2017/03/16

Holanda: da vitória dos liberais à derrota dos populistas


Na Holanda, o partido VVD (direita liberal) venceu as eleições, perdendo deputados (tem agora 31); enquanto o partido PVV (extrema-direita populista) perdeu, ganhando deputados (tem agora 19).
À esquerda, o grande perdedor foi o PvDA (trabalhista), com apenas 9 deputados eleitos; enquanto o partido Groenlinks (Verdes) viu quatriplicar os seus representantes (de 4 para 16) podendo ser considerado o grande vencedor da noite.
Bons resultados, foram igualmente obtidos pelo CDA (democrata-cristão) que tem agora 19 deputados e pelo D'66 (centristas liberais) que obteve 19 lugares. Ambos poderão fazer parte do próximo governo, que necessita de um apoio mínimo de 76 deputados no Parlamento.
Tudo aponta para um longo período de formação governamental, uma vez que, tradicionalmente, não há maiorias absolutas na Holanda e o partido vencedor necessitar agora de 4 ou mais partidos para obter a maioria necessária.
Resumindo: a Holanda irá provavelmente conhecer um governo mais à direita, já que coligação entre os liberais (VVD) e os sociais-democratas (PvDA) deixará de funcionar, devido à estrondosa derrota dos sociais-democratas (perderam 29 lugares). Quanto às hipóteses de Wilders vir a governar, nunca se pôs, uma vez que o "cordão sanitário" criado contra o seu partido, impedia à partida qualquer acordo.
Resta acrescentar que a vitória dos liberais (e da direita em geral) é também uma consequência da recuperação de alguns temas da direita xenófoba e islamofóbica do PVV, como a luta contra a criminalidade atribuida à comunidade muçulmana e aos últimos acontecimentos de Roterdão, quando o primeiro-ministro foi lesto a proibir um comício turco, o que lhe valeu ganhar uma popularidade que estava a perder nas sondagens. A derrocada do PvDA era esperada e deve ser lida como uma penalização dos seus eleitores pelas políticas de austeridade levadas a cabo pelo governo cessante (do qual fazia parte), nomeadamente nos sectores da saúde, no apoio aos idosos, na educação e no emprego jovem. Também aqui, a colagem dos sociais-democratas às políticas neoliberais da direita, não deu frutos e por isso quase desapareceram (efeito Pasok).
Para alguns imigrantes na Holanda (entre os quais um conhecido escritor) que votaram em Wilders por acreditarem estar a votar contra o sistema, uma má notícia: ainda não foi desta que o fascismo passou.        

2017/03/12

Eleições holandesas: teste ao populismo



No ano de todas as eleições, a Europa terá o seu primeiro grande teste de 2017 na Holanda, onde, no dia 15 de Março, haverá eleições legislativas.  
Depois dos resultados, algo surpreendentes, do "Brexit" e da vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, as atenções viram-se agora para a Europa que conhecerá, este ano, três actos eleitorais considerados determinantes para o futuro europeu: na Holanda, em França e na Alemanha, todos países fundadores da União.   
No fundo, trata-se de saber se os resultados do Reino Unido e dos EUA, ainda que por razões diferentes, confirmam (ou não) uma tendência internacional que muitos apelidam de populismo, neste caso de direita.
Pesem as especificidades de cada país e os temas dominantes das respectivas campanhas eleitorais, existem traços comuns possíveis de identificar: desde logo, o apelo ao proteccionismo económico em resposta à liberalização dos mercados (que conduziu ao aumento das desigualdades, fruto de desinvestimento nas sociedades ocidentais e da deslocação do capital para países de mão-de-obra barata) com o consequente aumento do desemprego interno (é o caso dos EUA); depois, o apelo ao nacionalismo, como resposta ao crescente centralismo e burocracia do "diktat" de Bruxelas, em cujos métodos grande parte dos países membros não se revêem (são os casos do UK, França e da Holanda); finalmente, o medo do terrorismo islâmico, potenciado pelas recentes vagas de refugiados de países muçulmanos em guerra (como é o caso na UK, França, Holanda e Alemanha).
Não é, pois, de admirar, que em todos estes países, tenham surgido políticos de verbo fácil e discurso demagógico que "cavalgam a onda" da insatisfação (e ignorância) de uma parte significativa das populações, desiludidas por anos de promessas e há muito desconfiadas das "elites" que os governam, a quem acusam de as terem descartado.
Em tempos de incerteza social e competividade no mercado de trabalho (ao qual, muitos destes deserdados da riqueza nacional já não voltam, por serem preteridos por estrangeiros e pela globalização actual) fácil é arranjar "bodes expiatórios", agora que os refugiados chegados à Europa recebem auxílio e são mais um factor da pressão social existente. Juntem-se os atentados dos últimos anos em França, na Bélgica e na Alemanha, todos eles perpretados por residentes nesses países (ainda que com nacionalidade europeia) e temos assim reunidos os elementos para uma "tempestade perfeita". Líderes como Farage no Reino Unido, Le Pen em França ou Wilders na Holanda, são apenas três exemplos desta corrente nacionalista e proteccionista, anti-União e islamofóbica, que ganhou espaço na arena política. Todos eles usam os estrangeiros como moeda de troca, acusando os seus governos de os acolher e proteger, em detrimento dos nacionais, assim como todos eles agitam o espantalho do terrorismo islâmico, como prova última dos perigos inerentes à entrada de mais muçulmanos no espaço europeu.
O discurso xenófobo não se limita, de resto, aos países citados, mas a outros países membros da União Europeia, como a Hungria e a Polónia, onde governos de direita já alteraram as constituições e construiram muros para evitar a entrada de refugiados, numa clara subversão dos valores democráticos e humanistas que deviam prevalecer na Europa. Resta acrescentar, que o actual fenómeno nacionalista e populista na Europa, também foi sendo alimentado por politicas erráticas e pressupostos falsos, dos quais não podem ser excluídos os partidos e governos sociais-democratas que, nas últimas duas décadas, vêem pactuando com as políticas de compromisso que contribuiram para a despolitização e exclusão crescente de grande parte das populações nestes países.
A três dias das eleições holandesas, as possibilidades do partido PVV (extrema-direita, islamofóbica) ser o partido mais votado, são praticamente as mesmas do VVD (liberais de direita, actualmente no governo) que, até este fim-de-semana, tinha uma ligeira vantagem nas intenções de voto. Os grandes penalizados, serão os partidos da esquerda, o PvDA (Partido Trabalhista) e o SP (Socialistas), assim como o D'66 (centristas). O CDA (Democrata-Cristão), ainda que bem posicionado, deve ficar fora do pódio vencedor. Resta acrescentar, que o PvDA e o CDA, partidos que historicamente têm feito parte da governação, foram os "construtores" do Estado Social na Holanda, hoje parcialmente desmantelado pela austeridade e pelos cortes orçamentais dos últimos anos, o que pode explicar muito da insatisfação na sociedade holandesa. Neste contexto, o partido GROENLINKS (Esquerda Verde) uma coligação formada nos anos '90 pelo Partido Comunista, pelo Partido Pacifista e pelo Partido Reformador, a subir exponencialmente nas sondagens, pode tornar-se um dos partidos mais votados nestas eleições, com grande probabilidade de entrar no próximo governo. Uma coisa, parece certa: independentemente de ser (ou não) o mais votado, o partido de Wilders - que este fim-de-semana pode ter ganho novo alento devido aos incidentes entre a comunidade turca e a polícia holandesa de Roterdão - não deverá entrar para o governo. Os restantes partidos já declararam não querer governar com este partido xenófobo e islamofóbico. Dada a composição do actual parlamento (150 lugares) que pode vir a eleger 14 bancadas partidárias, é de esperar um longo período de formação governamental, cujo gabinete poderá ser composto por 4 ou mais partidos.
Na próxima quarta-feira, saberemos mais.

2017/03/01

Trumpalhadas (2)

De Donald Trump, tudo se espera.
O primeiro discurso, no Congresso, não foi, por isso, particularmente surpreendente.
Para quem tem acompanhado as primeiras semanas do seu mandato, as questões centrais, já anunciadas no dia da tomada de posse, voltaram a ser referidas, ainda que usando uma terminologia mais suave.
Relembremos as principais, que parecem constituir o cerne das políticas que pretende aplicar:
1) A guerra aos média. Para Trump, os jornalistas não são de confiar. Principalmente a CNN, o NYT ou o Washington Post. Já a Fox News, é de elogiar (por alguma razão é a estação televisiva preferida do presidente). O recente boicote aos principais orgãos de informação no "briefing" da Casa Branca foi apenas o culminar de uma guerra que dura há cinco semanas. Um clássico, usado por todos os aspirantes a ditadores e que, num país como os EUA, lhe pode sair caro.
2) O fim da ordem comercial liberal. Trump quer acabar com os tratados internacionais existentes (TTP) e reabrir a negociação da NAFTA, de forma a isolar países com quem os EUA têm acordos e um "deficit" na balança comercial. A ideia é relançar a economia americana a partir de dentro (America First), multando as multinacionais que operam no estrangeiro, com novas taxas alfandegárias e outras penalizações. Uma política proteccionista, que implica um maior investimento estatal, como não se via desde Roosevelt. Para um liberal, aplicar medidas Keynesianas, é uma novidade.
3) A crise com o México. O projecto da construção do muro mantém-se, assim como a perseguição aos ilegais (11 milhões) dos quais grande parte serão mexicanos que trabalham na agricultura, na restauração e nos serviços domiciliários. Sem esta mão-de-obra estrutural, que mantém as grandes propriedades e culturas agrícolas na Califórnia e estados do Sul, não se vê quem possa fazer os trabalhos que os americanos legais não querem fazer.
4) O fecho das fronteiras a muçulmanos. A ideia mantém-se, ainda que as primeiras medidas tenham causado caos nos aeroportos, críticas internas e externas e a sua primeira derrota judicial. Os refugiados serão as primeiras vítimas, mas não só: parte das empresas sediadas em Sillicon Valley, que dependem do "know-how" imigrante, já vieram protestar. Não vai ser fácil.
5) Os inimigos dentro do estado. Trump dispara contra tudo e todos: os tribunais, as secretas e os funcionários, acusando-os de o comprometerem perante a Russia. Os despedimentos prosseguem e dentro em pouco só restarão fiéis a Bannon. Já vimos este filme noutros países e latitudes, nomeadamente em ditaduras.
6) Diplomacia. Trump não pratica a diplomacia. Não sabe o que isso é. As gaffes sucedem-se e o "bullying" é constante. Com Merkel, com o primeiro-ministo australiano, com o primeiro-ministro japonês e inclusive com o Reino Unido, onde circula uma petição (2 milhões de assinaturas) para impedir a sua ida ao Parlamento inglês.
7) Conflito de interesses. Continuam por explicar as suas ligações ao império empresarial que controla e quem fica a dirigir as as suas empresas, agora que é presidente e não pode acumular funções. A família?
8) A conexão russa. A demissão de Michael Flynn, a primeira do seu gabinete, pode indiciar outro tipo de relações e eventuais chantagens sobre o seu governo por parte da Russia. As revelações podem ser comprometedoras.
9) O regresso ao discurso da campanha. É notória a sua dificuldade em lidar com a opinião pública. Mesmo entre os conservadores, como Bush Jr. e McCain, não parece haver consenso. Quem votou nele ainda o apoia, mas por quanto tempo?
10) A governação impulsiva. Tudo em Trump o torna pouco fiável. As suas ameaças, mais não representam do que reacções escapistas perante a realidade do poder. Não conquistou mais adeptos e arranjou mais inimigos. Resta saber, qual a próxima fuga.
No discurso de hoje, anunciou um aumento de 9% (54 mil milhões de dólares) no maior Orçamento de Estado para a Defesa da história dos Estados Unidos! Os cortes serão feitos na saúde (o Obamacare só dá "despesa"), no meio-ambiente e nos apoios internacionais. O regresso às cavernas. Só falta uma guerra para incrementar a industria militar.
Voltaram as mentiras e as meias-verdades: sobre o perigo do terrorismo trazido pelos refugiados (todos os atentados terroristas praticados nos Estados Unidos, desde o ano 2000, foram praticados por americanos ou residentes no país!); a proibição de imigrantes vindos de países que apoiam o terrorismo (Líbia, Sudão, Síria, Iraque, Irão, Iémen ou Somália) é selectiva e não abrange o Egipto e a Arábia Saudita (donde vieram todos os atacantes do 11/9 e com quem os EUA mantém negócios altamente lucrativos); O aumento da violência e dos assaltos nas cidades americanas (o que é uma meia-verdade, é derivada da crise de 2008 e já está a diminuir, o que Trump nunca refere); o desemprego nas industrias tradicionais (construção civil, siderurgias, indústria automóvel) é factual, mas não pelas causas apontadas (governo de Obama) e sim devido à automatização e a factores externos como a entrada da China na OMC, etc...
Enfim, a lista é longa e não faltarão oportunidades para aumentá-la. Trump confirmou tudo o que se conhecia dele antes de ser eleito. A mentira é, nele, compulsiva. Parafraseando John Stewart, numa breve e brilhante aparição televisiva esta semana: "never believe a man who after every sentence says: believe me!".  
         

