2020/03/30

Duas semanas noutra cidade (5): "Confinamiento", Vírus e outras mortes

foto ABC Sevilla
A Espanha, entrou hoje no segundo período de "confinamiento". Até ao próximo dia 11 de Abril, na melhor das hipóteses, continuaremos "todos" em casa. Todos, é como quem diz. Diariamente, podem ser vistas pessoas na rua, fazendo compras ou, simplesmente, passeando os cães. Há cães que nunca devem ter saído tanto, tal o número de vizinhos a passear a trela...
As ruas de Sevilha, habitualmente fervilhantes de alegria, transformaram-se em tristes "calles", cujos únicos meios de transporte são, agora, os autocarros (vazios), os táxis e as ambulâncias. Nas principais vias de La Macarena, o bairro onde me encontro, há unidades para-médicas e carros de polícia em permanente estado de alerta. No centro (em redor da Plaza de Armas) o exército está de prevenção e colocou diversos blindados em pontos estratégicos, junto ao rio, para dissuadir os mais afoitos que por lá costumam passear.
Celebrações tradicionais, como a "Semana Santa" e a "Feira de Sevilha", atracções turísticas que, anualmente trazem milhares de forasteiros à cidade, foram este ano canceladas, com consequências que se prevêem desastrosas para a economia local.
Ainda que a Andaluzia, em termos relativos, mantenha uma baixa taxa de infectados quando comparada com as regiões de Madrid, País Vasco e Catalunha (as mais afectadas), os números não mentem. A Espanha passou a ser o 3º país com mais infectados a nível mundial (85.195) e o 4º país em número de mortes (7.340). Os dados são da OMS e podem ser consultados através da aplicação "worldometer". Uma catástrofe humanitária sem precedentes, a maior no país desde a 2ª guerra mundial.
Como em todo o lado, o oportunismo aproveita-se da crise. Os partidos mais à direita (PP e VOX) continuam a criticar o governo e a clamar por mais meios sanitários, ignorando deliberadamente a contenção de gastos e a privatização da saúde nos governos de Rajoy que, na eminente falência de La Caja, teve de pedir um resgate de 100.000 milhões de euros para salvar a banca (um dos maiores resgates na UE). Rajoy, acabaria por ser demitido, devido a uma moção de censura do Parlamento, tantos eram os casos de corrupção em que o PP estava envolvido. Na província foram, entretanto, reportados os primeiros casos de assaltos a moradias isoladas, por supostos agentes sanitários que se apresentaram aos moradores para inspeccionar as suas casas. Uma nota positiva: devido à diminuição do tráfico, a poluição ambiental, nas regiões mais industrializadas, caiu drasticamente. Nas ruas de Madrid, foram avistados os primeiros pavões e javalis, a passear à noite...
Nem todas as mortes, no entanto, são uma consequência do vírus. Outras mortes, por causas diferentes, vão chegando ao nosso conhecimento, através de amigos e da imprensa estrangeira. 
É o caso do cantor Pedro Barroso (1950-2020), pioneiro da "nova canção portuguesa" dos anos '60 (programa Zip-Zip) que tive o prazer de conhecer na Holanda. Lembro uma histórica intervenção em Nijmegen, organizada pelo grupo local de apoio à Reforma Agrária em 1976; uma curta digressão, que incluiu as cidades de Wageningen e Amsterdão em 1979; e, finalmente, em Amsterdão, onde voltaria a actuar em 1980, naquela que foi a sua última visita como cantor. Viria a reencontrá-lo em Lisboa, há dois anos atrás, durante um evento dedicado à cidadania, no páteo do Liceu Camões, liceu que ele frequentou em jovem. Estava já doente, afectado pela doença que viria a vitimá-lo este mês. A nossa amizade, apesar da distância física e temporal, manter-se-ia até final.
Da Holanda, chegam-me notícias de personalidades que acompanhei de perto e com quem me cruzei, durante a minha longa estada em Amsterdão. Registo quatro nomes importantes:
O político Harry van der Berg (1942-2020), deputado e ministro do PVDA (social-democrata), célebre por ter apoiado a causa dos refugiados e transportado diversas malas com milhares de escudos para Portugal (supostamente enviadas por Willy Brandt para ajudar Mário Soares na sua "cruzada" contra o comunismo). Mais tarde, veio a saber-se que o dinheiro era enviado pela CIA, que utilizava o deputado holandês, dado que este era detentor de um passaporte diplomático, o que não levantava suspeitas. O episódio, referido em todas as necrologias, já era conhecido há muito e está descrito, em detalhe, no livro "Contos Proíbidos: memórias de um PS desconhecido" de Rui Mateus, publicado pela editora D. Quixote, em 1996. O livro, que esgotou num ápice, nunca mais seria reeditado.  Vá lá saber-se porquê...
Outro personagem marcante, foi o professor Goudsblom (1932-2020) emérito sociólogo e conselheiro do governo holandês para questões sociais, que tive o privilégio de ter como docente na Universidade de Amsterdão, onde leccionava na década de setenta. Dos seus colégios, guardo a imagem do grande auditório da faculdade, repleto de "caloiros", que o escutavam religiosamente, enquanto nos iniciava nas ideias de Marx, Weber, Comte e Durkheim.
Da área da cultura, destaco a cantora Liesbeth List (1941-2020), representante da canção ligeira de qualidade, a solo e em duo, com Ramses Schaffy, o seu "partner" preferido. Cantou Teodorakis em holandês, à època preso pela junta militar grega. Relembro uma histórica actuação, num "meeting" de solidariedade com o povo grego, organizado no Hotel Kranapolsky em Amsterdão, no início dos anos setenta, onde seria a estrela da noite.
Destaque, ainda, para o jornalista Peter van Bueren (1942-2020), figura central da critica cinematográfica holandesa, durante mais de 40 anos, primeiro no diário de "De Tijd" e, mais tarde, no "De Volkskrant", onde terminaria a sua carreira em 2002. No mesmo ano, ser-lhe-ia atribuido o "Lifetime Film Achievement" pela sua contribuição para o cinema, durante o Internacional FilmFestival de Roterdão que eu, à época, acompanhava como colaborador do DN. O Peter morava no mesmo bairro de Amsterdão e encontrávamo-nos, frequentemente, no mercado da Ten Katestraat. Tinha um conhecimento enciclopédico e um humor cáustico, muito holandês, que nem sempre era apreciado por todos os colegas de profissão.  
Em Espanha, registo dois falecimentos de figuras públicas, na última semana:
A artista italiana Lucia Bosè (1931-2020), popularizada durante os anos do neo-realismo e cuja carreira se dividiu entre Itália e Espanha, onde vivia. No dia da sua morte, a televisão espanhola prestou-lhe homenagem, com a projecção do clássico "A Morte de um Ciclista", de Juan António Bardem" (1955), onde desempenha o principal papel.
Finalmente, a morte do activista Chato Galante (1948-2020), preso político durante o regime franquista e membro da "Asociación de Presos y Represaliados por La Ditadura Franquista". Era igualmente activista na ARMH (Asociación para la Recuperación de la Memoria Histórica). Vimo-lo recentemente na película "El Silencio de Otros" (prémio Goya 2019), documentário impressionante sobre o trabalho de exumação dos corpos fuzilados e enterrados em valas comuns, durante a guerra civil e durante a ditadura franquista. São mais de 115.000.   
A semana não terminaria, sem mais uma notícia alarmante, ainda que provável: o director do Centro de Coordenação de Alerta e Emergência, Dr. Fernando Simón, porta-voz do governo espanhol para a epidemia do Covid19, contraíu a infecção e encontra-se confinado em casa.  

(continua)


  

   

2020/03/28

Duas semanas noutra cidade (4): Países do Sul, Países do Norte

Seriati, Itália (foto Pakistan Latest News)
A pandemia viral não poupa ninguém. Salvo raras excepções, todo o planeta parece infectado e deixou de haver "santuários" protegidos. O encerramento de fronteiras (ainda que ajude) nunca resolverá este problema, pela simples razão que o vírus não conhece limitações geográficas e os portadores já se encontram, muitas das vezes, entre nós. Não conhecer o inimigo é, por isso, o maior medo.
John Carpenter, cineasta americano de culto, realizou um filme ("The Thing") onde explora este sentimento, provocado por um vírus desconhecido. No filme, a "coisa" vem do espaço e aloja-se no corpo de um cão, adoptado por um equipa de cientistas, numa estação de investigação no Ártico. A metáfora perfeita do Corona. Acontece, que não estamos num filme de ficção científica, mas numa realidade que ganhou a dimensão de uma pandemia.
Aparentemente, só há duas soluções para combater a situação: uma vacina (que ainda não existe) e o isolamento - voluntário ou forçado - das populações infectadas. Contrariamente ao que possa pensar-se, a segunda medida não se destina apenas a manter pessoas em casa, mas a isolar o grupo de risco que necessita de mais cuidados. Para determinar quem, dos infectados, necessita de cuidados prioritários, é preciso fazer testes e ter material sanitário adequado o que, como se compreende, não existe na maior parte dos países, nem é possível adquirir de um dia para o outro. Daí, o método chinês, que se revelou fundamental para circunscrever o vírus à região infectada (Wuhan).
Ao contrário de epidemias conhecidas (malária, ébola, dengue, sars, etc.) normalmente circunscritas a territórios pequenos em países africanos, asiáticos e sul-americanos (os chamados países em vias de desenvolvimento), o "corona" espalhou-se pelo Mundo Ocidental, com uma rapidez sem precedentes. Habituados a viver em estados mais assépticos, graças a sistemas de saúde funcionais e maior prevenção, os europeus descobriram que não estavam imunes à "coisa". Pior: porque a maioria dos países ocidentais desvalorizou o surto de vírus na China, não foram tomadas medidas atempadas e, agora, corremos "atrás do prejuízo": uns mais que outros, mas, inevitavelmente, todos na mesma direcção: maior número de infectados, maior número de mortes e o colapso da maior parte das unidades médicas existentes...
Como o vírus é "democrático", não escolhe países, classes sociais, ou protegidos do reino. Atinge toda a gente, ricos e pobres, novos e velhos, famosos e desconhecidos, Que o digam personagens como o monarca de Mónaco, o príncipe Charles de Inglaterra ou, mais recentemente, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, para citar três exemplos avulso. Que chatice.
Os europeus (e os norte-americanos por extensão) descobriram também que tinham de seguir uma disciplina férrea (há quem lhe chame "estado de emergência") se queriam sobreviver. Em países autoritários, como a China e em "democracias musculadas", como a Coreia do Sul e Singapura, é sempre mais facil, mas, à falta de melhor método, a coação e as multas ajudam. De um dia para o outro, ficámos todos confinados ao nosso pequeno espaço doméstico, com saídas limitadas e a privacidade ameaçada. Passámos, sem dar por isso, a exilados em casa própria. Agora, somos todos sírios. Após esta crise, veremos. Pode ser que a experiência nos torne mais sábios e solidários.
A solidariedade, no entanto, não parece ser interpretada da mesma maneira pelos governantes desta Europa a 27. Como era esperado, as clivagens entre Norte e Sul (leia-se países "ricos" e países "pobres") voltaram a fazer sentir-se. Nem uma crise humanitária, com estas dimensões, parece ter demovido os "empedernidos corações" calvinistas e luteranos na Holanda e na Alemanha. Perante o apelo de Sánchez, Conte e Costa, apoiados por Macron, para que fossem criados "bonds" europeus como forma solidária de combater a crise (os chamados "Coronabonds"), a Holanda, a Alemanha, a Austria e a Finlândia (o bloco do "marco"), opuseram-se firmemente, argumentando que o Mecanismo Europeu de Estabilidade, criado em 2012, poderia ser utilizado para este fim. Acontece, que a sugestão dos países do Sul, que pretendiam "dividir o mal pelas aldeias" (criando um fundo temporário àparte), não convém à Holanda e à Alemanha, mais interessados em emprestar dinheiro, do qual possam receber juros. Já Portugal, Espanha e Itália, países fortemente penalizados com os "resgates" sofridos, após a crise de 2008, não querem repetir a experiência e criticaram fortemente esta posição, que trará menos solidariedade e mais desigualdade entre os países membros.
Esteve bem Costa, ao criticar publicamente o ministro das finanças holandês (Wopke Hoekstra) que "sugeriu que a UE investigasse o que justifica alguns países não terem verbas suficientes (!?) para lidar com os impactos económicos da crise motivada pelo coronavírus". Depois do cretino Jeroen Dijsselbloem ter afirmado, em 2017, que os países do Sul "só pensam em mulheres e vinho" (!?), esta é a segunda vez que ministros holandeses repetem afirmações arrogantes, com base numa pretensa superioridade, sustentada pelo dinheiro. De resto, o primeiro-ministro Rutte é da mesma opinião, o que não espanta, vindo de um governo cuja ideologia neoliberal sempre defendeu o primado da economia sobre as pessoas. A situação agravou-se, com o crescimento de dois partidos de extrema-direita (leia-se neo-fascistas) o PVV (Wilders) e o FvD (Baudet),  o segundo dos quais tem a maioria na primeira câmara (Senado), o que pode explicar as reticências de Rute em libertar verbas de coesão, com medo de perder votos para a direita.
Azar dos Távoras: a Holanda, portanto um país com um dos melhores sistemas de saúde do Mundo, de acordo com os parâmetros da OMS, tinha (às 19h de hoje) um total de 9.762 infectados e 639 mortos pelo corona vírus,  sendo já 10º país com mais casos de infectados no Mundo (worldometer).
Muito mais haveria a dizer. Por exemplo, sobre a política de confinamento seguida, que permitiu a milhares de holandeses regressarem de férias sem serem testados, o reduzido número de testes praticado diariamente (cerca de 2000) e a política de comércio semi-aberto no início, o que facilitou o contágio, como, de resto, aconteceu em Inglaterra. Contrariamente, ao que possa pensar-se, Portugal, Espanha e Itália, são os países com as medidas mais drásticas da Europa, relativamente ao isolamento e aplicação da lei neste momento. Isso não evitou a propagação do vírus como sabemos (a Itália tinha hoje 86.498 infectados e 9.134 mortos e a Espanha 72.248 infectados e 5.812 mortos, respectivamente), mas os restantes países para lá caminham. É só uma questão de tempo.
Nem só do corona vírus, morrem pessoas, no entanto. Nas últimas semanas, foram muitos os conhecidos e alguns amigos que faleceram. Deles, falarei no próximo "post".

