2023/04/24

O "25 de Abril", o Brasil, Lula e Chico

Após sete anos de interregno, Portugal e Brasil voltam a reencontrar-se no âmbito das Cimeiras Oficiais entre os dois países. A última Cimeira, que juntou o (então) presidente brasileiro Michel Temer e o primeiro-ministro português António Costa, teve lugar em Brasília no 1º dia de Novembro de 2016. Nessa Cimeira (a 12ª), foram acordados 5 protocolos de cooperação entre ambos os governos.

Desde então, as Cimeiras, destinadas a fortalecer os acordos de cooperação entre os dois países, foram interrompidas unilateralmente por Bolsonaro (2018-2022) e pela pandemia Covid (2020-2022). 

Lula da Silva, que ainda antes de tomar posse tinha anunciado retomar as Cimeiras, concretiza este objectivo na primeira visita que faz a um país europeu. Esta é uma boa notícia, que deve ser saudada por todas as forças democráticas portuguesas e brasileiras, interessadas em fortalecer a amizade entre os dois países e, dessa forma, contribuir para uma melhor cooperação bilateral, no campo político, social e económico. Era tempo do Brasil voltar à ribalta internacional, após os "anos de chumbo" da governação   Bolsonaro (um fascista assumido), que condenaram o país ao isolamento diplomático de um estado-pária.

Lula da Silva que, com todas as suas limitações e defeitos, é um político experimentado e reconhecido mundialmente, viu aqui a oportunidade de relançar o Brasil nos Fora internacionais (é a economia, estúpido!), iniciando de imediato um périplo mundial, que passou pelos EUA, pelos países do Mercosul, pela China e, agora, pela Península Ibérica.

Em Portugal, o presidente brasileiro assinou 13 acordos de cooperação, nas áreas das agências espaciais, de cinema e produções áudio-visuais, equivalências em estudos básicos e médios, equivalência de cartas de condução, produtos farmacêuticos, minérios, produtos industriais e agrícolas, e.o.

Antes de partir, porém, Lula da Silva assistirá ainda às cerimónias oficiais do 25 de Abril no Parlamento Português. Hoje, será o dia da entrega do Prémio Camões 2019, o mais alto galardão literário da língua portuguesa, ao músico e escritor Chico Buarque da Holanda. 

Para o Chico, um dos cantores da nossa vida, a singela homenagem na data que inspirou esta canção:

"Foi bonita a festa, pá/Fiquei contente/E inda guardo renitente/Um velho cravo para mim/Já murcharam tua festa, pá/Mas certamente/Esqueceram uma semente/Nalgum canto do jardim/Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também quanto é preciso, pá/Navegar, navegar/Canta a Primavera, pá/ Cá estou carente/Manda novamente/Um cheirinho de alecrim".

Obrigado Chico. O cravo não murchou. A semente está cá. O Fascismo não passará.

2023/04/03

Costa, o discurso de Calimero e a habitação

Na passada semana, o primeiro-ministro deu mais uma entrevista, agora por ocasião do 1º aniversário da tomada de posse do actual governo. Entre os diversos temas abordados, a habitação mereceu especial atenção, dada a crise no mercado de arrendamento e as medidas propostas pelo governo para combater a falta de casa nas principais cidades do país. 

Das várias medidas anunciadas, a limitação do número de licenças para AL (alojamento local) nos bairros de Lisboa e Porto (as cidades mais turísticas), assim como a obrigatoriedade dos senhorios colocarem as casas devolutas no mercado de arrendamento, foram as mais polémicas. Por outro lado, o governo espera poder construir centenas de novas casas ao longo da legislatura com as verbas do PRR, o que se afigura claramente insuficiente para as necessidades da população, nomeadamente os mais jovens que procuram casa e não têm meios de pagar as rendas exorbitantes pedidas por senhorios e fundos imobiliários abutres.

São muitos os factores que explicam a falta de casas nas principais cidades portuguesas (já que não faltam casas no interior). Desde logo a diminuição de novas construções (enquanto que, até à ultima década se construíam 800 000 casas a cada dez anos, na última década só se construiram 100 000); depois, o abandono de muitos prédios nos centros históricos, posteriormente adquiridos por fundos imobiliários que os transformaram em Alojamentos Locais com vista a rentabilizar imóveis para o turismo; finalmente, a nova Lei de Arrendamento, datada de 2012 (a famigerada "Lei Cristas") que veio liberalizar um sector que estava "congelado" há décadas. Como não se construiram casas em número suficiente, a procura tornou-se maior que a oferta e os donos dos prédios puderam especular com os preços. Actualmente, o valor do metro quadrado em Lisboa, está ao nível de cidades como Madrid ou Milão, com rendas médias de 900 euros nas principais cidades. Rendas incomportáveis para uma família portuguesa, já que os ordenados, em média, não ultrapassam os 1000 euros/mês.

