2020/10/25

Cultura, pandemia, gangrena e drinks de fim da tarde



Haverá dúvidas de que a “cultura” é mansa? 

Mesmo depois de tantas “flight cases” plantadas no Terreiro do Paço e na CM do Porto, projecções coloridas em edifícios, e outros protestos murchos, a "cultura" continua em processo de gangrena. As restrições às actividades culturais trazem consequências dramáticas, mas em Portimão parece que estamos noutro planeta. Que diferença para as salas fechadas ou a meia haste que por aí vamos vendo.



Não pretendo aqui fazer uma análise do sector da cultura em Portugal nem estou habilitado para o fazer. Pretendo apenas chamar a atenção para umas tantas incoerências e, sobretudo, para a passividade inacreditável com que o sector da cultura, certamente inebriado pelos drinks de fim de tarde, assiste à crise que se instalou. Com olhar bovino, como o de quem aguarda a vez para entrar no matadouro. 

O sector cultural, face ao valor previsto para a cultura, limita-se a largar, com ar enfadado, uns bitaites e umas queixinhas avulsas nas redes sociais e em entrevistas mais ou menos folclóricas. Não há qualquer organização, não se ouviu uma palavra  dos agentes culturais quanto a um projecto de recuperação deste sector, nem uma ideia para aplicações dos fundos estruturais que aí vêm. Nada. Os portugueses, por seu lado — povo que saca também, sem perceber o que está a fazer, o revólver quando ouve falar em cultura —  aceitam, sem problema de maior, que fechem salas de espectáculo, acabem festivais, produtoras, editoras, que continuem a sair dezenas e dezenas de jovens das escolas de artes, músicos, actores, técnicos, sem que exista perspectiva de trabalho no imediato e sem que existam possibilidades de exercerem as profissões que escolheram no futuro. Não há maneira de os acolher e, no futuro, vai ser pior. Mas eles continuam a sair das escolas. Imagino que, por este andar, os únicos locais onde poderão encontrar trabalho daqui a uns tempos seja nas igrejas... 

É que, aposto, os portugueses serão sensíveis a um outro tipo de reivindicações e o nível da gestão pública que temos não dá para mais. Há dias, a propósito da "crise" em Fátima, o líder parlamentar do PSD, um deputado chamado Adão Silva, e os deputados "sociais-democratas" eleitos por Santarém, vieram reivindicar "apoios sociais e fiscais," chamando a atenção para o facto de a região ter sido atingida pelas consequências económicas da pandemia e exigindo medidas “no âmbito dos impostos, nos apoios vários às empresas e do ponto de vista social”. Em causa está o OE 2021 e mesmo os fundos estruturais. O que os deputados em questão estão a reivindicar é um subsídio a uma crença religiosa, pago, directa ou indirectamente, por todos os contribuintes, acreditem ou não nessa crença. E estamos com sorte por não terem sugerido a obrigação de cada português ir passar o fim de semana a um hotel em Fátima. O que está em causa aqui não é a reivindicação em si. Fazem pela vida. O que aqui parece bizarro é que os deputados se sintam legitimados a fazê-la, enquanto outros sectores, de importância vital e muito mais abrangente para o país o não façam. Como o sector da cultura, por exemplo.

O que se vai vendo no que respeita a este sector é um escândalo. Sem resposta. Os milhões chovem só para um lado, sem que ninguém se indigne com o assunto. As televisões, por exemplo, receberam balúrdios à pala da pandemia. Deveriam ter sido obrigadas a reprogramar as suas grelhas com música, teatro, dança, circo, etc., português. Mas que raio de ideia de cultura tem o Governo? O que é que o PM e o PR vêem para além do namoro aos "artistas" que lhe trazem votos? Conseguirão ter uma ideia de cultura para além do barulho das luzes e dos vapores dos drinks? Se têm, não se vê.

No que diz respeito à cultura, estamos em plena era da pedra lascada. Agora disfarçada com eventos e entretenimento. Anda tudo a dormir. Estou em crer que é a própria “cultura“ que não se leva a sério e não acredita em si. Venham mais umas corridinhas de carrinhos e motinhas!!

2020/10/22

Baile de Máscaras


"Paira um espectro sobre a Europa" e, desta vez, não é o Comunismo, anunciado por Karl Marx e Friedrich Engels, na famosa primeira frase do "Manifesto", publicado em 1847. 

Quando, no início deste ano, fomos alertados para o aparecimento de um vírus na China e, posteriormente, na Europa (Itália), a maior parte de nós imaginou uma "coisa" só possível de acontecer noutros países e, no limite, que seria passageira... Uns comprimidos anti-virais e distanciamento social q.b. para afastar o "bicho" e não teríamos nada a temer. 

Como sabemos hoje, a realidade rapidamente ultrapassou a ficção e bastaram poucas semanas para que a maioria dos países (na Europa e não só) adoptasse medidas restritivas de circulação dos seus cidadãos. Uns chamaram-lhe "estado de emergência", outros "estado de calamidade", outros "intelligent lock-down", outros "imunidade de rebanho" e outros, ainda, optaram por ignorar a pandemia, comparando-a a uma "gripezinha"...

Também já nessa altura (inícios de Março) a China e os países asiáticos circundantes, os primeiros a serem atingidos pelo vírus, alertaram para o perigo do alastramento da pandemia a outros continentes e para uma 2ª vaga de  contaminações, que poderia surgir no Inverno e iria ser bem mais mortífera do que a primeira. Isto, enquanto não for descoberta a "milagrosa" vacina - que não curará ninguém, como é óbvio, mas contribuirá para aumentar a imunidade e, dessa forma, diminuir os contágios. 

Pois bem: a vacina ainda não existe, o Inverno está à porta e a 2ª vaga do Coronavírus já começou. 

Estamos a 22 de Outubro e o "site" da "Worldmeter" (OMS) registra 41 652 322 infectados (1 138 678 mortes) em todo o Mundo. Metade destes números diz respeito a 3 países apenas: EUA, Índia e Brasil. 

Seguem-se países europeus, como a Rússia (1 463 306 infectados/25 242 mortes), Espanha (1 046 641/ 34 366) e, mais atrás, países médios como a Holanda (262 405/6919) ou a Bélgica (253 386/10 539). Portugal está, nesta lista, em 43º lugar, com 109 541 infectados e 2245 mortes, respectivamente.      

Entretanto, a OMS já veio alertar para uma provável duplicação destes números, daqui até ao fim do Inverno, ou seja, após um ano de epidemia global. 

Que fazer? Este é o dilema da maioria dos países democráticos onde grassa uma epidemia sem paralelo (a última grande epidemia - a gripe espanhola - data do século passado) confrontados com a difícil equação entre "confinamento" e "circulação", já que a "economia não pode parar". 

Portugal atingiu, hoje, um recorde absoluto de infectados num só dia (3270), mais do dobro desde o mês de Abril, no "pico" da 1ª vaga. Estes números fizeram soar as "campainhas de alarme" do governo e a adopção de novas medidas sanitárias, ainda que a palavra "confinamento" continue a ser evitada. Desde logo, impondo um "cordão sanitário" a 3 freguesias do Norte, onde se verificou um novo surto e, depois, a proibição de circulação, entre todos os concelhos do país, no período compreendido entre 30/10 e 3/11 próximos. Uma medida extrema, que não acontecia desde a última Páscoa.

Segue-se, amanhã, uma discussão na AR sobre outras medidas urgentes a tomar, que incluem uma proposta do PSD (obrigatoriedade de máscara na via pública) a qual terá uma aceitação pacífica. Menos aceitável, foi a proposta de um "app" obrigatório, por sugestão do primeiro-ministro, liminarmente rejeitada por todos os partidos e pela opinião pública em geral. Compreende-se a preocupação de Costa: limitar danos económicos e sociais (na 1ª vaga perderam-se mais de 100 000 postos de trabalho), mas "apps" obrigatórios, só na China, que é uma ditadura e o "controlo digital" é aceite e está institucionalizado. 

Enquanto isto, continua a discussão do Orçamento de Estado que, à partida, será "chumbado" por toda a oposição de direita, mas está longe de ser aceite pelos partidos de esquerda. Estes exigem mais meios para a saúde, para apoios sociais e para investimentos públicos. Caso votem contra (o que não é expectável) o governo poderia cair e haveria eleições antecipadas em 2021. Até lá, o país poderia ser governado em "duodécimos", um modelo que ninguém deseja em tempo de pandemia. Para já, continuam as conversações e o "esticar da corda", entre o governo e o BE e o PCP, mas ninguém  acredita que este Orçamento de Estado não passe. Em ultima análise, a abstenção dos partidos de esquerda permitirá  a aprovação do OE e a sua discussão na especialidade. Em S. Bento, o baile de máscaras, continua.

2020/10/20

Bienal de Sevilha: Flamenco em tempos de pandemia (2)

 


Andrés Marín (Sevilha, 1969) é hoje um dos "bailaores" mais singulares do chamado flamenco experimental. Juntamente com Israel Galván, que tivemos o privilégio de ver na Bienal de 2018, Marín é um "bailaor" que não teme a inovação, ciente de que esta é a única forma de continuar a tradição. Nem todos os ortodoxos apreciarão o seu estilo, mas os amantes das coreografias ousadas esgotam os seus espectáculos e a crítica não poupa nos elogios. Imperdível, o espectáculo de Marín, que apresentava em estreia o seu último projecto, intitulado "A Vigília Perfeita".   

Lá fomos, pois, para um dos últimos espectáculos desta Bienal atípica, que teve lugar ao longo de seis semanas em salas e anfiteatros ao ar livre. Só era permitida a entrada depois da nossa temperatura ser medida por diligentes arrumadoras, que não poupavam no álcool-gel, nem nas recomendações habituais: máscara na cara durante todo o espectáculo e distância social de 2 metros, no mínimo. As cadeiras (de plástico), estavam agrupadas aos pares, o que facilitava a conversa, mas o frio cortante que fazia na Cartuja (local mítico da Expo Mundial de 1992) não animava a noite, que se previa longa.

"La Vígilia Perfecta", uma maratona de baile, foi dançada entre as 6h. da madrugada e as 9h. da noite e decorreu no Centro Andaluz de Arte Contemporânea (La Antigua Cartuja Santa Maria de las Cuevas de Sevilla) que, no passado, acolheu monges e hoje acolhe obras de arte. Desde as seis da manhã, foram encenados e dançados a solo, pequenos quadros de 8 a 10 minutos, representando as diferentes liturgias da ordem religiosa que por ali passou. Estes pequenos "sets" não tiveram a presença do público que, no entanto, podia segui-los "online". À noite, já com público presente, o "bailaor", acompanhado de 4 instrumentistas e um "cantaor", dançaria todos os quadros cronologicamente, num espectáculo que durou cerca de 75 minutos. 