(continua)

Carta de um vírus em vilegiatura

Genoma do do coronavirus, 2019-nCoV de Wuhan (Instituto Pasteur)
Viva, estou a falar-te daqui do meio do muco que enche os alvéolos pulmonares de um tipo qualquer — não faço ideia quem seja.
É mais um.
Não me consegues ver, mas eu vejo-te muito bem.
Não me consegues ver, não nos consegues ver, mas nós estamos a ver-vos e somos muitos.
Somos, aliás, cada vez mais. Vamos sendo cada vez mais. Graças a ti e à tua estupidez.
Estamos a fazer exactamente aquilo que muitos de vocês fazem: a lutar pela sobrevivência, seja de que maneira for.
Mas temos uma enorme vantagem sobre vocês.
Tu, mesmo com os teus poderosos microscópios, mesmo com os teus sofisticados sequenciadores, não atinas comigo.
Eu já te tirei o retrato. De corpo inteiro.
E já percebi tudo o que me interessa sobre ti.
Mesmo que, aparentemente, tenhas sobre mim a vantagem de uma vida mais longa e os recursos que resultam do carácter poliforme do teu organismo, não tens hipótese comigo.
Nós fazemos rigorosamente apenas o que é necessário, unimo-nos, multiplicamo-nos e reproduzimo-nos mais depressa do que tu poderás alguma vez fazer. Somos mais ligeiros, mais simples e menos dados a distracções do que tu.
Estamos totalmente focados na nossa tarefa.
E estamos por todo o lado.
À espreita.
À primeira oportunidade vamo-nos agarrar a cada superfície do teu ambiente, a cada peça da tua roupa, vamos pousar em cada ponto do teu corpo, vamo-nos infiltrar por cada um dos teus tecidos, vamo-nos meter por cada um dos teus poros, furar as paredes de cada uma das tuas células. Vamos andar pacientemente à procura de cada uma dessas entradas. A nossa vida consiste em aprender como.
Só fazemos isso. Temos tempo.
Tu não.
O tempo que andas a perder com discussões inúteis, é o tempo que nós vamos aproveitar para te aniquilar. Não sobrará um único de vós.
Estavas talvez à espera de um meteoro? Algo vindo do além? Um “castigo” de uma qualquer divindade, dessas que vocês gostam de criar para vos consolar nas vossas frustrações?
Pois, não te canses mais.
Nós já aqui estamos.
Mesmo ao teu lado. Não nos viste?
Estamos aqui mesmo.
À espreita. 


A vigiar as tuas células.

Não vai sobrar um único de vocês.
E tu estás a ajudar, felizmente. Oh se estás!
A cada dia que passa, verifico que a tua ajuda é preciosa. Nem sei o que faria sem ela…
Tudo o que podias fazer de errado, fizeste-o no passado e continuas a fazê-lo agora. Estragaste tudo à tua volta. Mas, sobretudo, estragaste aquilo que te trouxe ao ponto em que estás — os teus laços com os outros.
Que bom que andem agora todos às cotoveladas!
Juntos, tu com os outros, sois imbatíveis. Mas, felizmente, fizeste tudo para quebrar esses laços. És tão estúpido!
E eu estou tão feliz por o seres.
Porque isso facilita imensamente a minha tarefa.
E traz cada vez mais lutadores para o meu exército.
Exército, sim.
Porque é, de facto, uma guerra que aqui estamos a travar. Mas tu vais perdê-la!
Repara como consigo liquidar já, sem qualquer dificuldade, os mais velhos. É canja. Consegui perceber logo isso.
Mas, não te iludas! Tu, falo contigo, jovem, vais a seguir!
Vou continuar a aprender e, em breve, nem os que ainda estão para nascer vão sobrar. A estupidez não vos vai permitir ter tempo para perceber como é que nós vos vamos liquidar a todos, com toda a  facilidade, velhos, novos ou fetos.
A estupidez não escolhe idades, e a tua idade não vai, de facto, ser impedimento para eu concluir a minha tarefa.
Nem há locais ou situações privilegiadas para te defenderes de mim.
Não deixaremos de cumprir o nosso destino. E tu? Qual é o teu?

Nós, tu e eu, estamos intimamente ligados, desde os tempos mais remotos. Os nossos destinos parecem desde sempre ligados. Não penses, portanto, que te vais livrar facilmente de mim.
Seja onde for, seja quem for, mais hora menos hora, repito: não vai sobrar um único de vocês!

A menos que…

A menos que, para meu azar, resolvas emendar a mão. E percebas que, sem vocês, nós também não vamos longe e que isto é uma guerra que, nem nós poderíamos ganhar sem a vossa existência. É que nós precisamos de vocês, mas vocês não precisam de nós, para nada.
Já viste?
O que estás a fazer então?
O que andas para aí a fazer, a perder tempo em vez de restabeleceres os teus laços com os outros? De trabalhares para os outros, como trabalhas para ti?
Talvez assim me conseguisses ver, finalmente,
Talvez assim conseguisses virar o desfecho desta fatalidade.
Mas, por enquanto, apenas eu te vejo a ti.
Não me consegues ver, a mim, é verdade, mas consegues ver os outros, teus semelhantes, à tua volta.
Repara como estão vivos. Repara como, no fundo, querem todos continuar vivos como nós.
Pensas que algum desses, que vês à tua volta, quer morrer às minhas mãos?
Oh que ingénuo! Todos querem o mesmo que tu.
A única diferença entre vocês, é que pensas que só tu tens o poder de escapar às consequências da minha luta pela sobrevivência. Que te vais safar. Mas, como te disse antes, não vais. Só terás o poder de te veres livre de mim se assumires que o não podes fazer contando apenas contigo.
Eu sou muito mais esperto que tu. A minha luta por permanecer vivo resume-se, simplesmente, a criar mais de nós. Por outro lado, repara, não há, entre nós, velhos e novos, pretos e brancos, ricos e pobres, do norte ou do sul. Somos muitos, somos rigorosamente iguais e, graças a ti, seremos sempre quantos formos necessários para sobreviver. É por isso que somos imbatíveis.
Cada um de vocês que tu, com a tua estupidez, sacrificas à minha determinação, é alguém que não vais poder substituir. Que te poderia ajudar. Alguém diferente. Alguém que te poderia talvez ajudar precisamente por ser diferente. É nisso que reside o teu poder, não vês?!
Nós estamos todos focados no mesmo objectivo e cada um de nós que tomba será substituído, à tua custa, por alguém exactamente igual a mim, com a mesma determinação, o mesmo propósito e a mesma sanha por te sugar o último traço do teu ADN.
Eu estou focado e só me interessa uma coisa. Cada um de nós que desaparece é substituído por uma multidão de outros, que toma o nosso lugar e se junta aos outros nesse propósito. É o nosso foco que mantém, justamente as nossas fileiras em crescimento. É o nosso foco, único, que nos dá a força de que precisamos. O teu foco enfraquece-te.
Vê os que estão à tua volta. Ou melhor, ouve-os! Ouve-os, a sério. Ouve-os como ouvias quando andavas a dar os teus primeiros passos nesta Terra. Eles dizem tudo o que é preciso saber para mudar o rumo das coisas e tu já não sabes ouvi-los.
Talvez ainda haja tempo. Mas apressa-te porque eu viajo ligeiro. Quase nada pode impedir o meu desígnio.
Eu e os meus irmãos temos a simplicidade das coisas que perduram, que se adaptam, que resistem. Vimos de longe. Temos o foco, o espaço e todo o tempo do mundo..
E tu?