De acordo com os números mais recentes, só em Lisboa e Porto, há 26 mil pedidos de casas municipais, enquanto as casas disponíveis são apenas 700! A grande Lisboa, a região mais afectada, concentra 70% das famílias em carência habitacional (in "Expresso" d.d. 24 de Março). 

Dramática, a situação da habitação, já que toda a gente percebe que, a curto prazo, não haverá uma solução estrutural para o problema. Seriam necessárias milhares de casas, como forma de baixar os preços no mercado de arrendamento. Ainda há dias, na televisão, Victor Reis (arquitecto especializado em urbanismo e reabilitação) dizia que as medidas, anunciadas pelo governo, não iam surtir efeito, pois não é com cinco mil ou dez mil casas que se resolve o problema. Eram necessárias cem mil, para haver efeito nos preços. Reis deu como exemplo a Suécia onde, nas décadas de setenta e oitenta, foram construídas 1 milhão de novas habitações, para resolver estruturalmente o problema de falta de casas. Obviamente que a Suécia é um país rico, mas esse é apenas um aspecto da questão. Na Suécia, como na maioria dos países desenvolvidos da Europa, pensa-se a longo prazo. Para além de ricos, os suecos são organizados. Por isso, também são ricos. Faz-se prevenção, em vez de reacção (o mal português). Quem pensa este país a 10 ou 15 anos? Ninguém.

Os principais partidos do poder (PS/PSD) estão mais interessados em agradar às suas clientelas do que em resolver os problemas reais da população. Os construtores civis (Mota-Engil, Teixeira Duarte, etc.) candidatam-se aos apoios para a construção e os governos contratam-nos, muitas vezes com ajustes directos. Como é sabido, a maior parte das obras públicas em Portugal "derrapam" (vá lá saber-se porquê...) sendo que uma percentagem dos custos reverte para as campanhas partidárias. A construção civil é, historicamente, o maior financiador dos partidos (em Portugal e não só...). É por isso que muitos governantes, quando deixam as suas funções, são convidados para as administrações das construtoras (ex: Ferreira do Amaral na Lusoponte, Jorge Coelho e Paulo Portas na Mota-Engil...). São as chamadas "portas giratórias". Trata-se de patrocinato (se me ajudares, eu protejo-te) ou, nas sábias palavras de Don Corleone: "I'll make you an offer that you can't refuse".

Foi contra este estado de coisas, que em diversas cidades do país, dezenas de milhares de pessoas (a maior parte jovens) desceram à rua, a exigir habitação a preços razoáveis, um direito consignado constitucionalmente. 

O mais ridículo disto tudo, foram, no entanto, as declarações de Moedas (um "tonto") que perante as manifestações em Lisboa, dizia aos jornalistas ser pela habitação, mas não concordar com manifestações ideológicas (como se ele não tivesse uma ideologia). Ainda hoje, num canal televisivo, outra comentadora afinava pelo mesmo diapasão, dizendo que a manifestação de Lisboa (durante a qual se verificaram algumas confrontações entre a polícia e os manifestantes), não era pela habitação, mas anti-capitalista (!?). Pois era. Não tinham percebido?      

2023/03/28

Sevilha: santos, carrascos e vítimas

A exemplo de anos anteriores, Sevilha prepara a Semana Santa, um dos seus mais famosos "ex-libris" e, certamente, a mais importante festividade religiosa de toda a Espanha. 

Na cidade, engalanada para o efeito, constroem-se apressadamente as últimas tribunas, por onde passarão os cortejos de mais de cinquenta irmandades, enquanto nos bairros decorrem os ensaios gerais das bandas de música e dos voluntários que transportarão os respectivos andores. Um trabalho hercúleo, se pensarmos que cada andor, entre imagens descomunais e parafernálias conjuntas, pode pesar mais de uma tonelada. São grupos de 10 a 20 jovens, que alternam no transporte dos santos, enquanto duram as procissões, ao longo de vários quilómetros. Uma verdadeira penitência, na acepção da palavra, a que não se recusam devotos de todas as idades e estratos sociais, em perfeita comunhão de festa e religiosidade pagãs. 