Que dizer de um dos mais brilhantes dançarinos flamencos da actualidade e de um espectáculo, a todos os títulos, brilhante? Uma epifania, a confirmar tudo o que lemos e ouvimos sobre Andrés Marín, aqui excelentemente acompanhado por Alfonso Padilla (saxofone alto), Daniel Suárez (percussão) Curro Escalante (marimbas e percussão), Francisco López (sonoridades) e Cristian de Moret (cantaor) que estiveram à altura do "mestre". Um espectáculo hipnótico, recriado junto das antigas chaminés do Convento, desta vez envoltas em nevoeiro cénico, ao som do "taconear" e dos movimentos geométricos de Marín, um príncipe da dança actual. 

Ao fechar do pano, uma notícia da última hora, que só poderá encher de alegria os "aficionados" da Arte "Jonda". No decorrer do mês de Outubro, abrirá as suas portas o "Museu Camarón de La Isla" (S. Fernando de Cádiz), uma das grandes figuras do "cante" de todos os tempos. O Museu, que não substituirá a "Casa de Camarón" (esta pode continuar a ser visitada), é um investimento de vários milhões de euros, que sairão de Fundos Europeus, da Junta de Andaluzia e do "ayuntamiento" de S. Fernando, sua cidade natal. Finalmente, o nome maior da renovação do Cante Flamenco, irá ter a "casa" que merece. A Andaluzia, está de parabéns. Mais um lugar de visita obrigatória. Lá iremos.  

        

    


2020/09/24

Bienal de Sevilha: Flamenco em tempos de pandemia

Quando, em finais de Junho, foi anunciada a XXI Bienal de Flamenco, provavelmente a mais representativa Mostra do "estado da arte" no Mundo, muita gente duvidou da sua realização. A Espanha acabava de sair de uma grave crise sanitária e os traumas (provocados por longos meses de confinamento) continuavam presentes na memória de todos que, directa ou indirectamente, foram atingidos pela pandemia. 

Apesar das dúvidas e (justificados) receios, resolvemos arriscar. Consultado o programa, avançámos para a compra dos espectáculos que, à partida, mais garantias davam de uma qualidade testada em anteriores actuações. Acontece que, a pandemia, veio exigir regras mais apertadas, entre as quais a redução dos lugares disponíveis nas salas programadas. Rapidamente, os concertos mais badalados esgotaram e, quando tentámos reservar, era tarde. Perdemos, assim, a oportunidade de tornar a ver a "cantaora" Estrella Morente (filha do grande Enrique), o "bailaor" Israel Gálvan (provavelmente o melhor dançarino da actual geração) e "El Farruquito", neto do mítico Farruco, hoje um um nome maior do "baile". Mas, todos eles vão andar por aí, pelo que não faltarão oportunidades para rever a sua arte. 

Porque a escolha é imensa e a qualidade uma garantia da Bienal, optámos por outros nomes conhecidos de anteriores actuações. Estão, neste caso, a excelente "bailaora" La Choni, cujo percurso acompanhamos desde 2008 e Antonio Canales, um dos maiores ícones do baile flamenco tradicional, que tivemos o privilégio de ver no CCB de Lisboa. Outras escolhas, foram os concertos de Berk Gurman, cantor de origem turca, residente em  Córdoba e do "bailaor" Andrés Marin, outro nome consagrado da dança Flamenca, este programado para o próximo dia 3 de Outubro.

Algumas notas, necessariamente impressionistas, sobre os espectáculos já presenciados:

O concerto "Flamenco, tres culturas: da Anatólia a Andalucía", tinha um título promissor, pese embora o relativo desconhecimento do intérprete, um cantor e guitarrista turco que, há 20 anos, trocou Istambul por Córdoba onde, desde então, prossegue uma carreira artística dividida entre a aprendizagem da guitarra clássica espanhola, actuações ao vivo e gravações regulares do seu repertório, cujo "core", é constituido por textos de poetas turcos e música tradicional da Anatólia. A actuação de Gurman, que se acompanhou à guitarra, decorreu no pátio do pavilhão de Marrocos, oferecido a Sevilha, após a Expo'92.  Ambiente de "mil e uma noites",  onde não faltou a lua mediterrânica a iluminar um palco ao ar livre. Concerto algo estranho, já que a tentativa de fusão entre o tradicional "lamento" oriental e o "duende" flamenco, nem sempre funcionou, pese embora a excelente voz e o dramatismo inerente à tradição turca que, de tão belo, não necessita de tradução para comunicar. Ciente da importância da "mensagem", Gurman - um bom comunicador - teve o cuidado de resumir cada canção e, nesse sentido, não podia ter feito melhor. Já a parte musical, ainda que esforçada, nos pareceu algo repetitiva, quiçás devido à técnica que o cantor/instrumentista utiliza na guitarra flamenca, a lembrar o toque de instrumentos de tradição oriental como "oud"  e o "bouzouki", menos melódicos e de toque mais rasgado que a guitarra espanhola. 

Asunción Pérez, do seu nome artístico "La Choni", é hoje um nome estabelecido no exigente circuito flamenco de Sevilha, onde reside. Acompanhamos o seu percurso, desde 2008, quando a vimos dançar pela primeira vez no clube "Los Gallos", um das mais emblemáticos "tablaos" de Sevilha, onde era "bailaora" residente. Desde então, de Copenhaga (Womex 2009) a Sevilha (Casa da La Memoria, 2011), passando por uma memorável actuação num teatro da provincia andaluza, onde apresentava a "peça" teatral dançada, "Gloria de Mi Madre" (galardoada com inúmeros prémios, entre os quais o "Melhor Espectáculo Dançado" de 2010 e o "Compás de Espera" de 2015), "La Choni" não parou de coleccionar distinções e merecidos elogios. Para a Bienal deste ano, que esteve em risco até ao Verão, criou "Cuero / Cuerpo", uma aposta arriscada, algures entre a dança flamenca clássica, a dança moderna e o teatro, sua imagem de marca. Dividido em quatro "quadros" distintos, a peça procura ser um libelo pela emancipação artística e feminina da intérprete principal (La Choni). Uma peça feminista, no sentido literal do termo, onde a mensagem (por vezes, demasiada explícita) é sublinhada pelos excelentes acompanhantes masculinos da companhia: Manuel Cañadas (Professor da Tradição),Victor Bravo (Mefisto) e Raul Cantizano (Ambientes Musicais). Após um início, algo lento e titubeante, a peça ganha fôlego com a entrada de Cañadas (um príncipe da dança) no papel de professor exigente e castrador, contra o qual a "bailaora-aprendiz" se liberta ao conhecer "Mefisto", que a inicia na dança moderna ("Charleston" e "Swing", no 3ª quadro) e ganhar consciência da sua condição como mulher. O 4ª e último quadro, mostra-nos os três intérpretes em despique e luta, após o que a "bailaora"/mulher se liberta, seguindo o seu caminho, numa (re)interpretação final da tradição, agora inovada. Os ambientes musicais, criados por Raul Cantizano, pareceram-nos aqui e ali algo "deslocados" (uma estridente guitarra electrificada, por exemplo), assim como uma simbologia demasiado explícita (a "mensagem" podia ser mais "distanciada"). Trata-se, no entanto, de um bom espectáculo, onde a soma dos quatro intérpretes (todos magnifícos)  parecem valer mais do que a (história da) peça, a necessitar de alguns afinações, que a rotina de actuações futuras, certamente, trará. 

Finalmente, Antonio Canales, um "monstro" da dança flamenca, que não necessita de apresentações. Vimo-lo num espectáculo memorável, no CCB de Lisboa, vai para dez anos, à época ainda no apogeu da sua arte. Voltámos a revê-lo, numa homenagem prestada em Utrera, em 2019, onde se limitou a dançar uma "seguiriya", acompanhado pela mãe, no fim do espectáculo. Muito pouco para tanta arte. Sabíamos que dificilmente voltaríamos a vê-lo dançar e foi com surpresa que vimos o seu nome anunciado no programa da Bienal deste ano. O espectáculo, intitulado "Canales: Torero & Sevilla a Compás", afinal, eram "dois"...Uma primeira parte, onde um excelente corpo de "baile", acompanhados por "tocadores" e "palmeros", recriou o maior êxito de Canales, "Torero" (1994), num cenário de uma praça de touros; e uma segunda parte, onde o "maestro" foi a figura principal, dançando e citando o poeta Antonio Machado, fio-condutor da história sevilhana que Canales recriou. "Torero", dançada magnificamente por Pol Vaquero (no papel que celebrizou Canales) e por Mónica Fernandez (no papel de "touro"), é uma representação cronológica do ritual da tourada (desde a "extrema-unção" do "matador" nas catacumbas, até à lide na arena, terminando com o apoteótico "corte de orelha" e a saída em ombros do toureiro). O baile seria aclamado pelo público presente na sala do Lope de Vega, com "olés" significativos. Ficámos na dúvida se eram dirigidos ao bailarino ou ao toureiro...Em tempo de "politicamente correcto", um tema claramente datado, ainda que a Andaluzia seja, por definição, a região da "arte" do espeto. Resumindo: grandes dançarinos (solistas e corpo de baile), que honraram o nome de Canales, o "mestre" que, na segunda-parte, tomou conta do palco e, entre passos de dança e poemas de Machado, teve direito aos holofotes que continuam a iluminar uma carreira sem par. 

Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se. Olé!    


 

 

         

 

    

  

2020/09/13

Cucú...