2020/03/26

Duas semanas noutra cidade (3): Fronteiras, Espanha e Pandemia

Foto Brunoticias

Após uma semana de espera, o segundo telefonema do Consulado Português em Sevilha. O interlocutor, simpático, começa por perguntar se já "regressei" a Portugal. Dada a resposta negativa, informa que os serviços consulares (leia-se MNE) não conseguiram reunir os 20 passageiros necessários, que justificasse o aluguer de um autocarro para um repatriamento colectivo. Pragmático, passou às alternativas existentes: apanhar um autocarro de carreira Sevilha-Ayamonte (15 euros) e, de lá, chamar um táxi que me leve a V.R. Sto. António (20 euros). A partir daí, tinha duas opções: comboio V. R. Sto. António-Lisboa (com mudança em Faro); ou autocarro, directo, até Lisboa. Outra opção (mais cara), seria alugar um carro com chauffeur, mais barato que um táxi, por um preço médio de 150 euros até à fronteira de V. Real. Acrescentou, que se trata de carros de luxo, agora a preço reduzido (!?), dada a escassez da procura. Perguntou-me qual a minha situação e se podia esperar em segurança. Respondi que sim. Realista, acrescentou: "nesse caso, deixe-se estar onde está, que está bem. Quanto mais viajar, maior o risco. De qualquer das formas, quando regressar, terá sempre de cumprir os 15 dias de quarentena, obrigatórios em Portugal." Na despedida, não deixou de sublinhar que eu tinha o seu número de telefone e que o Consulado estaria sempre à disposição para qualquer informação ou ajuda, se necessário...
Contas feitas, e na melhor das hipóteses, irei permanecer aqui até dia 11de Abril, quando o segundo período de quarentena no país terminar.
Com menos de 15 dias de quarentena (o primeiro período ainda não expirou), a situação em Espanha é de alarme generalizado. O país atravessa uma crise sanitária sem precedentes e as estruturas de acolhimento estão à beira do colapso. É o caso de Madrid (o mais grave) onde os hospitais públicos não têm meios humanos e materiais, para receber todos os infectados. O governo fez um apelo aos hospitais privados, alguns dos quais já disponibilizaram alas inteiras para tratamento dos mais necessitados e encomendou 14 milhões de euros em material sanitário. O pessoal médico começa a acusar o esforço titânico a que tem estado submetido e o contacto com os infectados já provocou as primeiras baixas que, nalguns centros, são da ordem dos 20% entre os médicos e enfermeiros! Os meios necessários (camas, máscaras, respiradores, kits de teste, desinfectantes) são manifestamente insuficientes para as proporções desta epidemia e os apelos ao governo são, por isso, constantes. Afinal, os médicos estão na primeira linha do combate e serão os primeiros infectados. São eles os heróis, nos dias que passam. Diariamente, a população de Sevilha, assoma às janelas pelas 20h. para agradecer com uma salva de palmas a dedicação demonstrada. Minutos impressionantes.
Nem tudo são palmas, no entanto. Também há "caçaroladas". A primeira, contra o rei Filipe VI, durante o discurso onde este animava o país, e que coincidiu com anúncio onde renunciava à herança do seu pai, por manifesta corrupção; a segunda, contra o governo, por ter decretado o prolongamento do estado de calamidade pública, agora reforçado com medidas austeras de circulação e multas pesadas para quem não obedecer. Os transportes públicos foram reduzidos a metade e a entrada nos únicos estabelecimentos abertos (supermercados e farmácias) é feita a conta-gotas, com filas de pessoas que guardam distância entre si. Pesem as medidas tomadas, o número de mortos não pára de aumentar. À hora de escrever este texto, o Worldometer (OMS) registava um total de 56 197 infectados e 4145 mortes em Espanha, o 4% país com mais infectados a nível mundial, depois da China, USA e Itália. Uma catástrofe sem precedentes. A infecção já está em 196 países, apesar de alguns não publicarem estatísticas fiáveis.
Países com maior número de infecções (short list):
China: 81.285 (3.287 mortes)
USA: 74.388 (1.072)
Itália: 74.386 (7.503)
Espanha: 56.197 (4.145)
Alemanha: 41.519 (239)
Irão: 29.406 (2.234)
França: 25.233 (1.331)
Suiça: 11.712 (191)
UK: 9.849 (477)
Coreia do Sul: 9.241 (131)        
Holanda: 7.431 (434)    
Portugal, aparece em 15º lugar com 3.544 infectados e 60 mortes.
A registar, pela positiva, a redução do número de mortos na China e na Coreia do Sul, onde a epidemia foi considerada controlada (o que pode ser explicado pela disciplina e pelas austeras medidas militares de contenção e prevenção); o baixo-número de mortos na Alemanha (o que pode ser explicado pelo sistema de prevenção existente: 160 000 testes/dia - mais do que na Coreia do Sul) - o maior número de camas por habitante (8/26) e menos mortes de pessoas idosas.
A surpresa, surge do Reino Unido (o país que criou o National Health Service), da Suíça e da Holanda, países com bons sistemas de saúde. Se, no primeiro caso, uma das explicações poderá ter a ver com a descapitalização do NHS e a atitude negligente do governo neoliberal de Boris Johnson, que, para manter a economia a funcionar, autorizou a abertura do comércio, para além do razoável (deixando a porta aberta aos contactos sociais que ampliaram as infecções); já na Suíça e na Holanda, países pequenos com grande densidade populacional, a possibilidade de contágio é um factor de risco. Acresce que, em ambos os países, a descapitalização e consequente privatização dos serviços públicos, também se fazem sentir o que, de resto, é transversal à maioria dos países europeus.
Portugal, em termos relativos ainda pouco atingido, confronta-se com o mesmo problema: depois de uma década de desinvestimento no sector público (anos da Troika, com Passos Coelho e anos de estabilização com Costa) não recuperou os níveis anteriores a 2011. A privatização da saúde (50% do sector) aumentou o fosso entre os "have" e os "have not", com as consequências conhecidas. Com a curva dos infectados a aumentar (ainda que abaixo das projecções mais pessimistas), o sistema do SNS está em risco de implosão e o governo deve tomar medidas que defendam a população. Desde logo a nível sanitário (comprando material e obrigando os privados a disponibilizar instalações e testes para a população) e, simultaneamente, criando medidas temporárias de apoio a desempregados e empresas em dificuldade. Estamos num tempo de solidariedade. A economia, fica para depois.
Este é, de resto, o apelo de Sanchez (PSOE) e outros líderes europeus, que pediu um novo "Plano Marshall" para a Europa, ao que a presidente da Comissão (Von der Leyen) respondeu que a Comissão dispunha de meios suficientes para suster a crise (!?). Quanto à comissária da saúde europeia, parece perdida em combate, já que ninguém ouve falar dela...
No meio do caos organizado em que se transformou esta pandemia, não faltam as vozes da oposição, para quem tudo o que os governos fazem está mal feito. No caso espanhol, o líder do Vox (extrema-direita) secundado pelo PP (franquista), falam todos os dias das suas casas, onde estão refugiados em quarentena. Abascal (Vox) criticou o governo por autorizar manifestações feministas no dia 8 de Março que, na sua "perspectiva", teriam aumentado o risco de contágio (!?); ontem, voltou a manifestar-se, exigindo que os imigrantes ilegais pagassem todos os gastos se fossem atendidos em hospitais públicos (!?). Esqueceu-se de referir os milhares de imigrantes legais, que trabalham nas estufas andaluzas, sem máscaras e sem luvas, onde são explorados e vivem em condições deploráveis de salubridade.
Outro palerma, é um médico de Granada, que dá pelo nome de Jésus Candel e coloca vídeos na Net. Começou por elogiar os serviços médicos nos primeiros dias, para mudar o discurso à medida que faltava material e o hospital onde trabalha deixava de responder às necessidades. O homem pensou que tinha graça e fez das suas intervenções diárias, uma espécie de "stand-up comedy", onde injuriava tudo e todos, a começar pelo primeiro-ministro. A idiotice (um caso de insubordinação inqualificável) foi criticada por colegas de profissão e Joan Planas, um comentador que (num vídeo viral) exigiu a Candel que pedisse desculpa ao povo espanhol. Já esta semana, Candel retratou-se e veio mudar o discurso, agora com lágrimas nos olhos. O medo e o pânico não poupam ninguém, mesmo os mais parvos.
Esta é, provavelmente, a maior lição desta pandemia. Atinge tudo e todos: doentes e médicos, pobres e ricos, famosos e desconhecidos: do monarca de Mónaco ao príncipe Charles de Inglaterra; de Irene Montero (Podemos), ministra da Igualdade a Carmen Calvo (PSOE), vice-presidente do governo espanhol, que, hoje mesmo, teve alta do hospital onde se encontrava internada devido ao Coronavírus. Também o juíz Garzón, se encontra hospitalizado com dificuldades respiratórias.

(continua)





 

2020/03/24

Duas semanas noutra cidade (2): isolamento, rotinas e notícias


Em dias de quarentena forçada, continuamos à espera de notícias do consulado de Sevilha, sobre um eventual repatriamento colectivo, organizado pelo governo português a partir da capital andaluza. 
Como era expectável, o governo espanhol decidiu prolongar o período inicial da quarentena, de 15 para 30 dias. O governo português fez o mesmo, o que de resto estava implícito no "estado de emergência" decretado no passado 15 de Março. A quarentena está para durar, pelo menos até dia 11 de Abril. A circulação, entre os dois países, foi drasticamente limitada (menos 99% de tráfico terrestre, segundo a imprensa espanhola) e as punições para os infractores podem atingir multas na ordem dos milhares de euros. As medidas mais drásticas da União Europeia, segundo Sánchez, o primeiro-ministro. 
Outros países tomaram medidas similares (o que, em si, é compreensível) e não tardará muito que a população europeia (quiçás mundial) fique confinada em casa, esperando pelo abrandamento da "crise sanitária". Se a "coisa" resultar, o confinamento pode ser uma tentação para ditadores em potência. Não por acaso, foram os partidos de direita extrema (Chega, CDS, etc...) os primeiros a exigir o "estado de emergência", apesar de não saber muito bem o que fazer com ele. Para já, os populistas estão desaparecidos em combate, ainda que o "desventurado" André, tenha andado pelos hospitais a tentar capitalizar o descontentamento dos médicos e utentes, na tentativa vã de culpar o SNS (leia-se, o governo) pelos infortúnios de uma sociedade pouco preparada para uma epidemia destas dimensões. Ninguém estava preparado. A prova é o crescimento exponencial do vírus a nível mundial, como pode ser observado diariamente na app "worldometer", que actualiza ao minuto as cifras disponibilizadas pela Organização Mundial de Saúde. Vão lá ver e depois falem.
Para já, há que seguir as indicações sanitárias aconselhadas e permanecer em casa. Parece fácil, mas não é. A principal dificuldade, é a falta de exercício. Compensamos com sessões de yoga diárias e subidas à açoteia que cobre todo o edifício (vantagens mediterrânicas), lugar de reunião dos condóminos e dos filhos em tempo de clausura. Uma vez ao dia, descemos para ir ao supermercado (falta sempre qualquer coisa), à farmácia ou ao ATM. Aproveito para comprar o "El País" impresso, já que nem todos os artigos estão disponíveis online. Os "workshops" na cozinha fazem parte da rotina diária e temo pelos quilos acumulados.  As leituras diárias, online e não só, são obrigatórias, dada a informação importante que circula, ainda que a opinião disparatada tenha aumentado em proporção. Podemos dividir as notícias que circulam em três grandes grupos: as catastrofistas, as cómicas e as cínicas. As primeiras, vêem na actual pandemia, um sinal do fim do Mundo (fundamentalistas religiosos e negacionistas em geral); as segundas, fazem circular anedotas, algumas delas geniais (o humor é importante nos dias que correm); finalmente, as terceiras, provavelmente as mais  pessimistas, ainda que, às vezes, com razão. Afinal, um pessimista é um optimista realista.  
Das centenas de notícias lidas, respigamos alguns assuntos que nos chamaram a atenção:
Desde logo, o "estado de excepção", promulgado pelo governo português, depois de um apelo do Presidente da República, após ouvir o Conselho de Estado no passado dia 18. A medida seria aprovada por uma maioria da AR, com abstenção do PCP, Verdes e IL. Uma lei polémica, já que é a primeira vez que  é aplicada em 44 anos de democracia (se exceptuarmos o período que se seguiu ao 25 de Abril, quando os militares, do MFA, garantiam a ordem democrática) e que continua a ser fortemente criticada em diversos artigos de opinião, e.o. por Raquel Varela, Manuel Loff, Rui Tavares (Público), Francisco Louçã (Expresso), Garcia Pereira (Diário de Notícias) ou Carlos Matos Gomes (Tornado). No seu discurso perante a AR, António Costa procurou serenar os ânimos, ao garantir que as liberdades fundamentais (leia-se, democracia) estavam salvaguardas. Resta saber se, ao prolongamento da situação de excepção, se seguirá uma situação de aceitação destas mesmas medidas, que poderão ser prolongadas caso a crise social e económica, que, inevitavelmente, virá a seguir, lance o pânico nos "mercados". Conhecemos o enredo: em situação de crise, a especulação aumentará exponenciamente e, a não serem tomadas medidas preventivas desde já (dos governos, mas também dos cidadãos que neles votaram) podemos vir a confrontar-nos com um dos dois pesadelos: ou controlo financeiro da economia e, por extensão da política, como aconteceu após o "crash" de 2008; ou o fascismo (implícito e explícito), que é a forma mais drástica do ditadura do capital. Como declarava, ontem, Yanis Varoufakis, em debate online organizado pelo movimento DIEM25, "a esta hora, em Budapeste, Orbán e os seus congéneres europeus, como Le Pen e Salvini, esfregam as mãos, à espera da próxima crise que facilitará os regimes autoritários."
Outras notícias, não menos importantes, são naturalmente os boletins clínicos e conselhos práticos fornecidos diariamente pela OMS e, no caso português, pela DGS. Pesem algumas discrepâncias em dados e opiniões abalizadas, algumas coisas começam, no entanto, a ser aceites pelo mundo científico. Assim, e contrariamente à notícia difundida em Janeiro, o Coronavírus pode ter sido originado noutro local, que não em Wuhan, apesar de ter sido num mercado dessa cidade que primeiro foi detectado. De acordo com cientistas chineses, japoneses, taiwaneses e norte-americanos, o vírus pode, inclusive, ter origem nos EUA, o único país onde foram (até agora) encontradas as cinco estirpes do Corona. O seu aparecimento na Ásia, não exclui a possibilidade de ter sido transportado para Wuhan, onde decorreram exercícios militares internacionais. Em todos os outros países asiáticos (China, Coreia do Sul, Japão, Taiwan, Singapura, etc.), o vírus tem apenas uma ou duas estirpes. Está tudo num artigo publicado no El Ciudadano.
Também sabemos que a China e a Coreia do Sul, os primeiros países (com o Japão) a serem atingidos pela epidemia, conseguiram o "achatamento da curva" de expansão dos infectados, reduzindo o número de mortos. Dos 1500 casos diários registados no pico da crise, Wuhan passou a 6 por dia! Uma das explicações para o sucesso, prende-se, naturalmente, com a disciplina asiática o que, num estado totalitário como a China, não será difícil de acatar. Já na Coreia do Sul (o segundo país asiático mais infectado), assim que souberam da situação chinesa, foi desenvolvida uma estratégia nacional: as 4 maiores fábricas farmacêuticas do país receberam meios e dinheiro para fabricar kits de teste, o que permitiu testar 20 000 cidadãos diariamente, em hospitais e unidades clínicas de proximidade. Simultaneamente, foram criados 56 laboratórios em todo o país, para analisar os resultados e, desta forma, separar os cidadãos infectados da restante população. Hoje, tanto os médicos chineses, como os sul-coreanos, estão na Europa (o continente mais afectado) a ajudar em países como a Itália e a Espanha. A prevenção e a disciplina, não bastam, mas ajudam.