2017/02/22

Memórias do Zeca


Passam, esta semana, 30 anos sobre o desaparecimento de José Afonso.
Sobre o cantautor mais importante da música popular portuguesa, já (quase) tudo foi escrito.
Restam as inúmeras estórias pessoais, daqueles que com ele tiveram o privilégio de contactar.
Lembro-me da primeira vez que o ouvi, nos idos anos sessenta, em tertúlia de amigos, ali para os lados de Alvalade, em casa do único de nós que possuia gira-discos. A canção, que não nos cansávamos de escutar, intitulava-se "Os Vampiros". Como era possível alguém escrever e cantar tal texto num tempo marcado pela censura?
Posteriormente, durante um curto período em que trabalhei numa discográfica, eu próprio vendi clandestinamente muitos EPs onde estava incluída a canção, proibida pelo regime. Do Zeca, ninguém sabia ao certo, ou melhor, dizia-se que vivia em Moçambique, onde leccionava.
Mais tarde, já no estrangeiro, onde me tinha entretanto exilado, recebi todos os LPS do Dr. José Afonso, enviados religiosamente pela família, no dia do meu aniversário.
Teria de esperar até ao dia 28 de Setembro de 1974 - quando o Zeca cantou pela primeira vez na Holanda - para o conhecer pessoalmente. Falámos durante o intervalo daquela que se revelou ser uma sessão histórica (dados os acontecimentos desse dia em Lisboa) e ficámos "amigos".
Entre 1974 e 1981, o Zeca voltaria por mais 4 vezes à Holanda, tendo actuado nas cidades de Utrecht, Haia, Amsterdão (2 vezes) e Nijmegen. Tive o privilégio de organizar a maior parte destas sessões, algumas delas "heróicas", muitas vezes em condições sofríveis, que só a boa vontade do cantor e o despojamento que o caracterizava, tornaram possíveis. Porque, na maior parte das vezes, eram concertos organizados em colaboração com organizações holandesas solidárias com a "revolução portuguesa", lembro-me sempre do Zeca sublinhar esse facto e dizer "éh, pá, se tivéssemos mais holandeses destes em Portugal, a revolução já estava feita...".
Entre 1981 e 1986, os nossos encontros passaram a ter lugar em Portugal, quando o cantor já não viajava, devido à doença que, entretanto, o tinha atingido.
Recebi a notícia da sua morte, na madrugada do dia 23 de Fevereiro de 1987 após um memorável concerto do guitarrista Pedro Caldeira Cabral e da Brigada Victor Jara, na sala "Paradiso" em Amsterdão. A mesma sala, onde o Zeca tinha actuado 6 anos antes. Senti que, nesse dia, se fechava um ciclo da vida portuguesa, aquele que mais intimamente me ligava à utopia de Abril.  
Do seu legado, para além da música e da poesia, resta-nos o exemplo cívico de cidadão empenhado e solidário, na oposição à ditadura e a todas as formas de opressão e injustiça que sempre combateu. O reconhecimento desta atitude perante a vida, grangeou-lhe amigos (muitos) e alguns inimigos, mas a importância do seu exemplo ganhou novos contornos e é hoje mais consensual que nunca. Por isso, o Zeca, apesar de ter partido, continua entre nós e continua a ser lembrado todos os dias, ainda que, de forma mais especial, na data de hoje.
Porque 2017 é um ano especial, estão programados diversos eventos e actividades ao longo de todo o ano. A Associação José Afonso, elaborou um programa subordinado ao título "José Afonso: 30 anos, trinta concertos", que levará a sua música a trinta cidades e localidades diferentes entre Fevereiro e Dezembro. No lançamento desta iniciativa, foi apresentada a publicação "AJA: 30 anos", onde são passados em revista os 30 anos da Associação. Para o dia 25 de Abril está programada a inauguração de um Memorial José Afonso, que ficara situado no Jardim das Francesinhas, ao lado da Assembleia da República em Lisboa. Finalmente, a AJA, com o apoio da SPA, irá reeditar o LP "República", gravado ao vivo em Itália, em 1975, durante um concerto de solidariedade com o jornal português do mesmo nome. Para que a memória não esmoreça. 
 
    
 

2017/02/10

Trumpalhadas

Donald Trump. Era inevitável. Não passa um dia em que não ouçamos falar dele.
Como notava alguém, num recente debate televisivo sobre a actualidade, finalmente voltámos a falar de política! De facto, não há dia em que não sejamos interpelados pelas decisões e atitudes do recentemente eleito presidente dos EUA, ainda que nem sempre pelas melhores razões. Não está em causa o facto das decisões de um presidente americano influenciarem directa ou indirectamente a maior parte da população do globo: essa tem sido uma constante da política externa americana no último século e já vamos estando habituados à sua presença. O que está em causa, é o tipo de decisões tomadas e a forma como estas são postas em prática. Digamos, para usar uma linguagem diplomática que, ao actual homem da Casa Branca, falta algo essencial para exercer o cargo que ocupa, afinal o do homem mais poderoso do Mundo. Não é coisa pouca.
(foto AP)
Philip Roth, consagrado escritor americano, escreveu nos dias que se seguiram à tomada de posse de Trump, não se lembrar de um presidente tão limitado nas suas capacidades cognitivas e com tão reduzido léxico, incluindo Nixon e George Bush Jr., os piores da lista. De acordo com o recente nomeado para o Nobel de Literatura, Trump não utilizaria mais do 77 palavras...
Piadas à parte, a verdade é que o seu discurso de posse foi de uma pobreza extrema (de resto, escrito por Bannon, o homem forte da campanha) e a sua forma de comunicação preferida, os "twitters", são disso a prova. Um presidente do país mais poderoso do Mundo, que opina sobre todas as questões da política interna e externa e reage às críticas através de mensagens que não ultrapassam os 140 caracteres, a maior parte destas com ameaças veladas e "soundbites" destituidos de qualquer nexo ou profundidade, é uma novidade em política e nada nos faz crer que seja boa.
Uma das interpretações avançadas para este comportamento atípico, residirá no seu perfil psicológico, caracterizado como narcisista-obsessivo, que explicará a necessidade constante de receber atenção e a dificuldade notória de funcionar numa equipa (dado que sempre foi o "patrão" de empresas, onde as ordens não se discutem e são para cumprir). Muitos telespectadores lembrar-se-ão ainda do "talk-show" que dirigiu durante anos, onde os concorrentes eram despedidos, após cada eliminatória, com a frase "you're fired!", que o celebrizou. No fundo, a personificação do "boss" tradicional, para quem os lucros da empresa são sempre mais importantes do que os nela trabalham. Não é difícil imaginar tal personagem em reuniões e a tomar decisões com os seus principais conselheiros, ainda que estes tivessem sido escolhidos a dedo e sejam, por por definição, mais cultos e informados (bem mais perigosos) do que o presidente. De resto, não está sequer afastada a hipótese de Trump vir a ser substituido antes do fim da legislatura, seja por razões pessoais, seja por conveniência do "sistema" (partido republicano, Wall Street, corporações várias, industria de armamento) que, nesta fase de destruturação e reordenamento do capitalismo global iniciada em 2008, o estejam a utilizar como "testa de ferro".
Uma coisa é certa: ninguém acreditou que ele se candidataria à presidência e ele candidatou-se. Quando o fez, pouca gente acreditou que poderia ganhar as primárias e ganhou. Mais tarde, quando isso aconteceu, todas as sondagens davam a vitória a Hillary e poucas apostariam na sua vitória. No entanto, acabaria por ganhar as eleições. Com menos votos, é certo, mas vencedor na maioria dos estados representados no colégio eleitoral que o nomeou. Um vencedor incontestável, ainda que contestado.
E agora?
Independentemente dos rótulos encontrados (populista, demagogo, nacionalista, proteccionista, fascista de tipo novo), Trump e o trumpismo vieram para ficar. Para os americanos, que não se revêem nas suas políticas, um verdadeiro "nightmare", que ainda só agora começou. Será na América, de resto, que irá travar-se o maior e mais decisivo combate contra este representante de um sistema financeiro que não olhará a meios para impôr as suas leis. Um presidente que defende o mercado livre, mas que, simultaneamente, defende o "proteccionismo"; que impede a imigração legal, mas necessita de imigrantes qualificados nas áreas da inovação e tecnologia (sem as quais não há desenvolvimento); que quer levantar barreiras alfandegárias, mas necessita de fazer negócios com o México, a Alemanha, o Japão, a Russia ou a China (que detém 45% da dívida pública americana); que quer recuperar as industrias tradicionais, sem ter em conta que os automóveis, as minas e o aço, são mais baratos noutras paragens. Quer "tornar a América grande de novo", mas não sabe bem como. A menos que...a menos que, caso falhem todas estas medidas, esteja em preparação algo de mais terrível, como o que foi experimentado pela maior potência europeia do século passado, quando escolheu a guerra para superar a crise. Não o devemos menosprezar.