Há várias palavras que me vêm à mente quando penso no recente episódio do apoio do Primeiro Ministro António Costa à candidatura do presidente de um clube de futebol. Nenhuma delas é simpática. Fiquemos por três das mais benignas: vergonha, irresponsabilidade e traição. 
Quando António Costa se candidatou ao cargo de Secretário Geral do seu partido fui um dos que passou por todo aquele processo de inscrição no PS para poder votar nas eleições abertas que o conduziram a esse cargo. Não sou dessa área política e nunca estive militantemente envolvido nela. Tenho, aliás, as mais sérias reservas em relação ao PS. Mas o trauma causado pelo Coelho et al era imenso e numa perspectiva democrática e de esquerda, o PS parece ser um partido que tem um papel importante a desempenhar. Entendi então — eu e, pelo que sei, muita gente como eu — que a unidade de esquerda é um valor absolutamente vital e que, nesse contexto, Costa parecia a pessoa indicada para a promover. Aquele primeiro mandato correu inegavelmente bem. A fasquia também não estava muito alta, é certo, tal foi o descalabro do governo anterior. Mas mesmo com a fasquia baixa haveria sempre a possibilidade de passar por baixo, o que não foi o caso. Este segundo mandato começou mal. A pandemia veio pôr a capacidade do governo e da oposição à prova. Se é certo que a oposição foi igual a si própria, ie, um desastre, do PS esperar-se-ia muito mais. A oportunidade oferecida pela crise para criar condições de reequilíbrio e retoma foi vergonhosamente desperdiçada. Nem a pseudo indignação perante as atitudes criminosas dos dirigentes de alguns países europeus nem a bravata da "bazuca" podem esconder a falta de golpe de asa, a submissão aos grandes interesses e a condescendência para com as forças que teimam em conduzir o mundo para o cataclismo final. O governo PS tem sido um desastre que se tem, a pouco e pouco, aproximado daquele partido que nos habituámos a ver envolvido com a direita, no regabofe a que eufemisticamente se chamou de "arco da governação." A reaproximação de algumas figuras particularmente sinistras do PS, a que ultimamente temos assistido e as públicas provas de dissensão interna vêm provar que a deriva era real e não uma fantasia. Não era, afinal, fruto de uma qualquer teoria da conspiração mal enjorcada. A provocação insuportável feita agora aos partidos da coligação informal de esquerda, que foi feita a propósito do OE, não é uma tentativa de estabelecer um compromisso realista, é uma chantagem miserável, mais um episódio naquele processo de meter o socialismo na gaveta, que infelizmente parece ter dado novamente à Costa... Passámos da terceira via para a via Vieira. Uma vergonha tudo isto, portanto, em nome do chuto na bola... 

Mais do que o exercício de um direito que assistiria a Costa, como cidadão, não fosse ele Primeiro Ministro, esta inclusão na "comissão de honra" de um candidato à direcção de uma agremiação do chuto na bola cava um fosso brutal na sociedade portuguesa. A "futebolização" do processo político é um erro trágico. O futebol tem peso, é certo, mas terá efeitos em todas as direcções. Afasta os adeptos dos outros clubes e não é sequer unânime dentro do seu clube. Tudo isto seria mau em qualquer altura, porque a responsabilidade sagrada de um dirigente político é construir a unidade do povo que serve e contribuir para a preservar. Mas num momento como este, essa responsabilidade é ainda maior, porque o que ele está a pedir repetidamente aos portugueses é que não se esqueçam disso. Só juntos vamos conseguir ultrapassar a "crise," ouvimos dizê-lo até à exaustão. Perdeu agora toda a autoridade para o fazer e colocou com isso o povo que serve numa situação de risco. Ele é o chefe de um executivo que tem responsabilidades na condução de uma política que por mais bem gizada que estivesse tecnicamente (e aí também há inúmeras razões de queixa,) necessitaria sempre de uma coesão total do país para ter sucesso. Imagine-se o que é um tipo qualquer de outro clube se recusar a usar máscara ou, infectado, a obedecer a uma imposição de quarentena porque o Costa é "lampião"... O pior que nos poderia acontecer era entramos em autogestão. Mas as portas estão escancaradas para que isso aconteça. Uma irresponsabilidade, portanto, em nome do chuto na bola... 

Quando fomos fazer aquela inscrição no PS para conduzir António Costa ao cargo de Primeiro Ministro, fizemo-lo em prol da ideia de Democracia e numa perspectiva de esquerda. Democracia e esquerda! O contrato era este: preservar os princípios da Democracia numa perspectiva de esquerda, assente em ideais de esquerda, humanistas e de solidariedade social. Esta atitude do Primeiro Ministro põe em causa este combate e fere o nosso contrato. O futebol é um campo de divisão. Enfraquece, estupidamente, o combate ao criar condições para afastar dele os cidadãos, em vez de os congregar. E começa logo por afastar gente de outros clubes e, até muita gente dentro do seu clube, que não se identifica com o candidato que ele apoia. As consequências de tudo isto vão certamente ser desastrosas para o regime democrático, na perspectiva de um pensamento de esquerda. Não foi isto que nos levou a apoiá-lo. Trata-se, portanto, de um traição aquilo para que António Costa arrastou aqueles que atraiu em 2015. Em nome do chuto na bola... 

Tudo isto é tão bazaroco que a única explicação possível que encontro é esta: António Costa está cansado, farto do cargo, deve ter arranjado já um tacho qualquer numa dessas instituições internacionais, onde todos eles acabam, quer provocar eleições e pôr-se ao fresco. Poderá também estar a precipitar uma crise no próprio PS. Porque se é certo que o PS é necessário à Democracia, também é verdade que o PS é necessário... ao PS. Uma coisa é garantido: vai à vida dele. Outra coisa garantida: com o meu voto e o meu empenho, os Costas deste mundo não vão de certeza voltar ao poleiro.

2020/09/01

Silly Season: "Olhe, vá ao "site"!

Para quem, vindo da Andaluzia, entra de carro no Algarve, a travessia fez-se pela ponte do Guadiana, junto a Castro Marim. Uma vez passada a fronteira, são três as direcções possíveis: sair pela direita em direcção a Alcoutim; sair pela esquerda, em direcção a Vila Real de Santo António; continuar em frente pela A22 (mais conhecida por Via do Infante). A última opção, implica pagar portagens, uma modalidade criada em 2003, quando a Via do Infante, pensada inicialmente como via rápida (IP), passou a auto-estrada e foi concessionada por um período de 30 anos.

O que, na maioria das auto-estradas portuguesas pode ser feito através do pagamento a um funcionário ou, na ausência deste, através de uma máquina que aceita cartões de crédito, torna-se mais difícil, na A22, onde a operação é ligeiramente mais sofisticada. Se o carro tiver o sistema de "via verde", não há problema. Se o carro tiver matrícula estrangeira (e se fôr alugado) a coisa complica-se.

Um exemplo, vivido em meados da Agosto: 

Uma vez passada a ponte do Guadiana, deparamo-nos com um grande cartaz azul com estrelinhas da UE, onde os estrangeiros são alertados (em duas línguas) para o pagamento de peagem, através de uma máquina instalada no posto fronteiriço do lado português. Encontrada a máquina, tentámos activar o cartão de crédito com vista a pagar automaticamente as peagens seguintes. Debalde. A máquina não reconhecia o cartão. Explicámos o problema a um funcionário presente que, solicito, nos indicou a estação de gasolina mais próxima (saída de Olhão!) onde poderíamos comprar um cartão de crédito (5 ou mais euros), que permitia pagar peagens até ao montante "carregado" no cartão.

Lá fomos, em direcção à saída de Olhão, a mais de 30km de distância. Aí chegados, e depois de explicada a ocorrência, o empregado da estação vendeu-nos o cartão e um código, que teria de ser activado nas primeiras 24h. através de um SMS, para não termos de pagar peagens.

No dia seguinte, ao tentar activar o código fornecido, fomos informados por SMS, de que tal não era possível. O sistema não reconhecia o código (!?). 

Após várias tentativas frustradas, tentámos o número de telefone de apoio ao cliente, indicado no cartão. A mensagem do operador do "call-center", indicava que o número de telefone não era válido (!?). 

Em desespero de causa, e porque o cartão fornecido, para além do "logo" das Estradas de Portugal, indicava uma parceria com os CTT, dirigimo-nos a uma estação de correios de Tavira. Podia ser que lá pudéssemos activar o cartão e pagar as portagens. Porque já passava das 13h., também a estação dos CTT estava encerrada para almoço. Uma hora de espera e nova tentativa. A funcionária, foi curta e grossa: "aqui só tratamos de matrículas portuguesas. Para matrículas estrangeiras, deve dirigir-se aos correios, no centro da cidade". 

Nova tentativa, agora nos correios centrais de Tavira. Longa fila de espera, ao sol, dado o "distanciamento social" imposto pelo Covid. Uma vez entrados, tirámos uma senha com o "número de atendimento". A máquina estava avariada, imprimia metade da senha,  mas não imprimia os números. Restava-nos perguntar quem era o último da fila e esperar...

Atendidos por uma funcionária, esta mira o cartão e repete a resposta dada no outro posto dos CTT:  "aqui só tratamos de matrículas portuguesas". 

Como? Mas, lá disseram-nos que aqui podíamos activar o cartão e fazer o pagamento...

"Pois, mas a pessoa que lhes disse isso, informou-os mal"...

Sim, mas no cartão está o vosso logotipo, logo os CTT têm uma parceria com a estradas de Portugal. 

"Pois, temos, mas não podemos aceitar pagamentos, só podemos vender os cartões"...

Mas, afinal o que é que funciona bem no Algarve, se nem sequer os estrangeiros podem pagar as portagens que lhe são exigidas? Nós só queremos pagar...

"Não podemos fazer nada...a culpa não é nossa, mas de quem emite os cartões"...

Claro, mas se nada funciona, e ninguém é responsável, de quem é a culpa? Das Estradas de Portugal? Da concessionária? Dos CTT? Explique lá, para nós percebermos...

"Olhe, aconselho-vos a irem ao "site" das "Estradas de Portugal" e tentar a "Via Livre", que é a concessionária da auto-estrada. Lá devem ter um número de contacto e podem explicar a situação"...

Consultar o "site"? E se eu não estiver ligado à NET? E se eu fôr info-excluído e não tiver computador ou sequer telemóvel? Sabia que metade da população não tem computador e 40% é analfabeta funcional? 

"Não tenho nada a ver com isso e não podemos fazer nada"...

Consultado o "site" e encontrado o contacto, explicamos pela enésima vez o sucedido. Só queremos pagar as portagens e não ficar sujeitos a multas por ultrapassar a data prevista. O funcionário, depois de ouvir-nos, pergunta: "já tentaram a "Via Verde"? 

A "Via Verde"? Porquê? O que é que eles têm a ver com isto? 

"Tente a "Via Verde" e, se eles não ajudarem, volte a telefonar-nos". 