(continua)

2020/03/21

Comunicar em tempo de pandemia


Vivemos uma situação sem precedentes a nível mundial. Não, não me refiro ao famigerado vírus. Vírus, como chapéus, há muitos e a situação terá, mais tarde ou mais cedo, uma solução. O que me preocupa é que o mundo (não é aqui Benavente, Portugal ou a Europa, é o Mundo!) está neste momento metido em casa. Quem não está em casa, imagino, serão os marginais das sociedades modernas, os nómadas, eremitas, desterrados, velhos, loucos ou insociáveis, mais ou menos tradicionais, que já não contavam, e continuam a não contar, para o jogo perverso da globalização. As ruas das cidades, pelo que se consegue ver, estão desertas. Aquela imagem dos animais contidos entre baias, nas grandes unidades pecuárias, segregados e imobilizados, somos agora nós.

Estamos, cada cidadão, cada contribuinte, cada indivíduo, cada família mononuclear, mais ou menos hip, confinados, em todo o mundo, ao espaço trancado das nossas casas, com os movimentos rigorosamente controlados. É por bem, dizem. Será, concedo. Mas esta situação tem os contornos e carrega um tremendo potencial de abuso, comparada com a qual distopias como o Big Brother ou High Chancellor Adam Sutler, do V for Vendetta, pareceriam meninos de coro a cantar "The hills are alive!"

Ora, neste altura, a única coisa que mantém os “globalizados” juntos são as as comunicações. Não foram os telemóveis, os tablets e os computadores e, assim isolados, estávamos agora todos mergulhados numa escuridão e numa ignorância mais profundas que na Idade das Trevas. Na situação actual, de confinamento e isolamento forçados, numa dimensão e em circunstâncias nunca antes vistas, qualquer luz que se acenda nesta escuridão tem unicamente como suporte estes sistemas de comunicação. Mais do que simples objecto de desejo, por vezes, abusivamente omnipresente, este é o fino fio que nos liga presentemente a todos. É por ele que escrevo e é por ele que me lêem. É ele que vai garantindo as liberdades e um verdadeiro, mas geralmente pouco valorizado, exercício da democracia. Vencer as barreiras da comunicação é hoje um poder que já só parcialmente se mantém nas mãos de elites. Hoje está nas mãos de todos nós, mesmo que o exerçamos por vezes de forma pouco competente e que desse imenso poder não nos demos verdadeira conta. Não são as visitas virtuais, as leituras, os passatempos, músicas e outros “entretenimentos” que nos propõem para preencher este vazio forçado, que nos manterão ligados à realidade, mas a possibilidade de exprimir os nossos sentimentos livremente, de nos reunirmos, e, nesta altura, a troca de informações, o contacto com família e amigos, a possibilidade — que a publicidade e algum uso inapropriado fazem, por vezes, parecer insuportavelmente banal — de estar presente à distância. O vírus manté-nos à distância, o tal fino fio vence-a.

Lembremos, contudo, a morte do mensageiro. Lembremos as bombas nos emissores. Hoje ela pode ser substituída por uma simples ordem para premir um botão virtual.

O direito à livre circulação de informação, o direito à reunião e a liberdade de comunicação continuam, neste quadro de excepção, tão importantes como o direito ao trabalho e a um sustento digno, face a uma eventual crise que o vírus desencadeie — crise, de resto, cujos contornos não nos estão a ser bem explicados, mas isso é outro assunto. O direito à livre expressão e à circulação de informação é tão básico e vital como o acesso à energia eléctrica ou à água.
As tentativas de atropelo já começaram, mas por enquanto ainda sabemos o que vai acontecendo e podemos transmiti-lo aos outros e reagir. Imagine-se se a transmissão é cortada.

Se ficarmos sem comunicações (e os estados de excepção, dêem-lhe o nome que derem, têm uma enorme tendência para resvalar nisso) seremos náufragos, isolados, perdidos num qualquer oceano, sem qualquer contacto e com o nosso poder de acção seriamente cerceado. De facto, sozinhos em casa, não saberemos o que se passa lá fora, sem o acesso à infraestrutura de comunicações. Hoje ainda sabemos o que nos contam, beneficiamos das  conclusões que disso podemos tirar, da discussão que disso podemos (ainda) ter, uns com os outros. Neste momento não há testemunhas oculares. Mas, se nos tiram essa capacidade de comunicar e de exercer o nosso inalienável direito de nos organizarmos (organizar É comunicar!) estamos liquidados.

Por muito que tentem pintar o quadro de outras cores, não estamos em guerra. Não há segredos a defender, pelo contrário! Não há tácticas e estratégias de guerra para implementar, não há espiões, não há gente fardada e armada a querer invadir-nos as fronteiras. Nesse sentido, a metáfora da guerra usada por alguns governantes, é totalmente despropositada. Há um vírus. Uma doença que a todos atinge. A guerra pretende aniquilar, destruir e silenciar. A doença precisa de cura para os atingidos. Aquilo que se espera e exige hoje, pois, é solidarieadade e transparência totais.

Vivemos num estado democrático. Temos por isso que velar para que a infraestrutura de comunicações esteja disponível, tal como os outros serviços e direitos essenciais, e o seu uso responsável seja garantido durante este período de excepção sanitária. Se necessário for, com a sua nacionalização temporária e disponibilização gratuita. Comunicar, em tempo de excepção, não é um jogo online, é uma prerrogativa, da qual não podemos, em qualquer circunstância, abrir mão e que tem de ser garantida pelo Governo que elegemos.

2020/03/18

Duas Semanas noutra Cidade: Teatro, Flamenco, Vírus e Confinamento


No âmbito de um programa de intercâmbio, firmado entre a Escuela Superior de Arte Dramático de Sevilla (ESAD) e o Teatro da Rainha (Caldas da Rainha), deslocou-se na passada semana, à capital andaluza, a companhia portuguesa que, este ano, comemora o seu 35º aniversário.
Do programa pré-estabelecido, a apresentação da peça "Planeta Vinil" para além da observação-participativa em aulas de representação e na construção de títeres por professores e alunos de Sevilha que, em data ainda por determinar, retribuirão a visita com a representação de uma peça criada para o efeito, para além de "workshops" de voz e títeres, propostos pelo corpo docente da Escola.     
Quatro dias de intenso convívio e animação, cujo ponto alto constituiu a apresentação da peça portuguesa, da autoria de Cecília Ferreira, representada pelos actores Cibele Maçãs, Mafalda Taveira, Fábio Costa e Nuno Machado. A encenação esteve a cargo de Fernando Mora Ramos e a sonoplastia a cargo de Lucas Keating e António Anunciação.
A peça, uma metáfora sobre o planeta e o perigo de extinção da vida animal, não podia ser mais actual, em tempo de alterações climáticas. Nas palavras da autora:
"Uma criança ruiva, um peixe-napoleão, um escaravelho e uma galinha poedeira, fogem da Extinção. Não sabem ao certo quem ela é, mas pelo tom grave com que todos pronunciam o seu nome, e cada vez com mais aperto, estão certos de que se trata de uma criatura monstruosa e assustadora, que está a aproximar-se deles com largas e demolidoras passadas. Os quatro não decidiram fugir juntos, foi o caminho que os juntou. E nem sempre foi fácil a sua convivência, mas seguiram, guiados pelos seus instintos e convicções, em direcção à Porta do Fundo do Mundo, que lhes permitirá aceder, acreditam, ao Avesso - aquele que está limpo da Extinção e de outros monstros que tais.
Todos parecem saber como chegar até lá, mas o tempo excede-se, elucida e confunde, e o percurso cresce e inquieta" (do programa).
Anfiteatro da escola cheio, para apreciar esta peça para todas as idades que, nas palavras do seu encenador, pode ser vista por espectadores dos 7 aos 77.
Excelentes, as interpretações, de todos os actores, dirigidos desta vez por Mora Ramos, um actor de volta ao papel de encenador.
A representação mereceu rasgados elogios, tanto dos alunos como dos docentes presentes, após a qual se seguiu um debate entre os actores e o público.
A visita a Sevilha, não terminaria sem uma passagem pela Casa de La Memoria, para mais uma sessão de Flamenco, a cargo do corpo dos artistas residentes, que garantem a qualidade da arte neste centro de excelência da cidade.