    

2017/01/31

Uma semana de Benelux (2)


A distância entre Amsterdão e a capital do Luxemburgo é de cerca de 500km em linha recta.
Pode ser feita de vários modos, mas escolhemos a mais demorada por razões sentimentais. Durante quase uma década, foram inúmeras as vezes que a percorremos em ambos os sentidos, quase sempre de carro ou de comboio. O comboio, tem a vantagem de podermos desfrutar da paisagem das Ardenas, espectacular em qualquer época do ano. Desta vez, os campos estavam cobertos de neve e, à distância, podiam ser observados bandos de corvos e até raposas e doninhas que, afanosamente, procuravam alimento nas terras brancas das colinas à beira da linha férrea. Um deslumbramento.
A parte negativa, foram as mudanças durante o trajecto: à ida, em Maastricht e Liége e, à volta, em Bruxelas-Norte e Roterdão. No total, paragens incluídas, 6 horas de viagem...
Tempo para uma rápida refeição nas gares de transbordo, pejadas de emigrantes de diversas nacionalidades. Em todas elas, um discreto patrulhamento policial, ainda que na Bélgica, por razões conhecidas, a presença dos para-militares fosse uma constante. Dentro do combóio, eram visíveis as patrulhas aos pares, com os policiais a controlar as carruagens, toiletes incluídas. A psicose do terrorismo não desapareceu. Se Amsterdão estava frio, o Luxemburgo estava gelado: menos 10º durante o dia.
Lá fomos apresentar mais uma vez o livro "Exílios", desta vez num centro de documentação dedicado às migrações, situado em Dudelange, na zona sul do país, perto da fronteira francesa. Uma sessão organizada com o patrocínio do Ministério da Cultura e da cidade de Dudelange.
O "Centre de Documentation sur les Migrations Humaines" (CDMH) foi fundado em 1993 e está situado na antiga gare "Dudelange-Usines", que serviu esta região mineira e de siderurgias, encerradas em finais dos anos oitenta. Em redor da antiga gare (agora reconvertida num moderno centro cultural) podem ser observadas as ruínas das antigas instalações industriais, num cenário algo apocalíptico, a lembrar os tempos da industrialização do início do século passado. Foi a esta região que chegaram os primeiros emigrantes, ainda antes da 2ª guerra, maioritariamente italianos, que continuam a constituir a maior comunidade na região. O CDMH está distribuido por dois andares, com um espaço para exposições e uma pequena recepção no rés-do-chão e um centro de documentação e uma biblioteca/auditório, situados no primeiro andar. Foi neste espaço, que três dos colaboradores do livro, falaram sobre a sua experiência de exilados em França, na Holanda e no Luxemburgo, durante os anos setenta. A obra foi apresentada por Thierry Hinger, professor na Universidade do Luxemburgo, especialista em migrações, cuja tese de doutoramento versa a migração portuguesa no Luxemburgo. Excelente sessão, presenciada por uma assistência atenta de portugueses e luxemburgueses, que na sua maioria desconheciam a história de uma geração que recusou a guerra colonial portuguesa em África, já que, à época, o Luxemburgo não aceitava exilados políticos oriundos do nosso país.
De volta a Amsterdão, tempo para visitar o Stadsarchief Amsterdam (Arquivo Municipal), certamente um dos edifícios públicos mais espectaculares da cidade onde, até ao dia 5 de Fevereiro, pode ser admirada a exposição "Amsterdam 1900", com fotografias e filmes dos mais famosos fotógrafos amadores da época. Grandes fotos, na sua maioria a preto e branco, onde a patine do tempo realça a beleza das imagens. Trabalhos de Olie, Breitner, Eilers e contemporâneos, em fotos e filmes, que passam ao longo do dia na sala da cave. A visitar, também pelo edifício, uma das obras de arquitectura mais icónicas de Amsterdão. Se andam por perto, ou contam passar pela cidade esta semana, recomendamos vivamente. 
           

2017/01/30

Uma semana de Benelux (1)



Em viagem para o Luxemburgo, no âmbito da apresentação de um livro de memórias, aproveitámos para dar mais um "salto" a Amsterdão, a "dois passos" de distância...
Como era de esperar, o frio, nesta altura do ano, estava de cortar à faca. Valem-nos as aquecidas casas e espaços públicos, sempre em renovação constante de colecções para visitar e revisitar, ou não fosse a capital holandesa uma cidade-museu por excelência.
Lá fomos, no primeiro dia da nossa passagem por esta cidade dos canais, aqui e ali já meio gelados, a prenunciar um Inverno bastante frio, ainda que longe das temperaturas históricas que permitiam ligar, não há muitos anos, 11 cidades do Norte da Holanda através de diversos canais gelados.
O museu escolhido para iniciar o nosso périplo, foi o "Persmuseum" (Museu da Imprensa),  situado na Zeeburgerkade, um largo canal na zona Leste da cidade, perto do Instituto de História Social, um centro de documentação famoso pelo seu acervo, onde, e. o. documentos, podemos encontrar a acta da I Internacional assinada por Karl Marx, a maior colecção de publicações do movimento anarquista espanhol (ali guardado durante a guerra civil naquele país) e uma das colecções mais representativas de cartazes e publicações do PREC português, adquiridos pelo Instituto na década de setenta.
O Museu da Imprensa, está alojado no rés-do-chão de um bloco de apartamentos, virado para o Zeeburgerkade e é composto de três pequenas salas, divididas tematicamente por épocas e factos jornalísticos relevantes dos últimos 50 anos. A exposição temporária é dedicada ao cartoonista Peter van Straaten (1935-2016) recentemente falecido, a quem o Museu dedicou uma sala com uma selecção dos seus melhores "prints", publicados em alguns dos jornais de referência holandeses ao longo de quase meio século. Uma colecção única, representativa do "ar do tempo" em que a Holanda desafiava a moral vigente, sublinhada pelo humor que Van Straaten sempre emprestava aos seus desenhos. As restantes salas, incluem grandes painéis, com fotografias e textos de imprensa, alusivos a momentos singulares da política e vida social holandesa. Fotos históricas de políticos famosos que marcaram a vida do país nas últimas décadas: Den Uyl, Van Mierlo, Wiegel, van Agt, Lubbers, Brinkman, Wim Kok e Pim Fortuijn. Para além da galeria dos políticos, uma das salas inclui dez factos, escolhidos por outros tantos jornalistas, que marcaram as últimas décadas na Holanda: o movimento anarquista "Provo" (65), a revolução sexual (66), o casamento da rainha Beatriz (66), a 1ª crise do petróleo (73), a captura de um combóio por migrantes Molukkers (anos '70), as manifestações contra o nuclear (anos '80), a construção do metro (anos'90), a morte de Pim Fortuijn (2002) e Theo van Gogh (2004). 
Noutra sala, dez factos internacionais formam uma série escolhida por outros tantos jornalistas: a chegada à Lua ('69), a guerra do Vietnam ('72), a queda do muro de Berlim ('89), o ataque às torres gémeas de New York (2001), a guerra do Iraque (2003) e a captura de Bin Laden (2011) permanecem como as mais icónicas. Curiosos são os textos que acompanham as fotos, todos eles desmentindo as versões apresentadas pela imprensa da época.
A visita a este pequeno, mas simpático museu, passaria por um pequeno hall, onde está exposta uma colecção de desenhos e pinturas alusivas à personagem de "Zwart Piet", pagem de St. Claus (o Pai Natal) contestado pelo politicamente correcto actual.
O dia não terminaria sem um passeio de barco através dos principais canais da cidade, para admirar o Amsterdam Light Festival, a decorrer durante os meses de Inverno, onde são expostas diversas instalações multimédia, cujas cores se alteram ao longo do percurso. Excelente iniciativa, muito concorrida por turistas, apesar da hora tardia a que se efectua. O bom ambiente a bordo e o chocolate quente oferecido pela organização (uma fábrica de cerveja artesanal) contribuiriam para a boa disposição. A repetir.               

2016/12/28

Taxi Driver (12)