Paralelamente, a população, vê-se confrontada com outros problemas bem mais térreos e urgentes, que não têm parado de aumentar nos últimos anos. É o caso da saúde, cujos serviços têm vindo a deteriorar-se de ano para ano, consequência dos custos e da privatização do sector (lá como cá!) agravados pela recente epidemia, cujas sequelas continuam a fazer sentir-se entre as camadas mais desfavorecidas, confrontadas com a falta crónica de pessoal médico e as longas esperas nos estabelecimentos hospitalares.

A insatisfação dos utentes, mas também dos corpos clínicos, com o actual estado da saúde, gerou uma onda de contestação em toda a Andaluzia que, no passado sábado, encheu as ruas em 11 cidades da região. Só em Sevilha, a capital, desfilaram mais de 60 000 pessoas, convocadas pela plataforma "Marea Blanca" (Maré Branca), constituída por diversos sindicatos, partidos políticos e organismos particulares de apoio às reivindicações dos manifestantes. Um longo desfile, de mais de duas horas, que percorreu as principais artérias da cidade e terminou junto ao palácio de São Telmo (Presidência do Governo Andaluz) onde foram escutadas as principais reivindicações da plataforma, sob o lema "Saúde Pública de Qualidade!". Um exemplo significativo da mobilização popular existente que, de resto, é visível em todo o país, onde continuam os protestos. 

De índole diferente, mas não menos significativos, seriam os eventos em memória das vítimas do fascismo que, na mesma semana, decorreram em Sevilha. O primeiro, nas instalações da Fundação Blas Infante, no âmbito do lançamento do livro "La Niña de la Chaqueta Roja" da autoria de Susana Falcón (argentina, exilada em Espanha, durante a ditadura de Videla); e o segundo, no cemitério de San Fernando, por ocasião do enterro dos restos das vitimas de Pico Reja, no ossário criado para o efeito. Momentos de grande significado pela emoção, participação e denúncia de crimes, que apesar de perpetrados no século passado, não expiram nunca, pois a memória é impossível de apagar.

De Blas Infante (1885-1936), o "pai da pátria andaluza", sabemos quase tudo: um ensaísta notável (dele, a primeira versão da Constituição Andaluza), notário, advogado e político, filiado no partido republicano democrático. As suas convicções e militância política, rapidamente ganharam apoiantes entre aqueles que almejavam uma região mais autónoma e os seus adversários, maioritariamente apoiantes da causa falangista. Após a instauração da república espanhola, Infante ocupou diversos cargos como deputado pela sua região, até ao golpe de 1936, quando foi preso e, posteriormente, executado pelas tropas de Franco. Até hoje, o seu corpo nunca foi encontrado, pensando-se que poderá estar enterrado na vala de Pico Reja, a maior vala de toda a Espanha. A Fundação, criada em 1983, dedica-se à divulgação da sua obra e organiza regularmente actividades de índole cultural, com especial enfoque em obras políticas e literárias, como foi a apresentação do livro de Susana Falcón, que contou e.o. com a presença de diversos "diseurs",  da cantora Emma Alonso e do pianista José Manuel Vaquero.


Ontem, dia 27, a manhã seria dedicada à cerimónia do enterro dos restos mortais das vítimas (não-identificadas) da repressão franquista. Um acto, previamente anunciado, uma vez que os trabalhos de exumação, da vala Pico Reja, terminaram oficialmente em Dezembro último. Durante os três anos, que duraram as escavações, foram exumados os restos de 1786 vítimas, que aguardam posterior identificação no laboratório forense de Granada. 

À cerimónia, que contou com a presença do vice-presidente da Câmara de Sevilha, do anterior presidente do município e do Conselho Municipal da Memória, acorreram centenas de familiares de vítimas da ditadura franquista, transportando ramos de flores e cartazes alusivos ao acto. A maior parte, de idade avançada, mas todos eles imbuídos de uma determinação e coragem digna de registo. A cerimónia, após os discursos de representantes de diversas organizações, terminaria com uma singela homenagem à equipa forense Aranzadi, responsável pelas exumações, a cargo de Anartz Ormaza, que bailou um Aurrescu e de Manuel Gerena, que terminaria a sessão com um arrepiante "martinete", cantado em funerais.               

2023/03/05

Se ao menos dissesse alguma coisa de esquerda...

Passou apenas um ano sobre a tomada de posse do governo e nada garante que esta legislatura chegue ao fim. 