Tentámos a "Via Verde". O funcionário, que atendeu, ri-se e diz qualquer coisa como "se calhar venderam-vos um cartão falso... mas, vou ver no computador". Uma vez confirmada a matrícula, diz que este carro já passou várias vezes a fronteira e tem dívidas de 2019 (!?). 

Dívidas de 2019? Sinto-me numa novela de Kafka. Mas, nós, só ontem entrámos em Portugal...

"Pois, mas se o carro é alugado, pode ir e vir cá, várias vezes. Estejam descansados, que não tenho aqui registrada qualquer entrada de ontem. Enquanto não entrarem dados, não mandamos as contas para Espanha e não têm de pagar nada..."

Regressados a casa, decidimos escrever um Mail às "Estradas de Portugal" a explicar a situação e exigindo só pagar os percursos feitos naquele dia. Pelo sim, pelo não, pedimos a anulação do cartão de 5euros e carregámos um novo de 10euros. Simultaneamente, telefonámos para a agência espanhola onde o carro foi alugado. Descansaram-nos: se as portagens em dívida, forem inferiores a uma determinada quantia, eles não se preocupam em cobrá-las.

P.S.: No dia 31 de Agosto, chegou uma resposta das Estradas de Portugal: o cartão de 5euros não cobre as portagens feitas no Algarve, que foram de 8,50euros, pelo que ainda devemos 3,50euros...  

2020/08/02

Silly Season: para quem acha que a CP não funciona...



Resposta a uma reclamação de 13 de Abril de 2019 
(ver "post" d.d. 16.04.19)   


Exmo(a). Senhor(a) Rui Mota,
Apresentando as nossas desculpas pelo tempo decorrido, acusamos a receção da comunicação de V. Exª, merecedora da nossa melhor atenção.
Lamentando os transtornos causados, informamos que a situação anómala verificada com o comboio Intercidades n.º 594, do dia 13 de abril/19, foi devido a avaria do material circulante, facto pelo qual apresentamos as nossas desculpas.
Informamos que, de acordo com as disposições comerciais em vigor, as condições de compensação por motivo de atraso dos comboios Alfa Pendular, Intercidades, InterRegional e Regional, se o motivo for imputável à CP e se o atraso for igual, ou superior a 60 minutos, são, para títulos de transporte adquiridos antes de conhecido o atraso, reembolso total do valor da viagem. Não há pagamento de qualquer indemnização quando o valor a pagar seja igual ou inferior a €4.
Face ao exposto, informamos que vai ser efetuada transferência bancária no montante total do valor do bilhete, ou seja 08,50€. Para tal, solicitamos que nos envie o comprovativo do IBAN para o seguinte endereço de email: xxxx@cp.pt. Deve mencionar a referência xxxx-2019-xxxx-amr.
Lamentando o sucedido e reiterando o nosso pedido de desculpas, informamos que é nosso objetivo continuar a trabalhar para garantir a melhoria da qualidade do serviço prestado.
De acordo com a legislação em vigor, nesta data será enviada cópia desta comunicação à Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT).
Apresentamos os nossos cumprimentos.

          

          DIREÇÃO DE OPERAÇÕES E COMERCIAL           
          Gestão de Reclamações

2020/07/30

Nem para embrulhar peixe


Existe um debate desde tempos imemoriais sobre o nome e a coisa. Certamente com medo que o vento leve as palavras, como refere o ditado, para uns o nome deve ser a essência da coisa. Para outros, a coisa é a coisa, o nome é apenas uma convenção que denota essa coisa. 
Vem isto a propósito de uma coisa cujo nome me recuso a escrever, mas cujas acções, porém, me suscitam alguma reflexão. Esta coisa é, supostamente, o presidente do país, auto-proclamado, mais poderoso do mundo. 
Os factos contam-se rapidamente. 

Uma mulher chamada Stella Immanuel, médica em Houston, numa clínica chamada Rehoboth Medical Center e fundadora de uma igreja chamada Fire Power Ministries, fez afirmações durante o seu "apostolado" do género de a pratica sexo com "espíritos atormentados é a causa de problemas do foro ginecológico, aborto e impotência," ou que "as mulheres são vítimas de sexo astral (sic!) regularmente. O sexo astral consiste na capacidade de projectar o espírito do homem no corpo de uma vítima e ter relações com ela." Segundo a CNN, Immanuel terá ainda dito que os médicos produzem medicamentos a partir do DNA de alienígenas e que estão a tentar criar uma vacina para nos imunizar contra a religião.
Mais recentemente, a autora destas brilhantes descobertas científicas disse que as máscaras não servem para nada e que existe uma cura para a Covid19, a tal hidroxicloroquina, entre outros, apesar de todos os estudos indicarem o contrário.
O assunto não mereceria qualquer atenção, não fora o facto de a coisa ter partilhado, através da sua conta no Twitter, o video onde a distinta esculápia fez estas últimas afirmações
Numa conferência de imprensa, ontem na Casa Branca, uma jornalista da CNN chamou a atenção para a falta de credibilidade de senhora e para o facto de a coisa lhe estar a dar cobertura, reproduzindo as suas afirmações. Ao que a coisa respondeu que "não sei de que país vem, mas ela diz que tem tido um sucesso tremendo com centenas de doentes e eu pensei que a sua voz era um voz importante, mas não sei nada sobre ela." Instada pela jornalista a precisar melhor o que queria dizer, a coisa abandonou a sala, com ar irritado. Se quiser ler o que se passou veja aqui.
É este o nível a que desceu a política na Casa Branca.
Mais uma vez, o assunto não teria importância, não fora, mais tarde, eu ter visto um outro jornalista da CNN, Anderson Cooper, em comentário a toda esta caldeirada e perante a situação de total degradação política a que as coisas chegaram no seu país, se ter posto a imitar o amuo da coisa, fazendo caras e produzindo comentários jocosos. Confesso que fiquei boquiaberto.
Lembrei-me da coisa a macaquear um repórter do NYT com uma deficiência física, que a própria CNN na altura criticou (ver aqui.) 

A coisa ditou um estilo na política que, qual monção, ameaça arrastar tudo e todos, incluindo a imprensa, que deveria ser capaz de resistir e impor um travão a tudo isto, ajudando a recolocar as coisas na sua escala correcta. 
Não admira, pois, que perante o ataque brutal de que a imprensa livre está a ser vítima, o lento assassinato de que Julius Assange está a ser vítima, perante o olhar de todos, não mereça sequer uma careta e um comentário jocoso. Foi o nível a que tudo isto desceu.

2020/07/27

A morte de Bruno Candé Marques


António Silva - Lusa
foto António Silva - Lusa

Infelizmente, Marcelo, oportunista, calou-se em relação a este caso. Teve mais que tempo para se demarcar claramente. Mas não, preferiu o silêncio. 
No capítulo da necrofilia, nestes últimos dias, o PR visitou o túmulo de Amália Rodrigues, lamentou, e bem, a morte de um bombeiro, lamentou, e bem,  a morte de Luís Filipe Costa. Mas calou esta morte. E, contudo, politicamente, esta a mais significativa.
Não interessa quantos filhos o Bruno tinha ou se o alegado assassino tinha 70 ou 80 anos. É um crime sem classificação, seja qual for a sua motivação ou causas. Uma perturbação da ordem pública com consequências perigosíssimas. Depois daquela reacção dos fascistas, devia ter respondido de imediato. 
Também lamento que António Costa se tenha limitado a mandar um segunda linha "repudiar" o acto.
Não consigo encontrar justificação para estas meias tintas. Andam todos a fintar os acontecimentos e os acontecimentos, assim, vão acabar por os fintar a eles e, por arrasto, a todos nós.
Lembro-me da reacção imediata e corajosa de condenação, inequívoca, sem dó nem piedade, de Jacinda Arden, na N. Zelândia, quando aquele assassino cometeu aquela loucura com transmissão directa, via FB. 
Resultou, aliás, disso uma tomada de medidas políticas enérgicas na hora! 
Dir-me-ão: é diferente. Pergunto: é?  Repito: é?!
Não há justificação para este silêncio. Nesta nossa sociedade não podemos tolerar coisas destas, seja qual for o motivo que lhes está na origem. 
O beijoqueiro do Marcelo esqueceu-se disso... Tudo o resto é colaboração.

