Alto e saíram ao fim de um mês, tal era o barulho à noite. Disseram-me que não queriam educar o filho naquele ambiente. Acabaram por mudar-se para Campo de Ourique e agora estão satisfeitos. 

- Sim, Campo de Ourique ainda mantém alguma identidade. É um bairro simpático. Já os bairros históricos, como Alfama, Mouraria, Castelo, Bairro Alto, são para esquecer.

Para esquecer! Sou de Alfama e passei lá a juventude. Já não mora lá ninguém do meu tempo. Os prédios foram quase todos vendidos e, agora, são Alojamentos Locais e estabelecimentos nocturnos. De fugir!

- Um desastre, a política de habitação da Câmara de Lisboa...

Os estrangeiros compram tudo. A minha tia, tinha uma casa de 5 divisões na Rua São João da Praça e não queria vendê-la pois estava a guardá-la para uma das filhas. Era uma casa antiga, que ela tinha herdado da avó e queria que ficasse  na família. Apareceu um americano a querer comprar a casa e ela rejeitou sempre. Mas ele insistia, pois gostava muito do bairro e queria ter uma casa em Lisboa. Finalmente, acabou por convencer a minha tia a vender a casa por 1 milhão de dólares! Ela acabou por aceitar (imagine, 1 milhão de dólares!) e fez bem. Com esse dinheiro comprou 3 casas para os filhos todos.

- Incrível, essa história, mas deve haver muitas iguais, certamente.

Sim, até porque os americanos estão a descobrir Portugal. Eu ajudei a fazer a mudança e perguntei ao americano (que era de Nova-Iorque) qual o interesse dele em vir viver para uma cidade como Lisboa? Ele disse-me que negociava em imobiliário e que as revistas americanas da especialidade indicavam Lisboa como uma das cidades mais interessantes para investir até 3 milhões de dólares...

- Estou a ver. Nem é necessário investir tanto. Basta investir 1 milhão e têm direito a um "visto gold".  Uma mina. O pior é que não criam empregos e, daqui a uns anos, revendem os imóveis pelo dobro ou pelo triplo.

Fazem eles bem. Eu tenho um irmão em Darwin, na Austrália e este ano fui lá visitá-lo. Ele disse-me que lá é o mesmo. Aproveitámos para fazer umas férias em Bali. A vida lá é muito barata e como estávamos perto, fomos até à Indonésia, que eu não conhecia. Bali é muito bonito, mas muito pobre. Há muitos pedintes e vê-se muita prostituição. A ilha vive do turismo e os residentes não frequentam as lojas e os supermercados reservados aos estrangeiros. Um euro equivale a 14.000 rupias, mas com 28.000 rupias come-se uma refeição nos restaurantes vietnamitas, chineses, etc...A comida é boa e as pessoas muito simpáticas. O clima é que é difícil de suportar. Um calor húmido. Até fiquei mal disposto. Tinha de tomar três duches por dia. Não gostava de viver para aqueles lados...

- Sim, os países tropicais são difíceis de suportar para um europeu. É tudo uma questão de hábito. Tenho um amigo no Luxemburgo, cuja filha casou com um japonês na Austrália. Vieram viver para o Luxemburgo, mas, ao fim de uns tempos, voltaram para a Austrália, pois ele não aguentava o frio na Europa. Agora, vivem em Sidney. 

Pois é, passamos a vida a protestar a nunca estamos contentes. Até nas redes sociais, estamos sempre em desacordo. Eu frequento o Facebook e leio sempre a Raquel Varela de quem gosto muito. Conhece?

- Por acaso, até a conheço pessoalmente. E então?...

Pois, ela há uns tempos escreveu um texto sobre a guerra na Ucrânia, onde não tomava partido. Ela não acredita nisso das nações e dos nacionalismos. Ela diz que é uma internacionalista e que defende as pessoas, não os países. Eu meti-me na discussão e, a determinada altura, apareceu lá um tipo a chamar-me nomes e a defender ditaduras, como a Rússia e outros países semelhantes. Está a ver? Eu, nem queria acreditar...

 - Imagino. Quem frequenta redes sociais, está sempre habilitado a encontros desagradáveis. Mas, tem bom remédio: é desligar o computador.

É o que me dá vontade de fazer. Apanha-se cada um...

- Bem, já chegámos. Pode parar por aqui. 

Obrigado e tenha uma boa noite.

2023/07/30

A Praga dos Louva-a-Deus

"Dirigiu-se de novo o SENHOR a Moisés: vai novamente fazer o teu pedido ao Faraó. No entanto, endurecerei o seu coração, assim como o dos seus acompanhantes, de forma a ter oportunidade de fazer mais milagres, demonstrando o meu poder, coisas que poderão contar aos vossos filhos e descendentes, descrevendo o que tem acontecido no Egipto, para que saibam que sou o SENHOR". 

Moisés e Aarão pediram nova audiência ao Faraó. "O SENHOR, Deus dos Hebreus, diz-te: "Até quando, recusareis submeter-vos a mim? Deixai ir o meu Povo para que me adore. Se recusares, amanhã cobrirei toda a nação de um espesso bando de gafanhotos" (Êxodo 10)

Não sabemos se foi mesmo assim, mas a história é boa e toda a gente a conhece.

Que o Faraó era "mau", ninguém duvida. Essa era, aliás, uma das características dos Faraós. Serem maus. Mas, onde há "maus", há "bons" e, onde não há, alguém vela por nós (os bons). Nos meus piores momentos, socorro-me sempre desta ideia: "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe". Tem resultado.

Acontece que, nem nos piores pesadelos, imaginei ser alvo de uma "praga" a sério. Está a acontecer e não é brincadeira nenhuma. Experimentem ir à capital do reino por estes dias e vão perceber do que falo. 

Lisboa, que já era uma espécie de "Disneyland para remediados", tornou-se em poucos dias uma espécie de "Altar Ambulante", para jovens turistas. São turistas jovens, imberbes e asseados, que se vestem todos da mesma maneira e riem por tudo e por nada. Nunca percebi porque é que riem tanto. Parecem hienas. O problema não é rirem, o problema é serem mais de um milhão ao mesmo tempo, numa cidade de meio-milhão de habitantes, onde pouca coisa funciona bem.

Explicando melhor: a questão de fundo não é Portugal ter-se candidatado à organização das Jornadas Mundiais da Juventude (católica), o que em si nem é bom, nem é mau (antes pelo contrário). A questão é essa decisão ter sido proposta pelo patriarcado português, com a cumplicidade do principal representante da nação, o beato presidente Marcelo. Pior: a decisão (que implicava apoios significativos do estado) foi tomada à revelia da população (coisa a que já estamos habituados) e foi tornada pública durante as últimas "Jornadas", que tiveram lugar no Panamá em 2019. Ou seja, há quatro anos!

E o que foi feito durante esses quatro anos? Pouco, em relação ao tempo disponível, muito em relação aos prazos estabelecidos. É verdade que, pelo meio, houve uma pandemia, o que atrasou substancialmente os preparativos. Mas, também é verdade que o Vaticano concordou em adiar a data (inicialmente prevista para 2022) o que, de alguma forma compensou, o atraso. Também é verdade que a CML mudou de presidência em 2021, facto que o "Calimero" Moedas não se cansa de apregoar. Mas que raio, quatro anos!?

Também sabemos que o planeamento e o cumprimento de prazos, não são pontos fortes da cultura portuguesa. Somos bons a criar, maus a planear. Não foi diferente desta vez. A prova, foram os sucessivos anúncios, feitos já este ano (a seis meses do evento) com as dimensões do palco e os custos envolvidos, explicados por José Sá Fernandes (o "sempre em pé" de serviço), capaz de afirmar tudo e o seu contrário, que é para isso que servem os "peões de brega". Uma trapalhada sem nome, a que o cardeal (envergonhado, calcule-se!) veio pôr fim, reduzindo as dimensões e os custos da coisa, considerados exagerados para uma pobre nação, ainda para mais com uma dívida pública de 110% do PIB. O que diriam os pobres? 

Acontece que, a tão pouco tempo do evento, com as obras atrasadas, as alterações propostas e os prazos por cumprir, não parecia fácil a concretização do "happening". Não parecia fácil, mas nos momentos mais desesperados, há que ter fé. Fé num milagre. Afinal, o evento é patrocinado pela Igreja católica, o maior "fazedor de milagres" da História. Porque não, aqui? 

E foi nesta altura que a principal construtora do país, a Mota Engil, apresentou a "solução milagrosa": Cumprir os prazos é possível. Sai é mais caro! 

Como é que eu nunca me tinha lembrado disto?

Afinal, era fácil. A prova, é estarmos a 48 horas do evento e tudo (parecer) estar preparado. "Chapeau"! Ainda dizem mal dos gestores portugueses. Más-línguas, é o que é.

O "Expresso" fez as contas:

"75,8% dos contratos identificados pelo "Expresso", foram celebrados por ajuste directo - mesmo contratos chorudos que em condições normais exigiriam um contrato público e o visto do Tribunal de Contas  (TdC), como a preparação dos terrenos na zona ribeirinha da Bobadela (no valor de 4,29 milhões adjudicado por Loures); ou a construção do altar-palco no Parque Tejo-Trancão, trabalho de 4,24 milhões que a Mota-Engil arrecadou à SRU, uma empresa municipal de Lisboa criada em 2004 e dedicada à reabilitação urbana. Todos estes ajustes directos - 147 no total - só foram possíveis graças ao Artigo 149º da Lei do Orçamento de Estado de 2022, aprovado pela maioria do governo e que alarga os montantes máximos de todos os contratos públicos feitos para a JMJ. Dessa forma, só 11% dos contratos analisados pelo Expresso (22) passaram por um concurso público; e apenas 24 (ou 12,4%) mereceram uma consulta prévia por parte das entidades públicas" (in Expresso, pg. 5, d.d. 28/7/23).  

"Há contratos de todo o tipo: seguranças privados e assessores para actividades várias, 95 mil euros pagos por Carlos Moedas à TVI para promover a cidade na televisão e em plataformas digitais ou os mais de 684 mil euros que o município de Oeiras deu há dias à promotora "Everything is New" para gerir a logística das actividades marcadas para o Passeio Marítimo de Algés - onde se realiza o festival NOS-Alive também da empresa de Álvaro Covões. Aliás, o município de Isaltino Morais está no topo dos mais gastadores: mais de um milhão de euros em 11 contratos. Além disso a GNR adquiriu geradores de energia no valor de quase 9,5 mil, o INEM avançou há poucos dias para a compra de 70 telemóveis por quase 15 mil euros e até o Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM) gastou 3,5 mil euros por ajuste directo numa "caixa de embutidos personalizada para oferta a Sua Santidade, o Papa Francisco, lê-se no contrato" (ibidem).

"Tudo somado, esta é apenas uma fatia do bolo JMJ em comparação com as estimativas de custos avançadas nos últimos meses: o Governo estimou a sua parte em 30 milhões, Lisboa avançou com 35 milhões (mais 13,5 do que previa inicialmente) e Loures com 9 milhões. Mas, os custos agregados para o erário público com a visita do Papa, ainda não foram comunicados oficialmente por nenhuma das partes envolvidas, e o retorno para o país desse investimento também não" (ibidem). 