De facto, não nos lembramos de um governo que, em pleno "estado de graça", tenha cometido tantos erros em tão pouco tempo. Teríamos de recuar aos últimos anos de Cavaco, Guterres ou Sócrates, como termo de comparação, mas, em todos esses casos, os governos referidos estavam em fim de mandato e, à excepção de Cavaco (que tinha saído um ano antes para se candidatar à presidência da república) nenhum dos outros primeiro-ministros dispunha de uma maioria absoluta. 

O governo actual não só tem essa maioria absoluta (a segunda na história do PS), como dispõe de uma legislatura superior a 4 anos (devido à interrupção da anterior legislatura por causa do chumbo do OE 2021). Temos, portanto, um governo para durar, teoricamente, até Outubro de 2026. 

Se acrescentarmos a estas duas realidades, as verbas que o governo vai receber do PRR (16 000 milhões) e dos programas europeus de coesão 20-20 (em curso até 2023) e 20-30 (mais de 40 000 mil milhões), Portugal poderá receber cerca de 60 000 milhões de euros, até ao fim da década! "Uma pipa de massa!", no léxico de Durão Barroso. A nossa "ultima oportunidade", gritava Costa em todos os comícios em que participou no último Verão (leia-se, "votem em nós que há muito dinheiro para distribuir!"). Um clássico. É assim que se constroem as "clientelas" (redes de "compadrio" e patrocinato), uma característica da cultura mediterrânica, da qual não nos conseguimos livrar.   

Com tanta "massa" para gerir, o governo não esteve com meias medidas e vai de convidar um empresário de sucesso ("independente", como convém nestas coisas) para elaborar um plano para a década, já que sem estratégia não se chega a lado nenhum.  O homem em questão (António Costa e Silva) esmerou-se e, após alguns meses de reclusão, apresentou um projecto-piloto, onde identificava dezenas de áreas de intervenção, consideradas prioritárias para a modernização do país. Até aqui, tudo bem. 

Formado o governo, Costa e Silva foi convidado para ocupar a pasta de ministro da Economia e do Mar, função que continua a ocupar nos dias que correm, ainda que a tutela dos fundos europeus (a "massa" que interessa) esteja nas mãos do ministro das finanças, Fernando Medina (noblesse oblige). 

E é aqui que a "porca torce o rabo". Aparentemente, com boas ideias, mas sem poder gerir o dinheiro à sua disposição, o ministro da Economia vê-se na necessidade de consultar Medina, o verdadeiro "dono do cofre", sempre que deseja aplicar os fundos que, em tese, deviam estar sob a sua tutela. 

Uma contradição que, não poucas vezes, tem levado o ministro a ser criticado pelos seus pares, devido a afirmações extemporâneas em Fora de Empresários e na Comunicação Social. O clássico problema dos "independentes", que não seguem a cartilha partidária, neste caso agravada pela maioria absoluta de um só partido.

Com Medina ao leme, a política financeira do governo prossegue a linha iniciada com Centeno e continuada com Leão: trata-se de "cativar" parte das verbas orçamentadas para que, no fim do exercício fiscal, sobre dinheiro para pagar a dívida pública e diminuir o défice (actualmente 114% PIB e 1,5% do PIB, respectivamente). Foi assim que Centeno, aproveitando uma conjuntura favorável de juros baixos (graças a Draghi, que injectou biliões de euros de capital no mercado, para impedir a especulação) e ao "boom" turístico dos últimos anos (que representa 12% do PIB português), pôde fazer um brilharete: continuar a pagar a dívida e diminuir o défice, por um lado; e compensar a perda de salários e apoios sociais, por outro. Um verdadeiro "dois em um", só possível no governo da "geringonça" (2015-2019). Ou seja, passámos de uma "austeridade de direita" (Passos Coelho), para uma "austeridade de esquerda" (António Costa).

Acontece que, pelo meio, houve uma pandemia (2020-2022) e, neste momento, há uma guerra que dura há mais de um ano. A coisa não está fácil e estas são, certamente, variáveis que o governo não pode controlar. O problema é andarmos há mais de 10 anos nisto ("resgate" financeiro, intervenção da Troika, pandemia, guerra, inflação) e não sairmos da "cepa torta"! Mais, neste momento, a crise social e económica é tão ou mais grave que a de 2011-2015, com a pobreza e as desigualdades a aumentarem diariamente. Basta seguir a Comunicação Social, para confirmar os dados que ilustram esta triste realidade. A pobreza absoluta, medida de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo INE (menos de 600 euros/mês) atinge já 25% da população (2,5 milhões); o ordenado médio nacional, não ultrapassa os 1200 euros; o número de pessoas, dependentes do Banco Alimentar, aumenta todos os dias; o mesmo relativamente à população dos sem-abrigo nas grandes cidades, estimada em mais de 5000 pessoas, só em Lisboa e no Porto! Com o fim das moratórias, regressaram as hipotecas por pagar, agora mais caras devido à inflação (calculada em 8,9% no início deste ano).