2020/07/21

Dezasseis semanas noutra cidade: Balanço, Quarentena e Programa Europeu de Ajuda


Após quatro meses de "exílio forçado" em solo espanhol, eis-me de volta à pátria, agora que a fronteiras ibéricas foram abertas, com pompa e circunstância, pelos mais altos dignitários de ambas as nações. Restam duas semanas de quarentena, obrigatórias por lei, que poucas pessoas praticam, já que o controlo parece mais remoto do que de um aparelho de televisão. Sim, as indicações sobre o comportamento individual e colectivo (leia-se "distanciamento social") existem e há quem as respeite. Mas nem todos o fazem e, o que é pior, não é fácil respeitá-las. Desde logo, porque a economia não pode parar e, sem o "mercado a funcionar", não haverá dinheiro para comprar melões, mas também vacinas, que ainda não existem e não sabemos quando existirão... Depois, porque a saúde, sendo a componente mais importante, é cada vez mais cara e as prioridades nem sempre são as pessoas. Dito de outro modo: só quando a economia fôr para as pessoas, e não as pessoas para a economia, poderemos encontrar o equilíbrio necessário ao tal "crescimento sustentável" de que toda a gente fala, mas tão pouca gente pratica.  
Este é hoje o dilema da maioria dos países confrontados com a pandemia que, nalguns casos, atingiu números impensáveis há uns meses atrás e que continua a progredir, agora com maior incidência em países como os EUA, o Brasil, ou a Índia, sem que tenha desaparecido da Europa e da Ásia, como as frequentes recidivas o comprovam.
Portugal, um país com graves problemas económicos e um estado social fraco, conseguiu numa primeira fase (estado de emergência) limitar os danos, a ponto de ter sido considerado uma excepção no panorama europeu, que lhe valeu os maiores encómios na imprensa internacional. A relativa prontidão na reacção à crise (encerramento de fronteiras, escolas, recintos desportivos, etc.), aliada à situação periférica do país e ao fraco fluxo turístico naquela época do ano, ajudam a explicar o sucesso sanitário, mas sabia-se que, mais tarde ou mais cedo, a situação iria alterar-se. Desde logo, porque, para atender os infectados com Covid e proceder aos testes necessários para a sua detecção, foi necessário mobilizar hospitais e pessoal médico para este tipo de patologia, para a qual muitos deles não estavam preparados; depois, porque, ao dar prioridade ao combate à pandemia, foram descurados outros serviços (operações, consultas, etc.) que não eram prioritários. É verdade que o sistema hospitalar não implodiu e esse objectivo foi conseguido, o que não deve deixar de ser assinalado, mas nem tudo são rosas...
Com o desconfinamento progressivo, propício ao relaxamento dos costumes, os contactos sociais aumentaram (nem outra coisa seria de esperar) e, com eles, o aumento do número de infectados. Agora, não são apenas os chamados "grupos de risco" (idosos com patologias específicas), mas jovens e pessoas de meia-idade que, por força das suas funções diárias, estão em contacto permanente nos seus locais de trabalho e em transportes públicos, onde não são cumpridos os mínimos desejáveis em tempo de contágio. Tudo isto é conhecido e não há meio de evitá-lo. Enquanto não houver uma vacina, que normalize a progressão da epidemia, esta conhecerá uma expansão, provavelmente com altos e baixos (mas sempre com mais mortes), independentemente do modelo ser o da "imunidade do rebanho" ou do "confinamento obrigatório", como estes seis primeiros meses o comprovaram. Esta é, de resto, a grande contradição de um sistema que, querendo combater o vírus, incentiva a economia aberta, como forma de evitar o colapso social e económico que se adivinha, independentemente dos avanços da epidemia.
Perante tal cenário e quando três das quatro maiores economias europeias (Itália, Espanha e França) estão já confrontadas com as maiores crises sociais do pós-guerra, a União Europeia parece ter acordado da sua longa letargia e reuniu os 27 países membros em Bruxelas, para aprovar o programa de recuperação económica, calculado em 750 000 milhões de euros, para os países mais afectados. 
Como se esperava, e apesar dos encontros bilaterais que antecederam a cimeira (entre Costa, Sanchéz, Conte, Rutte e Orbán) com vista a desbloquear as posições dos grupo dos "frugais" e do grupo de "Visegrado", o antagonismo entre as diferentes visões manteve-se durante os cinco dias que durou a reunião que só hoje, pela madrugada, terminaria.
Contas feitas, todas as partes cederam, naquele que já é considerado um acordo histórico, seja pelo montante das verbas envolvido, seja pelas discussões geradas ao longo desta maratona.
Resumindo: mantém-se o montante global de 750 000 milhões de euros, proposto inicialmente pela presidente da comissão, mas agora com uma nova divisão de verbas. Serão 390 000 milhões (em vez de 500 000 milhões) em forma de doações (a fundo perdido) e os restantes 360 000 milhões, em forma de empréstimos. Uma cedência de 110 000 milhões de euros às posições da Holanda e dos restantes países nórdicos, que sempre preferiram a fórmula "empréstimos" a "doações, que não poderiam controlar. Já as pretensões holandesas, que exigiam condicionar os empréstimos e doações à liberalização das leis laborais e à reformulação das pensões nos países do Sul, não foram satisfeitas, muito por intervenção de Merkel e de Macron (que apoiariam as posições de Itália, Espanha e Portugal).
Para Portugal, o balanço não parece ter sido negativo. Apesar de uma redução de 9000 milhões na verba inicialmente prevista (que era de 26 000 milhões), receberá 15 000 milhões do "fundo de recuperação" (a fundo perdido), podendo recorrer à restante verba, em forma de empréstimo. Junte-se a este "envelope" (para combater a crise pandémica), os 30.000 milhões do quadro do programa plurianual europeu para o período 2021-2027, e teremos um total de 45.000 milhões, que o país vai receber ao longo de 7 anos. Uma "pipa de massa", na opinião dos comentadores de serviço.
Na realidade, dinheiro europeu foi coisa que nunca faltou, ao longo dos últimos 35 anos. O que sempre faltou foi uma estratégia para o desenvolvimento do país. Por isso, estamos onde estamos. Será que é desta?

2020/07/19

Um Rio poluído


O dr. Rui Rio parecia ser um tipo um pouco menos bronco do que os seus predecessores. Sobretudo pela reacção que teve no início do problema da pandemia. De repente, certamente por causa do calor, perdeu o sentido de Estado, esqueceu as exigências da Democracia e aparece a dizer isto que se pode ouvir aqui
A questão principal nestas declarações é esta: sem uma ideia sequer para o seu País, sem uma única sugestão sobre o modo como aplicar convenientemente os fundos, que ele exige justamente que seja vigiado, é preciso que eles não faltem, nem que se tenha para isso de dobrar a espinha a esses senhoritos do norte, que tresandam a mediocridade, mas tentam disfarçá-la armando-se em grandes senhores. Mas vigiar o quê ó dr. Rio? O que é o que o senhor propõe?
Ah, how I long for yesterday... And I love the smell of troika in the morning!
Mas a verdade é que Rui Rio reconhece, ipso facto, enquanto membro de um importante partido político PORTUGUÊS, candidato à governação do país, não ter uma ideia na cabeça, ao mesmo tempo que demonstra não ter capacidade para corrigir os problemas que aponta. Nestas circunstâncias, prefere abdicar das suas prerrogativas enquanto membro de um partido candidato ao poder a favor de um bárbaro qualquer do norte.
Rio prefere esperar, subserviente, pelo subsídio da Europa. Mas para dar ar sério à opção, que seja com a supervisão dos outros países, não vá a coisa descambar e a malta perder a massa, que tanta falta faz para podermos continuar neste caldo de indigência nacional em que os políticos como Rio e partidos como o PSD gostam de se ir mantendo confinados.
Como iria, é justo perguntar, o País gastar esses fundos, se fosse o PSD a geri-los?
Faz lembrar aqueles que, no futebol, para não perderem as receitas da televisão, mas sem ideia sobre o jogo, sem chispa nem talento e jogando mal, culpam o árbitro pelas derrotas das suas equipas e vêm gritar depois, indignados, a pedir que se usem árbitros estrangeiros.
Um verdadeiro patriota, este Rio. Isto também diz bem do que é o PSD hoje. E abrindo o zoom, ficamos a perceber o que é, à direita, a oposição ao governo com que hoje podemos contar: vendilhões, boçais, amadores, criancinhas insolentes e fascistas. Um rico ramalhete.
Eu cá também acho que o PSD devia ser substituído por um partido da oposição de um país qualquer do norte...

2020/06/30

Quinze semanas noutra cidade: É a pobreza, estúpido!


Escrevo em vésperas do encontro transfronteiriço, entre os chefes de estado de Portugal e Espanha, marcado para o próximo dia 1 de Julho, em Badajoz. A cerimónia assinala a reabertura da fronteira terrestre entre os dois países, encerrada desde o passado 16 de Março devido ao Coronavírus.
Se tudo correr bem, a partir de amanhã, será possível voltar a atravessar a fronteira rodoviária, já que a linha ferroviária, entre Évora e Badajoz (80km), continua por construir. Um pequeno passo para a Humanidade, mas (aparentemente) um grande passo para Portugal que, apesar dos inúmeros programas de financiamento europeu, nunca considerou prioritário terminar uma linha ferroviária que ligasse o Alentejo à Extremadura espanhola. Só muito recentemente, foi dada "luz verde" à construção de uma linha de mercadorias entre Sines e Badajoz (via Évora) que - pasme-se! - quando estiver concluída, não passará por Caia, que já dispõe de uma estação (desactivada) de passageiros. Tudo indica que a linha será apenas para mercadorias. Será que receiam o vírus espanhol?
Entretanto, indiferente às fronteiras, o vírus continua a propagar-se pelo Mundo, agora a uma velocidade estonteante. Tedros Adhanom Ghebreyesus, secretário-geral da Organização Mundial da saúde (OMS) vem dizendo, há dias, que os países não podem confiar nas notícias da diminuição dos contágios. "Estamos numa fase nova e perigosa", repete. Quase metade dos novos casos, são oriundos do continente americano, mas os números do Sul da Ásia e do Médio-Oriente, não são menos preocupantes. Mais de dois terços, dos falecimentos recentes, ocorreram na América. Os EUA já ultrapassaram os 129.000 mortos, o Brasil 59.000, o México 22.000, o Perú 9.500 e o Chile 5.700.
A OMS alertou para o avanço imparável do vírus, na passada semana, quando se atingiu os 150.000 casos diários, pela primeira vez. Desde então, a situação continuou a piorar. No domingo passado, atingiu 183.000, a cifra mais alta desde o início da pandemia. Para ilustrar o ritmo, que está a atingir o Coronavírus, o director da OMS empregou uma comparação bastante gráfica: foram registados em todo o Mundo mais de 10 milhões de casos. Chegou-se ao primeiro milhão, depois de 3 meses de epidemia. O último milhão foi contabilizado apenas em oito dias. "Parece que todos os dias, chegamos a um novo e sombrio record", avisa Ghebreyesus. Muitos destes estados, já sofreram uma primeira onda de contágios e conseguiram controlá-los após alguns meses de confinamento. O epidemiologista Antoni Trilla não crê que possamos falar de uma "segunda vaga", em quase nenhum país e menos ainda em estados europeus como a Alemanha ou Portugal, considerados países-modelo há poucas semanas atrás. Trilla considera que ainda não saímos da primeira vaga de contágios. As recidivas que estão a acontecer, um pouco por todo o Mundo (China, Coreia do Sul, Taiwan, Alemanha, Islândia, Portugal) obrigaram países, como a Alemanha, a isolar um bairro inteiro (640. 000 pessoas) devido a um foco de contágio que atingiu 1.500 trabalhadores numa fábrica de carne. Não porque os alemães tivesse lidado mal com a pandemia, mas porque, apesar de terem feito tudo bem, não puderam evitar que houvesse uma recidiva. Já a situação nos Estados Unidos e na América Latina, é de uma gravidade extrema, assegura Trilla, não só porque estão a aparecer dezenas de milhares de casos todos os dias, como dentro em pouco terá início o inverno austral, uma "receita perfeita", com mais vírus circulando, mais frio, mais pessoas que permanecem em casa e menos possibilidade de haver condições de temperatura, de humidade e sol, que ajudam a desacelerar a transmissão do vírus.
Em Portugal, país considerado modelo, pela forma como conseguiu controlar a chegada da pandemia, também parecem estar agora mais preocupados com o ritmo de novos contágios. O governo impôs novas restrições (reuniões limitadas a dez pessoas) encerramento do comércio às 20h. e multas nos casos de incumprimento. Aparentemente, o alarme teria disparado depois de uma festa particular que infectou dezenas de jovens em Lagos e, posteriormente, uma "beach party" de mil jovens em Carcavelos, muitos dos quais apresentaram sinais de contágio nos dias seguintes.
Como é habitual nestas ocasiões, não faltaram as críticas dos moralistas de serviço, que logo associaram a "inconsciência" dos jovens festivaleiros ao surgimento dos novos focos de contágio detectados. É bem possível que alguns (muitos) desses jovens tenham contraído o vírus e sejam agora potenciais portadores do Covid. Acontece que, depois dos eventos relatados e amplamente difundidos e comentados pela Comunicação Social, os casos de contágio na Grande Lisboa e na margem Sul, aumentaram exponencialmente, ao ponto do diário espanhol "El País", ter feito uma notícia de primeira página, onde se podia ler que "3 milhões de portugueses da grande Lisboa, tinham voltado ao confinamento". Um exagero, claro, logo desmentido pelo governo português, já que notícias destas poderão afectar o turismo de Verão, agora que grande parte dos turistas nórdicos hesitam em passar férias no mediterrâneo e Portugal voltou a ser notícia por más razões.
Acontece que a "Grande Lisboa", de que fala o artigo de "El País", não é uma realidade uniforme, sendo constituída por diversas cidades-dormitório e bairros periféricos, onde habitam a maior parte das pessoas que trabalham na capital. Muitas delas, a maior parte, desloca-se diariamente para a grande cidade, em transportes suburbanos apinhados (comboios, autocarros, metropolitanos); e outros, em menor número, em carros privados. Também muitos destes trabalhadores, vivem em bairros degradados e desempenham funções de maior contágio (restauração, construção civil, limpezas em lares e hospitais); enquanto outros, durante o confinamento, não necessitaram sequer de sair de casa para desempenharem as suas funções (teletrabalho). Uns, a maior parte, têm os filhos em escolas publicas, onde muitas vezes não existem condições de salubridade e onde não há aquecimento; e outros, em menor número, têm filhos (em colégios privados) que transportam em carros privados. Um Mundo de diferenças.
É pois, natural, que a maior parte dos novos casos de infectados com o vírus, sejam da Grande Lisboa, onde vive um 1/3 da população do país. Como também é natural, serem os mais desfavorecidos (social e economicamente) os primeiros infectados. Dito de outro modo: haverá sempre mais casos de Coronavírus na Amadora, em Loures ou nas "Jamaicas" deste país, do que no Restelo, Telheiras ou Cascais.
Parece pois, óbvio, que, mais do que a inconsciência dos jovens e as festas da praia, o vírus que urge mesmo combater, é o vírus da pobreza (e da desigualdade), a maior das epidemias portuguesas. Combatam-se ambas com determinação e medidas adequadas e a imunidade dos portugueses melhorará de forma significativa. Prevenir, sempre foi melhor do que remediar.