Ao ler esta história, veio-me à ideia o livro "Gomorra" de Roberto Saviani, onde este explica como é que a Máfia cresceu (em Itália e não só): foi através da construção civil, que possibilita a maior parte da traficância política, através de contratos por ajuste directo, para os quais há sempre uma explicação. A coisa funciona normalmente assim: o poder político contrata uma empresa de construção para um determinado trabalho. Esta atrasa a obra e exige mais dinheiro para poder terminá-la em tempo. O poder político paga o excesso (chama-se "derrapagem" no jargão). Mais tarde, a construtora compensa o partido através de uma doação (apoio a uma campanha eleitoral, por exemplo). Dessa forma, garante contratos futuros e novas doações. Na Sicília, onde tudo começou, chama-se extorsão ou chantagem. Em Portugal, país de brandos costumes, chama-se corrupção. É tudo uma questão de semântica. 

No fim, quem ri, são as hienas.   

2023/07/24

Espanha: o impasse continua

A Espanha foi a votos, mas os resultados não contribuíram para a clarificação da situação política do pais vizinho. 

O PP (Partido Popular) foi o mais votado (136 deputados), mas não alcançou um resultado que lhe permita governar em maioria. Nem mesmo com o VOX (33 deputados), nem mesmo com os pequenos partidos das Canárias e das Baleares (2 votos). Na melhor das hipóteses, conseguiria 171 deputados. Ainda faltariam 5 deputados para a maioria absoluta (176). Uma impossibilidade matemática.

O PSOE (Partido Socialista) melhorou a sua votação, em relação às últimas eleições (122 deputados), mas ficou aquém de um bom resultado. Não poderá governar a solo e terá de renegociar a "geringonça" que lhe permitiu governar nos últimos quatro anos. Uma missão difícil, ainda que não impossível.

O SUMAR (Partido de Esquerda e Extrema-Esquerda) recentemente criado por Yolanda Dias (actual vice-presidente), conseguiu uma votação expressiva (31 deputados), ainda que aquém do Unidas-Podemos que o procedeu (35). Uma herança difícil, que não garante a Sanchez votos suficientes para governar. 

O VOX  (Partido de Extrema-Direita) obteve 33 deputados e foi o grande derrotado da noite (tinha 51 deputados).    

Restam os pequenos partidos regionais e independentistas (ERC, BILDU, JUNTS, PNV...) que podem fazer a diferença, caso as suas reivindicações (mais autonomia) sejam aceites pelo poder vigente. Vão, certamente, "esticar a corda" e Sanchez terá de usar os seus melhores dotes de negociador para manter a actual coligação no poder.     

Resumindo: caso nenhum dos grandes partidos, o PP (a solo ou em coligação) ou o PSOE (em coligação), consigam formar governo, o Rei pode sempre convocar novas eleições, que teriam lugar dentro de dois meses. Uma possibilidade real. 

O Verão quente espanhol, aumentou de temperatura este domingo. Tudo em aberto, pois, num país onde as feridas do passado teimam em fechar. Uma coisa parece certa: a fragmentação da sociedade espanhola é, hoje, uma evidência. O ciclo de governação dos grande partidos em alternância (PP e PSOE) parece ter chegado ao fim. O que se seguirá?  


2023/07/22

Estado da Nação (o discurso do copo meio cheio)

Como é da tradição, realizou-se na Assembleia da República a última sessão antes de férias, subordinada à discussão sobre o Estado da Nação. Uma sessão, em jeito de balanço, onde o governo e a oposição avaliam o ano governamental que, agora, termina.

Um ritual anual sem surpresas, onde o governo costuma defender as suas escolhas políticas e a oposição critica as políticas seguidas. No fundo, algo que se pode resumir ao "copo meio cheio" governamental e ao "copo meio vazio" da oposição. Nada de novo aqui. 

Como seria de esperar, o primeiro-ministro aproveitou a sessão para fazer um balanço positivo da governação (como não?) pintando de cor "rosa" uma realidade suportada por indicadores macro-económicos, ainda que as melhorias demonstradas não se reflitam na economia real (a vida das pessoas comuns).  Sobre os números apresentados por António Costa, os indicadores não podiam ser mais favoráveis:

A Economia Portuguesa (PIB) cresce 1,8% e a OCDE estima que possa atingir os 2,7% em finais deste ano. Acima da média europeia.

O Défice Orçamental (1,4%) descerá a 0,4%, até final do ano.

A Dívida Pública (110% do PIB) descerá até 103% em 2023 e será inferior a 100% em 2024.  

O Desemprego, atingiu mínimos históricos e estabilizou nos 6,4%.

O Turismo, voltou aos níveis pré-pandemia e já representa 10,1% do PIB nacional.

As receitas dos Emigrantes, atingiram 3.678 milhões de euros (a segunda maior dos países da UE).

O PRR (Programa de Recuperação e Resiliência) aprovado em Junho de 2021, para apoiar as economias dos países europeus atingidos pela pandemia, atribuiu a Portugal 16,6 mil milhões (dos quais 13,9% em subvenções). Posteriormente o valor foi aumentado para 22 mil milhões, a executar até 2026.

O "Programa Europeu de Coesão 20-20" (26,89 mil milhões) está a ser realizado, tendo já sido aprovados 87% dos projectos.

O "Programa Europeu de Coesão 20-30" (22.996 mil milhões) que apoiará 12 projectos, será realizado entre 2021 e 2027. 

Ou seja, as "contas" nunca estiveram tão boas e, não fora a pandemia, a inflação e a guerra (variáveis externas que o governo não controla) e viveríamos no "melhor dos Mundos". 

Acontece que o cidadão comum, como o Pessoa, não percebe nada de contabilidade e está mais interessado nas contas caseiras. Dito de outro modo, quer saber como é que paga as suas despesas diárias: habitação, saúde, alimentação, educação, transportes e, já agora, entretenimento (a que muitas chamam cultura). E é aqui que a "ºporca torce o rabo". Neste ponto, a oposição, de um modo geral, tem razão, ainda que as soluções apresentadas possam ser diferentes de partido para partido.

Sectores-chave como a saúde, a educação, a habitação ou os transportes, aqueles que mais preocupam o "homem comum" (a maioria da população) estão em crise permanente. 

Na saúde, e apesar dos "ratios" (médicos por habitantes), estarem dentro da média europeia, faltam profissionais em quase todas as especialidades na maioria dos hospitais públicos do país. Com a pandemia as consultas externas e as operações foram proteladas e estão atrasadas anos! São diários os relatos dos utentes sem médico de família (1.6 milhões de portugueses!), apesar das promessas feitas pelo governo (em 2017) de solucionar este problema até 2024 (nos 50 anos do 25 de Abril!). Não será desta, já se percebeu.

Na educação, um dos calcanhares de Aquiles do partido que chegou a eleger a "educação como paixão", as políticas não podiam ser mais desastrosas. A melhor ilustração desta situação, é a (justa) luta dos profissionais do sector (professores e não só) que, desde 2008, vêm lutando pela dignificação da carreira. A falta de docentes é crónica e tende a piorar, devido ao envelhecimento da classe, enquanto as taxas de abandono escolar e maus resultados em disciplinas nucleares, são sintomas que não podem ser ignorados. Que faz o governo? Atira com dinheiro para cima dos problemas, acaba com os exames parciais e deixa cair a Matemática como exame obrigatório! O facilitismo, no seu melhor.

A habitação, um problema estrutural nas grandes cidades, piorou nas últimas décadas, devido à liberalização do sector (Lei de 2012) e ao aumento exponencial do turismo, que retirou milhares de casas do sector de arrendamento, para o Alojamento Local e AirB&b. Como a construção de novas casas para arrendamento, não acompanhou esta tendência, faltam casas no mercado e as rendas dispararam em flecha. A renda média em Lisboa, aumentou em 37,9% em Maio, por comparação com o período homólogo em 2022. No sector privado, o metro quadrado está ao preço de Paris ou Milão, com valores médios de €2453 para Lisboa, €1521 para o Porto, €1381 para Setúbal e €1336 para Faro (dados do Sapo). Que faz o governo? Anuncia o pacote "Mais Habitação", que prevê o arrendamento coercivo de casas devolutas e expropriações, a troco de rendas pagas pelo estado. Entretanto, a ministra do sector, veio anunciar, com ar cândido, a entrega de 320 novos fogos para famílias da "classe média" (o que quer que isso seja). São necessárias mais de 100 000 novas habitações (única forma de fazer baixar os preços) e o governo não consegue tomar medidas estratégicas para o sector. A inoperância total.

Finalmente, os transportes: depois de décadas de investimento em auto-estradas (a política do "betão") e desinvestimento na ferrovia (mais de 1000 km de via encerrados nos últimos 30 anos), o governo resolveu "meter mãos à obra" e anunciar dois grandes projectos nacionais, que passam por recuperar comboios e locomotivas desactivados (pondo-as ao serviço em linhas secundárias, entretanto electrificadas) e abrir um concurso para aquisição de novos comboios. Os projectos estão em curso e já mostram resultados, mas não resolvem o problema de fundo: a falta de linhas de comboios de alta-velocidade e composições adequadas. Acontece que o concurso internacional, entretanto aberto para a construção de 117 novas composições, ao qual concorreram 3 empresas (francesas, suíças e espanholas) corre o risco de ser impugnado devido aos critérios de pontuação do júri, criticados por todos os concorrentes! Uma trapalhada (mais uma!) que nos faz temer pela resolução de um problema que não estará resolvido antes de 2029! Entretanto, Portugal continua sem ligação ferroviária a Espanha, desde a pandemia, enquanto não abre o ramal Évora-Badajoz (80 km) em construção há dois anos. A Renfer (espanhola) já se candidatou a explorar a linha quando esta estiver concluída. É caso para dizer: que venham os espanhóis! 

Como se tudo isto não fosse suficiente, resta uma questão central: a economia cresce pouco e o dinheiro  não dá para tudo (não há "folgas orçamentais", diz Medina). Essa é, pelo menos, a explicação dos liberais do governo, para justificar os baixos salários. A população está a empobrecer, mas os números macro-económicos são bons... Logo, "lá mais para a frente", as pessoas (o homem comum) irão sentir o efeito da economia. Esta é, pelo menos, a tese de  Fernando Medina (Finanças), Álvaro Beleza (SEDES), Francisco Assis (CES) e Sérgio Sousa Pinto (jurista e deputado do PS), todos eles reputados socialistas e subscritores de um artigo de opinião, recentemente publicado num jornal de referência. Com "socialistas" destes, bem podemos esperar sentados.                   

Entretanto, Costa, o "optimista irritante", deixou os conselheiros de estado a falar sozinhos e viajou até à Nova-Zelândia, para assistir a um jogo da seleção portuguesa de futebol feminino. Consta que o Conselho de Estado, convocado por Marcelo, prossegue em Setembro. Por esta, é que a oposição não esperava... 

 

2023/06/17

Celebrando José Afonso (De Ouvido e Coração)

"A primeira vez que nos lembramos de ter escutado "De Ouvido e Coração" - concerto interpretado e comentado por Amílcar Vasques-Dias - terá sido nas instalações da "Fábrica Braço de Prata", espaço de inovação e experimentalismo lisboeta, já lá vão uns bons anos.