Como era inevitável, a pandemia existente dominou todas as conversas. A Espanha é, de resto, o segundo país europeu em números de casos detectados e o quarto a nível mundial. Os alarmes nos meios de comunicação social sucedem-se ao minuto e os números de infectados e de vítimas cresce exponencialmente. Também por esse motivo, os membros da companhia optaram por regressar mais cedo que o previsto.
Prevendo o pior, tentámos a habitual reserva num dos autocarros que fazem a ligação entre a cidade e  Faro. Debalde. Tinham sido cancelados e só havia lugares no último autcarro que saía à meia-noite de segunda para terça-feira.
A segunda hipótese seria alguém levar-me à fronteira de carro. Telefonámos para a Guardia Civil. Não era permitido o trânsito, à excepção de ambulâncias, carros da polícia ou de empresas e pessoas que trabalham em ambos os lados da fronteira. Multa para prevericadores: 600euros.
Terceira tentativa: o avião. Preços obscenos e horas de espera infinitas de "tranfers" em Madrid. Exemplo: a Ryanair (não por acaso, considerada a pior companhia "low-cost" nos "rankings" internacionais) oferecia voos directos e via Madrid, a partir de185euros. Uma mala no porão, 70euros. A escolha de lugar, em classe económica, 17 euros. Custos administrativos, pela operação bancária, 7 euros. Ou seja, na hipótese mais barata, com 4 horas de espera em Barajas, a módica quantia de 280 euros...  
Quarta tentativa: o "Blablacar". Para nossa surpresa, ainda funcionava. Escolhido o dia (terça 17) e paga a passagem, restava a confirmação. Confirmado na mesma noite, para as 15h, com 5 horas de viagem "nonstop" até Lisboa. Só que...algumas horas mais tarde, a viagem foi canceldada pelo operador, com os habituais pedidos de desculpa e a promessa de devolução do dinheiro.
Quinta tentativa: um autocarro para Lisboa. Ainda restava um lugar, no último autocarro antes de fechar a fronteira. Reserva feita, pela NET, restava o pagamento. Só podia ser efectuado, mediante a inscripção como aderente da empresa. Preenchido o formulário de viajante frequente, voltámos à página de reserva. Tarde demais: o último lugar tinha sido comprado!
Sexta tentativa: um voo alternativo. Uma obscura companhia de voos internos, em colaboração com a Ibéria, voava a partir de Jerez de La Frontera, para Lisboa via Madrid (3 horas no total). Preço 128euros. Melhor, era impossível. Reservado e comprado.
Entretanto, na televisão espanhola, assisto ao discurso do primeiro-ministro português, em deferido, anunciando o fecho das fronteiras. Duas horas depois, um email da Iberia a anunciar o cancelamento do voo. Devolverão o dinheiro, claro.
Em desespero de causa, consulto o "site" do Ministério de Negócios Estrangeiros. Como esperado,  noticia a abertura de uma "linha de apoio a portugueses no estrangeiro". Fornecem um número de telefone e um mail: Covid19@mne.pt. O telefone está permanente ocupado. O mail foi enviado.
Sexta tentativa: telefonema para o Consulado em Sevilha. Respondem que pouco podem fazer. Informam que, se eu conseguir chegar à fronteira, deixam-me entrar (era melhor!). Depois poderei pedir um táxi para me levar a V. R. Sto. António. Aguardam instruções de Lisboa.
Passaram mais de 36 horas. Esta manhã, telefonema do Consulado: se eu puder esperar, o Consulado está a organizar o regresso de autocarro para portugueses que se encontram em Espanha. Estão a tentar agrupá-los em Sevilha, dada a proximidade da fronteira. Necessitam de 20 pessoas, no mínimo, para justificar o aluguer de um autocarro. A viagem será garantida até Faro. Se eu quiser esperar...

2020/02/27

Taxi Driver (21)

- Bom tarde, para onde vamos?
Para S. Bento...
 - Muito bem. Vamos embora. Pelas Amoreiras?
Sim, parece-me o melhor caminho.
(No rádio, ouvem-se notícias sobre a epidemia do Coronavirus)
- Espantoso. Todos os países tomam precauções. Só Portugal, nada...
Bom, não é bem assim. O que se passa é que não foram detectados casos positivos e, os poucos suspeitos, estão em quarentena. Só há sete portugueses em quarentena...
- Pois, mas eu ainda hoje ouvi o presidente da Federação Nacional de Médicos dizer que Portugal não estava preparado...
Também ouvi essa declaração, mas a Organização Mundial da Saúde já declarou que nenhum país está preparado para uma pandemia. Há que tomar precauções e esperar que descubram uma vacina.
- Vacinas, já há. Eles não querem é que nós saibamos...
Penso que não. Entretanto, o melhor é tomar precauções: lavar as mãos, evitar contactos físicos desnecessários, manter uma certa distância de pessoas com gripe, enfim, as recomendações que vão sendo transmitidas. Também convém não comer morcegos, claro...
- Os chineses comem tudo. Mas, não são só os morcegos. E os porcos e as galinhas? Se há bichos que comem toda a porcaria, são os porcos e as galinhas, que é o que nós mais comemos...
Tem razão. Comemos muitos produtos duvidosos. Mas, pode-se sempre melhorar...comer mais legumes, mais fruta, menos carne vermelha...
-  Sabe qual é o bicho mais higiénico?
Não...
- A caracoleta. Se vir um monte de porcaria, passa sempre ao lado e vai comer ervinha. Não é como as galinhas que debicam tudo. E os porcos, então, nem falar...
Faz sentido, a caracoleta é um herbívoro e só come ervas.
- Eu sou um viciado em caracoletas. Também gosto de caracóis, mas só de vez em quando.
Estou a ver. E come-as no restaurante?
- Não. Faço-as em casa. Se for a um restaurante, levam-me 12euros por um prato, com 12 caracoletas. Se levar a família, gasto uns 60euros, ou mais, por uma refeição. Estão ao preço do bife...
Não fazia a mínima ideia. E onde é que as compra?
- Há ali uma boa loja, à entrada da rua de Campolide, está a ver? Agora, está fechada, mas abre no dia 1 de Abril. Vou lá todas as semanas. Um quilo, custa 12 euros e são para aí umas 85, 87 caracoletas. Se comprar 2 quilos, são quase 200 caracoletas, por 24 euros. Dá para a família toda. Só eu, como metade.
Nem que me pagassem...
- Há muita gente que não gosta. Mas, há que saber o que se compra. Há dois tipos: as brancas e as negras. Eu nunca compro das brancas (são de viveiro). Compro sempre das negras. São mais selvagens e muito mais saborosas.
E como é que as cozinha?
- Fácil. Cozo-as ou frito-as e preparo um molho à parte, com piripiri...
Grande banquete!
- Não esquecer a cervejinha, claro. Só bebo Superbock. São mais caras, mas muito melhores que a Sagres que incham a barriga...
Lá isso é verdade, a Sagres tem mais gás que a Superbock. Todas as cervejas comerciais têm mais químicos. Um mal geral.
- Já comprei duas grades, em promoção, que estão lá guardadas debaixo da mesa, para quando começar o "tempo das caracoletas". Convido uns amigos e eles trazem as bebidas, ou então vou a casa deles e levo as caracoletas.
Já vi que é um especialista. E come muitas durante o ano?
- Muitas? Quilos! Todas as semanas e, às vezes, mais do que uma vez por semana. Quando a minha mulher vai à loja, digo sempre para ela trazer das negras, mas uma vez foi enganada. Voltei lá e perguntei à dona da loja, que já conheço há anos: houve lá, pensas que eu não sei o que são caracoletas? Estas são brancas, queros das negras! Pediu desculpa e trocou-me o saco por um de negras. É assim, a mim ninguém me engana.
Estou impressionado. Já vi que percebe do assunto.
- Oh amigo, nestas coisas de petiscos, temos de ser espertos. E comer o que é bom. Por isso, não tenho medo do vírus. Alimento-me bem...
Convém não abusar, mas se se sente bem, quem sou eu para duvidar?
- É como lhe digo. Dêem-me um bom prato de caracoletas negras e dispenso o bife.
Já percebi. Dessa maneira, não há vírus que entrem consigo...
- Pois não. É preciso é saber. Obrigado pela conversa.
Eu é que agradeço.

2020/02/24

Zambras Granaínas, Payos Flamencos

"Zambra" é o flamenco tradicional de Granada.
O seu "coração" situa-se no bairro cigano de Sacromonte, distrito de Albayzin, face ao Alhambra.
"Sacromonte" (a montanha sagrada) deve o seu nome a um cemitério muçulmano existente na área. Uma das suas características, são as habitações, escavadas na rocha, onde continuam a viver pessoas de etnia cigana, as famosas "caves". Vistas de fora, parecem casas normais, mas, uma vez dentro, apercebemo-nos da forma como foram construídas. As fachadas são parte integrante da rocha.
Após a conquista de Granada pelos reis católicos, os muçulmanos viram-se obrigados a abandonar as muralhas da cidade e a refugiar-se na "montanha sagrada". Uma vez aí, misturaram-se com os ciganos, uma tribo nómada que tinha chegado a Sacromonte anos antes, pelas mesmas razões. A partir de então, ambas as culturas coexistiram e misturaram-se em diferentes aspectos. Entre as muitas afinidades, o facto de serem considerados marginais, à luz da conversão iniciada pelo catolicismo. Em 1499, uma lei decretada pelos reis católicos, forçou os ciganos a abandonar a vida nómada. Por esta razão, e a posterior expulsão dos muçulmanos, Sacromonte tornar-se-ia um bairro exclusivamente cigano.
O nome "Zambra", deriva de "zumra", que significa "festa", o ritual tradicional dos casamentos marroquinos, proibido pela Inquisição no século XVI. Continuaram, no entanto, a ser celebrados clandestinamente. Os ciganos, acabariam por integrar esta tradição nas suas celebrações. Estes ciganos são, hoje, os únicos praticantes desta surpreendente dança marroquina.  
Entre os séculos XVII e XIX, quando os escritores e poetas românticos começaram a chegar a Granada, a Zambra e o Flamenco, já eram apreciados na cidade. Foi este reconhecimento, que transformou o Flamenco numa disciplina e num género musical. Tal popularidade, não agradou a toda a gente. Alguns intelectuais da chamada "Geração de 27" (García Lorca, Manuel de Falla), organizaram, inclusive, o "1º Concurso del Cante Jondo" (Granada, 1922) cujo objectivo primeiro era defender o "cante puro" que, argumentavam, se diferenciava do Flamenco popular, demasiado desligado da verdadeira arte. Posteriormente, Lorca, um apaixonado e especialista do género, aprofundaria o seu ponto de vista na famosa conferência "Arquitectura del Cante Jondo", apresentada, pela primeira vez, em 1932 (Salamanca).
Por sugestão do proprietário da loja de discos mais antiga de Espanha, situada junto à Catedral de Granada, visitámos uma Zambra, a histórica "Maria La Canastera". La Canastera, do seu nome, Maria Cortés Herédia, nasceu em Granada em 1913. Foi "bailaora" e "cantaora" e era conhecida por "La Canastera",  porque o seu pai era artesão e fabricava canastros. Desde muita nova dançava nas Zambras de Sacromonte. A primeira saída, que realizou como "bailaora", foi com 16 anos, à exposição Universal de Barcelona, integrando a Zambra de Manolo Amaya, tendo actuado ao lado da lendária Carmen Amaya, por muitos considerada a maior "bailaora" da história do Flamenco. Compartiu o cartaz, com outras figuras míticas do Flamenco, como La Niña de los Peines, Angelillo, Pepe Marchena e Pepe Grillo, entre outros. Gravou 19 albuns no total. Em 1953, tornou-se dona de uma "cueva" (cave) de Sacromonte, para fundar a sua própria Zambra, por onde passariam personalidades de todo o Mundo. Confirmámos a popularidade do local, nas centenas de fotografias que cobrem as paredes. O espectáculo presenciado, pese ambora a boa prestação de uma das "bailaoras" e do guitarrista que acompanhava o "ensemble" residente, deixou francamente a desejar, mas a experiência valeu a pena. De La Canastera, resta a estátua, uma homenagem da autarquia granaína, a meio da Avenida da Constituição, o "boulevard" mais sofisticado da cidade. Uma referência.
Outra referência na arte flamenca, é a "cantaora" catalã Mayte Martín. Vimo-la em Sevilha, no Teatro de La Maestranza, a sala de visitas da cidade. Esta foi a terceira vez que tivemos o privilégio de ouvir esta extraordinária intérprete, uma das melhores do género, que canta igualmente bem boleros, poesia espanhola e os seus próprios temas. Desta vez, num concerto comemorativo do 20º aniversário do seu terceiro disco "Querencia", editado em 2000. Sobre Maite, já quase tudo foi dito. Se dúvidas houvesse sobre a qualidade dos cantores "payos" (brancos), relativamente aos cantores de origem cigana (um debate mantido por muitos puristas do género), estas desvaneciam-se ao primeiro tema do concerto. Ainda que o programa fosse centrado no album que lhe deu o nome, Mayte passou em revista alguns dos seus maiores sucessos, incluidos numa discografia que conta com 9 albuns. Sobre "Querencia", a cantora explicou: "...Además, querencia es una palabra poco conocida. Mucha gente piensa que tiene que ver con el querer y no es asi. Significa esa tendencia a volver al origen, al lugar del que procedes...".
É isto. A evolução na tradição, implica conhecer bem as origens. Coisa que Mayte Martín continua a conhecer bem.