2020/06/23

Catorze semanas noutra cidade: Pandemia, Balanço e Revelações


Três meses decorridos sobre as primeiras medidas do governo espanhol, para combater o vírus que assola o Mundo, a Espanha começa a abrir as portas - internas e externas - e a fazer o balanço desta crise sanitária, a maior desde a famosa "gripe espanhola", já lá vai mais de um século.
Depois de semanas em que o país ocupou os primeiros lugares do "ranking" europeu, de casos de infecção e mortes por Coronavírus, os números estabilizaram e começam a decrescer, como era expectável. De acordo com o Worldometer (OMS), a Espanha registou, até ao momento, um total de 293.840 infectados, dos quais teriam falecido 28.324, o equivalente a 606 mortes por milhão de habitantes. Mesmo assim, o país ocupa o 6º lugar do "ranking" dos países com mais infectados a nível mundial. Pior mesmo, só os EUA, o Brasil, a Russia, a Índia e o Reino Unido, onde o número da população infectada ainda não parou de crescer. Por coincidência, ou talvez não, os cinco primeiros países da lista, são todos governados por líderes populistas e autocráticos, que começaram por subestimar o perigo de contágio deste vírus e as evidências científicas que demonstravam o contrário. As razões deste comportamento, prendem-se com diversos factores, entre os quais devem ser realçados a extrema ignorância (Trump e Bolsonaro), o negacionismo religioso (Bolsonaro, Mori), a aposta na economia em detrimento da saúde (Trump, Bolsonaro, Johnson) e a dificuldade dos autocratas em lidar com a pandemia (Trump, Bolsonaro, Putin, Mori). Os resultados estão à vista, e, em países como os EUA, o Brasil ou a Índia, as catástrofes humanas são já imensuráveis. Esta é, de resto, a opinião do economista Dani Rodrik, esta semana laureado com o Prémio Princesa das Astúrias de Ciências Sociais (um dos mais prestigiados do Mundo) que, em entrevista, declarou não o surpreender que autocratas, como Bolsonaro, Trump e, até certo ponto, Boris Johnson, estivessem a responder pior à crise do Coronavírus: "Há uns anos publiquei uma investigação em que comparava sistemas mais democráticos e liberais com outros onde a classe política tinha maiores tendências populistas e autoritárias. A ideia de que esses regimes respondiam melhor a choques externos, que permitiam aos seus líderes tomar decisões rápidas, por não terem de negociar e chegar a acordos, não era sustentada pelas análises que fiz das crises ocorridas nos anos setenta e oitenta do século passado. Creio que isto é assim, porque os sistemas democráticos usam melhor a informação e porque contam com mecanismos em que todos os sectores da sociedade podem contribuir com os seus pontos de vista" (in El País d.d. 17/6/20).
As questões da informação e coordenação durante a pandemia estão, de resto, a ser alvo de avaliações solicitadas pelos orgãos do poder central e regional de Espanha, com vista a apurar responsabilidades por uma crise que, entre Março e Abril, chegou a registar mais de 300 mortos diários, a maior parte deles em lares de terceira-idade (as chamadas "residências"). De acordo com os mais recentes dados, só entre 8 de Março e 15 de Maio, teriam  morrido 15% dos residentes de centros de serviços sociais de Madrid. Dos 7.690 falecidos, foram apenas testados 1.203. Muitos idosos podem ter morrido por patologias diversas, que o vírus veio agravar. Neste período, o governo, teria intervido em 14 destes centros. Por comparação, no mesmo período, foram feitas 112 intervenções em centros nas Astúrias. Nestes dias, em que o pessoal sanitário não conseguia dar resposta ao número de internamentos, faltou tudo: camas, ventiladores, máscaras, testes e tiveram de ser feitas escolhas drásticas. Um vídeo, de uma sessão clínica no Hospital Infanta Cristina de Paria, em Madrid, revela como foram informados os médicos sobre frieza das medidas a tomar para evitar o colapso no centro de saúde e na UCI: "Vamos negar a cama àqueles que têm mais risco de morrer", foi a directriz dada. No vídeo, de 19 minutos, o instrutor alerta os médicos internistas de que, ao ritmo a que aumentavam os internamentos nos hospitais da comunidade de Madrid, a região ia entrar em 48h num colapso das suas UCI. O instrutor revela que a recusa de pessoas idosas, tinha sido imposta pelas autoridades sanitárias e que a única margem que restava para salvar vidas "era ser mais restritivo no internamento de pessoas jovens com bom prognóstico." ("El País" d.d. 18 de Junho).
Mas, as revelações não se ficaram por aqui (afinal, o "sacrifício dos mais débeis", sempre foi usado em tempo de guerra), já que esta semana, um novo caso, quiçá mais revelador, foi denunciado. Sob os holofotes, está agora a "alcaide" (presidente) da região de Madrid, Diaz Ayuso, que durante a pandemia se refugiou num hotel, a partir do qual exercia as suas funções, o que lhe valeu fortes críticas da oposição e do governo, do qual não faz parte. Pior, o responsável pela sanidade da região, Antonio Burgueño, nomeou a sua filha, Encarnación Burgueño, para coordenar as condições sanitárias nas "residências", já que esta teria manifestado desejo de fazer algo pela saúde dos seus concidadãos. Aparentemente, a senhora não teria grande experiência da coisa e, depois de criar uma empresa de apoio sanitário, fez um contrato com uma empresa de ambulâncias, que tratava dos transportes dos idosos para os hospitais, onde estes raramente podiam permanecer, dadas as prioridades de internamento estabelecidas. A coisa veio a lume, Antonio Burgueño demitiu-se e está a ser alvo de um processo, enquanto a sua filha, também demissionária do cargo, ficou a dever 16.450 euros à empresa de Ambulâncias Transmed, que agora exige ser ressarcida pelo trabalho feito.
Sem surpresa, a pandemia veio revelar o lado mais escuro do Homem. Para uns, a morte, para outros o negócio. O negócio da morte. Bem dizia o outro, que as crises podiam ser uma oportunidade. Nomeadamente para os oportunistas.

2020/06/16

Treze semanas noutra cidade: da Memória Histórica às Medidas do Pós-Confinamento


Com o progressivo levantamento das restrições impostas pelo Coronavírus, o território espanhol regressa lenta, mas seguramente, à situação existente antes de 16 de Março, data em que foi declarado o "estado de alarme" nacional.
Entre as muitas actividades, entretanto retomadas, destaque para os trabalhos de exumação de valas comuns das vítimas do fascismo, levadas a cabo em diversas regiões de Espanha, por iniciativa da Associação de Memória Histórica e Vítimas do Franquismo (AMHVF), com o apoio do governo central e das autoridades regionais respectivas. Um longo e penoso trajecto, iniciado no ano 2000, aquando da primeira exumação em territórios de Léon y Castilla. O posterior reconhecimento da Associação, pelo governo de Zapatero (2007), contribuiu para a sua implementação em todo o território e tem sido decisivo na recuperação e identificação de centenas de cadáveres, desde então exumados e entregues aos familiares que, finalmente, podem despedir-se dos seus entes queridos. Um trabalho meritório e ciclópico, que demorará anos, já que o número total de vítimas enterradas, está calculado em 115.000. A Espanha é o segundo país do Mundo, depois do Cambodja de Pol-Pot, com maior número de vítimas em valas comuns.
Pesem os percalços de percurso, durante os governos de Aznar e Rajoy, que sempre se opuseram a reabrir este "dossier" e reconhecer os crimes do Franquismo, os trabalhos da Associação de Memória, com mais ou menos dificuldade, nunca pararam e estão mais activos que nunca. Prova disso, foi a recente Assembleia Andaluza das Associações de Memória Histórica das Vítimas do Franquismo (que engloba 33 associações regionais), realizada no dia 14 de Junho (dia da memória histórica andaluza) no cemitério de S. Fernando (Sevilha), onde decorrem os trabalhos de exumação da vala de Pico Reja, que contém cerca de 1.500 corpos. No cemitério de S. Fernando, existem ainda outras valas, onde estarão enterradas mais de 4.500 pessoas, fuziladas pelas tropas franquistas entre 1936 e 1955. 
A cerimónia, onde participaram largas dezenas de familiares e activistas, teve o apoio de individualidades políticas, orgãos de imprensa local e seria retransmitida pela TVE. Foi ainda lido o Manifesto da Associação e houve tempo para intervenções de familares das vítimas que relataram episódios relacionados com o período dos massacres. Um exemplo de cidadania exemplar, marcado por uma Memória Histórica que urge preservar, em tempo de negação dos crimes do fascismo.