Revimo-lo muitas vezes, em lugares tão improváveis como a "Sala de Espelhos" do Palácio Foz em Lisboa, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, na Livraria "Ler Devagar" em Alcântara, no Festival Badasom em Badajoz, no Convento dos Remédios em Évora, no Coliseu de Lisboa, na Amstelkerk em Amsterdão, na Holanda (país onde o projecto teve início), na Praça do Giraldo em Évora e, mais recentemente (2022), na "Casa Verdades de Faria" no Estoril. 

Da primeira audição guardamos a memória de um concerto íntimo, numa sala forrada a madeira e livros e de dois músicos de excepção: o Amílcar Vasques-Dias, compositor e pianista que conheci na Holanda e o violinista Luís Pacheco Cunha, parceiro de sempre neste projecto. 

A surpresa e o entusiasmo foram tais que, nessa mesma noite, concordámos em apresentar o concerto numa sessão pública em Setúbal, o que viria a acontecer no Dia Mundial da Música, no Salão Nobre da Câmara Municipal. Um acontecimento, desta vez presenciado por dezenas de amigos do Zeca, quiçá pouco habituados a adaptações clássicas e contemporâneas da obra do cantor, desde sempre mais identificado com a música popular portuguesa. 

O sucesso foi imediato, pelo que repetir o concerto em Lisboa seria uma questão de meses. Dessa vez, numa parceria com a Livraria "Ler Devagar", em sala esgotada para o efeito. Outros concertos se seguiriam, dentro e fora do país, entre os quais deve ser realçado o do Coliseu de Lisboa, dado o simbolismo da data evocativa dos 40 anos da passagem do Zeca por aquela sala. 

Entretanto, o concerto "cresceu" em duração e em execução musical, agora mais coeso e ágil, acrescido da expressividade da "cantaora" Esther Merino, uma revelação para todos nós. Com este trio, estivemos na Holanda, em sessão organizada pela agência local "Q.Art", numa igreja de Amsterdão (Amstelkerk), onde o êxito não seria menor. De volta ao país de origem, o projecto foi enriquecido com a voz da cantora lírica Natasa Sibalic e, pontualmente, com intérpretes do "cante" alentejano. 

Ver e ouvir "De Ouvido e Coração" hoje, continua a ser uma experiência única, porque irrepetível na sua riqueza harmónica e melódica, só ao alcance de intérpretes de excepção. A recriação da grande música de José Afonso conhece, desta forma, a dimensão que sempre lhe esteve subjacente e à qual não tínhamos tido, até agora, acesso. Entre música erudita, canto lírico, jazz e flamenco, o concerto reinventa os grandes temas de Afonso, mantendo-se fiel à matriz original. Temas como "A mulher da Erva", "Que amor não me engana" ou "Cantar Alentejano" (Catarina Eufémia), para citar alguns exemplos, constituem verdadeiras pérolas de um acervo inesgotável. 

Faltava a edição discográfica. Esta foi sendo burilada, em momentos únicos, ao longo de uma década, até à versão final. Agora, com os convidados especiais, Ricardo Ribeiro e Carlos Guilherme, que se associaram ao projecto original. Para que todos os que conhecem a música de José Afonso e o concerto "De Ouvido e Coração" possam desfrutar desta simbiose única: a de uma grande música interpretada por grandes músicos. O resultado está aí, nesta gravação que arriscamos em apelidar de histórica. Regozijemo-nos, pois".*

* (texto original, incluído no livrete do CD).

 

2023/06/06

Taxi Driver (27)

Então, para onde é ida?

- Para a Avenida General Roçadas.

Tem preferência pelo caminho?

- Não, vá para onde achar melhor...

Eu pergunto sempre ao cliente. O cliente é que sabe...

- Quem apanha um táxi, normalmente, tem pressa. Se fosse a si, escolhia o caminho mais rápido...

Bom, então vamos pelo túnel do Campo Pequeno. Sempre evitamos o centro da cidade.

- Muito bem. 

Isto, está cada vez pior. É trânsito por todo o lado. Já não há horas de ponta. 

- Tem toda a razão. O centro da cidade não cresceu e cada vez há mais carros. São 400.000 a entrar e a sair todos os dias...

Se fossem só os automóveis. E o resto? Os "tuk-tuks", as trotinetas, os "ubers" guiados por estrangeiros que não conhecem as regras de trânsito e nem sequer falam português... 

- Sim, isso tudo junto. Não esquecer os turistas, claro, que descobriram Portugal e já não vêm só no Verão, Agora, vêm todo o ano. Só no primeiro trimestre, foram quase 5 milhões. Isto dá uma média de 20 milhões ao ano. O dobro da população portuguesa!

Está a ver! Tenho ou não tenho razão? Eu não sei onde é que vamos meter 1 milhão de pessoas quando cá vier o Papa...

- Espero não estar cá nessa semana. Vou de férias, para o estrangeiro...

Faz o senhor muito bem. Quem me dera poder dizer o mesmo, mas temos de aproveitar o Verão...

- Claro. Há que aproveitar. Esta cidade está cada vez mais virada para o turismo. A "baixa" mais parece uma feira. Isto está bom é para a hotelaria, para a restauração e para os táxis...

Sabe, eu estou com muito medo da visita do Papa. Vamos receber mais de um milhão de pessoas e cada vez há mais paquistaneses e indianos em Portugal. Não lhe parece estranho?

- Estranho? Nunca reparei nisso, mas é verdade que cada vez há mais imigrantes e isso, em si, não é mau.

Sim, mas uma coisa são brasileiros e africanos, que são católicos e outra são paquistaneses, que são contra o catolicismo. Cada vez há mais taxistas de turbante a guiar. Nem sequer falam português. Só inglês. Como é que esta gente pode guiar em Portugal? Cá para mim, eles compram a carta de condução e depois andam no trânsito e não conhecem a cidade...

- Ouvem-se muitas estórias dessas, mas não há provas. Além disso, todos os taxistas têm de fazer um curso, exames. Os taxistas não podem guiar sem carta. 

Mas, eles têm carta. Diz-se que vão tirá-la a Itália, que é mais barato e mais fácil e depois vêm para aqui trabalhar. Cá para mim, estão a preparar alguma...

- Não acredito nisso. Acha mesmo que estão a preparar algo? Ou só querem trabalhar onde pagam mais? Não se esqueça que, nos países donde vêm, ganham ainda menos do que em Portugal, onde já se ganha pouco. Além disso, vai haver muito controlo policial nesses dias. Será difícil fazer um atentado...

Difícil não é. Não tem de ser ao Papa. Pode ser contra os peregrinos que vão estar cá. Eles odeiam os católicos...

- Não acredite nisso. A maior parte dos crentes, sejam católicos, muçulmanos ou de outras religiões, são gente pacifica que vem para cá trabalhar, porque nos países deles não têm trabalho. Por isso é que as pessoas emigram. Como nós fazíamos há 50 anos atrás. Não se esqueça que somos um país de emigrantes. Ainda bem, que estamos a receber imigrantes. Se não forem eles a fazer os trabalhos, que nós não queremos, quem os fará? O problema é que muitos deles acabam por ir embora ao fim de pouco tempo, porque não ganham o suficiente e preferem ir para Inglaterra ou para outro país do Norte da Europa, onde podem ganhar mais. Portugal, para a maior parte dos asiáticos, é apenas um ponto de passagem. Era bom que cá ficassem, era...

Não sei, não sei. Eu cá não confio muito. Cada vez há mais problemas com os paquistaneses. Não viu a reportagem da CMTV? 

- Há canais que nunca vejo. Esse, por exemplo. Nos canais que costumo ver, as reportagens sobre estrangeiros imigrantes só mostram a miséria e a exploração em que vivem. Por exemplo, paquistaneses e nepaleses, nas estufas de Odemira. Já viu em que condições é que vivem? Trabalham de sol a sol, na apanha de morangos e de mirtilos. Ganham 2,5 euros à hora, dormem em colchões por turnos e ainda pagam 100 euros cada! Isto, sim, é uma vergonha, mas ninguém se preocupa com a situação. Ninguém vê, portanto não existe...   

Pois, também já ouvi falar nisso, mas nunca fiando...

- Bom, já chegámos. Pode parar por aqui. Quanto devo?

São 10 euros e 25, mas não tenho trocado. Paga só 10 e um dia dá-me o resto...   

2023/05/06

Os Salvadores do Regime

Marcelo tem, desde há muito, uma estratégia que nunca escondeu: ajudar o seu partido (PSD) a chegar ao poder ou, no limite, ajudar à construção de um "bloco central de interesses" com outro nome (uma espécie de "união nacional" refundada). 

Percebe-se bem, porquê: é preciso que o poder "não caia na rua" e nada melhor para manter o regime (leia-se, o "sistema") do que fazer alianças ao centro. No fundo, "é preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma" (Lampedusa). 

Esta tem sido, de resto, a lógica da partidocracia que nos governa desde 1976 (PS e PSD em alternância). 

O PS que, nos últimos 23 anos governou 16, está há demasiado tempo no poder. Ao contrário, o PSD, que "só" governou 7, está há demasiado tempo fora dele (leia-se, sem poder ir ao "pote"). 

Quem governa, para mais em maioria absoluta (como é o caso) tem maior acesso ao Orçamento de Estado. Logo, mais poder financeiro o que, entre outras coisas, permite alimentar as clientelas partidárias (eu dou-te algo, se me deres algo em troca). Chama-se patrocinato. Não perceber isto, pode ser fatal, pois pensamos sempre que uns são "melhores" que outros. 

São "melhores" para quem? Para os seus acólitos. Esta é a questão central. 

Que o PS (Costa e não só) não soubesse isto e tivesse apoiado explicitamente a candidatura de Marcelo à presidência, quando tinha uma candidata do partido (Ana Gomes) na corrida presidencial, parece ainda mais "estranho". Ou talvez não...

Não sabiam que Marcelo, o comentador, ia intrometer-se na governação, sempre que pudesse? Do que é que estavam à espera?   

O governo está a provar do seu próprio veneno e não pode queixar-se. 

2023/05/04

Escorpiões e Bodes Expiatórios

Há uma semana que o país discute o famigerado "Caso Galamba". Não é caso para menos (passe a redundância). Uma trapalhada inacreditável, que não lembrava ao careca! Logo agora, quando o país (nós todos) precisamos de tranquilidade, contas certas (que a vida está cara) e dinheiro para gastos. 

Com uma maioria confortável, três anos de governação pela frente e apoios da UE para gastar (cerca de 60.000 mil milhões de euros, entre Programas de Coesão e PRR), o governo parece ter ficado deslumbrado com a conjuntura e (a exemplo daqueles totalistas do euromilhões que não sabem o que fazer ao dinheiro ganho) promete tudo a todos, sem qualquer estratégia a longo prazo. Pior: não faz reformas estruturais e desperdiça o tempo (tempo é dinheiro!) em manobras tácticas e confrontos desnecessários com uma Presidência da República que, à falta de oposição credível, faz ameaças subliminares, que mais não visam do que criar factos políticos, uma especialidade do comentador Marcelo que, ás vezes, também é presidente. 

Como se não bastassem os "casos e casinhos" dos últimos meses (que levaram à demissão de mais de uma dezena de funcionários de topo por casos de corrupção e gestão danosa em vários ministérios), surge agora o caso do computador "roubado" (a expressão é de António Costa) que, supostamente, terá informação classificada sobre o "dossier" TAP. Estando a TAP sob a tutela do Ministério dos Transportes, o ministro da pasta, ou alguém por ele, decidiu reaver o famigerado computador (do estado) prevendo o pior. 