Já o tinha visto...estava ali há muito tempo?
- Há uns minutos. Para a António Augusto Aguiar, sff.
Vamos lá ver como está o trânsito, que estes dias tem sido uma loucura...
- Pois, isto com Natal e com férias pelo meio, é mais difícil.
Pelo menos não está a chover. É pena estar tanto frio, mas está um dia lindo.
- Pois está. Mas, quando o céu está mais azul, faz mais frio...
Mesmo assim temos um clima formidável. O pessoal do Norte da Europa, quando cá vem, até se "passa".
- É verdade, sim. Eu vivi dezenas de anos na Holanda e sei o que é o frio. Quando os portugueses se queixam do clima, digo-lhes sempre que deviam passar lá uns anitos, para saberem como é. Temos um dos melhores climas da Europa. O pior são as casas. Passamos mais frio dentro de casa do que fora...
É verdade. É o país que temos...As casas são todas mal construídas e não há garantias. Ninguém vem fiscalizar se estão bem isoladas ou não. Querem é vendê-las rapidamente. Ninguém nos pergunta se gostamos das casas ou não. Mas, também quem trata das casas, são sempre as mulheres. Elas é que põem e dispõem: onde é que fica o sofá, onde é que fica a mesa, os armários, a televisão...
- Quando se vive com alguém, é assim...
Não acredita? Eu já montei duas casas e foram sempre as mulheres que tiveram a palavra final. Onde é que queriam morar, que tipo de casa, que mobiliário, o que devíamos comprar, tudo, tudo! Eu não me meti em nada. E com a actual mulher é a mesma coisa. Veja lá, que até criei dois escritórios, um para mim e outro para ela. O meu está todo desarrumado, mas ela passa lá o tempo todo e está sempre a dizer-me como é que hei-de decorar o espaço. Elas é que mandam, agora. Não sei se já reparou, mas a sociedade está a mudar muito...
- Não sei se elas mandam mais agora, mas é natural que tenham mais direitos. Isso tem a ver com a chegada ao mercado de trabalho, que as tornou mais independentes economicamente e com a pílula, que as tornou mais emancipadas sexualmente, pois já não dependem de um parceiro para terem relações.
Eu sei lá...há coisas que dizem respeito às mulheres e outras aos homens. Eu, por exemplo tenho um grupo de amigos, onde as mulheres não entram. A minha bem me pergunta o que fazemos no grupo, mas eu digo-lhe sempre que também não me meto nos grupos das amigas dela. Mas, elas agora estão em todo o lado. Até já caçam. Às vezes, quando ando a caçar com os meus amigos, aparecem lá mulheres também. Andam lá, no meio da lama, todas sujas, com um camuflado vestido.
- Essa da caça, não sabia...pensava que era um "desporto" de homens. 
Era, era...o senhor já viu os rapazes de agora? Até parece que já não há homens como antigamente. Eu até nem me considero machista, mas estes gajos parecem uns bonecos. Andam no ginásio, todos depilados, meio amaricados, sem pêlos, nem nada...Já não há homens com cabelos no peito. Os gajos são todos uns "nonhas" e fazem tudo o que elas querem... Já viu a vida de um casal, hoje em dia? Trabalham os dois, mas, depois chegam a casa e ele tem de fazer tudo. Se quiser uma camisa passada, tem de ser ele a passá-la; se quiser comer, tem de ser ele a cozinhar; é ele que leva o filho à escola. Então, e a vida a dois? Foi para isto que me casei? Se é pela carne, vou ali ao talho, avio-me e venho-me embora...não é preciso estar casado...
- É a tendência actual e, provavelmente, os casais do futuro, serão cada vez mais independentes. Cada um faz a sua vida, ainda que tenham uma vida em comum...As estatísticas dizem-nos que 1/3 dos casamentos acaba em divórcio nos primeiros cinco anos. Estamos na média europeia...
Sim, nos países nórdicos já é assim. Estive na Holanda e acho que a Holanda é dos países mais livres do Mundo. Estão sempre à frente, em tudo.
- Nos costumes, sim. A maior parte dos jovens torna-se independente muito cedo. Normalmente, aos 18 ou 19 anos, quando acabam o liceu, vão viver em quartos ou em apartamentos de estudantes. Isso também lhes dá uma certa autonomia. Mas, claro, a sociedade está organizada nesse sentido. 
Aí é que está. A minha mulher trabalha na Universidade, onde não ganha mal, eu ando aqui entretido com o táxi, mas os putos têm de viver connosco. Como é que podíamos pagar-lhes uma casa?
- Isto está tudo ligado. Também por isso, em Portugal, os filhos ficam mais tempo em casa dos pais.
Coitados, eles não sabem fazer nada. O senhor já reparou bem nos rapazes de agora? Estão completamente ultrapassados. Eu, quando vou à universidade onde estão os meus filhos, só há mulheres. Elas ganham a maior parte dos concursos para os empregos, têm as melhores notas na universidade, são as mais bem preparadas. Eu não sei onde é que isto vai parar. Os gajos não mandam nada e não sabem fazer nada...
- Ainda por cima não fizeram a tropa...Antigamente, dizia-se que tinhamos de ir para a tropa, para nos fazermos homens...
Claro, pelo menos sempre se aprendia alguma coisa. A ter disciplina, higiene, a cuidar de nós, enfim a ser independentes. É o que eu digo aos meus filhos. É pá vê lá se ganhas juízo, que eu não estou sempre aqui. E o gajo, ri-se. O que é que ele há-de fazer?...
- Bom, já chegámos. Fico por aqui.
Boa tarde e boas festas, para o senhor.
- Boas festas.    

2016/12/23

L'Air du Temps


Que o Mundo era um lugar perigoso, já sabíamos há muito tempo.
Se dúvidas houvesse, esta semana estava aí para comprová-lo.
Em menos de oito dias, foram cometidos três atentados: em Ankara (contra o embaixador russo), em Zurique (contra uma mesquita local) e em Berlim (num mercado de Natal). Total: 15 mortos e mais de 50 feridos. Ainda na mesma semana, mais um morto e um ferido (Milão) e um avião desviado (Malta), este último, aparentemente, sem vítimas.
De mais longe, ainda que diariamente nos écrans televisivos, chegam-nos notícias do Iraque (Mossul), da Síria (Alepo) e do Yémen. Também nestes países, os mortos, de tantos, passaram à categoria de milhares. 12 mortos em Berlim, são um drama; 300.000 em Alepo, são uma estatística.
Ouço os "tudólogos" de serviço, nos canais generalistas e pasmo com a sua eloquência. Todos, apesar das "nuances", parecem dizer as mesmas coisas: que o Daesh está a ser derrotado (onde, em Mossul, em Alepo, na Líbia, no Mali, na Nigéria?), ainda que tenha grande parte dos territórios iraquianos e sírios, sob controle (!?). Dizem ainda os "experts", que a vaga de atentados na Europa é um sinal da fraqueza dos fundamentalistas: os terroristas (quem, o Daesh, o Al Qaeda, outros grupos?) estão "acossados" e, por isso, atacam na Europa para mostrar a sua força. Dessa forma, não só ajudariam a criar um clima de terror, como contribuiriam para a psicose do medo, o que permitiria aos governos instaurar mais medidas de segurança e, aos partidos de extrema-direita, subir nas sondagens.
No limite, a chegada ao poder de partidos xenófobos e autoritários, contribuiria para uma maior repressão por parte do estado e criaria maiores divisões entre a população local e estrangeiros.
Nesse dia, estariam reunidas as condições subjectivas e objectivas (presume-se) para alcançar o fim último - o famigerado estado islâmico - que propõem os fundamentalistas.
Como tese, não está mal pensado.
No entanto, há coisas que não se compreendem. Sabendo tudo isto, o que leva os governos das grandes potências ocidentais (EUA, França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, etc.), a venderem armamento a países como a Arábia Saudita, o Qatar ou o Kwait, apontados como sendo co-financiadores de movimentos como o Daesh? O mesmo Daesh que reivindica os atentados de Paris, Bruxelas, Nice e Berlim?
Outra distinção, assaz curiosa, é a denominação usada: em Mossul (cercada pelas tropas iraquianas, pelos curdos e pelos EUA) são "terroristas"; em Alepo (bombardeada pelas tropas de Assad e pela Russia) são "rebeldes". Então, não são todos do Daesh?... 
Também não se compreende que, após os atentados, as polícias venham dizer que os seus autores estavam há muito identificados como suspeitos. Alguns deles, até já tinham estado presos (!?).
Mais grave ainda, parece ser a pouca e deficiente cooperação entre as polícias de diversos estados, como aconteceu este ano entre a polícia belga e a polícia francesa. 
Difícil mesmo de perceber, é este afã dos terroristas em deixarem "esquecidos" nos veículos, que usaram para praticar os atentados, os seus documentos de identificação (!?). Terão medo que a História os esqueça?
Uma coisa parece certa. De acordo com as estatísticas, houve muito mais atentados terroristas nos anos sessenta e setenta do século passado do que agora. Na altura, o terrorismo foi atribuido a movimentos da extrema-esquerda. Actualmente, é atribuido a fundamentalistas religiosos. Não sabemos lá muito bem, se estes são de "esquerda" ou de "direita", mas isso também não interessa nada. O que é preciso é fazer negócio, que a vida são dois dias e ainda há muita gente para matar. Boas Festas.

2016/12/15

O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa



Cumprindo o ritual mensal, dirigi-me no passado mês de Setembro à minha barbearia dos últimos vinte anos, a "Barbeiros Reunidos", situada ao fim da Calçada do Carmo, perto da Praça do Rossio. Uma barbearia antiga, algo decrépita, onde três diligentes barbeiros e duas "manicures", em idade de pré-reforma, atendiam com cumplicidade os habituais clientes. Ainda conheci a equipa original, constituida por cinco barbeiros que, nos "dias de brasa" do PREC, decidiram criar uma cooperativa. A cooperativa seria, entretanto, desfeita, mas o nome ficou.
Dos sócios originais, só o Sr. Alfredo ainda trabalhava. Era também o melhor profissional, ainda que raramente me cortasse o cabelo, pois estava sempre ocupado. Para não ter de esperar, optava pela primeira cadeira livre, o que me poupava bastante tempo. Em menos de meia-hora, estava despachado. Barba e cabelo por um preço, inalterado há mais de uma década, de 18euros.
Pouco passava das 17h. quando entrei na barbearia, vazia àquela hora. Literalmente. Nem clientes, nem "manicures", nem móveis. Nada. Apenas 5 cadeiras, outros tantos espelhos e 3 barbeiros, a conversarem entre si.
Perguntei se iam fazer obras e responderam-me que iam fechar.
- Vão de férias?
Não, vamos mesmo fechar. Definitivamente. O senhor vai ser o nosso último cliente. Pode escolher a cadeira...
- O quê? O negócio, vai assim tão mal?
Não, mas fizeram uma proposta ao Alfredo e ele aceitou o negócio...
- Mas, então, o que é que vão fazer?
Ele deve ir para o Algarve, onde tem uma casa. Eu ainda não sei, mas tenho uma irmã em Portimão, que ficou toda contente por eu deixar este trabalho (já o faço há 60 anos, sempre no Rossio) e o rapaz (apontando o elemento mais recente da equipa) não vai ter problemas, pois arranja sempre trabalho em qualquer lado...
- Nem quero acreditar. E os restantes inquilinos do prédio? Também se vão embora?
Não há mais inquilinos. O prédio está vazio e é património municipal. Para além de nós, só há aqui uma loja de telemóveis, que também terá de sair...
- Estou a perceber. Mais um hotel, com certeza, já há poucos na "baixa"...
Não, disseram-nos que vão fazer aqui o Museu da Conserva...
- O Museu da Conserva? Essa é boa...no Rossio?
Pois, é de um gajo da Murtosa, o mesmo que tem a "Loja das Enguias". Também já tem o "Museu da Cerveja" no Terreiro de Paço e aquela loja do "Pastel de Bacalhau com Queijo da Serra", na Rua Augusta...
- Inacreditável. Nem sei o que diga. 
Eu ainda não quero acreditar. Pensar que, amanhã, já não venho trabalhar...Há mais de 30 que trabalho com o Alfredo e há 60 que trabalho no Rossio. Só tenho vontade de chorar...
- Mas, então que idade tem?
Tenho 80, mas gosto do que faço e não sei fazer mais nada...e agora?
- Isso deve ser terrível, de facto, mas tem de ver o lado positivo das coisas. Vai receber uma indemnização e poderá gozar a reforma no Algarve...
É o que me diz a minha irmã: "vens para cá e podes ir à pesca"...
- Claro, parar é morrer. Já cumpriu a sua parte. Eu é que tenho de arranjar um novo barbeiro...
Cortado o cabelo, despeço-me dos três, enquanto recebo do Sr. Alfredo uma palavra de agradecimento: "obrigado por nos ter dado a preferência". Saio da barbearia, meio abananado pela notícia. 
Esta semana, amigas espanholas de longa data, que frequentemente visitam Lisboa, chamavam-me a atenção para as iluminações natalícias. Estavam muito impressionadas com a "profusão de luzes"...
No Rossio, parámos para os inevitáveis "selfies". À esquina da praça com a Calçada do Carmo, uma "loja" distinguia-se das demais. Em rigor, não é uma loja. É uma "barraca de feira", com muitas cores, carrosséis, música e uma roda gigante em miniatura. Lá dentro, de cartola e fardado de vermelho, um empregado convidava-nos a entrar para apreciar a colecção de latas de sardinhas do último século. Milhares de latas, ordenadas por décadas e agrupadas em cores garridas, que podem ser apreciadas e compradas a 5euros, cada. Há latas de sardinhas, de enxovas, de atum, de lulas e de cavala. Tudo em azeite virgem, claro. A "minha" barbearia tinha dado lugar ao "Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa".
       