Com 70% do território na fase 3, a Espanha prepara-se para desconfinar completamente a 21 de Junho, data anunciada pelo governo para retomar todas as actividades suspensas. Algumas regiões, inclusive, como as Baleares e a Galiza, passaram já à fase 4 e podem receber turistas de todos os países Schengen, a partir de 15 deste mês. Todos, à excepção de Portugal que, aparentemente, receia o "contágio espanhol" e teme uma invasão de turistas do país vizinho (!?). Para além do insólito da medida (os espanhóis dizem que foi uma decisão unilateral de Portugal) não se percebe porque é que o governo português receia abrir fronteiras terrestres com Espanha e permite voos de Londres para Lisboa, para trazer mais turistas britânicos para o Algarve...A única coisa acertada entre os governos ibéricos, parece ser agora um almoço (há sempre um almoço antes, durante ou depois de um negócio com portugueses) na fronteira de Badajoz-Caia, marcado para o dia 1 de Julho, quando forem abertas as (últimas) fronteiras de Schengen. Se isto, não é excesso de zelo, só pode ser cretinice.   
Já os alemães, não estão com meias-medidas e inauguraram ontem uma "ponte aérea" que ligará os principais aeroportos da Alemanha, às Baleares e a Ibiza, onde muitos possuem segundas habitações. Só esta semana, são esperados mais de 9.000 alemães nas ilhas espanholas, cujos aeroportos foram adaptados com censores digitais para medir a temperatura dos turistas. Quem acusar positivo não entra no país. O "método chinês" começa a conquistar o Mundo...

Porque o turismo, este Verão, poderá ter quebras da ordem dos 50%, os países que mais dele dependem (caso de Espanha, de Itália, França, Croácia, Grécia e Portugal), começam a tomar medidas estruturais para evitar a crise económica e social que se anuncia para o período pós-confinamento. Em Espanha, onde a industria turística corresponde a 12% do PIB e o Banco Central projecta uma quebra de 15% do PIB para este ano, o governo prepara-se para pôr "toda a carne no assador" e anuncia reformas estruturais de vulto para combater a crise. O executivo debate um plano de estímulos e reformas, preparado pela ministra Calviño (presumível sucessora de Centeno no Eurogrupo), que prevê investimentos da ordem dos 150.000 milhões para combater a crise ao longo dos próximos dois anos. Trata-se, para já, de um "borrão" do documento final a ser enviado para Bruxelas, onde Espanha pretende aceder ao grande "fundo europeu de reconstrução" de 750.000 milhões, aprovado na generalidade e que será objecto de discussão na próxima sexta-feira.
Angela Merkel, que assumirá a presidência semestral da UE no próximo dia 1 de Julho, confia em fechar este acordo, sobre o Fundo Europeu de Recuperação, no primeiro mês de mandato. A urgência desta decisão, corresponde ao convencimento generalizado, tanto em Bruxelas como em Berlim e Frankfurt, de que a eficácia da resposta europeia à crise, não depende só da envergadura do fundo, mas também da sua rapidez operacional. O possível acordo do Conselho Europeu requer o visto do Parlamento Europeu, onde igualmente impera uma sensação de urgência. Os dois maiores grupos da Cãmara (PPE e PS) apoiam a proposta de Von der Leyen, mas mantêm divergências sobre as condições de distribuição dos 500.000 milhões em subsídios e dos 250.000 em empréstimos. Manfred Weber, líder do PPE, assinala que o "condicionalismo de ajuda, é a palavra-chave para o seu partido. Deve ser claro que o dinheiro é investido no futuro do país"; enquanto Iratxe García, presidente do PS, considera  que "o único condicionalismo aplicável ao Fundo, é destinar o investimento a políticas do futuro, como a sustentabilidade, a digitalização e o reforço industrial". Aguardam-se decisões.

2020/06/09

Doze semanas noutra cidade: Espanha a desconfinar com ajudas a aumentar


A transição espanhola para o desconfinamento total continua a bom ritmo, ainda que nem todas as regiões do país estejam na mesma fase.
Globalmente, passaram à fase 3 (a mais adiantada) as ilhas, as regiões do Sudoeste, do Norte e do Nordeste do país, enquanto na fase 2, permanecem as regiões da Catalunha, Valência, Madrid, Castilla-Léon e Castilla-La Mancha, onde, apesar da diminuição do número de infectados, continua a verificar-se a maior concentração de casos de Coronavírus.
Nesta terceira fase, ontem iniciada, já são permitidas passeios e actividades físicas sem horário; abertura do comércio a 50%; esplanadas a 75%; abertura de centros comerciais a 40%; mercados de rua a 50%; grupos turísticos até de 30 pessoas; espectáculos culturais e museus a 50%; treinos desportivos na ligas profissionais; casinos a 50%, bodas e funerais, limitados a máximos por espaço disponível. Também a mobilidade entre províncias (dentro da mesma região), passou a ser permitida  na Fase 3. Em termos práticos, isto significa que, numa região como a Andaluzia (8 províncias), os habitantes de Sevilha, onde me encontro, já podem ir à praia a Huelva ou Cadiz, onde muitos têm uma segunda casa e passam férias no Verão. São esperados milhares de veraneantes nas próximas semanas.
Após 3 meses de confinamento, a abertura de bares e esplanadas provocou uma corrida aos poucos lugares disponíveis, com longas esperas junto às mesas ou, em alternativa, reservas com antecedência, uma prática habitual por estas bandas. Nada que desmotive os sevilhanos e o seu ritual de "tapas" e "cañas" diárias, ainda que - sem turistas estrangeiros - a cidade esteja longe da alegria e movida habituais. Disso mesmo se queixa a hotelaria e a restauração, as áreas que mais sofreram com a crise pandémica. Também muitos bares e pequenos estabelecimentos de bairro, continuam encerrados, o que pode indiciar encerramento definitivo por falência ou incapacidade económica.
Após o programa de ajuda europeu, acordado na passada semana em Bruxelas, Christine Lagarde (BCE) veio esta semana anunciar um novo reforço de 600.000 milhões de euros, que o governo espanhol não deixará de aproveitar para distribuir pelas populações e regiões mais afectadas.
As regiões têm, agora, autonomia para gerir o dinheiro disponibilizado pelo governo (16.000 milhões de euros) com a condição de  reservarem 70% do novo fundo para saúde e para a educação. Simultaneamente, o parlamento espanhol aprovou a lei do "Ingreso Mínimo Vital" (IMV), um ordenado-base mínimo de €462 para indivíduos ou €1.015 para casais com 2 filhos. Uma medida histórica, saudada por todos as formações políticas e sindicatos, que possibilita a ajuda imediata a 850.000 famílias a viver no limite da pobreza.
Menos pressa, parece ter o governo em abrir as fronteiras terrestres. Apesar dos desejos manifestados pelos governos francês e português, Sanchéz mantêm-se cauteloso e, depois da ministra de transportes ter anunciado a abertura de fronteiras para 21 de Junho (data prevista para o fim do confinamento), o governo espanhol voltou atrás na decisão e, no mesmo dia, reafirmou a intenção de só abrir as fronteiras a 1 de Julho. De nada valeram os amuos em Portugal e em França, já que ambos os países dependem de Espanha para poderem abrir as suas fronteiras. O mesmo não se passa com Itália, portanto um dos países mais infectados pela pandemia que, entretanto, anunciou a abertura das fronteiras para o dia 15 de Junho. A questão fronteiriça está, de resto, a provocar uma discussão a nível europeu, uma vez que nem todos os governos seguem os mesmos critérios, o que pode provocar problemas de tráfego entre países que não fazem parte de Schengen e se regem por leis de circulação diferentes, como é o caso do Reino Unido, cujos súbditos podem viajar para Portugal, ao abrigo de um acordo unilateral entre os dois países. Como convencer um europeu, que o perigo de contágio no seu país é diferente do perigo de contágio noutro? Então, o vírus não é o mesmo?...