Esta é a versão oficial. Dadas as peripécias que envolveram a recuperação do dito utensílio (ao que parece com cenas de pancadaria, dignas de um "western") a coisa transpirou para o exterior e, a partir desse momento, a Comunicação Social nunca mais largou o "osso" (leia-se Galamba) que, mal ou bem, se tinha posto a jeito. Marcelo intervém, exige a demissão de Galamba. Costa pede tempo para pensar, ouve Galamba e resolve mantê-lo em funções, desafiando desse modo o conselho do presidente. 

Escusado será dizer que, a exemplo de outras "novelas", também esta é acompanhada e espremida pela Comunicação Social a que temos direito. Não há noticiário ou rubrica, que não lhe dedique largas horas e páginas há mais de uma semana. Uma telenovela. Pior: não há demissões, nem do ministro Galamba, nem do governo. Isto, assim, não tem graça nenhuma. O "jornalismo" a que temos direito, não se conforma. Então, não há sangue?   

Para alguns sectores, a decisão de Costa mostrou "coragem". O PM estaria agastado com as intromissões do PR e resolveu "esticar a corda", numa bravata que pode sair cara. Já Marcelo, o "escorpião" da história, sente-se desautorizado e anunciou uma comunicação ao país. Esta noite. 

À hora a que escrevemos, não sabemos o desfecho. Prognósticos, só no fim do "jogo". 

A Marcelo basta esperar que o governo continue a "dar tiros nos pés". Pela amostra deste primeiro ano de governação socialista, não será difícil, já que a equipa governamental é a mesma (fraquinha) e Costa ficou refém da sua estratégia (agora, é mais difícil remodelar). 

Dois tácticos, sem qualquer visão a longo prazo para o país. Estão bem um para o outro.

2023/04/24

O "25 de Abril", o Brasil, Lula e Chico

Após sete anos de interregno, Portugal e Brasil voltam a reencontrar-se no âmbito das Cimeiras Oficiais entre os dois países. A última Cimeira, que juntou o (então) presidente brasileiro Michel Temer e o primeiro-ministro português António Costa, teve lugar em Brasília no 1º dia de Novembro de 2016. Nessa Cimeira (a 12ª), foram acordados 5 protocolos de cooperação entre ambos os governos.

Desde então, as Cimeiras, destinadas a fortalecer os acordos de cooperação entre os dois países, foram interrompidas unilateralmente por Bolsonaro (2018-2022) e pela pandemia Covid (2020-2022). 

Lula da Silva, que ainda antes de tomar posse tinha anunciado retomar as Cimeiras, concretiza este objectivo na primeira visita que faz a um país europeu. Esta é uma boa notícia, que deve ser saudada por todas as forças democráticas portuguesas e brasileiras, interessadas em fortalecer a amizade entre os dois países e, dessa forma, contribuir para uma melhor cooperação bilateral, no campo político, social e económico. Era tempo do Brasil voltar à ribalta internacional, após os "anos de chumbo" da governação   Bolsonaro (um fascista assumido), que condenaram o país ao isolamento diplomático de um estado-pária.

Lula da Silva que, com todas as suas limitações e defeitos, é um político experimentado e reconhecido mundialmente, viu aqui a oportunidade de relançar o Brasil nos Fora internacionais (é a economia, estúpido!), iniciando de imediato um périplo mundial, que passou pelos EUA, pelos países do Mercosul, pela China e, agora, pela Península Ibérica.

Em Portugal, o presidente brasileiro assinou 13 acordos de cooperação, nas áreas das agências espaciais, de cinema e produções áudio-visuais, equivalências em estudos básicos e médios, equivalência de cartas de condução, produtos farmacêuticos, minérios, produtos industriais e agrícolas, e.o.

Antes de partir, porém, Lula da Silva assistirá ainda às cerimónias oficiais do 25 de Abril no Parlamento Português. Hoje, será o dia da entrega do Prémio Camões 2019, o mais alto galardão literário da língua portuguesa, ao músico e escritor Chico Buarque da Holanda. 

Para o Chico, um dos cantores da nossa vida, a singela homenagem na data que inspirou esta canção:

"Foi bonita a festa, pá/Fiquei contente/E inda guardo renitente/Um velho cravo para mim/Já murcharam tua festa, pá/Mas certamente/Esqueceram uma semente/Nalgum canto do jardim/Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também quanto é preciso, pá/Navegar, navegar/Canta a Primavera, pá/ Cá estou carente/Manda novamente/Um cheirinho de alecrim".

Obrigado Chico. O cravo não murchou. A semente está cá. O Fascismo não passará.

2023/04/03

Costa, o discurso de Calimero e a habitação

Na passada semana, o primeiro-ministro deu mais uma entrevista, agora por ocasião do 1º aniversário da tomada de posse do actual governo. Entre os diversos temas abordados, a habitação mereceu especial atenção, dada a crise no mercado de arrendamento e as medidas propostas pelo governo para combater a falta de casa nas principais cidades do país. 

Das várias medidas anunciadas, a limitação do número de licenças para AL (alojamento local) nos bairros de Lisboa e Porto (as cidades mais turísticas), assim como a obrigatoriedade dos senhorios colocarem as casas devolutas no mercado de arrendamento, foram as mais polémicas. Por outro lado, o governo espera poder construir centenas de novas casas ao longo da legislatura com as verbas do PRR, o que se afigura claramente insuficiente para as necessidades da população, nomeadamente os mais jovens que procuram casa e não têm meios de pagar as rendas exorbitantes pedidas por senhorios e fundos imobiliários abutres.

São muitos os factores que explicam a falta de casas nas principais cidades portuguesas (já que não faltam casas no interior). Desde logo a diminuição de novas construções (enquanto que, até à ultima década se construíam 800 000 casas a cada dez anos, na última década só se construiram 100 000); depois, o abandono de muitos prédios nos centros históricos, posteriormente adquiridos por fundos imobiliários que os transformaram em Alojamentos Locais com vista a rentabilizar imóveis para o turismo; finalmente, a nova Lei de Arrendamento, datada de 2012 (a famigerada "Lei Cristas") que veio liberalizar um sector que estava "congelado" há décadas. Como não se construiram casas em número suficiente, a procura tornou-se maior que a oferta e os donos dos prédios puderam especular com os preços. Actualmente, o valor do metro quadrado em Lisboa, está ao nível de cidades como Madrid ou Milão, com rendas médias de 900 euros nas principais cidades. Rendas incomportáveis para uma família portuguesa, já que os ordenados, em média, não ultrapassam os 1000 euros/mês.

De acordo com os números mais recentes, só em Lisboa e Porto, há 26 mil pedidos de casas municipais, enquanto as casas disponíveis são apenas 700! A grande Lisboa, a região mais afectada, concentra 70% das famílias em carência habitacional (in "Expresso" d.d. 24 de Março). 

Dramática, a situação da habitação, já que toda a gente percebe que, a curto prazo, não haverá uma solução estrutural para o problema. Seriam necessárias milhares de casas, como forma de baixar os preços no mercado de arrendamento. Ainda há dias, na televisão, Victor Reis (arquitecto especializado em urbanismo e reabilitação) dizia que as medidas, anunciadas pelo governo, não iam surtir efeito, pois não é com cinco mil ou dez mil casas que se resolve o problema. Eram necessárias cem mil, para haver efeito nos preços. Reis deu como exemplo a Suécia onde, nas décadas de setenta e oitenta, foram construídas 1 milhão de novas habitações, para resolver estruturalmente o problema de falta de casas. Obviamente que a Suécia é um país rico, mas esse é apenas um aspecto da questão. Na Suécia, como na maioria dos países desenvolvidos da Europa, pensa-se a longo prazo. Para além de ricos, os suecos são organizados. Por isso, também são ricos. Faz-se prevenção, em vez de reacção (o mal português). Quem pensa este país a 10 ou 15 anos? Ninguém.

Os principais partidos do poder (PS/PSD) estão mais interessados em agradar às suas clientelas do que em resolver os problemas reais da população. Os construtores civis (Mota-Engil, Teixeira Duarte, etc.) candidatam-se aos apoios para a construção e os governos contratam-nos, muitas vezes com ajustes directos. Como é sabido, a maior parte das obras públicas em Portugal "derrapam" (vá lá saber-se porquê...) sendo que uma percentagem dos custos reverte para as campanhas partidárias. A construção civil é, historicamente, o maior financiador dos partidos (em Portugal e não só...). É por isso que muitos governantes, quando deixam as suas funções, são convidados para as administrações das construtoras (ex: Ferreira do Amaral na Lusoponte, Jorge Coelho e Paulo Portas na Mota-Engil...). São as chamadas "portas giratórias". Trata-se de patrocinato (se me ajudares, eu protejo-te) ou, nas sábias palavras de Don Corleone: "I'll make you an offer that you can't refuse".

Foi contra este estado de coisas, que em diversas cidades do país, dezenas de milhares de pessoas (a maior parte jovens) desceram à rua, a exigir habitação a preços razoáveis, um direito consignado constitucionalmente. 

O mais ridículo disto tudo, foram, no entanto, as declarações de Moedas (um "tonto") que perante as manifestações em Lisboa, dizia aos jornalistas ser pela habitação, mas não concordar com manifestações ideológicas (como se ele não tivesse uma ideologia). Ainda hoje, num canal televisivo, outra comentadora afinava pelo mesmo diapasão, dizendo que a manifestação de Lisboa (durante a qual se verificaram algumas confrontações entre a polícia e os manifestantes), não era pela habitação, mas anti-capitalista (!?). Pois era. Não tinham percebido?      

2023/03/28

Sevilha: santos, carrascos e vítimas

A exemplo de anos anteriores, Sevilha prepara a Semana Santa, um dos seus mais famosos "ex-libris" e, certamente, a mais importante festividade religiosa de toda a Espanha. 

Na cidade, engalanada para o efeito, constroem-se apressadamente as últimas tribunas, por onde passarão os cortejos de mais de cinquenta irmandades, enquanto nos bairros decorrem os ensaios gerais das bandas de música e dos voluntários que transportarão os respectivos andores. Um trabalho hercúleo, se pensarmos que cada andor, entre imagens descomunais e parafernálias conjuntas, pode pesar mais de uma tonelada. São grupos de 10 a 20 jovens, que alternam no transporte dos santos, enquanto duram as procissões, ao longo de vários quilómetros. Uma verdadeira penitência, na acepção da palavra, a que não se recusam devotos de todas as idades e estratos sociais, em perfeita comunhão de festa e religiosidade pagãs. 

Paralelamente, a população, vê-se confrontada com outros problemas bem mais térreos e urgentes, que não têm parado de aumentar nos últimos anos. É o caso da saúde, cujos serviços têm vindo a deteriorar-se de ano para ano, consequência dos custos e da privatização do sector (lá como cá!) agravados pela recente epidemia, cujas sequelas continuam a fazer sentir-se entre as camadas mais desfavorecidas, confrontadas com a falta crónica de pessoal médico e as longas esperas nos estabelecimentos hospitalares.