2020/02/17

Somos todos Marega


Graças a Marega, jogador de futebol do FC Porto, o país parece ter despertado para um fenómeno que, não sendo novo, é olimpicamente ignorado por quem é responsável (no desporto e não só), ainda que o racismo (é disso que se trata) continue presente na sociedade portuguesa.
Não é todos os dias que um atleta abandona uma partida em protesto contra o racismo explícito nas bancadas, ainda que haja diversos exemplos, na história do desporto, de inconformismo e revolta de atletas em relação a esta questão.
Países há, onde, inclusive, as sanções contra as manifestações de racismo nos estádios, foram de tal modo pesadas, que os clubes penalizados pelas respectivas federações e governos não esquecerão, tão cedo, o que os espera em caso de reincidência. É o caso de Inglaterra e de Itália, onde as medidas tomadas (desde a interdição de estádios à identificação e proibição de claques) provocou uma verdadeira revolução no comportamento dos adeptos e dos clubes directamente afectados por esta onda de primitivismo, que continua a assolar os recintos desportivos.
Acontece que o aumento das manifestações de racismo, no futebol e não só, tem na sua génese causas mais profundas que, não por acaso, explodem no campos desportivos, arenas da rivalidade tribal por excelência.
Em tempo de populismos de extrema-direita, os bodes expiatórios da frustração dos "lumpen" de todas as nacionalidades são sempre o "outro": as minorias, os ciganos, os imigrantes, os refugiados, os muçulmanos ou os negros. Neste caso, era um negro jogador de futebol. Mas podia ter sido um negro trabalhador na construção civil, morador num bairro de lata, ou, simplesmente, um estrangeiro na fila do SEF. Todos eles, os Maregas anónimos deste país, que não têm direito aos (tristes) cinco minutos de fama do jogador negro do Mali.
É por isto que o gesto de Marega é tão importante. A dignidade não se vende, por muitos milhões que possa render. Resta esperar que os principais responsáveis (clubes, dirigentes, claques e governantes) saibam extrair deste episódio uma lição para o futuro: um desporto (e uma sociedade) onde as manifestações racistas não sejam toleradas e sejam condenadas sem contemplação.
Se isso acontecer, devemo-lo ao jogador. Por isso, hoje, todos somos Marega.

2020/02/10

O Vírus Fascista

Uma nova epidemia alastra pelo Mundo: o coronavírus.
De acordo com o mais recente balanço, teriam morrido 909 pessoas, a maior parte delas na China, o país onde o vírus foi detectado. O número de infectados ultrapassou os 40.235 e há casos confirmados em países europeus, como a Alemanha, Finlândia, Suécia, Bélgica, França, Reino Unido, Itália, Espanha e Portugal. Uma pandemia, apesar dos cuidados tomados pelas autoridades chinesas que, numa primeira fase, tentaram silenciar o médico Li Wengliang (a primeira pessoa a alertar as autoridades para existência deste vírus) que também acabaria por morrer, vítima de contaminação. Ontem mesmo, surgiu a informação sobre outro cidadão chinês, que divulgou notícias sobre a forma de actuação das autoridades em Wuhan (cidade onde teve origem o surto) que, entretanto, se encontra desaparecido. O advogado Chen Qiushi, conhecido por fazer denúncias de questões sociais, nas redes sociais, terá sido colocado em "quarentena forçada". Um vídeo, sobre o isolamento forçado de Chen Qiushi, tornou-se viral na Weibo, uma rede social chinesa, com muitos utilizadores a pedirem ao governo que liberte o advogado. Não está fácil a vida na China onde, para além da epidemia provocada pelo coronavírus, o estado totalitário não permite aos cidadãos a informação a que têm direito. Um clássico.
Tão ou mais grave que o coronavírus, é a ideologia fascista, que os populistas de todas as matizes procuram disseminar, umas vezes subtilmente, outras à descarada. É o caso do Brasil, um verdadeiro "case study" nesta matéria, onde os atropelos aos direitos humanos há muito ultrapassaram todos os limites.
Disso mesmo, dão conta mais de 2000 artistas, intelectuais e cientistas, que publicaram um baixo-assinado nos principais jornais de referência internacional, apelando à condenação do regime e à solidariedade com o povo brasileiro. Entre os nomes conhecidos estão Sting, Noam Chomsky, Willem Dafoe, Caetano Veloso, Chico Buarque, Philip Glass, Sebastião Salgado, Saori Tukado, Paulo Coelho, Petra Costa, Boaventura Sousa Santos, Valter Hugo Mãe, Jean Wyllys, Pilar del Rio, Mia Couto, Maria Gadu, José Luís Peixoto, Maria de Medeiros, Helder Costa, João Pina Cabral, etc...
Resumimos algumas das passagens do baixo-assinado:
"As instituições democráticas do Brasil, estão sob um ataque, desde que a administração de Jair Bolsonaro, ajudado pelos seus aliados da extrema-direita, tem sistematicamente minado as instituições culturais, científicas e educacionais  do país, além de toda a imprensa adversa.
Inicialmente, membros do ex-partido político de Bolsonaro (PSL), lançaram uma campanha para encorajar os jovens estudantes a filmarem os seus professores e a denunciarem a "indoctrinação ideológica". Esta campanha, conhecida como "escola sem partido", criou um sentimento de intimidação e medo nas instituições do país, que saíu há pouco mais de 30 anos de uma ditadura militar.
No mês passado, Bolsonaro sugeriu que o estado deveria censurar livros do programa escolar e substitui-los por textos que defendessem valores conservadores. No ano passado, enquanto a Amazónia ardia sem controlo, a administração retaliou contra cientistas que ousaram apresentar provas das queimadas e da deflorestação, provocadas pelos madeireiros. Foi o caso de Ricardo Gabão, ex-director do INPE (Instituto Nacional de Investigação do Território), demitido após ter divulgado dados obtidos por satélite, que comprovavam a deflorestação acelerada da Amazónia.
Também no ano passado, a administração despediu o director de "marketing" do Banco do Brasil, Delano Valentim, por este ter lançado uma campanha de promoção da diversidade e de inclusão.
O governo também é hostil aos "média". No dia 21 de Janeiro deste ano, o Ministério Público Federal abriu uma investigação sem provas, contra o jornalista Glenn Greenwald e seus colaboradores, por alegada conspiração e espionagem de telemóveis das autoridades brasileiras. A acusação - um claro ataque à liberdade de imprensa - foi uma resposta à série de factos comprovados por Greenwald e publicadas pela agência Intercept, sobre a corrupção existente nos círculos próximos do presidente, entre os quais os membros da sua família.
Este, não foi um caso isolado.  Os representantes do governo, desde os tribunais regionais à polícia militar, encarregaram-se de defender Bolsonaro e impedir a imprensa livre. Só em 2019, foram relatados 208 ataques aos "média" e jornalistas no Brasil.
No dia 16 de Janeiro passado, Bolsonaro e o secretário-especial para a Cultura, Roberto Alvim, apresentaram em conjunto um filme sobre os seus planos ideológicos para o país, onde elogiavam a deriva conservadora e censória da cultura. No dia seguinte, Alvim, foi ainda mais longe: durante um vídeo-fragmento, onde anunciava um novo prémio para as Artes, fez alusões aos princípios nazis e utilizou frases do célebre propagandista nazi Joseph Goebbels. Posteriormente, devido à celeuma provocada no país e a nível internacional, Alvim seria demitido. No entanto, o ministro de Bolsonaro, foi apenas o seu mensageiro.
Instituições públicas, que representam a herança cultural brasileira, como o Conselho Superior do Cinema, Ancine, O Fundo do Audiovisual, a Biblioteca Nacional, O Instituto da Herança Histórica e Artística, a Fundação Palomares para a Cultura Negra, foram igualmente censuradas, tendo sofrido cortes nos apoios estatais e outras formas de pressão política.
Petra Costa, realizadora do filme "No Fio da Democracia", este ano nomeada para os óscares, foi criticada num "tweet" da secretaria de comunicação do governo por, alegadamente, ter mostrado uma face menos "simpática" da governação Bolsonaro.    
O governo de Bolsonaro, continua a trabalhar para fazer regredir importantes conquistas das últimas décadas: entre 2003 e 2017, a proporção de estudantes negros que entrou para a universidade aumentou em 51%. Bolsonaro quer diminuir esta percentagem.
Os ataques às minorias étnicas e à comunidade LGBTQ, continuam a aumentar, enquanto são ignoradas a violência e a criminalidade das milícias para-militares de extrema-direita.
Este é um governo que não tem um plano de desenvolvimento para o seu povo.
Pelo contrário, o governo combate qualquer sinal de progresso, nega o aquecimento global, os incêndios na Amazónia, a deflorestação e a diminuição do "habitat" dos povos índios, confinados a cada vez menos território. Uma das suas últimas directrizes, foi a de enviar missionários para ensinar religião às tribos índias.
A lista de livros, que devem ser retirados do programa escolar, inclui 43 obras, das quais 19 de autores brasileiros, entre os quais Rubem Fonseca, Ferreira Gullem (prémios Camões), Machado de Assis, Carlos Heitor Sony, Nelson Rodrigues, Mário de Andrade, Euclides da Cunha, mas também Kafka, Edgar Alan Poe, entre muitos outros. Chico Buarque de Holanda (prémio Camões 2019) a quem Bolsonaro recusa entregar o prémio, virá recebê-lo a Portugal no dia 25 de Abril.
Esta lista, que deve constar do "index" escolar, é da autoria de Marcos Rocha, secretário de educação da Randónia, um ex-coronel da polícia militar, filiado no PSL, onde militou Bolsonaro. Perante a divulgação da lista, o documento foi retirado e considerado sigiloso pelo governo, ainda que não tivesse sido desmentido".
Faltaria ainda referir as ridículas afirmações da ministra de educação que considerou "o sexo fora do casamento, uma coisa de esquerda", ou as campanhas nacionais de "aconselhamento sexual", para pessoas acima dos 16 anos...
Da mesma forma que o vírus, a demência parece ter afectado os brasileiros. Mas, Bolsonaro, não está isolado. A apoiá-lo, estão 55 milhões de votantes, que não devem ser desvalorizados. Como escreveu um famoso escritor:
"Deve valorizar-se a opinião dos estúpidos: são a maioria". Lev Tolstoi (1828-1920)


 
 
     

2020/01/23

Corrupção: do "Luanda Leaks" ao "Portugal links"