2016/11/29

Taxi Driver (11)


- Boa noite.
Boa noite, para onde?
- Para a Buraca, se faz favor...
Se eu quisesse, não podia levar aí esse saco...
- Como assim?
Os táxis são para transportar passageiros.
- Claro. E bagagens. Além disso, nem se trata de uma bagagem. É um saco de compras.
Seja um saco de compras ou não, se eu quisesse não levava esse saco aí. O senhor entrou e pôs o saco cá dentro para não ter de pagar bagagem...
- Faço este trajecto dezenas de vezes ao ano e os seus colegas nunca puseram objecção. Além disso, é um trajecto curto e não vale a pena pôr o saco de compras lá atrás. 
Isso é porque os meus colegas são gajos porreiros. A gente "fecha os olhos", mas as bagagens são para ir na mala do carro.
- Depende. A lei (está afixada na janela traseira do táxi) é bem explícita: só volumes acima de uma determinada medida devem ir para a mala. Ora, este saco tem menos do que os 50cm proibidos por lei...
Já lhe disse, se eu quisesse, não podia levar esse saco aí...
- Bem, mas afinal, posso ou não levar aqui o saco de compras? Se não posso, porque é que não me impede de transportá-lo? Eu sou cumpridor da lei e, se a lei o obrigar, não tenho qualquer problema.
Eu não posso impedi-lo de levar aí o saco...
- Não estou a perceber: não posso levar o saco aqui e o senhor não pode impedir-me de levá-lo?
Não posso impedi-lo, mas todas as bagagens devem ir na mala. A parte interior é só para passageiros.
- Se é assim, porque não arranjam uma lei explícita e utilizam um só critério: tudo o que for bagagem (independentemente do tamanho) tem de ir no porta-bagagem do carro.
Não sou eu que faço a lei, mas a lei diz que o interior do carro é apenas para passageiros, só que a gente "fecha os olhos"...
- Desculpe lá, mas esta conversa não faz sentido nenhum: se não posso levar aqui este saco, posso pô-lo na mala do carro. Se posso levá-lo aqui, não vejo qual é o problema!
O problema é que cada condutor tem os seus critérios, mas a lei é explícita: só podem ir passageiros no táxi. As bagagens vão na mala.
- Se vocês não têm um critério uniforme, como é que os passageiro hão-de saber?
Está escrito na porta. Mas, eu não vou impedi-lo de levar aí o saco...se quiser pode fazer queixa de mim, mas esta é a lei.
- Eu não quero fazer queixa de ninguém, não estou é a perceber porque é que não posso levar aqui este saco (quando sempre o fiz) e se lhe digo para pôr o saco lá atrás, diz-me que não pode impedir-me de levar aqui o saco...isto parece uma conversa de doidos.
A bagagem é para ir atrás. Esta é a norma, mas eu não quero falar mais disto.
- Desculpe lá, mas quem começou a conversa foi o senhor. Se quer pôr o saco lá atrás, não tenho problema nenhum com isso, apesar de nunca me terem obrigado a tal. Se não quer lá pôr o saco, não vejo razão para levantar esta questão.
Já lhe disse: a gente "fecha os olhos", porque alguns colegas querem ser uns gajos porreiros e não se importam, para não incomodar o cliente. Mas, o que a lei diz é que o interior do carro é para passageiros apenas. Como vivemos num país onde ninguém respeita a lei, não vale a pena eu obrigá-lo a pôr o saco lá atrás.
- Óptimo, já percebi o seu ponto: há uma lei, mas como ninguém a respeita, o senhor também não a cumpre. Mas, se quisesse, podia impedir-me de levar aqui o saco, certo?
Certo. Mas eu não vou impedir nada. O senhor leva aí o saco, mas não devia. Os sacos e toda a bagagem devem ir na mala.
- Muito bem. Nesse caso, sugiro que na próxima assembleia de taxistas, discutam este assunto entre vocês e proponham ao governo uma lei explícita que diga o que pode e não pode ir dentro do táxi.
A lei que existe é a que está afixada na porta. Só que ninguém lê o que lá está...
- Bem, já vi que não nos entendemos. Também não faz mal, já chegámos.
Boa noite.
- Boa noite...

2016/11/22

Aftermath (2)

Quinze dias passados sobre "a noite que abalou o Mundo", as notícias continuam pouco animadoras. Para quem pensava que a prática de Trump seria diferente da retórica eleitoral, as primeiras medidas anunciadas, prenunciam o pior. Nada que deva espantar. Só os incrédulos ou desatentos poderiam esperar um comportamento diferente deste representante do "establishment" americano que, através de um discurso básico e emocional (onde a explicação racional deu lugar à linguagem dos efeitos) procurou incutir no espírito dos americanos - desiludidos com o sistema - que a culpa desta situação era das "elites" que governavam o país. Como se Trump, o multimilionário que se orgulha de não cumprir a lei e de não pagar impostos, não fizesse, ele mesmo, parte do sistema que gera as "elites" que o beneficiam. Um demagogo, portanto.
Não por acaso, estados como Indiana, Montana, Ohio, Pensilvânia e Virgínia (o chamado "cinto da ferrugem") onde outrora existiram grandes indústrias, nomeadamente do aço e do carvão, votaram maioritariamente em Trump. Bastou o candidato acenar com a recuperação das siderurgias e das minas do carvão, para obter o voto de uma classe operária maioritariamente desempregada e desiludida com os efeitos da crise da globalização que a atingiu em cheio. Se esta promessa vai concretizar-se, já é mais duvidoso. O mesmo, relativamente aos grandes grupos de construção civil, muitos deles fazendo parte do seu próprio empório, a quem acenou com chorudos contratos para, segundo as suas próprias palavras, renovar as rodovias, as pontes e os caminhos de ferro decadentes. Um plano "Keynesiano", aparentemente ao arrepio de toda a lógica neoliberal, mas que rendeu apoios e votos das corporações interessadas. Que os impostos vão descer (resta saber, para quem?) já toda a gente percebeu: se ele não pagou impostos, por ser "esperto", algum benefício deve ter tido...Como o dinheiro não dá para tudo (sem impostos, ainda dá para menos), terá de haver cortes nalgum lado. O sistema de saúde pública, vulgo "Obamacare", será o primeiro a sentir os efeitos desta austeridade para os mais pobres. Depois, haverá o famigerado "muro" na fronteira mexicana, que Trump confirmou querer construir (ele é "bom nisso" disse à entrevistadora da CBS). Querer limitar a entrada de muçulmanos e não querer refugiados sírios, são outros pontos do seu programa. Os islamofóbicos agradecem e, por isso, deram-lhe o voto. Finalmente, a questão rácica, que lhe rendeu os votos dos brancos anglo-saxónicos e protestantes (WASP), muitos deles pertencentes à mesma "elite" que critica, e que são filiados em grupos tão obscuros com o Ku Klux Klan de má memória. As suas nomeações para o governo, vão desde um racista assumido para a pasta de secretário-geral dos assuntos de estado (na prática, o seu braço direito), até a um membro do Tea Party, a agremiação mais à direita do espectro político americano, para dirigir a CIA. O mesmo relativamente ao Juiz do Supremo Tribunal, um conservador da ala mais à direita do partido. As minorias vão enfrentar dias difíceis e 11 milhões de emigrantes ilegais (estimativa) podem ser, agora, alvo de perseguição e expulsão imediata. Na primeira conferência de imprensa alargada (cerca de 40 jornalistas convidados para um "briefing" informal) Trump criticou tudo e todos de forma violenta, em especial o representante da CNN, a quem acusou de manipular as notícias sobre a sua pessoa. Enfim, a lista é extensa e o homem ainda nem começou a governar. Imaginem, a partir de Janeiro...
Como chegámos aqui?
Muitas e variadas têm sido as opiniões sobre este resultado eleitoral, aparentemente imprevisível, mas não de todo improvável. Entre as análises lidas e escutadas por estes dias, escolhemos a do filósofo francês Alain Badiou que, no dia a seguir às eleições americanas, deu uma palestra na UCLA (Los Angeles) onde se encontrava como convidado. Badiou destaca quatro razões fundamentais para explicar a vitória de Trump e do populismo crescente nos EUA e na Europa. "1) A violência e  brutalidade do actual capitalismo desregulado, que aumentou as diferenças laborais e a exclusão social na maior parte dos países. 2) A decomposição das oligarquias políticas clássicas (partidos, sindicatos, organizações estatais) que deixaram de constituir referências para grande parte da população. 3) A frustração popular, causada por sentimentos de não-pertença a uma sociedade da qual foi descartada. 4) A ausência de estratégias alternativas, seja a nível ideológico-partidário, seja a nível de movimentos apartidários, que possam constituir modelos de referência para o futuro". Ou seja, estavam reunidos os elementos necessários para a chamada "tempestade perfeita".   
As ideias populistas (de direita) há muito que vêm ganhando terreno na Europa e a América não ficou imune a este fenómeno. O "brexit", no qual poucos britânicos acreditavam, foi apenas o primeiro aviso de que algo estava "podre" no Reino Unido. O surgimento do partido independentista, liderado por outro demagogo (Farage) acabaria por dividir os conservadores e contribuir para a vitória do "não". Também no Reino Unido, a elite ligada à finança, a maioria dos colarinhos azuis e dos rurais conservadores, votariam no "exit". Razões principais: recusa ao centralismo de Bruxelas, medo do futuro e xenofobia em relação aos estrangeiros que "ameaçam" os seus postos de trabalho. Paradoxalmente, a maioria dos votos "não", foi nas regiões rurais, onde a presença de emigrantes é minoritária (!?). Ao contrário, foi nas grandes cidades (Londres, Manchester, Liverpool, Birmingham), onde a multiculturalidade é maior, que o voto "sim" ganhou. Exactamente como nos EUA, onde os votos pró-Hillary, foram obtidos na Costa Leste (Nova Iorque, Washington, Boston, Filadélfia...) e na Costa Oeste (Los Angeles, S. Francisco, etc.) os estados com maior educação e os mais desenvolvidos. Ao contrário, os votos de Trump seriam obtidos, na chamada "América profunda", onde dominam os "red necks", os protestantes evangélicos, o KKK e os trabalhadores proletarizados da cintura industrial, ainda que muitos dos seus apoiantes sejam originários da classe média urbana.
Porque, em ambos os países, a eleição foi democrática, devemos concluir que a maioria (relativa, é certo) do eleitorado, votou nos representantes que defenderam um maior isolacionismo e uma maior exclusão social e política dos grupos minoritários - emigrantes, muçulmanos, grupos de género e negros (no caso dos EUA). Por outras palavras, ganharam os candidatos cujos discursos defenderam os valores mais conservadores e nacionalistas e um modelo de democracia menos aberta e tolerante, portanto, mais autoritária. O populismo de direita, ou o (novo) fascismo, em ascensão.
Seguem-se, agora,  quatro eleições, não menos importantes: Itália (já este ano), Holanda, França e Alemanha (em 2017). Dos seus resultados, muito pode depender o futuro da Europa e da própria ideia da União, como projecto político e social. Guardadas as devidas distâncias, a situação actual começa a apresentar preocupantes semelhanças com o período dos anos 20 e 30 do século passado. Depois de uma guerra devastadora (1914-18) e de uma crise económica e financeira (1929) cujos efeitos perdurariam até às vésperas da 2ª guerra mundial, a Europa assistiu ao aparecimento de movimentos e líderes populistas, que souberam interpretar esta frustração popular e que, através da "linguagem dos efeitos" e da criação de imaginários inimigos internos e externos (os judeus foram apenas os "bodes expiatórios"), alimentaram nas massas, acríticas e desmoralizadas, a ideia que um "novo mundo" era possível. Bastava acreditar e obedecer. Conhecemos os resultados.
Aparentemente, as forças progressistas em geral, e a esquerda em particular, não aprenderam a lição. É necessário identificar as razões desta regressão e perceber onde é que o sistema  - e os seus representantes - falhou nas respostas adequadas. Para os interessados na comunicação de Badiou,  deixamos aqui o vídeo e o texto da sua intervenção, que contém suficiente matéria para reflexão.