A insatisfação dos utentes, mas também dos corpos clínicos, com o actual estado da saúde, gerou uma onda de contestação em toda a Andaluzia que, no passado sábado, encheu as ruas em 11 cidades da região. Só em Sevilha, a capital, desfilaram mais de 60 000 pessoas, convocadas pela plataforma "Marea Blanca" (Maré Branca), constituída por diversos sindicatos, partidos políticos e organismos particulares de apoio às reivindicações dos manifestantes. Um longo desfile, de mais de duas horas, que percorreu as principais artérias da cidade e terminou junto ao palácio de São Telmo (Presidência do Governo Andaluz) onde foram escutadas as principais reivindicações da plataforma, sob o lema "Saúde Pública de Qualidade!". Um exemplo significativo da mobilização popular existente que, de resto, é visível em todo o país, onde continuam os protestos. 

De índole diferente, mas não menos significativos, seriam os eventos em memória das vítimas do fascismo que, na mesma semana, decorreram em Sevilha. O primeiro, nas instalações da Fundação Blas Infante, no âmbito do lançamento do livro "La Niña de la Chaqueta Roja" da autoria de Susana Falcón (argentina, exilada em Espanha, durante a ditadura de Videla); e o segundo, no cemitério de San Fernando, por ocasião do enterro dos restos das vitimas de Pico Reja, no ossário criado para o efeito. Momentos de grande significado pela emoção, participação e denúncia de crimes, que apesar de perpetrados no século passado, não expiram nunca, pois a memória é impossível de apagar.

De Blas Infante (1885-1936), o "pai da pátria andaluza", sabemos quase tudo: um ensaísta notável (dele, a primeira versão da Constituição Andaluza), notário, advogado e político, filiado no partido republicano democrático. As suas convicções e militância política, rapidamente ganharam apoiantes entre aqueles que almejavam uma região mais autónoma e os seus adversários, maioritariamente apoiantes da causa falangista. Após a instauração da república espanhola, Infante ocupou diversos cargos como deputado pela sua região, até ao golpe de 1936, quando foi preso e, posteriormente, executado pelas tropas de Franco. Até hoje, o seu corpo nunca foi encontrado, pensando-se que poderá estar enterrado na vala de Pico Reja, a maior vala de toda a Espanha. A Fundação, criada em 1983, dedica-se à divulgação da sua obra e organiza regularmente actividades de índole cultural, com especial enfoque em obras políticas e literárias, como foi a apresentação do livro de Susana Falcón, que contou e.o. com a presença de diversos "diseurs",  da cantora Emma Alonso e do pianista José Manuel Vaquero.


Ontem, dia 27, a manhã seria dedicada à cerimónia do enterro dos restos mortais das vítimas (não-identificadas) da repressão franquista. Um acto, previamente anunciado, uma vez que os trabalhos de exumação, da vala Pico Reja, terminaram oficialmente em Dezembro último. Durante os três anos, que duraram as escavações, foram exumados os restos de 1786 vítimas, que aguardam posterior identificação no laboratório forense de Granada. 

À cerimónia, que contou com a presença do vice-presidente da Câmara de Sevilha, do anterior presidente do município e do Conselho Municipal da Memória, acorreram centenas de familiares de vítimas da ditadura franquista, transportando ramos de flores e cartazes alusivos ao acto. A maior parte, de idade avançada, mas todos eles imbuídos de uma determinação e coragem digna de registo. A cerimónia, após os discursos de representantes de diversas organizações, terminaria com uma singela homenagem à equipa forense Aranzadi, responsável pelas exumações, a cargo de Anartz Ormaza, que bailou um Aurrescu e de Manuel Gerena, que terminaria a sessão com um arrepiante "martinete", cantado em funerais.               

2023/03/05

Se ao menos dissesse alguma coisa de esquerda...

Passou apenas um ano sobre a tomada de posse do governo e nada garante que esta legislatura chegue ao fim. 

De facto, não nos lembramos de um governo que, em pleno "estado de graça", tenha cometido tantos erros em tão pouco tempo. Teríamos de recuar aos últimos anos de Cavaco, Guterres ou Sócrates, como termo de comparação, mas, em todos esses casos, os governos referidos estavam em fim de mandato e, à excepção de Cavaco (que tinha saído um ano antes para se candidatar à presidência da república) nenhum dos outros primeiro-ministros dispunha de uma maioria absoluta. 

O governo actual não só tem essa maioria absoluta (a segunda na história do PS), como dispõe de uma legislatura superior a 4 anos (devido à interrupção da anterior legislatura por causa do chumbo do OE 2021). Temos, portanto, um governo para durar, teoricamente, até Outubro de 2026. 

Se acrescentarmos a estas duas realidades, as verbas que o governo vai receber do PRR (16 000 milhões) e dos programas europeus de coesão 20-20 (em curso até 2023) e 20-30 (mais de 40 000 mil milhões), Portugal poderá receber cerca de 60 000 milhões de euros, até ao fim da década! "Uma pipa de massa!", no léxico de Durão Barroso. A nossa "ultima oportunidade", gritava Costa em todos os comícios em que participou no último Verão (leia-se, "votem em nós que há muito dinheiro para distribuir!"). Um clássico. É assim que se constroem as "clientelas" (redes de "compadrio" e patrocinato), uma característica da cultura mediterrânica, da qual não nos conseguimos livrar.   

Com tanta "massa" para gerir, o governo não esteve com meias medidas e vai de convidar um empresário de sucesso ("independente", como convém nestas coisas) para elaborar um plano para a década, já que sem estratégia não se chega a lado nenhum.  O homem em questão (António Costa e Silva) esmerou-se e, após alguns meses de reclusão, apresentou um projecto-piloto, onde identificava dezenas de áreas de intervenção, consideradas prioritárias para a modernização do país. Até aqui, tudo bem. 

Formado o governo, Costa e Silva foi convidado para ocupar a pasta de ministro da Economia e do Mar, função que continua a ocupar nos dias que correm, ainda que a tutela dos fundos europeus (a "massa" que interessa) esteja nas mãos do ministro das finanças, Fernando Medina (noblesse oblige). 

E é aqui que a "porca torce o rabo". Aparentemente, com boas ideias, mas sem poder gerir o dinheiro à sua disposição, o ministro da Economia vê-se na necessidade de consultar Medina, o verdadeiro "dono do cofre", sempre que deseja aplicar os fundos que, em tese, deviam estar sob a sua tutela. 

Uma contradição que, não poucas vezes, tem levado o ministro a ser criticado pelos seus pares, devido a afirmações extemporâneas em Fora de Empresários e na Comunicação Social. O clássico problema dos "independentes", que não seguem a cartilha partidária, neste caso agravada pela maioria absoluta de um só partido.

Com Medina ao leme, a política financeira do governo prossegue a linha iniciada com Centeno e continuada com Leão: trata-se de "cativar" parte das verbas orçamentadas para que, no fim do exercício fiscal, sobre dinheiro para pagar a dívida pública e diminuir o défice (actualmente 114% PIB e 1,5% do PIB, respectivamente). Foi assim que Centeno, aproveitando uma conjuntura favorável de juros baixos (graças a Draghi, que injectou biliões de euros de capital no mercado, para impedir a especulação) e ao "boom" turístico dos últimos anos (que representa 12% do PIB português), pôde fazer um brilharete: continuar a pagar a dívida e diminuir o défice, por um lado; e compensar a perda de salários e apoios sociais, por outro. Um verdadeiro "dois em um", só possível no governo da "geringonça" (2015-2019). Ou seja, passámos de uma "austeridade de direita" (Passos Coelho), para uma "austeridade de esquerda" (António Costa).

Acontece que, pelo meio, houve uma pandemia (2020-2022) e, neste momento, há uma guerra que dura há mais de um ano. A coisa não está fácil e estas são, certamente, variáveis que o governo não pode controlar. O problema é andarmos há mais de 10 anos nisto ("resgate" financeiro, intervenção da Troika, pandemia, guerra, inflação) e não sairmos da "cepa torta"! Mais, neste momento, a crise social e económica é tão ou mais grave que a de 2011-2015, com a pobreza e as desigualdades a aumentarem diariamente. Basta seguir a Comunicação Social, para confirmar os dados que ilustram esta triste realidade. A pobreza absoluta, medida de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo INE (menos de 600 euros/mês) atinge já 25% da população (2,5 milhões); o ordenado médio nacional, não ultrapassa os 1200 euros; o número de pessoas, dependentes do Banco Alimentar, aumenta todos os dias; o mesmo relativamente à população dos sem-abrigo nas grandes cidades, estimada em mais de 5000 pessoas, só em Lisboa e no Porto! Com o fim das moratórias, regressaram as hipotecas por pagar, agora mais caras devido à inflação (calculada em 8,9% no início deste ano).

Se a situação já é assustadora nos estratos sociais mais desfavorecidos, na chamada classe média não é muito melhor. Dado que os aumentos não acompanharam a inflação, a perda de poder de compra neste grupo de rendimentos, é real. Basta pensar que o governo aumentou em média os salários em 5%, quando a inflação já atinge quase os 9%! Ou seja, os consumidores perdem, em média, 4% do seu poder de compra todos os meses. Muitos produtos de primeira necessidade (alimentação, electricidade, gasolina, gás) tiveram auments de 20%! Podíamos continuar, com os preços da habitação nas grandes cidades, inflacionados com o "boom" turístico e com os "vistos gold" (estes concedidos a estrangeiros que invistam um mínimo de meio-milhão na compra de uma habitação). 

É contra este estado de coisas, que diferentes grupos da sociedade têm vindo a protestar em manifestações cada vez mais participadas: os professores, os médicos, os enfermeiros, os moradores dos bairros periféricos, os funcionários da CP e do Metro, os funcionários da Autoridade Tributária e dos Tribunais, entre outros...

Como se isto não bastasse, temos os sucessivos escândalos que, semanalmente, abalam o governo, com demissões em cascata de autarcas, secretários de estado e ministros, para não falar da corrupção generalizada que atinge transversalmente toda a sociedade portuguesa e do pagamento de indemnizações pornográficas a gestores incompetentes. Com este cenário, começam a estar reunidas as condições para a chamada "tempestade perfeita", que neste caso atinge toda a sociedade.

Perante isto, o que faz governo? Entretém os parceiros sociais (sindicatos e patrões) com reuniões intermináveis e inconclusivas, que deixam toda a gente insatisfeita, continuando a empurrar os problemas com a barriga, refugiando-se na "mantra": "há que manter as contas certas". 

Se os ministros, não têm muito mais para dizer, já António Costa (demagogo-mor do reino) prossegue o seu caminho europeu do estrelato, viajando para Bruxelas e para Kiev (a nova "meca") onde promete helicópteros russos sem peças, para combater fogos (!?) e tanques "Leopard" avariados, a Zelensky. Tudo, sempre com um sorriso na cara, não vão as pessoas levá-lo a sério...

Sempre que Costa fala, lembra-me aquele personagem, interpretado por Nanni Moretti em "Aprile", durante um debate televisivo entre Berlusconi e Massimo D'Alema (primeiro-ministro italiano social-democrata), quando comenta: "D'Alema, diz qualquer coisa de esquerda, mesmo que não seja de esquerda, ao menos civilização..."

2023/02/24

"Pico Reja", a vala da vergonha

Foi esta semana encerrada a vala "Pico Reja", situada no cemitério San Fernando de Sevilha, após três anos de escavações e exumações de vítimas da ditadura franquista. Uma conclusão formal dos trabalhos, uma vez que a equipa encarregada das escavações deu por terminada a identificação dos corpos encontrados.