Na semana de todas as revelações, as notícias sobre o caso angolano (vulgo "Luanda Leaks"), sucedem-se a ritmo estonteante. 
Hoje mesmo, chegou a Lisboa o Procurador-Geral da República de Angola (Hélder Pitta Groz), para encontrar-se com a sua homóloga portuguesa, com quem abordará o "caso Isabel dos Santos" e as suas ramificações em Portugal.
O caso conta-se em meia-dúzia de linhas: Isabel dos Santos, filha do ex-presidente angolano Eduardo dos Santos, empresária de sucesso e considerada a mulher mais rica de África, foi constituída arguida num mega-processo em Angola onde, juntamente com outras personalidades do regime, foi acusada por crimes de gestão danosa, peculato, tráfico de influências e branqueamento de capitais, enquanto administradora da Sonangol (empresa petrolífera angolana). A sua fortuna, avaliada em mais de 3.000 milhões de dólares, está hoje dispersa por vários continentes: da África à Europa, passando pela Russia e pelo Médio-Oriente, onde possui interesses económicas e património pessoal, com residências em Luanda, Lisboa, Londres, Malta, Mónaco e Dubai. Em Portugal, são conhecidas as suas participações de capital na NOS, Efacec, Sonae, Eurobic, Galp e Comunicação Social, para além de investimentos diversos em projectos imobiliários. Juntamente com a filha de Eduardo dos Santos, foram constituídos arguidos, os portugueses Mário Leite Silva (braço-direito da empresária), Sarju Raikundalia (ex-administrador financeiro da Sonangol), Paula Oliveira (amiga de Isabel dos Santos e administradora da operadora NOS) e Nuno Ribeiro da Cunha (assessor do Eurobic). Todos eles se encontram fora de Portugal, neste momento.
De acordo com o PGR angolano, a acusação partiu da denúncia do sucessor de Isabel dos Santos, à frente da petrolífera estatal angolana, Carlos Saturnino. Foram constituidos outros arguidos, nas alegadas transferências fraudulentas para o Dubai.
Nada que nos deva surpreender no país onde, durante décadas, governou a família Dos Santos, uma das mais sinistras cleptocracias do continente africano. Que a filha primogénita do (ex)presidente tivesse sido eleita para herdar a fortuna do pai, era expectável. Que a maioria do povo angolano, continue a viver em condições de miséria extrema, enquanto os seus governantes gastam o dinheiro do país nas chiques lojas de Lisboa, é vergonhoso.
E o que é que isto tem a ver com Portugal?
Acontece que, dadas as relações especiais entre os dois países, Angola sempre foi um parceiro preferencial dos governos portugueses: durante a ditadura, como colónia e, após o 25 de Abril, como país de cooperação, investimento e emprego. Foi assim durante décadas e, nos últimos anos (devido à crise social e económica que Portugal atravessou entre 2011 e 2014), aumentou de importância, passando Angola a funcionar (de novo) como país de emigração e oportunidades.
Foi nesta última década, que os investiments angolanos em Portugal aumentaram, com incidência nas telecomunicações (NOS), industria de cabelagem (Efacec), banca (Eurobic), distribuição (Sonae), petrolífera (Galp) e comunicação social (Cofina).  O empório de Isabel dos Santos cresceu exponencialmente e Lisboa passou a ser uma plataforma privilegiada para os seus negócios, com sede na Avenida da Liberdade.
Nada disto se consegue sem dar nas vistas e há muito que o jornalismo de investigação vinha alertando para esta história de sucesso. Finalmente, e após anos de investigação, o Consórcio Internacional de Jornalistas (120 jornalistas de 20 países), publicou um relatório baseado em 750.000 documentos, onde a fortuna de Isabel e as suas aplicações foram escrutinadas.
Fala-se de corrupção e, como sabemos, para haver corrupção tem de haver corruptores e corrompidos. A "lavagem" do dinheiro angolano em Portugal, só podia ter sido feita com a cumplicidade de parceiros portugueses (políticos, banca, empresários, escritórios de advogados, etc.). É aqui que a PGR portuguesa poderá ter um papel, já que o processo angolano a Angola diz respeito.
Nem de propósito, saiu hoje o relatório anual da "Transparency International" o organismo da ONU que analisa a percepção da corrupção a nível internacional.
São 180, os países escrutinados. No topo da lista (leia-se, "menos corruptos") estão a Dinamarca, a Finlândia, a Suécia, a Noruega, para além da Nova Zelândia, Suiça, Singapura, Países-Baixos, Luxemburgo e Alemanha. Como é habitual, de resto. Já no fim da lista, estão os "mais corruptos", a Guiné-Bissau, a Coreia do Norte, a Venezuela, a Guiné Equatorial, o Sudão, o Afeganistão, o Iémen, a Síria, o Sudão e a Somália (países ditactoriais ou estados-pária, atingidos por guerras civis e calamidades várias).
E como estamos de corrupção em Portugal?
No último ano não se registaram melhorias no combate à corrupção em Portugal, segundo o ìndice da Transparência Internacional. De acordo com os dados de 2019, o país piorou 2 pontos, apesar de se manter na mesma posição do ano passado (30ª lugar), ficando novamente aquém da média da Europa Ocidental.
De acordo com o presidente português da "Transparência e Integridade" (João Paulo Batalha), "para além de promessas reiteradas e discursos de ocasião, não tem havido em Portugal uma verdadeira mobilização da classe política contra a corrupção". Para Batalha, "falta coragem política para implementar uma estratégia robusta, capaz de prevenir e combater eficazmente a corrupção, o que não se consegue com declarações de intenção".
Resta esperar que a divulgação dos dados, respeitantes a Isabel dos Santos, possa contribuir para o desmantelamento da impunidade com que esta  "lavandaria" operava em ambos os países. Nunca é tarde para começar. Ainda estamos no início...

2020/01/21

Taxi Driver (20)


Para onde vamos?
- Para o largo Camões. Mais exactamente para o cinema "Ideal", sabe onde fica?
Cinema "Ideal"? Nunca ouvi falar, mas se me disser onde é...
- É fácil, vai pelo Monsanto, Amoreiras, Largo do Rato, Principe Real e Rua do Loreto...o "Ideal" fica do lado direito, perto do Camões.
Estou a ver. Desculpe perguntar, mas conheço mal a cidade. Sou de Lamego e estou há pouco tempo em Lisboa; quando não sei, pergunto sempre aos clientes, mas a maior parte deles, dizem-me "ponha o GPS"...
- Não há problema, vamos lá ter, mesmo sem GPS.
Mas, diga-me lá, esse cinema "Ideal" é um cinema novo?
- Por acaso, não. É o cinema mais antigo de Lisboa. Foi fundado em 1904.
Não sabia. Eu gosto muito de cinema e de teatro. Sempre que posso, tento levar a minha filha, porque eu quero que ela também ganhe o gosto pela cultura.
- Acho muito bem. De pequenino é que se torce o pepino. Voltando ao cinema "Ideal", reabriu há 5 anos, depois de um longo período em que esteve encerrado. O seu primeiro nome foi "Salão Ideal" (até aos anos cinquenta). Depois, chamou-se "Cinema Ideal". Em 1976, voltou a fechar por um longo período. Reabriu em finais dos anos setenta, como sala de filmes pornográficos. Chamava-se, nessa época, "Cine-Paraíso". Voltou a encerrar e esteve devoluto durante muitos anos, até que o actual dono e exibidor (Pedro Borges, em parceria com a Casa da Imprensa) obteve um subsídio da Câmara de Lisboa e restaurou a sala, em 2014. É especializado em cinema português, cinema independente e filmes clássicos. Neste momento, tem 3 filmes em exibição, um dos quais é o famoso "Apocalypse Now",  que fez, agora, 40 anos...
Muito me conta. Ainda bem que sabe dessas coisas. Eu vou ver tudo. Também gosto muito de teatro musicado e, ainda há pouco tempo, fui ver uma peça do La Féria, que é muito bom encenador. Há quem diga mal dele, mas eu gosto muito do que ele faz. Quando a minha mãe vem a Lisboa, vamos sempre ao cinema ou ao teatro e até à ópera. Gosto muito de ópera...
- Pois, o La Féria...só vi uma peça encenada por ele, "As árvores morrem de pé" e fiquei surpreendido pela qualidade. Não esperava.
Pois é. Os portugueses têm coisas muito boas. Não é só na cultura. É o clima, a hospitalidade. Somos um povo muito bom e hospitaleiro. E a comida? Eu gosto muito de comer e sempre que posso vou a Lamego matar saudades...aqueles enchidos...
- Por acaso, não conheço Lamego, mas sim, são boas qualidades, essas que mencionou.
Ainda há pouco tempo levei aqui uma senhora brasileira que só dizia mal dos portugueses. Que os portugueses eram isto e aquilo...
- Bem, não têm muita moral para falar. No Brasil também haveria muita coisa a criticar. Talvez fosse uma apoiante do Bolsonaro...
Não era, não. Também me disse que ele era doido varrido.
- É pior que isso, mas foi eleito por mais de cinquenta milhões de brasileiros, que não devem ter percebido muito bem quem ele era ou, então, eram como ele...
É o que eu acho. Um doido, que só faz asneiras. E já agora, o que é que o senhor pensa do actual governo português?
- Do Costa? Bom, eu não sou adepto do Costa, mas comparando com o governo anterior parece-me bastante melhor.
Mas, o governo anterior tirou o país da bancarrota...
- É o que dizem. A verdade é que obrigou os portugueses a sacrifícios desnecessários, que atiraram milhares de pessoas para o desemprego e para a emigração. Só em 4 anos, saíram mais de 400.000 portugueses  do país. Uma verdadeira hemorragia. Sabia?
Eu tenho amigos e familiares em Lamego que foram para França e para Inglaterra.
- Pois foi. Portugal estava, de facto, muito mal, mas quando pedimos um empréstimo ao Banco Mundial, ao Banco Europeu e à Comissão~Europeia (78.000 milhões de euros), a chamada "Troika", impôs-nos um programa de austeridade financeira, que não obrigava a muitos dos sacrifícios impostos aos portugueses. O governo do Passos Coelho, foi muito para além da Troika. Privatizou as principais empresas portuguesas e foram feitos cortes brutais nas pensões, nas reformas, em salários e subsídios diversos. Até os vencimentos acima de uma determinada quantia (1500euros), pagaram uma taxa-extra de "solidariedade", que ainda não foi completamente reposta. Uma crise social e económica, sem paralelo...
É verdade, sim, mas e agora?
- Agora, este governo está a tentar repôr o poder de compra perdido nesses quatro anos e já conseguiu equilibrar as contas públicas. Conseguiu diminuir a dívida pública de 135.000 milhões de euros para 122.000 milhões, diminuiu o déficit de 4% para 0,2% e reduziu o desemprego de 17% para 6%. Nada mau.  Mas, claro, não é suficiente. Portugal é um país pobre, a economia cresce pouco e o dinheiro não chega para tudo. É como a história da "manta curta": puxa-se para a cabeça e destapa-se os pés, puxa-se para os pés e destapa-se a cabeça. Falta muito dinheiro para a saúde, para a educação, para a habitação e para os transportes, entre muitas outras coisas. Não está fácil. Mas, este governo, é claramente melhor do que o anterior, na minha opinião.
Percebo. Bom, estamos a chegar. E agora, vou pela Rua do Século ou pelo Princípe Real?
- Por onde quiser. Talvez pela Rua do Século. Depois, sobe a Calçada do Combro e já lá está...
Estou a ver que conhece bem a cidade...
- É do hábito. Também ando frequentemente de táxi. Conheço os percursos mais rápidos.
Já estamos na Rua do Loreto...e agora?
- Pode parar aí, à direita. Está a ver aquelas portas envidraçadas? O "Ideal" é ali.
Pronto, já sei onde fica. Muito obrigado pela conversa. Gosto sempre de falar com os meus clientes. E já sabe, não se esqueça de ir a Lamego, comer os nossos enchidos!
- Está prometido.