2016/11/14

Aftermath

Uma semana após a vitória - inquestionável - de Trump, começam a tornar-se claras as suas ideias.
Para quem não percebeu, não está em discussão a sua vitória, mas as ideias que defende.
Ter à frente do país mais poderoso do Mundo um proto-fascista, que defende a supremacia branca WASP, é apoiado pelas forças mais retógradas da nação (evangélicos, "rednecks", "tea party", "kluklux-klan"), é contra a legalização do aborto, defende o "lobby" das armas, defende o escrutínio de todos os muçulmanos que entram no país, quer construir um muro para evitar a entrada de mexicanos, deseja expulsar 3 milhões de "ilegais", quer a anulação do "Obamacare" e do tratado comercial da NAFTA, recusa assinar o Tratado sobre as alterações climáticas, que estendeu a mão a ditadores como Putin e Erdogan e convidou xenófobos como Marine Le Pen e Nigel Farage a visitá-lo, (apostando, claramente, na divisão da Europa para, dessa forma, aumentar o poderio americano a regressar ao nacionalismo mais retógrado) não é de esperar uma boa governação.
Dirão os mais "inocentes", que a sua eleição foi democrática, na medida em que o sistema eleitoral americano funcionou e a quantidade proporcional dos votos não ser o factor decisivo, mas sim o número de  congressistas indicados pelo colégio eleitoral. Os estados determinam a quantidade de congressistas, segundo a fórmula "the winner takes it all". Podemos não gostar do método, mas este é o sistema americano e a América tem tido bons presidentes.
A questão é ser Trump (ele mesmo um representante do "establishment" americano) uma aberração em termos políticos. É inculto, é chauvinista, é xenófobo, é misógino, é sexista, tem vários processos judiciais contra si e vangloria-se de não pagar impostos, sendo apoiado pelas metade mais retógrada da nação,  aqueles que desconfiam das elites que os governaram e se sentem ignorados pelo "sistema", nomeadamente depois da crise financeira que atingiu largos sectores da sociedade americana.
Se dúvidas houvesse sobre as suas intenções, ouça-se com atenção a 1ª entrevista, dada ao programa "60 minutes" (CBS) e veja-se os nomes indicados para o seu gabinete. Para todos aqueles que pensavam ser o discurso da campanha eleitoral, diferente do discurso de presidente, é bom lembrar que os actos eleitorais não são garantia de democracia e que nem sempre o que parece é. Ora Trump não parece. Já é. Da mesma forma que Hitler ou Mussolini, em tempos não muito recuados, chegaram ao poder através de eleições livres, também o actual presidente americano é o produto do "pior sistema político, à excepção de todos os outros". Este é o preço que temos de pagar, já que a democracia não é um dado adquirido e deve ser melhorada todos os dias. Para evitar mais Trumps.

2016/11/08

America America...

... É um dos mais famosos filmes do realizador norte-americano Elia Kazan, baseado no romance homónimo, igualmente da sua autoria, publicado em 1962. O filme é inspirado na vida do seu tio, nascido numa aldeia turca da Anatólia, que sonha emigrar para a "terra de todas as oportunidades", simbolicamente mostrada através da Estátua da Liberdade, quando o personagem principal chega a Nova-Iorque, numa das derradeiras e mais belas imagens do filme. Lembrei-me desta história, ao ver as reportagens televisivas em New-Jersey, com a nova torre em fundo, onde parte significativa da comunidade portuguesa apoia Trump e as suas medidas anti-imigração (!?). Um Mundo ao contrário, ainda que este fenómeno seja conhecido de outros países europeus, onde muitos estrangeiros (portugueses inclusive) descontentes com os governantes locais, são os maiores apoiantes das ideias xenófobas e populistas de Le Pen, Wilders ou Farage.  Independentemente do resultado destas eleições, uma coisa parece certa: nada ficará como dantes na América (e no resto do Mundo, por extensão) seja qual for o candidato escolhido.
Os dados estão, agora, lançados. Ainda que as projecções apontem para uma vitória de Hillary Clinton, as surpresas de última hora, nos chamados "estados oscilantes", podem voltar a acontecer (lembramos que Al Gore perdeu as eleições contra Bush, apesar deste ter recebido menos votos).  Depois de uma das mais "sujas" campanhas eleitorais de sempre, os americanos parecem ter, agora, dificuldade em escolher e o caso não é para menos. Entre um candidato populista, narciso, boçal, xenófobo, misógino e perigoso, que não hesita em estender a mão a ditadores como Putin e a elogiar personalidades como Farage; e uma candidata, ligada a escândalos vários, apoiada por Wall Street, pelas corporações, pela industria de armamento (e que nunca escondeu o seu belicismo durante o tempo em que foi secretária de estado) a escolha só pode ser a de um mal menor...
Descartado Bernie Sanders, o único candidato com um discurso político coerente, que nas suas intervenções sempre procurou elevar a discussão, trazendo para o debate os temas que realmente interessam, como o mercado global, o desarmamento, o emprego, as desigualdades sociais e os problemas climatéricos, nada de relevante parece ter restar dos candidaturas em presença. Por alguma razão, uma parte significativa da juventude americana apoiou a candidatura deste social-democrata a cheirar a socialismo, levada quase até ao fim da campanha, o que pode indiciar uma nova corrente dentro do partido democrata, caso este ganhe, como é (im)previsível.
Para os europeus, que não podem votar, resta assistir ao "big circus" americano sem muitas esperanças que as coisas melhorem. Ainda vamos ter saudades de Obama. E de Michelle, já agora.    
  

2016/10/31

Taxi Driver (10)

Para onde vamos?
- Para a Culturgest. Estava a ver que não saía daqui hoje...
Esteve à espera de táxi muito tempo?
- Meia-hora, pelo menos...explique-me lá uma coisa: porque é que os seus colegas, que têm a luz verde acesa, não páram quando lhes faço sinal?...
Isso é impossível. Têm de parar.
- É possível, sim, porque passaram 5 ou 6 táxis "livres" na última meia-hora e nenhum parou...
Provavelmente, iam distraídos. Ou receberam uma chamada e não podiam transportar passageiros...
- Isso não faz sentido nenhum. Se foram chamados, têm de mudar o sinal para amarelo, para indicar que estão em serviço...
Nem sempre o que parece é. Sabe, isto é uma profissão muito desgastante e nós andamos aqui numa "lufa-lufa". Vamos a consultar o telemóvel e, às vezes, nem nos apercebemos de que nos estão a fazer sinal para parar...
- Sim, isso pode acontecer, uma ou outra vez, mas não seis vezes! Depois, não se admirem que as pessoas prefiram a Uber...
Ó meu caro senhor...se tem queixas dos taxistas, é muito simples: Tira o número do táxi e a matrícula e escreve para o organismo que supervisa o "negócio". Também pode telefonar e fazer queixa. É o que eu aconselho a toda a gente que se queixa do mau serviço dos taxistas.
- Também posso fazer isso, claro, mas queria primeiro perceber o que se passa e se podem negar-se a transportar um passageiro, só porque lhes apetece...
Já lhe disse: em vez de queixar-se, tira o número do carro que não parou e telefona para a central! É muito simples e vai ver que o atendem logo. Nós também cometemos erros e nem toda a gente, que anda com um táxi na mão, sabe comportar-se, mas há regras e toda a gente tem de cumprir. Se levavam a luz verde e não pararam, têm de explicar porque é que o fizeram...
- Pois, pois, mas se há leis é para serem cumpridas, certo?
Olhe, o senhor estava em frente à "casa" (Parlamento) onde são feitas as leis...metade daquela gente que lá está, não presta para nada. Só lá andam para dar "lustro às calças". Se falassem menos e fizessem melhores leis, isto podia andar melhor...
- Não me diga que a culpa é dos deputados?...
Não só. O Almeida da Antral também controla uma parte do negócio e interessa-lhe que isto esteja assim...
- Claro, há interesses em todo o lado e os taxistas também são uma corporação...
E se eu lhe disser que há aqui gente no "meio" que anda a estragar o "negócio" e nem sequer tem licença para conduzir um táxi? Mas nós temos de cumprir a lei e somos obrigados a inspecções periódicas. Sabe quanto é que o meu patrão paga só em licenças para este carro? 1200euros por ano! E o carro tem de estar em boas condições mecânicas, tem de estar limpo, eu tenho de andar bem vestido, não posso usar calções e tenho de ter seguro contra terceiros. Há quem pense que isto e um negócio de milhões, mas é um negócio de tostões...se eu tiver o azar de "bater" e o meu patrão tiver de pagar o arranjo, já sei que vou andar aqui um ano a "penar", pois o lucro é para pagar o arranjo do carro...está a perceber? As pessoas não sabem do que falam e depois os táxistas é que são os maus da fita...
- Claro, nem todos os taxistas são maus, por isso o aparecimento da Uber pode ser benéfico, desde que controlada, claro.
Falou da Uber...e se eu lhe disser que há muitos chauffers da Uber que são taxistas? Anda aqui muita "poeira no ar" e as pessoas não estão a ver o que se passa de facto. Eu não tenho nada contra a Uber. Eles que venham. Mas, sem precariedade no trabalho e a pagar impostos, como nós. Assim é que é bonito. Todos iguais, perante a lei.
- De acordo. A concorrência é boa, desde que regulada.
Claro, estas coisas têm de ser regulamentadas. Agora vou-lhe propôr um caminho alternativo. Não estranhe se eu andar por ruas paralelas, mas não se pode andar na Avenida da República. Isto está um caos e por aqui não chegamos lá...
- OK. Passei aqui há uns dias e estive mais de uma hora parado no Campo Pequeno...
Uns parvalhões, estes gajos da Câmara. Agora é que se lembraram de fazer obras. Tudo ao mesmo tempo! E ainda não começou o Inverno...
- Quando chegar à esquina, pode deixar-me lá que eu faço o resto do caminho, a pé.
Qual quê? Vamos já aqui pela transversal e deixo-o mesmo à porta da Culturgest. Está de acordo?
- Parece-me bem. Já estou atrasado.
É o que eu lhe digo. Isto está mau, mas os culpados não são só os taxistas.
- Acredito, até porque só há uns 3000 taxistas...
Há mais. São cerca de 3500. Isto é calculado em função dos habitantes de cada zona. Só Ubers devem haver para aí uns 1000 e Lisboa cada vez tem menos habitantes. Por exemplo, no Seixal, foram autorizados mais 9 carros. Porquê? Porque os habitantes de Lisboa vão todos morar para os arredores e cada vez há mais habitantes no Seixal. Por isso, devem recalcular as licenças de táxis, senão andamos a comer-nos uns aos outros. Isto não chega para todos. É o que eu digo a toda a gente: isto não é um negócio de milhões, é um negócio de tostões. Já cá estamos, está a ver...