Na cerimónia, estiveram presentes, para além de representantes da "Associação para a Recuperação da Memória Histórica" (ARMH), o edil Manuel Muñoz (PSOE), o vice-conselheiro da cultura Victor Manuel González e Juan Manuel Guijo, responsável pela equipa de 20 antropólogos forenses e técnicos que, durante estes três anos, analisaram, um por um, mais de um milhão e meio de ossos.

"Pico Reja" é o maior ossário de vítimas de Espanha e a maior vala comum da Europa Ocidental, segundo a Sociedade de Estudos Aranzadi, que coordenou a equipa de técnicos forenses. Esperavam encontrar os corpos de 850 vítimas da Guerra Civil (1936-39) mas, afinal, contabilizaram 1.786 (ainda não identificados, mas considerados como tal pela disposição em que apareceram os restos, os sinais de violência ou certos distintivos e pertences). No interior da vala, na qual houve enterros anteriores e posteriores à guerra, foram achados restos de 10 073 pessoas, dez vezes mais do que se pensava ao princípio.

Segundo Guijo, "a complexidade do trabalho foi brutal, pois não sabíamos se podíamos realizá-lo". Pelas suas mãos passaram homens e mulheres com evidentes sinais de tortura, balas na nuca, mãos atadas atrás das costas, articulações partidas...Para além das vítimas do franquismo, também foram exumados os restos de centenas de pessoas que, ou estavam enterradas antes da guerra nesse ossário ou foram sendo enterradas posteriormente e, geralmente, sem nenhum escrúpulo, amontoando cadáver sobre cadáver. 

Durante o tempo em que decorreram as exumações, foram enviadas 1037 amostras de ADN ao laboratório de referência da Universidade de Granada, dependente da Junta da Andaluzia. No entanto, até ao encerramento da vala, não foi obtida nenhuma identificação, nem através dos restos ósseos, nem através de alguma má formação ou características antropomórficas, descritas pelos familiares. Para Carmen e Paquita, activistas da ARMH, o laboratório de Granada constitui a última esperança de encontrar provas de que seu pai, Rafael (conselheiro da autarquia de Sevilha, desaparecido a 8 de de Agosto de 1936), poderia estar enterrado em Pico Reja.  

Uma história de horror, a juntar a milhares de outras, conhecidas e reveladas nos últimos 20 anos, através do trabalho iniciado pela Associação de Vítimas, que hoje se estende a todo o território espanhol. Com o encerramento de Pico Reja, o trabalho de exumações não terminou em Sevilha. Durante a cerimónia, o edil Manuel Muñoz anunciou a abertura de novas escavações, agora na vala Monumento, a poucas dezenas de metros de Pico Reja. De acordo com estimativas da Associação, existirão cerca de 115 000 corpos em valas comuns, enterrados em todo o país. A Espanha é, depois do Cambodja de Pol Pot, o segundo país com mais valas comuns em todo o Mundo. 

2023/02/22

Sevilha recorda Saura

Sevilha foi, na passada semana, a cidade escolhida para a entrega dos prémios "Goya", os mais cobiçados galardões do cinema espanhol, outorgados pela Academia de Cinema do país vizinho. 

Para esta 37ª edição, transmitida em directo para toda a Espanha, engalanou-se o auditório do palácio de Congressos "Fibes" (capacidade 2000 lugares) por cujas passadeiras desfilaram os nomeados, com a pompa e a circunstância que a cerimónia sempre exige. Um pouco a exemplo dos "óscares" de Hollywood ou dos "Bafta" britânicos, ainda que mais formais e sem o "glitter" que caracteriza os prémios americanos. 

Este ano, para além dos prémios habituais nas diversas categorias a concurso, seria atribuído um "Goya de Honra" a Carlos Saura, pela sua obra. O prémio (um busto de Goya em bronze) foi-lhe entregue em casa, previamente, dado o seu estado de saúde, já bastante debilitado.

Acontece que, na véspera da cerimónia pública, Saura viria a falecer. O que teria sido a consagração de uma carreira de 70 anos, acabaria por tornar-se uma homenagem póstuma, como póstumo foi o "Goya" que a viúva, e dois dos seus filhos, receberam das mãos do presidente da Academia. 

Com a morte de Carlos Saura (1932-2023) desaparece um dos maiores cineastas europeus. Gregorio Belichón, jornalista cultural, especializado em cinema, do "El País", não hesita em classificá-lo como um dos quatro grandes nomes do cinema espanhol, a par de Buñuel, Berlanga e Almodóvar, cujas obras refletem a história de Espanha do último século.

Ainda que grande parte dos seus filmes, não seja conhecida em Portugal (vá lá saber-se porquê...) destacamos alguns dos títulos mais emblemáticos da sua extensa obra (mais de 50 títulos): 

Os filmes realizados durante o período franquista: "Cuenca" (1958), "Los Golfos" (1960), "La Caza" (1966), "Pippermint Frappé" (1967), "El Jardin de las Delicias" (1970), "Ana y los lobos" (1973), "La Prima Angélica" (1974), então sujeitos ao crivo da censura.

Os filmes da transição pós-democrática: "Cria Cuervos" (1976), "Elisa, vida mia" (1977), "Mamá cumple 100 años" (1979), "Deprisa, deprisa" (1981), que lhe granjearam notoriedade internacional.

Os filmes de "baile flamenco", iniciado com "Bodas de Sangre" (1981), "Carmen" (1983) e "El Amor Brujo" (1986), uma das suas grandes paixões;

E, finalmente, a sua época mais eclética, com "El Dorado" (1988), "La Noche Escura" (1989), "Ay Carmela!" (1990), "Sevilhanas" (1992), "Flamenco" (1995), "Taxi" (1996), "Tango" (1998), "El Séptimo dia" (2004), "Fados" (2007), "Flamenco, Flamenco" (2010) e "Jota" (2016), e.o. 

Sobre "Fados" (o filme) não resisto a contar um pequeno episódio. O realizador, convidado pela Câmara Municipal e pelo Turismo de Lisboa, para dirigir um filme sobre a canção portuguesa, veio ao Museu de Fado, falar sobre o projecto. Estávamos em 2005 e ainda não havia argumento. Lembro-me de ter perguntado se pensava fazer um filme baseado numa história original ou seguir o modelo já experimentado em "Sevilhanas" e "Flamenco", documentários onde os intérpretes se limitam a dançar ou a cantar perante a câmara, sem qualquer ligação entre si. Saura, achou a pergunta interessante ("já vi que conhece os meus filmes..."), mas respondeu que ainda não tinha decidido. Para quem não viu o filme, a fórmula é a mesma dos documentários referidos. Do ponto de vista formal, um filme perfeito: as canções, os cantores, os músicos, a fotografia (do grande Vittorio Storaro). Tudo bom. Só não percebemos, o que estão lá a fazer cantores como Miguel Poveda, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lila Downs ou Lura (!?). A menos que esta tenha sido uma exigência da produtora (espanhola) que pagou parte substancial do filme. De todos os filmes de Saura que vi, este é o que menos gosto... 

Finalmente, o grande vencedor dos "Goya" deste ano: "As Bestas" do realizador Rodrigo Sorogoyen, que levou para casa 9 estatuetas: melhor filme, melhor realizador, melhor actor principal (Denis Minochet), melhor actor secundário (Luís Zahera), guião original, montagem, fotografia, música e efeitos sonoros. Um filme denso e inquietante, sobre a propriedade rural, conflitos familiares, despeito, inveja, xenofobia e violência, num lugar ermo da Espanha profunda. Filmado na Galiza, em imagens de rara beleza, o filme prende-nos do primeiro ao último minuto, não nos largando muitas horas depois. "Un filmazo". Assim os distribuidores portugueses, o descubram e exibam. 


Foto- Anna Saura Ramón junto com o seu pai Carlos Saura- GTRES/GTRES

2023/02/11

Taxi Driver (26)

Então, para onde é a viagem?

- Para Sete-Rios, terminal de autocarros.

Vai para longe?

- Para Faro. Costumo ir de comboio, mas a CP está em greve...

Faz bem, com a CP nunca se sabe. Os autocarros são mais fiáveis.

- Talvez, mas prefiro o comboio. É mais cómodo, podemos esticar as pernas, ir até ao bar, enfim é melhor. Além disso, a viagem dura exactamente o mesmo tempo...

Quanto é que dura a viagem de comboio? 

- 3 horas e um quarto. O mesmo que o autocarro. A única diferença é que o comboio pára em 9 ou 10 estações até a Faro e o autocarro é directo. Se o comboio fosse directo e houvesse uma linha dupla, poderia chegar a Faro em 2 horas e meia. Seria uma grande economia de tempo...

Eu sei bem o que isso é. Tenho uma pequeno apartamento no Algarve, que alugo em "time-sharing" e todos os anos vou lá passar umas semanas. Os comboios no Algarve são uma desgraça! Comboios? Aquilo nem comboios são! Já vou para  Algarve há mais de 50 anos e as automotoras ainda são as mesmas! Só existe uma via e têm de esperar em Faro, para deixar passar as automotoras de sentido contrário. Não se percebe, sendo o Algarve a província mais turística de Portugal. Já era tempo de modernizarem a linha. 

- Conheço bem a situação. Então, quando temos de mudar em Faro, para ir a Vila Real de Santo António, parece que mudámos de país. A linha passa a rasar o casario, as automotoras têm de abrandar e param em todas as estações. O problema é que, a partir do momento em que Portugal aderiu à CEE (já lá vão 36 anos) o país deixou de investir na ferrovia. O dinheiro dado pela Europa, para modernizar as vias de comunicação, foi maioritariamente para a rodovia (a chamada "política do betão"). Os governos estão mais interessados em investir em auto-estradas, pois dá mais dinheiro a ganhar às construtoras que, depois, cobram as portagens. Desde então, foram encerrados mais de 1200km de ferrovia! A que resta, pouco ou mal foi modernizado. O mesmo se passou com os comboios que ficaram a apodrecer no Entroncamento e noutros locais do país.

Pois foi. Nunca deviam ter encerrado a Sorefame! E, depois, venderam os comboios ao desbarato! Sabe para onde foram os comboios de Portugal? Para a Suíça! Eu fui emigrante, na Suíça, durante 15 anos. Sei bem. Também lá tiveram uma grande discussão sobre as auto-estradas (eles fazem referendos para tudo) e deram preferência aos comboios. Sabe o que fizeram na Suíça? Abriram túneis através dos Alpes para passarem os comboios. Os camiões entram directamente nos comboios de mercadorias e são transportados por linha férrea. Muito mais rápido e eficiente. Além disso, causam menos poluição.   

- Conheço mal a Suíça e nunca lá andei de comboio, mas, depois da França, sei que tem uma das melhores ferrovias da Europa. Não sabia que os nossos comboios tinham ido para lá. O mesmo se passa ao contrário, pois segundo li, muitos dos comboios que estavam "encostados", eram de origem espanhola e suíça e, agora, como não temos comboios modernos, estão a renovar essas carruagens e automotoras, para pô-las em linhas do interior, no turismo no Douro, etc...

Fazem muito bem, mas andam sempre atrasados. Não se percebe estes políticos! 