P.S. "Apocalypse Now" (final cut) continua tão bom como as versões anteriores... 

2020/01/15

Granada: na rota de Lorca

Museo Casa Natal - Federico Garcia Lorca
Data de 1977, a minha primeira e breve passagem por Granada.
Da visita, guardo recordações de um gorada entrada no Alhambra e uma sessão tardia de flamenco para turistas, algures nas "cuevas" ciganas da cidade. Pelo meio, uma "paella" memorável. 
Quarenta anos mais tarde, a oportunidade de voltar a esta cidade mítica, último reduto do domínio muçulmano na península ibérica, agora com propósitos mais bem definidos.
Desde logo, visitar os "ex-libris" locais, a citadela La Alhambra (o monumento mais visitado de Espanha), o palácio del Generalife, a Catedral, a Capilla Real, o Palacio de La Madraza, o Corral del Carbón, o Bairro Albaicín, Sacromonte, o Paseo de Los Tristes, o Parque que rodeia a Horta de S. Vicente (onde viveu Federico Garcia Lorca) ou a "carmén" de Manuel de Falla, entre tantos outros.
Este era o plano...
Porque o tempo era escasso e, pelo meio, havia um fim-de-semana festivo, tornou-se difícil cumprir o sobrecarregado programa, tanto mais que muitos dos locais se encontravam encerrados ou apresentavam filas desencorajadoras para quem não podia esperar...
Começámos pelo fim, neste caso as localidades de Fuente Vaqueros e de Valderrubio, nos arredores da cidade, onde Garcia Lorca viveu parte da sua infância e juventude. Em ambas, existem hoje casas-museu dedicadas ao poeta, que albergam parte do seu espólio e muito do mobiliário original, recuperados pela família. Foi, aliás, em Valderrubio, onde Lorca passou a juventude, que o dramaturgo escreveria a peça "A Casa de Bernarda Alba".
Fuente Vaqueros, uma pequena vila de 4000 habitantes, dista apenas 17km de Granada. Saindo pela A92, em direção a Sevilha e, depois de passar o aeroporto, que ostenta o nome de Lorca, podemos ver as primeiras indicações na berma direita da estrada. Após um pequeno desvio, indicado pelo GPS, que obriga os visitantes motorizados a passar pelo cemitério (!?), fomos parar à Alameda  principal da  vila, o Paseo del Prado, onde se encontra uma fonte monumental, dedicada a Lorca. No outro extremo da Alameda, encontra-se a estátua do poeta que, de resto, dá o nome a ruas, escolas, creches e cafés de Fuente Vaqueros. O Museo Casa Natal - Federico Garcia Lorca, é a principal atracção da vila e, pela manhã, já havia turistas a rondar a porta, àquela hora fechada por estar a decorrer uma visita guiada no seu interior. Enquanto esperavámos pela nossa vez, aproveitámos para visitar El Museo de Fuente Vaqueros, uma antiga escola reconvertida, paredes meias com a Casa Natal.
Inaugurado em 1986, o museu reuniu uma importante colecção de documentos, bibliografia e obras de arte, hoje referência imprescindível para investigadores e seguidores da vida e obra de Federico Garcia Lorca. Entre os mais significaticos, o manuscrito da conferência "Arquitectura del Cante Jondo", a versão argentina do guião "El Retablillo de Don Cristóbal", páginas soltas de "Mariana Pineda", arquivos pessoais, como os do espanholista Ian Gibson, do poeta Fernando Villalón, assim como obras de Dali, José Caballero, Benjamin Palencia e Manuel Ángeles Ortiz.     
Em 1998, foi anexado ao museu, El Centro de Estudios Lorquianos, que alberga desde então a biblioteca e arquivo, para além de sala de exposições, concebida como espaço aberto a propostas inovadoras. Na sala das exposições temporárias, é possível ver uma reconstituição fotográfica dos locais de Granada, frequentados por Lorca nas décadas de '20 e '30, alguns dos quais já desaparecidos, como as duas casas onde viveu com a família. 
De volta à Casa Natal, onde só é possível entrar com guia, fomos passando através das diferentes divisões que compõem a pequena habitação de dois pisos, onde nasceu e viveu o poeta até aos sete anos. Lá estava a cama original e o piano de parede, cedido pela irmã, no qual tocou e acompanhou a célebre Argentinita, para além de fotos e móveis originais, que foram recuperados pela família. No piso superior, hoje vazio, pudemos assistir a um filme de época, com imagens de Lorca durante uma digressão do grupo teatral "A Barraca", por ele fundado, para além de uma excelente exposição fotográfica, através da qual podemos seguir cronologicamente a história da família, que se fixou no vale de Granada, depois do pai de Lorca ter-se dedicado à cultura da beterraba, com a qual enriqueceu. As traseiras da casa, dão ainda para um pátio interior, onde existe um poço e um busto de Lorca, que serve de ex-libris às publicações da loja de "souvenirs", onde é possível comprar livros, discos e reproduções de cartazes da época. Indizível, a sensação de estar naquele lugar.
Dado o adiantado da hora, deixámos para nova visita a povoação de Valderrubio, onde existe a outra casa-museu, pois ainda faltava Granada...
Resta falar de Ian Gibson, académico irlandês, apaixonado por Espanha, cujos livros sobre Lorca (tema da sua tese de doutoramento) fazem dele um dos maiores especialistas da vida e obra do poeta andaluz. Foi ao ler Gibson, que (re)descobri Lorca. Um manancial de informação, onde a investigação jornalística, não dispensa a erudição, sempre presente em todos os seus livros. Para os interessados, recomendo "La represión nacionalista de Granada en 1936 y la muerte de Federico Garcia Lorca" (Ruedo Iberico: Paris, 1971), apreendido durante o regime de Franco e recentemente reeditado sob o título "El Asesinato de Garcia Lorca" (Ediciones B: Barcelona, 2018); "Vida, pasión y muerte de Federico Garcia Lorca, 1898-1936" (Ediciones B: Barcelona, 2016) e "Aventuras Ibéricas" (Ediciones B: Barcelona, 2017), entre outros.
De vida e obra de Lorca, sabemos cada vez mais. Das condições da sua morte, nem tanto. Falta o mais importante: encontrar o corpo, supostamente enterrado, juntamente com outros republicanos, numa vala comum, algures entre Víznar e Alfacar, após ter sido fuzilado pelas tropas franquistas, no dia 17 de Agosto de 1936.

"Desde entonces no sabemos nada, sino su propria muerte, el crimen por el que Granada vuelve a la Historia con un pabellón negro que se divisa desde todos los puntos del planeta"
PABLO NERUDA, 1947 

  

2019/12/20

Sevilha: dos Cantautores ao Flamenco, passando pelo Fado


Que Sevilha pode ser um lugar de boas surpresas, não é novidade para ninguém que conheça minimamente a cidade. De volta à capital andaluza, agora em missão mais "séria", oportunidade de o comprovar, se isso fosse ainda necessário...
Tudo começou há uns meses atrás quando, em conversa informal, fomos confrontados com um convite inusado: o de apresentar, em forma de charla, uma panorâmica sobre a música popular portuguesa actual (vulgo MPP), que vem sendo feita por dezenas de compositores e intérpretes musicais, de há 50 anos a esta parte. A conversa seria integrada numa classe de alunos finalistas da Escola Superior de Artes Dramáticas (ESAD), que estudam artes performativas nas suas mais diversas vertentes (canto, teatro, mímica, dança ou música...).
Aceite o desafio, e porque o tema era vasto e daria para um "trimestre", optámos por incidir o foco da nossa intervenção na geração dos chamados "cantautores" (sing-songwriters), uma vez que a denominação, cobria os "baladeiros" ou "cantores de protesto" (anteriores a 1974) e os "cantores de intervenção" ou "canto livre", surgidos com o "25 de Abril".
Devo confessar, que poucas coisas me dão mais gozo do que seleccionar músicas e autores que fazem parte da banda sonora da minha vida. Se alguma coisa marcou a minha geração, foram as canções (datadas ou intemporais), que continuam a fazer parte da história da (nova) Música Popular Portuguesa. Restava a parte mais difícil: que músicas e autores escolher, para apresentar a uma classe heterógenea, constituida por alunos que nunca, ou raramente, teriam ouvido estas canções, ainda por cima num tempo limitado de duas horas?
Após um fim-de-semana de tentativas várias, conseguimos alinhar 25 títulos que cobrem, "grosso modo", o período compreendido entre 1956 e 1982, respectivamente o ano das primeiras "Canções Heróicas" (gravadas pelo Coro da Academia de Amadores de Música, dirigido pelo maestro e compositor Lopes Graças); e o ano da edição de dois albuns seminais da MPP (os LPs "Ser Solidário/FMI" de José Mário Branco e "Por este Rio Acima", da Fausto Bordalo Dias). O primeiro, "encerrando", de algum modo, a fase da canção mais comprometida politicamente e, o segundo, inaugurando uma fase de grande criatividade, após o período mais politizado destes mesmos cantautores. Pelo meio, nomes como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Francisco Fanhais, Manuel Freire, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Tino Flores, GAC, Fausto e Vitorino.
O tempo não deu para mais e muitos nomes ficaram de fora. Nada que tivesse impedido os presentes de manifestarem o seu apreço pela música oferecida, coisa que, de resto, é natural num país que nos deu cantautores como Paco Ibáñez, Luís Pastor, Patxi Andión, Lluís Lach ou Joan Manuel Serrat, para nomear alguns dos mais conhecidos.
Por coincidência, actuava na cidade, Teresinha Landeiro, num ciclo de fado anualmente organizado pelo Lope de Vega, o mítico teatro sevilhano. Não podíamos faltar (noblesse oblige) também porque conhecemos a jovem fadista das noites de fado amador, então organizadas no centro cultural da "Fábrica Braço de Prata", em Lisboa, já lá vão 10 anos. Tinha, Teresinha, 14 anos...
Dez anos mais tarde e dois albuns de originais depois, para além de actuações em salas prestigiadas como o CCB (Lisboa) e a Casa da Música (Porto), Teresinha confirmou todos os atributos que se adivinhavam há uma década atrás: uma fadista "puro sangue" que nada tem a provar, tal a maturidade do seu canto. Para quem estiver interessado, não deve perder as sextas à noite da "Mesa de Frades", em Alfama, onde ela actua regularmente.
Finalmente, e porque Sevilha sem Flamenco é como Roma sem Papa, tanto procurámos que fomos bafejados pela sorte. Em cartaz, nessa mesma semana, um concerto organizado na sala Cero, um pequeno teatro de bolso que, pela primeira vez, em colaboração com Madrid e Granada, organiza um ciclo dedicado a Manuel de Falla (Musica de Cámara y Flamenco).
Desta vez, o programa, ainda que sugestivo, era relativamente desconhecido para nós: Rocío Diaz (cantaora), Manolo Franco (guitarra) e Luisa Palicio (bailaora). Porque os concertos deste ciclo, são temáticos, este era dedicado à "Triana de Azulejo", uma evocação, suportada por magníficos diapositivos, das decorações típicas do famosos bairro sevilhano. Após uma curta, mas pedagógica introdução ao tema, por parte do organizador, pudemos assistir a hora e meia de excepcional qualidade e, fiel ao espírito de Falla, sem amplificação sonora. Aqui, o "cante" clássico, interpretado por Rocío, foi superiormente acompanhado pelo mestre Franco, um guitarrista de finíssimo recorte e técnica apuradíssima, a lembrar os grandes intérpretes da guitarra clássica espanhola. Uma nota final, para a bailaora (Palicio) que, pesem as poucas intervenções no concerto, mostrou uma técnica soberba, na tradição de uma arte, onde são incontáveis os génios da dança. Grande noite, a fechar uma estadia não menos memorável.