 

 


2016/10/26

O A(s)salto da Memória


Entre 1961 e 1974, dezenas de milhares de jovens portugueses sairam do país por recusarem participar na guerra colonial levada a cabo pelo governo fascista de Salazar e Caetano.
Muitos eram "desertores" (os que já se encontravam no exército), a maior parte eram "refractários" (os que, já depois de apurados, não se apresentaram à incorporação) e os restantes, "compelidos" (aqueles que não tinham atingido a idade da inspecção militar).
Com o 25 de Abril, muitos destes jovens regressaram a Portugal. Uns foram incorporados, outros foram amnestiados e, muitos deles,  permaneceram no estrangeiro, onde continuam a viver.
Durante muitos anos, a situação dos desertores e o seu papel na denúncia da guerra, raramente foi abordada e, quando o foi, sempre era negligenciada.
Compreende-se porquê. Num país, onde a ignorância, o medo e a censura, controlaram o pensamento dos seus cidadãos ao longo de 50 anos, é difícil separar a questão da "pátria" (e a sua defesa) da deserção como um acto positivo numa guerra condenável.
Acresce que, os militares que fizeram a guerra, foram os mesmos que derrubaram o regime ditactorial e devolveram a liberdade e a democracia ao povo português.  
É provavelmente esta contradição (o papel dúbio dos militares portugueses em África) que explica o porquê do "tabú", ainda hoje existente na sociedade portuguesa sobre esta matéria. Por um lado, aqueles que recusaram a guerra contribuiram para o seu fim e, por outro, aqueles que nela colaboraram, contribuiram para fim do regime que impôs a guerra.
Como conciliar tais posições? Não é fácil, para mais num país onde o "medo de existir" sempre foi uma constante (como bem explicou Gil) e que, 40 anos depois, continua a dominar a mentalidade da corporação militar.
As poucas obras, entretanto surgidas em livro ou em filme, continuam a ser largamente ignoradas e foram necessários mais de 40 anos para que o problema voltasse a ser discutido, agora a nível académico, a partir de um grupo de investigadores que se dedicam à matéria.
Dizem-nos os estudos sobre a memória, serem necessárias três gerações para fazer a catarse das experiências traumáticas porque passámos. Foi assim com muitos dos sobreviventes do Holocausto, com os veteranos da Guerra do Vietnam ou, entre nós, com as vítimas do fascismo e os ex-combatentes da guerra colonial. Os (ex)desertores não são excepção.
É bom que, na próxima quinta-feira, durante o colóquio organizado pela Universidade Nova de Lisboa, a Faculdade de Ciências Sociais de Coimbra e a Associação de Exilados Portugueses na Europa, esta matéria seja abordada por aqueles que, através de novos dados, possam contribuir para lançar luz sobre um tema que continua tabu. Para que, desta forma, a Memória não se apague.   

2016/10/22

Outono em Amsterdão (4)


Criada em 1984, a Associação Portuguesa de Amsterdão (vulgo APA), surgiu após um longo processo de unificação de duas associações de emigrados portugueses na Holanda: a Casa Portuguesa de Amsterdão (CPA), fundada nos anos sessenta e a Associação Resistência e Trabalho (ART), surgida em 1970. Dos anos sessenta, data igualmente o Clube Desportivo "Os Lusitanos", ainda em actividade, que não participou no movimento unificador das associações na década de oitenta.
Instalada recentemente num parque da zona oeste da cidade, a APA mantém as  principais actividades de origem, ainda que reduzida no espaço físico e no número dos membros activos que dão vida diária à associação. Não se vêem por aqui muitas caras novas e são ainda os emigrantes da primeira e segunda gerações que, à volta da mesa de cartas ou em frente ao écran gigante onde assistem aos jogos de futebol da liga portuguesa em directo, continuam a animar o convívio.
Paralelamente, outros frequentadores e organizações, usam o espaço da associação para organizarem sessões e tertúlias menos lúdicas, normalmente dedicadas à literatura ou à poesia, onde a componente gastronómica é parte obrigatória do programa. É o caso do grupo "Tertúlia" que, mensalmente, escolhe um tema à volta do qual são organizadas as sessões com convidados exteriores.
A "Tertúlia" deste mês, foi integrada no Festival "Seis Continentes" (evento multicultural organizado simultaneamente em vários países) e incluíu no seu programa a apresentação do livro "Exílios", uma obra colectiva na qual participámos. Trata-se de um livro de testemunhos e memórias de ex-exilados políticos (desertores e refractários) que recusaram a guerra colonial portuguesa e viveram os anos de exílio em diversos países europeus. As honras da casa foram feitas por Teresa Pinto (do festival "Seis Continentes") enquanto a apresentação do livro esteve a cargo de Fernando Venâncio, professor jubilado da Universidade de Amsterdão (ele próprio um ex-desertor e exilado na Holanda). Ao escriba destas linhas coube a explicação da génese do projecto que, mais do que reunir histórias de vida, pretendeu fixar testemunhos de uma geração que discordou da guerra (sobre a qual poucos ousam falar) para que, desta forma, a memória não se apague. Seguiu-se animada conversa com a assistência luso-holandesa presente, tendo a sessão terminado com os habituais registos para a posteridade. A visita a Amsterdão terminava, assim, da melhor forma.
   

2016/10/21

Outono em Amsterdão (3)


No início dos anos quarenta, viviam na Holanda cerca de 140.000 judeus. 
Durante a ocupação alemã, foram presos e transportados para os campos de concentração, mais de 120.000 judeus. Destes, 104.000 morreram.
Em Amsterdão, a comunidade judaica habitava um quarteirão no centro, cujo perímetro era limitado a Oeste pelo rio Amstel (que atravessa diagonalmente a cidade) e a Nordeste pelo Jardim Zoológico (vulgo Artis), um frondoso parque onde podem ser vistos animais e plantas exóticas.
Após a guerra, o "quarteirão judeu" foi parcialmente destruído e as velhas casas substituídas por novos edifícios, onde funcionam os serviços administrativos da câmara municipal, a ópera, museus, e diversos hotéis e restaurantes.
No espaço, anteriormente ocupado pelo bairro, foram entretanto surgindo museus e memoriais ligados à história da comunidade judaica na cidade e na diáspora. Este quarteirão cultural judeu, inclui, para além da "Sinagoga Portuguesa" (construída em 1675), o "Museu da História Judaica", o "Memorial Nacional do Holocausto" e o "Museu Nacional do Holocausto", que podem ser visitados comprando um bilhete único pelo módico preço de 15euros.
Dispensámos a Sinagoga, que já conhecíamos de anteriores visitas, e iniciámos a visita pelo "Museu da História Judaica", a peça de resistência deste périplo, onde pode ser vista a exposição "The Power of Pictures - Fotografias e Filmes da antiga União-Soviética". Fotografias, filmes e "affiches" das décadas vinte e trinta do século passado, quando o movimento avantgardista russo atingia o seu auge. Admiráveis trabalhos fotográficos de Rodchenko, Schaikhet, Shudakov, Petrusov, Zelma, Penson, Nappelbaum, Ignatovich e filmes clássicos de Eisenstein, Barnet, Kuleshov, Pudovkin, Turin, Kalatozov, Vertov (que podem ser visionados em projecções diárias), para além da excelente colecção de "affiches" revolucionários que, um século mais tarde, permanecem verdadeiros ícons da arte.
Seguimos para o "Memorial do Holocausto", situado no Hollandsche Schouwburg, a antiga sala de espectáculos da cidade, construída em 1892. Entre Julho de 1942 e Novembro de 1943,  o Schouwburg foi utilizado como lugar de deportação. Os judeus de Amsterdão e arredores, tinham de apresentar-se no teatro, para serem deportados, ou eram levados à força. Ali aguardavam dias, às vezes semanas, pelo transporte para os campos de Westerbok e de Vught, perto da fronteira alemã. Daí, eram metidos em combóios que os transportavam para os campos de extermínio. Depois da guerra, o edifício deixou de ser utilizado e acabaria por ser parcialmente demolido. Já em 1962, a Câmara de Amsterdão decidiu erigir um monumento em honra das vítimas, situado num pátio interior do edifício. Recentemente, outro presidente da câmara, o judeu Ed van Thijn (ele mesmo uma vítima da guerra) inaugurou um novo memorial, constituido por placas de vidro nas paredes, onde podem ser lidos os nomes das 6700 famílias dos 104.000 judeus mortos.
Em frente ao teatro, do outro lado da rua, está situado o "Museu do Holocausto", no lugar onde existia uma creche e eram recolhidos os filhos das famílias deportadas. Muitas dessas crianças acabariam por ser levadas clandestinamente, por membros da resistência holandesa, que os entregavam a famílias adoptivas no Sul da Holanda, onde ficaram até ao fim da guerra.
O Museu, inaugurado em Maio este ano, dispõe apenas de três salas. Na primeira, pudemos assistir a um filme sobre o pintor (e actor) Jeroen Krabbé, cujo avô foi levado e morto em Sobibor. No documentário (50') Krabbé explica os motivos e o processo de trabalho seguidos, que o levaram a mergulhar na história da família e na tragédia do seu avó Abraham. Depois, passámos à sala da exposição propriamente dita, sobre a vida, a prisão, o transporte e a morte de Abraham, intitulada "O declínio de Abraham Reiss". Nove "tableaus" de 3x2metros de altura, belos e horríveis na sua crueldade, onde a técnica mista de óleo, desenho e colagem, serve o propósito dramático do autor.
A última sala, seria a mais surpreendente. Num espaço vazio, onde estão instaladas duas mesas com terminais de computadores, os visitantes podem inserir dados sobre familiares mortos ou desaparecidos na Holanda. Os dados são imediatamente projectados numa das paredes da sala, transformada num écran gigante de computador, que envia a informação para todo o Mundo em simultâneo. Assim se preserva a memória.           