- Perceber, percebe-se. Eles não são todos incompetentes, só que as "prioridades" são outras. Dá muito mais lucro investir na construção civil e em auto-estradas, do que na ferrovia. Dessa forma, obrigam as pessoas a comprar carro e a gastar dinheiro em gasolina e em portagens, que geram mais impostos. Os comboio, são menos lucrativos. Não sei se sabe, mas grande parte dos contratos de construção, são por ajuste directo. As empresas que os ganham (a Mota-Engil, a Teixeira Duarte, etc...) inflacionam os preços, pois uma percentagem do lucro reverte para os partidos do poder. Por alguma razão há sempre "derrapagens" nos orçamentos. O maior financiamento dos partidos, vem da construção. Os partidos beneficiam as construtoras e estas retribuem, financiando as campanhas partidárias. Sempre se fez assim e foi assim que a Máfia italiana começou. Há mais de um século. Uma velha prática, que funciona sempre.

Pois é. Agora, é o que senhor acertou, É isso mesmo. Já vi que é uma pessoa informada e não se deixa enganar. Estamos nas mãos de piratas!

- Pois estamos. Bom, chegámos. Quanto é que lhe devo? 

 São 8 euros, bagagem incluída. Continuação de bom dia e boa viagem até ao Algarve. 

2023/02/07

O país de emigrantes que trata mal os imigrantes

Em Portugal, só nos lembramos de Santa Bárbara, quando fazem trovões.

Tem sido sempre assim e continuará a ser. Está nos genes. Somos um povo reactivo, mais do que proactivo. Gostamos de contemplar, mas não de actuar. Somos criativos, mas pouco organizados. 

No último fim-de-semana, o país "acordou" literalmente para um fenómeno existente e identificado há anos. Não faltaram vozes de espanto e de condenação. Depois do mal feito, trancas à porta. A hipocrisia lusitana, no seu melhor. 

Aconteceu em Olhão e na Mouraria, mas podia ter acontecido noutra cidade ou noutro bairro do país. 

Na primeira cidade, foram espancados dois jovens imigrantes nepaleses, recentemente chegados a Portugal, quando regressavam do seu trabalho diário. A agressão só foi conhecida, porque os principais canais televisivos transmitiram um vídeo da ocorrência, filmado pelo próprio grupo que cometeu o crime. Uma barbaridade sem nome, que durou minutos, sem que um único morador da rua acudisse aos desgraçados, apesar dos gritos de um deles, pontapeado, chicoteado e a quem queimaram o cabelo com um isqueiro. Inominável. Onde já se viu isto? 

No bairro mais multicultural de Lisboa, morreram 2 pessoas e 14 ficaram feridas, num incêndio que eclodiu numa loja do rés-do-chão, onde dormiam 16 pessoas! Eram todos estrangeiros, a maioria asiáticos, de nacionalidade bengali, paquistanesa e indiana. Aparentemente, o fogo teria sido provocado por um fogareiro a gás, já que os inquilinos cozinhavam no quarto onde dormiam (um T0, de dimensões reduzidas). 

No primeiro caso, os moradores de Olhão confirmaram as agressões e disseram mais: estas agressões não são uma excepção, mas acontecem com frequência (mais de 15 nos últimos tempos). Sempre contra estrangeiros, jovens imigrantes, que não falam português e não ousam queixar-se à polícia, com medo das represálias. No segundo caso, toda a gente da rua sabia, desde os vizinhos aos comerciantes, passando pela polícia e pela junta de freguesia de Santa Maria Maior, mas ninguém faz nada para combater a sobrelotação de casas alugadas por senhorios gananciosos.        

Ou seja, toda a gente sabe, mas ninguém se queixa, toda a gente convive com o crime, mas ninguém protesta. Seja por medo, seja por insensibilidade, seja pela falta de empatia, que tomou conta de nós. 

Foi assim, com o imigrante ucraniano, barbaramente assassinado às mãos da polícia de estrangeiros, nas instalações do SEF do aeroporto de Lisboa; foi assim, com o grupo de trabalhadores asiáticos, nas estufas agrícolas do sudoeste alentejano, que viviam  em condições sub-humanas, "descobertos" após a pandemia do Covid, no concelho de Odemira; foi assim, com o grupo de trabalhadores asiáticos, chantageados e torturados pela GNR do posto de Milfontes; foi assim, com dezenas de timorenses, aliciados para vir trabalhar para Portugal que acabaram a dormir à chuva e ao frio, no Martim Moniz em Lisboa; foi assim, com centenas de refugiados do Mediterrâneo, chegados a Portugal entre 2015 e 2016, que desapareceram sem deixar rasto; é assim, todos os dias, nas instalações do SEF, onde os imigrantes  pobres pagam para obter uma "senha" (!?) e chegam a aguardar anos por uma licença de estadia, única forma de trabalharem legalmente. Sem licença, ficam à mercê de engajadores sem escrúpulos que os exploram no salário e na habitação sem condições. É assim na zona de Arroios, onde se calcula viverem 20.000 estrangeiros e coexistirem mais de 80 nacionalidades. É assim, no eixo de Almirante Reis, onde nos últimos dois anos houve dez fogos, em habitações onde chegam a dormir 20 pessoas, amontoadas em colchões e beliches. É assim, em Portugal, um país de emigrantes no passado e no presente, que hoje necessita de imigrantes para fazerem o trabalho que nós recusamos fazer. Uma vergonha civilizacional. 

Perante este quadro tenebroso, poucas alternativas (soluções) são oferecidas. Toda a gente lamenta, mas não se conhecem medidas concretas para melhorar a situação. Começaram as respostas evasivas e o "passa culpas" habitual. O presidente da CML, promete alojamento temporário a quem ficou sem casa; o presidente da Junta de Santa Maria Maior (da qual faz parte o bairro da Mouraria) diz não caber à Junta solucionar o problema; a presidente da Junta de Arroios, diz conhecer o problema e estar a preparar um levantamento de casos conhecidos; a polícia, diz ser uma assunto do SEF que, por sua vez,  diz ser uma assunto da Segurança Social. Toda a gente se "descarta", à boa maneira portuguesa, mas ninguém resolve nada. 

No meio destes governantes medíocres, esteve bem Marcelo Rebelo de Sousa, que ontem se deslocou a Olhão para conhecer os dois jovens nepaleses agredidos, a quem apresentou desculpas em nome de Portugal. Voltou a estar bem, mais tarde, quando aproveitou a visita à cidade, para dar uma aula de cidadania sobre racismo e xenofobia, a alunos do secundário de Olhão. "Chapeau"! 

2023/02/06

"Pope in Rio"

A história é conhecida e conta-se em poucas palavras:

Em 2018, no Panamá, o nosso país candidatou-se a organizar as próximas "Jornadas da Juventude" em Lisboa, previstas para 2022.

Para surpresa de muitos (os que não sabem como estas coisas se fazem), Portugal ganhou a nomeação. Todos nos lembramos das reacções de júbilo do Presidente da República, presente nas jornadas latino-americanas, após o anúncio do nome de Portugal.

Seguiram-se as manifestações nacionalistas do costume: vinha cá o Papa, com ele viriam mais de 1 milhão de peregrinos, Lisboa seria o "centro" do Mundo durante uma semana e, o evento, traria dinheiro, muito dinheiro, como é habitual nestas coisas...

Começaram a ser programadas as diversas fases do evento. Primeiro, a escolha do lugar: esta recaiu sobre um espaço devoluto, ocupado por contentores, na zona fronteiriça entre Lisboa e Loures. Os presidentes de ambas as autarquias, ao tempo Fernando Medina (PS) e Bernardino Soares (PCP), não escondiam a sua satisfação: o primeiro por poder terminar a obra de requalificação da zona Oriental de Lisboa, iniciada com a Expo'98; o segundo, porque Loures, deixaria de ter contentores na Bobadela, que ocupavam aquele espaço desde a Expo. Foram feitas as fotos da praxe com o presidente da república, tendo por cenário um "outdoor" onde se anunciava o evento e voltaram todos para casa, contentes, já que faltavam 4 anos para as Jornadas e havia tempo...

Entretanto, pelo meio, surgiu a Pandemia Covid, que viria alterar a fase de planeamento. A Igreja, "compreensiva" como sempre, percebeu as dificuldades e concedeu um ano-extra de preparação. Aparentemente, estava tudo em ordem e deixou de falar-se nas "jornadas", excepção feita às reportagens televisivas que iam mostrando a Bobadela, "limpa" de contentores. 

Eis senão quando, a sete meses do evento, uma notícia do "Observador", veio revelar a maqueta idealizada para o palco-altar onde o Papa celebrará a missa principal. Mais do que o modelo proposto, foi o seu preço (5 milhões de euros + IVA) que escandalizou toda a gente. A coisa chegou aos telejornais e pior ficou quando o responsável pela coordenação do evento (o ex-vereador José Sá Fernandes), mostrou uma maqueta mais pequena, por ele aprovada, que custava metade do preço (!?).

A partir daqui, a história é conhecida. Há duas semanas que não falamos de outra coisa. Não fora a guerra da Ucrânia ou terramoto na Turquia, o assunto "palco" seria certamente "manchete" por muitos dias. Pediram-se explicações à igreja, ao presidente da república, às câmaras implicadas no processo, à construtora Mota Engil (responsável pela maqueta) e, inclusive, foi "convidado" um empresário de festivais (Álvaro Covões) para coordenar o evento. Só faltou mesmo, convidar a Medina (brasileira) organizadora do "Rock in Rio" em Lisboa...

Como é habitual nestas coisas, começou o "passa-culpas" (num país onde a culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é verdade?). Nisso, somos especialistas. Carlos Moedas, qual "Presidente da Junta", já veio anunciar que, a partir de agora, será ele o responsável pelo evento. Entretanto, recomeçaram as reuniões, para reestruturar o projecto, com o fim de reduzir custos. De acordo com as últimas notícias, a Mota-Engil irá apresentar um plano mais barato, que dispensa a capela para o Papa rezar (notícia do jornal "Sol")

Esta história de (falta de) planeamento, lembra-me sempre uma anedota que se contava sobre o Inferno dos ingleses e dos portugueses. Os primeiros, encontraram-se com os portugueses e contaram-lhe o sofrimento em que viviam: "sofremos queimaduras terríveis, mergulham-nos em vinagre e atiram-nos com merda o dia inteiro. Como é o inferno português, já que vocês parecem sempre felizes?". Ao que o português respondeu: "É exactamente igual ao vosso, só que há dias em que não há fósforos, dias em que falta o vinagre e dias em que não há merda. Por isso, suportamos melhor o Inferno".  

Faz sentido: haverá Papa, mas não haverá capela.  

2023/01/31

O país está melhor, mas os portugueses estão pior...

O governo comemorou um ano de existência e o primeiro ministro deu uma entrevista para assinalar a efeméride. Uma entrevista evasiva, onde o entrevistador de serviço se prestou ao papel de "caixa de ressonância" do PS.

Nada que espante, já que aos jornalistas cabe interrogar os políticos (governantes ou não) e a estes responderem de acordo. O problema é quando o entrevistado é uma "velha raposa" e o entrevistador um "soft", que faz perguntas e dá as respostas, o que sempre facilita o papel do convidado. 

Depois da maioria absoluta, conquistada há um ano (a segunda da história do Partido Socialista), nada fazia antever um ano tão atribulado para o governo, como este último que atravessámos. Se é certo que há variáveis que o governo não pôde controlar (pandemia, inflação, guerra na Ucrânia) outras há que lhe são favoráveis: o facto de ter obtido uma maioria confortável, ter 4 anos de governo pela frente e ter dinheiro para gastar (programas europeus de coesão 20/20 e 23/30, para além do PRR), num total de cerca de 60.000 milhões de euros, até 2029! Uma "pipa de massa"! 