2020/06/02

Onze semanas noutra cidade: Pandemia, Recursos e Soluções


Há precisamente três meses (2 de Março) morria a primeira vítima de Coronavírus em Portugal. Por coincidência, nesse mesmo dia viajava para umas curtas férias em Espanha. Desde então, permaneço no país vizinho, aguardando a abertura da fronteira que, prevê-se, estará para breve.
Três meses de confinamento, a exemplo da maior parte dos países europeus com estratégias de contenção semelhantes, ainda que os resultados nem sempre tenham sido os mesmos. Da explosão da epidemia em Itália e Espanha, os países mais atingidos na fase inicial, à relativa contenção em países como Portugal e Grécia, o processo de confinamento revelou virtudes e defeitos, que terão de ser avaliados em conjunto, única forma de limitar recidivas, que se anunciam como prováveis e para as quais não haverá argumentos. Não basta culpar a China pelo encobrimento inicial da existência do vírus (detectado em finais 2019), mas perceber a razão da desvalorização da informação, quando esta já era conhecida a 23 de Janeiro deste ano. De então para cá, muito tempo se perdeu e essa é, provavelmente, uma das razões (não a única) porque hoje temos a lamentar tão elevado número de mortes. Uma prevenção atempada, aliada a meios sanitários de qualidade, são condições indispensáveis para combater qualquer epidemia e esta não é excepção. O facto de ser um vírus desconhecido e não haver vacina para combatê-lo, explica parte do problema, mas a montante há factores que não podem ser iludidos. Desde logo, a incapacidade da maioria dos sistemas de saúde pública para receber um número elevado de contagiados, seja a nível logístico (camas, ventiladores, máscaras...), seja a nível de pessoal (médicos e enfermeiros) seja a nível financeiro (descapitalização do sector público, após a privatização da saúde nos últimos anos). Para evitar o colapso dos serviços sanitários, muitos países tiveram de optar entre dar prioridade aos doentes infectados pelo vírus, ou tratar de doentes crónicos, que aguardam agora a sua vez de serem atendidos. Foi o caso de Espanha e da Itália, como o do Reino Unido e da Holanda (que chegou a pedir à Bélgica reforço de camas). É por isso que é importante a solidariedade na União Europeia, ainda que alguns países continuem a pôr reticências a um "pacote" de ajuda lançado na passada semana pela Comissão Europeia, que prevê a libertação faseada de 750.000 milhões de euros para ajudar os países europeus mais atingidos pela pandemia. Através da combinação de empréstimos e transferências, Von der Leyen pretende satisfazer os países mais atingidos pela crise (Itália e Espanha) e, simultaneamente, os chamados países "frugais" (Holanda, Austria, Suécia e Dinamarca). A chanceler Merkel e o presidente Macron, já tinham mostrado o seu apoio em respaldar um fundo de meio bilhão de euros, financiado com dívida europeia, que seria injectado em forma de subsídios, enquanto os "quatro frugais" aceitavam a criação do fundo, mas punham como condição limitá-lo a dois anos, desde que canalizado em forma de empréstimo. Nesta nova versão, também apelidada de "bazuka europeia", Von der Leyen propõs o aumento temporário do "plafond" orçamental da UE, que passaria de 1,2% para 2% do Produto Nacional Bruto. A margem adicional, de mais de 100.000 milhões de euros, seria utilizada em forma de garantias dos estados, para a emissão de uma dívida conjunta da UE. A emissão destas garantias (créditos) poderia oscilar entre 300.000 e 500.000 milhões e seria amortizada através dos orçamentos da União, num período de 20 a 30 anos. Esta primeira proposta, foi aperfeiçoada e, finalmente, apresentada no dia 28 de Maio.
O programa "Next Generation EU", como agora passou a ser apelidado, assenta em 3 pilares:
1) Apoio aos estados membros, com investimentos, onde se destaca um fundo de 560.000 milhões para investimentos  e reformas relacionadas e.o. com a transição verde e digital das economias;
2) Incentivos ao investimento privado;
3) Apoio às políticas mais castigadas pela crise, como a saúde, investigação e acção externa.
Contas feitas, de um total de 750.000 milhões, a Itália receberá 170.000 milhões (dos quais 80.000 em subsídios e 90.000 em empréstimos), enquanto a Espanha receberá 140.000 milhões (dos quais 77.000 em subsídios e 63.000 em empréstimos). Os 440.000 milhões que sobram, serão para os restantes países.
Para Johannes Hahn, comissário europeu de orçamentos, o "Fundo Europeu de Recuperação não é um altruísmo, mas um investimento", já que interessa a todos os membros da União que a Europa saia desta crise rapidamente. Nas suas próprias palavras: "A tarefa da Comissão é velar por um bom funcionamento do mercado único, não apenas agora, mas também no futuro. Se actuarmos com rapidez e prudência, não haverá risco de ruptura. Creio que Angela Merkel também assim o entendeu e, por isso, aceitou a nossa ideia (de um fundo com subsídios). A Alemanha é a "rainha das exportações", não apenas no Mundo, mas também na Europa. E, para exportar, faz falta um mercado. Sem mercados, não há clientes. Por isso, penso que a nossa proposta, não é só altruísmo, mas sim investimento" (in: "El País" d.d. 30 de Maio).
Melhor do que isto, só mesmo aquela conhecida definição do futebol: "são 11 contra 11 e, no fim, ganha a Alemanha".
        

2020/05/25

Dez semanas noutra cidade: Fases, Calamidades e Solidariedade Europeia


A Espanha entrou hoje, oficialmente, na fase 2 do "desconfinamiento".
À excepção das regiões de Madrid, La Mancha Y Léon e Catalunha, que permanecem na fase 1 devido ao elevado número de casos, o resto do país passará de imediato à fase seguinte.
Em termos práticos, isto quer dizer que, a partir de hoje, é permitido: reuniões de grupos até 15 pessoas; organizar visitas a residências de idosos; celebrar bodas; alojamento em hóteis e AL; frequentar lojas sem limite de superfície e centros ou parques comerciais;  sair a qualquer hora do dia, à excepção do horário reservado a maiores de 70 anos; ir à piscina ou à praia: organizar actividades turísticas e da natureza, até um máximo de 20 pessoas; ir a restaurantes ou cafés e esplanadas até a um máximo de 15 pessoas; visitar exposições, monumentos e equipamentos culturais; ir ao cinema, teatro e auditórios.
Nada mau, para quem há um mês atrás mal podia pôr um pé na rua, sem usar máscara, luvas e dentro de horários específicos. Um tormento, quiçás necessário, para o qual continua a haver muitas dúvidas, já que os resultados das diversas políticas seguidas - confinamento, semi-confinamento, "intelligent lockdown" e controlo digital - tiveram resultados diferentes. Os testes continuam a ser fundamentais para ajuizar da quantidade de infectados e fazer prevenção (sem testes não é possível saber quem está ou não infectado); da mesma forma que, a contagem de infectados e de mortes em consequência do coronavírus, continua a ser posta em dúvida, já que nem todos os países seguem as mesmas normas  (os números oscilam entre registos de mortes directamente causadas pelo vírus e registo de todas as mortes, patologias associadas, inclusive). No fim, espera-se, haverá uma avaliação da OMS, mas até lá haverá recidivas, ou não, uma vez que também neste campo não existe unanimidade. O próprio vírus, deve andar um pouco "baralhado", pois estava a contar com mais umas infecções enquanto não descobrem a vacina e corre o risco de ser "descontinuado" muito antes disso.

Até lá, a pandemia acelera em todo o Mundo, registando uma média de 100.000 contactos diários. Após a Ásia (onde tudo começou) e a Europa (onde o "pico" da crise parece ter passado) é na América do Norte (Estados Unidos) e na América do Sul (Brasil) que a pandemia atingiu os números mais altos e onde se espera o maior número de vítimas.
Por coincidência (ou talvez não) os 3 primeiros países da lista de infectados (EUA, Brasil e Russia), têm líderes populistas e autoritários, dois dos quais negam a ciência (Trump e Bolsonaro) e um (Putin) não olha a meios para atingir o poder absoluto. Neste caso, o "coronavírus" e as medidas de confinamento, são uma óptima ocasião para melhor controlar a população, a exemplo do seu homólogo Orbán, (Hungria) que aproveitou o "estado de emergência" para declarar o "estado de sítio" permanente. A dissidência paga-se caro, nos antigos países do Leste Europeu.
No Brasil, Bolsonaro um caso patológico de estudo, continua a refutar tudo e todos, numa desesperada tentativa de manter o poder que pode estar por um fio. Depois de negar os perigos de infecção e movimentar-se livremente por entre os seus apoiantes (desvalorizando dessa forma o contágio), perdeu os seus ministros de saúde, que recusaram aplicar medidas sanitárias contraproducentes e nomeou, para o mesmo ministério, um militar sem qualquer formação médica. No meio da polémica, perdeu ainda Moro (ministro da justiça) que denunciou a ingerência do presidente no seu departamento, para além de ter convocado uma manifestação (falhada) com vista a pressionar o Congresso brasileiro, o que lhe valeu um processo de "impeachment". De resto, não é o primeiro que lhe é movido o que, a acontecer, poderá provocar a sua queda.
A manter-se o aumento exponencial de infecções, provocadas pelo vírus, o Brasil corre sérios riscos de se tornar um país ingovernável a curto prazo: desde logo pela estupidez do seu presidente, um demente fascista, para quem a vida dos seus cidadãos nunca importou (sempre elogiou a ditadura e os seus torturadores); depois, pelos meios sanitários insuficientes para acudir a uma população empobrecida e desesperada em sobreviver, que pode vir a revoltar-se, se não tiver alternativas.
Temendo isso, os militares (com Mourão à cabeça) movimentam-se na retaguarda, construíndo cenários e fazendo ameaças, projectando já um futuro sem Bolsonaro. Mas, com quem? Essa é a grande questão neste país, dividido após o golpe contra Dilma, que permitiu aos fascistas chegar ao poder através de eleições.

Entretanto, na Europa, continuam as negociações para criar um fundo europeu de ajuda aos países afectados pela pandemia. Depois de um primeiro confronto no Eurogrupo, entre os defensores de "eurobonds" (Espanha, Itália, Portugal e França) e os defensores de empréstimos, através do Fundo de Estabilidade e Emergência Monetária (Holanda, Austria, Finlândia e Suécia), que opôs violentamente a Holanda e a Itália, conseguiu chegar-se a um acordo de intenções, que resultou na aprovação de um Fundo de 500.000 milhões de euros a fundo perdido (proposta da Comissão). Esta semana, a proposta foi, de novo,  alvo de discussão. Em princípio, os países pareciam estar de acordo, já que a crise actual não é uma crise económica (como a anterior), mas sanitária (que a todos afecta) e para a qual são exigidas medidas de solidariedade. Acontece que, a solidariedade europeia, já conheceu melhores dias. Os países do Norte (Holanda, Austria, Suécia e Dinamarca) só aceitam a subvenção a "fundo perdido" (uma variante da "mutualização da dívida") caso as contas dos países do Sul possam ser auditadas e controladas exteriormente...Subjacente a esta ideia, está a convicção de que a fraude é uma especificidade do Sul, como se os países do Norte fossem mais sérios. Basta lembrar a existência do "offshore" holandês, que enche os seus cofres com o dinheiro de impostos desviados do Sul, para constatar que a Holanda (e os restantes países que apoiam a sua posição), não tem qualquer moral nesta questão, pois pratica uma política de "olha para o que eu digo, mas não olhes para o que faço". Maior hipocrisia, era difícil.
Posto isto, qual a solução? 
A não ser que, mais uma vez, Merkel (e Macron) "ponha ordem" nesta inacreditável exigência por parte de países que se consideram "moralmente superiores" (como se não tivessem todos sido atingidos pelo mesmo vírus), não se vê uma saída airosa para esta crise. A menos que a Europa se divida ainda mais.  Nesse caso, terminará enquanto projecto europeu. Já faltou mais.