2016/10/20

Outono em Amsterdão (2)



Nem só pelos canais é conhecida a cidade de Amsterdão. Uma das áreas onde mais se investiu, nos últimos anos, foram as zonas verdes (parques e bosques) que ocupam grande parte do tecido urbano. Um dos parques mais agradáveis da cidade é, actualmente, o Westerpark, situado num antigo bairro operário com o mesmo nome. O parque, criado no século XIX, serve os habitantes do bairro e alberga a antiga fábrica de gás da cidade (construida em 1888), um complexo de edifícios em tijoleira vermelha, a lembrar o estilo britânico da era da industrialização. Está situado ao longo da Haarlemmerweg, uma via rápida que liga Amsterdão à cidade de Haarlem.
Nos anos sessenta, com a descoberta de gás no mar do Norte, a fábrica tornou-se absoleta e foi encerrada. Os seus edifícios seriam mais tarde ocupados por "krakers" (movimento de ocupação de casas) que transformaram o espaço em "ateliers" e serviços comunitários diversos. A fábrica foi preservada pelo município e classificada como "arqueologia industrial". Depois de alguns anos encerrado, o Westpark reabriu ao público em 2003, agora dividido em duas zonas distintas, Norte e Sul, separadas pelo antigo complexo industrial, totalmente recuperado e onde funcionam "ateliers", "galerias de arte, "start-ups", dois restaurantes, o café "loja do pão" (que fabrica e vende diariamente pão fresco), para além de um auditório ao ar livre, o "North Sea Jazz Club" e um cinema de arte "Het Ketelhuis", que exibe filmes clássicos. Devido à temperatura convidativa, o parque estava cheio de famílias e turistas que enchiam os multiplos recantos desta Amsterdão ainda relativamente desconhecida.
Outro "must" a visitar, é o edifício "Eye", que alberga a cinemateca de Amsterdão. Inaugurada em 2012, esta construção modernista, a lembrar um avião supersónico, está situada na margem norte do Ij (o canal que divide o Norte do centro da cidade). No "Eye" podem ser vistos filmes clássicos e em estreia (8 salas de projecção), para além de exposições temporárias, sempre surpreendentes. Depois das grandes exposições dedicadas a Kubrick, Fellini, Kronenberg e Antonioni, que tinhamos admirado em anos anteriores, foi a vez de apreciar "Celluloid", uma instalação colectiva de artistas fascinados pelo material filmico e por máquinas de projecção de 16mm e 35mm. Uma agradável surpresa onde, entre nomes mais consagrados, como Rosa Barba, Tacine Dine, Sandra Gibson e Luis Recoder, podem ser vistos trabalhos dos portugueses João Maria Gusmão e Pedro Paiva, no caso as curtas "Onça Geométrica" (2013) e "Glossolalia" (2014). A visita, à loja da cinemateca, é imperdível, assim como a vista panorâmica do "skyline" da cidade,  a partir da esplanada do "Eye".
Dali, seguiriamos para a FOAM, uma galeria especializada em fotografia, que neste momento alberga quatro exposições, todas elas interessantes: "Dinastia Marubi" (diversos "portraits"de uma colecção de 150.000 negativos, feitas num dos primeiros estúdios albaneses); "Made in China", de Olya Oleine, uma pequena e representativa exposição a preto e branco, sobre a China actual; "Night Soil" de Melanie Bonajo, composta de pequenas curtas metragens sobre movimentos feministas norte-americanos e "Safe Passage", com trabalhos do conhecido dissidente chinês Ai Weiwei, sobre os refugiados da guerra que dão à costa grega. Weiwei, actualmente a viver em Berlim (após a sua libertação em 2015), fotografou e filmou dezenas de famílias de refugiados nos campos de acolhimento montados na ilha de Lesbos. Centenas de polaróides, que cobrem literalmente as paredes de um dos andares do edifício, numa avalanche de informação que nos interroga sobre o drama existencial de milhares de vítimas da guerra. Numa sala separada, fotos tiradas pelo artista em cativeiro, algumas verdadeiramente hilariantes, onde podem ser vistos diversos agentes chineses à paisana, que Weiwei (impedido de sair de casa) ia fotografando da sua janela. As fotos tiradas, com pequenos intervalos de tempo, são acompanhadas de legendas irónicas sobre o trabalho de observação e controlo levados a cabo pela polícia chinesa. Uma dor de cabeça para as autoridades, o activista Ai Weiwei, certamente um dos artistas mais criativos da actualidade. A não perder, para quem se desloque à cidade antes de Janeiro. 

2016/10/19

Outono em Amsterdão

Sair de Lisboa e chegar a Amsterdão com 24 graus de temperatura positiva é coisa que, raramente, nos lembramos de ter experimentado. E, no entanto, foi isso que aconteceu há umas semanas atrás, aquando da nossa última visita àquela cidade holandesa, onde se fazia sentir um Outono, digno do melhor "indian summer". Doze dias de Verão meridional, a lembrar que o "aquecimento global" não é uma palavra vã. Mais uns anitos e teremos vinhas plantadas nas margens do Amstel...
Para quem se queixa da gentrificação em Lisboa, a capital holandesa oferece um bom exemplo do que nos está reservado. Não que o fenómeno seja novo (afinal, a cidade sempre foi uma das mais visitadas da Europa), mas a dimensão do "estrago" começa a ser de tal ordem que, passear e viver no centro daquela que foi uma das mais pacatas urbes europeias, é o mesmo que desembarcar numa grande Disneyland enxameada de turistas, lojas de conveniência e "fastfood" em todas as ruas. Algo que um famoso escritor holandês, do século passado, apelidou de "patat cultuur" (a cultura da "batata frita"), ao escrever sobre as transformações sofridas num dos bairros mais sofisticados da cidade. Dirão que não há nada a fazer e o turismo é predador. É verdade. O turismo de massas descaracteriza as cidades, principalmente quando os habitantes locais são literalmente "expulsos" das habitações - onde sempre viveram e pagavam rendas razoáveis - para darem lugar a novos moradores (com poder de compra) e a novos prédios, transformados em AirB&bs, uma tendência das grandes urbes na era dos voos "low-cost". Foi assim em Veneza, como em Barcelona ou Berlim, cuja municipalidade se viu obrigada a impôr restrições à proliferação de hóteis baratos, única forma de preservar prédios para habitação social. Amsterdão não é excepção (recebe 15 milhões de turistas ao ano!) e muitas das habitações sociais, quando vagam, deixam de pertencer ao sector de arrendamento e passam a ser vendidas no mercado livre. Manter uma casa no centro histórico é um privilégio, só ao alcance daqueles que lá moram há gerações ou novos proprietários endinheirados. Pelo meio, as lojas de conveniência, restaurantes "fastfood" e "hostels", continuam a proliferar. 
Porque a cidade é relativamente pequena (700.000 habitantes) fácil é percorrê-la nos eléctricos e autocarros, que nos levam a qualquer bairro periférico. Foi o que fizemos, logo na primeira noite. Alertados pela programação do Teatro Munganga, uma companhia brasileira local a comemorar o seu 20º aniversário, lá fomos ouvir o grande Rogério (Bicudo de seu apelido), um tocador de violão de 5 quilates, velho amigo das músicas e não só. O concerto, intitulado "As Américas", foi uma excelente forma de conhecer e rever autores tão díspares como John Coltrane, Wayne Shorter (USA), Eric Calmes (Curaçao), Leo Brouwer (Cuba), Agustin Barrios (Paraguay), Villa-Lobos, Garoto, Nelso Cavaquinho ou Baden Powell (Brasil). Uma "performance" inesquecível, de um virtuoso guitarrista que, às vezes, passa por Lisboa. No final, tempo para uma "caipirinha" e troca de impressões sobre a actual situação brasileira, que a comunidade "brasuca" vê com apreensão. Há por aqui mais apoiantes do "Fora Temer", do que eu suspeitava. A estadia não podia ter começado melhor...    

foto Editie NL / Agnes de Goede

 

2016/10/06

Inequívoca



...A eleição de António Guterres para secretário-geral das Nações Unidas, após um processo que nunca deixou dúvidas, pese o aparecimento de uma candidata "fora de borda", na última semana de votações. De longe, a melhor prestação de todos os candidatos na fase preliminar, em foi submetido às questões de um painel de jurados e da Assembleia Geral das Nações Unidas: no conhecimento dos "dossiers", na análise das questões internacionais e nas línguas faladas, em que respondeu directamente às questões postas pela assistência. Uma verdadeira "sabatina", na clareza das ideias e propostas apresentadas, na competência técnica demonstrada e no entusiasmo posto em todas as respostas. Sou insuspeito, dado não ter sido um político que me tenha agradado particularmente durante o período da sua governação, mas que reconheço ter feito um bom lugar como Alto Comissário das Nações Unidas, certamente o trampolim decisivo para este novo cargo.
Resta, agora, aguardar pelo próximo mês de Janeiro, quando iniciará oficialmente as suas funções, num Mundo onde a guerra, a fome, as desigualdades sociais, os problemas climatéricos, o terrorismo e a questão dos refugiados, serão as principais questões com que terá de lidar.
Para já, regozijemo-nos com esta vitória, que é boa para Guterres, para Portugal e para a Europa. As Nações Unidas fizeram uma óptima escolha, já que um bom secretário-geral poderá trazer um novo "élan" a um organismo que já conheceu melhores dias.