Mais, após dois anos de pandemia, o país voltou a ter o seu melhor ano de turismo desde 2019 e as perspectivas de crescimento do PIB (em comparação com o período homólogo) são positivas (6,8%). O desemprego continua em baixo (6,7%), a previsão da diminuição da dívida pública é de 122% para 114% do PIB e o deficit ronda os 1,5%. Acresce que a inflação média, apesar de alta (8,9%), revelou-se um "maná" para o governo, já que o IVA arrecadado nas transações comerciais, ajudou a "encher" os cofres do estado, o que permite ao governo mostrar um bom quadro macro-económico. Bom, se é assim (e é assim), porque é que o governo continua a falhar nas principais áreas sócio-económicas da governação? 

Lembremos: 

A saúde continua um caos (com falta de meios e pessoal especializado nos hospitais), o que tem obrigado ao encerramento de unidades de obstetrícia e pediatria, um pouco por todo o país; as filas, nas urgências, não diminuem e, para suprimir as faltas, o governo recorre à contratação de "tarefeiros", os quais são pagos muito acima da contratação colectiva acordada para o sector público;       

A educação, em crise de há dez anos a esta parte, atravessa mais um período turbulento com as maiores manifestações a nível nacional de que há memória, não se vendo fim à vista para a situação gerada; 

A habitação, nomeadamente nas grandes cidades, tornou-se impossível para a classe média, devido aos preços inflacionados por fundos imobiliários e estrangeiros (através dos famigerados "vistos gold"), para além da dificuldade em obter créditos e as taxas de juro praticadas;

Os transportes, nomeadamente a ferrovia, estão caducos, continuando por renovar vias importantes como a ligação a Espanha, da qual fomos isolados por iniciativa espanhola, após a pandemia; 

A nacionalização da TAP revelou-se um "fiasco" e só servirá para revendê-la (leia-se privatizá-la) caso seja recuperada em tempo e valores correspondentes;

As indemnizações milionárias (a administradores falhados) continuam na ordem do dia, não se compreendendo os valores pagos e a "dança de cadeiras" entre ex-CEOs e administradores do estado e empresas privadas;    

Finalmente, a "cereja em cima do bolo": os valores conhecidos para acolher as jornadas de Juventude da Igreja (leia-se Papa) completamente pornográficos, quando comparados com as necessidades vitais da população, após anos de privação e austeridade imposta pelas sucessivas crises a que fomos e estamos sujeitos (resgate, pandemia e inflação). 

Perante este quadro contraditório - com uma situação financeira controlada, uma maioria absoluta para quatro anos e dinheiro a rodos, por um lado; e a pobreza envergonhada, de uma população que ganha, em média, 1200 euros/mês, 25% da qual ganha menos do que 600 euros e 40% passa frio no Inverno - que diz Costa? 

Reconhece os momentos menos bons do último ano (mais de uma dezena de escândalos com ministros, secretários de estado e autarcas) que levaram à demissão do ministro Pedro Nuno Santos, do ex-autarca de Caminha e secretários de estado diversos. Reconhece problemas com o Ministro de Educação, a Ministra da Agricultura, João Cravinho e Fernando Medina, mas desculpa-se com o facto da justiça estar a fazer o seu papel e não caber à política influenciar os processos. 

Mais, diz que houve atrasos nalguns programas e investimentos, o que põe em risco as verbas europeias disponibilizadas para a sua conclusão, mas contrapõe que, apesar de todos estes percalços, o país está a crescer mais do que a média europeia e a situação financeira é estável...

Ou seja, o país está melhor, mas os portugueses vivem pior. Esta não lembrava ao careca. O Costa é um cómico. 


2023/01/11

2023: Ano Novo, Vida Nova?

Começou o ano e, até ver, poucas novidades. 

A guerra não terminou, a inflação aumentou, o fascismo não morreu e a corrupção está viva e recomenda-se. Para piorar a situação, o vírus pandémico reapareceu na China, pelo que não tardará a chegar à Europa...

Sobre a primeira questão: só os ingénuos podiam pensar que uma operação de "conquista territorial" iria terminar em dias, ou mesmo em semanas. Já lá vai (quase) um ano e não se vê fim à vista. Pesem os milhares de milhões, investidos na "defesa do Ocidente," nem a Rússia de Putin desiste dos seus intentos imperialistas, nem a Ucrânia de Zelensky, consegue expulsar os invasores. No meio, uma Europa sem recursos energéticos, sem exército e sem estadistas, incapaz de fazer ouvir a sua voz nos Fora internacionais. Apesar das "boas intenções" e aparente "unidade na acção", que Von der Leyen, Borrell e Stoltenberg continuam a propagar, nada de essencial mudou. Basta seguir o comportamento de figuras como Órban ou Erdogan (o primeiro membro da UE e o segundo membro da NATO) para deixar de acreditar em actos de coesão e lealdade, vindos de dois autocratas que, de democratas, pouco têm. O primeiro, não respeita direitos constitucionais e continua a desafiar e a desrespeitar as regras democratas europeias, que lhe valeram várias repreensões e penalizações da Comissão; o segundo, continua a receber milhões de euros da UE, para impedir a passagem de refugiados para a Europa, enquanto faz negócios com Putin e oferece gás e petróleo russo à Europa (!?). Uns cómicos, uns e outros. Ou seja, nesta guerra, perdem todos: perde a Ucrânia (parcialmente ocupada e destruída); perde a Rússia (o povo russo, entenda-se) sujeita a uma guerra que não escolheu e confrontada com as sanções do Ocidente; perde a União Europeia (dependente de recursos energéticos e alimentares, agora mais difíceis de obter devido às contra-sanções russas). O único país (até ver) que parece ganhar com esta guerra, são os EUA, que vendem armamento, gás liquefeito, petróleo e cereais à Ucrânia e à Europa. Um negócio das arábias! Porque não há "almoços grátis", quando a guerra terminar, serão os norte-americanos que irão "reconstruir" a Ucrânia, com um programa já anunciado como novo "Plano Marshall" (plano de recuperação europeia, após a 2ª guerra mundial.) Também, aqui, nada de novo. Trata-se da aplicação da "Doutrina de Choque", experimentada noutras latitudes (Iraque, Haiti, Grécia, Tailândia, Alemanha de Leste, União Soviética, etc...) onde, após uma catástrofe (guerra, terramoto, tsunami), os "empreendedores" norte-americanos, utilizam a sua capacidade económica e logística, para ajudar a "reparar" os danos. Os empreiteiros fazem fila...      

Porque isto anda tudo ligado, temos mais inflação. Acontece que a inflação, notória antes da guerra, piorou com esta. É natural. Com a pandemia, os preços que estiveram artificialmente congelados (juros, moratórias, etc...), voltaram ao nível previsto e agora, devido às contra-sanções russas, junta-se a especulação habitual em tempos de crise. Entretanto, a presidente do BCE (Christine - j´adore Dior - Lagarde) já decretou um aumento de juros bancários de 2% e anunciou que a coisa não vai ficar por aqui. O pior, são as consequências económicas para o cidadão comum. Apanhado, literalmente, "entre-dois-fogos", perdeu, no último ano, mais de 15% de poder de compra (basta ir ao supermercado) e vê, todos os dias, as taxas Euribor, (calculadas no pagamento das suas hipotecas) subir centenas de euros por mês! Já as medidas, anunciadas pelo governo, para compensar a perda de poder de compra, mostram-se insuficientes, pois os anunciados aumentos de 5%, ficam muito abaixo da inflação prevista. Uma "pescadinha de rabo-da-boca", que os "crânios" das finanças, parecem não ser capazes de resolver. Aparentemente, não há dinheiro para tudo, dizem-nos (Portugal é um país pobre, patati, patatá...). É verdade. Mas, então, se somos pobres e não temos dinheiro para tudo, porque é que insistimos em salvar bancos falidos, aumentamos a nossa contribuição para a guerra (NATO), continuamos a pagar uma dívida odiosa (contraída pelo estado) e queremos à viva força manter o deficit abaixo de 1%?...

O fascismo está de volta. Nunca desapareceu, de resto. O último exemplo, veio do Brasil. Uma horda de bárbaros organizados e pagos pelos inimigos da democracia, resolveram assaltar o "planalto", onde se encontram os símbolos dos "três poderes" brasileiros (o político, o judicial e o legislativo). Um atentado terrorista, contra um governo sufragado e eleito democraticamente pelo Povo, invocando uma pretensa irregularidade que nunca existiu. De resto, as eleições brasileiras, foram amplamente escrutinadas por organismos internos e externos, que confirmaram a transparência de todo o processo. Só débeis mentais poderiam acreditar numa narrativa completamente falsa (as "fakes news" existem), que já tinha sido experimentada nos EUA, pelos acólitos de Trump (outro atrasado mental). Não vingou nos EUA, nem vingou no Brasil. Acontece que, ao contrário da sociedade americana - mais culta, com mais cidadania e mecanismos de transparência (transparency) e prestação de contas (accountability) - a democracia brasileira é frágil. A democracia tem apenas 37 anos e, numa sociedade pouca instruída, onde a desigualdade e os níveis de pobreza extrema são gritantes (33 milhões de pessoas com fome), a corrupção é transversal e a criminalidade mata 60 000 pessoas ao ano, torna-se mais difícil a gestão. Proliferam os interesses corporativos, infiltrados na corporação militar (veja-se a passividade da polícia e dos militares, durante o assalto aos edifícios governamentais), nos grandes agrários (agro-negócios do gado e soja) e nas igrejas evangélicas (populadas por débeis mentais). Estes são os principais bastiões de apoio do psicopata Bolsonaro. No domingo, pareciam "zombies", completamente possessos, espumando pela boca, enquanto eram conduzidos de volta para os autocarros que os transportaram para Brasília. Bolsonaro pode estar morto politicamente, mas o núcleo duro dos seus apoiantes não desapareceu. São fascistas e devem ser combatidos como tal. "Não podemos ser tolerantes com intolerantes", lembrava Popper. Lula e os democratas brasileiros que se cuidem. 

Finalmente, o jornal "Público" de hoje (11.01.23) "puxou" para a primeira página a notícia da detenção de um ex-autarca de Espinho, acusado de corrupção, tráfico de influências e lavagem de dinheiro (mais um!). Desta vez é do PSD. Qual a novidade? O problema é todos os partidos (do poder) terem "telhados de vidro." Por isso, protegem-se mutuamente. A questão da corrupção (é disso que estamos a falar) é transversal à sociedade portuguesa. Uma sociedade profundamente desigual, onde a pobreza, a iliteracia e o medo, continuam enraizados. Uma cultura de séculos, que não mudará por simples decreto ou alterações da constituição. No fundo, os partidos (os políticos) mais não são do que o "espelho" da nação. Se a "média" é má, porque é que os políticos haviam de ser melhores? É como falar de "ética republicana." O que é isso? Ética, tem-se ou não se tem. Não compreender isto e "esperar" que os "nossos" políticos sejam melhores que os da "direita" (ou vice-versa) é pensar que as diferenças ideológicas tornam os cidadãos mais honestos. Uma treta, claro.