Se a situação já é assustadora nos estratos sociais mais desfavorecidos, na chamada classe média não é muito melhor. Dado que os aumentos não acompanharam a inflação, a perda de poder de compra neste grupo de rendimentos, é real. Basta pensar que o governo aumentou em média os salários em 5%, quando a inflação já atinge quase os 9%! Ou seja, os consumidores perdem, em média, 4% do seu poder de compra todos os meses. Muitos produtos de primeira necessidade (alimentação, electricidade, gasolina, gás) tiveram auments de 20%! Podíamos continuar, com os preços da habitação nas grandes cidades, inflacionados com o "boom" turístico e com os "vistos gold" (estes concedidos a estrangeiros que invistam um mínimo de meio-milhão na compra de uma habitação). 

É contra este estado de coisas, que diferentes grupos da sociedade têm vindo a protestar em manifestações cada vez mais participadas: os professores, os médicos, os enfermeiros, os moradores dos bairros periféricos, os funcionários da CP e do Metro, os funcionários da Autoridade Tributária e dos Tribunais, entre outros...

Como se isto não bastasse, temos os sucessivos escândalos que, semanalmente, abalam o governo, com demissões em cascata de autarcas, secretários de estado e ministros, para não falar da corrupção generalizada que atinge transversalmente toda a sociedade portuguesa e do pagamento de indemnizações pornográficas a gestores incompetentes. Com este cenário, começam a estar reunidas as condições para a chamada "tempestade perfeita", que neste caso atinge toda a sociedade.

Perante isto, o que faz governo? Entretém os parceiros sociais (sindicatos e patrões) com reuniões intermináveis e inconclusivas, que deixam toda a gente insatisfeita, continuando a empurrar os problemas com a barriga, refugiando-se na "mantra": "há que manter as contas certas". 

Se os ministros, não têm muito mais para dizer, já António Costa (demagogo-mor do reino) prossegue o seu caminho europeu do estrelato, viajando para Bruxelas e para Kiev (a nova "meca") onde promete helicópteros russos sem peças, para combater fogos (!?) e tanques "Leopard" avariados, a Zelensky. Tudo, sempre com um sorriso na cara, não vão as pessoas levá-lo a sério...

Sempre que Costa fala, lembra-me aquele personagem, interpretado por Nanni Moretti em "Aprile", durante um debate televisivo entre Berlusconi e Massimo D'Alema (primeiro-ministro italiano social-democrata), quando comenta: "D'Alema, diz qualquer coisa de esquerda, mesmo que não seja de esquerda, ao menos civilização..."

2023/02/24

"Pico Reja", a vala da vergonha

Foi esta semana encerrada a vala "Pico Reja", situada no cemitério San Fernando de Sevilha, após três anos de escavações e exumações de vítimas da ditadura franquista. Uma conclusão formal dos trabalhos, uma vez que a equipa encarregada das escavações deu por terminada a identificação dos corpos encontrados.

Na cerimónia, estiveram presentes, para além de representantes da "Associação para a Recuperação da Memória Histórica" (ARMH), o edil Manuel Muñoz (PSOE), o vice-conselheiro da cultura Victor Manuel González e Juan Manuel Guijo, responsável pela equipa de 20 antropólogos forenses e técnicos que, durante estes três anos, analisaram, um por um, mais de um milhão e meio de ossos.

"Pico Reja" é o maior ossário de vítimas de Espanha e a maior vala comum da Europa Ocidental, segundo a Sociedade de Estudos Aranzadi, que coordenou a equipa de técnicos forenses. Esperavam encontrar os corpos de 850 vítimas da Guerra Civil (1936-39) mas, afinal, contabilizaram 1.786 (ainda não identificados, mas considerados como tal pela disposição em que apareceram os restos, os sinais de violência ou certos distintivos e pertences). No interior da vala, na qual houve enterros anteriores e posteriores à guerra, foram achados restos de 10 073 pessoas, dez vezes mais do que se pensava ao princípio.

Segundo Guijo, "a complexidade do trabalho foi brutal, pois não sabíamos se podíamos realizá-lo". Pelas suas mãos passaram homens e mulheres com evidentes sinais de tortura, balas na nuca, mãos atadas atrás das costas, articulações partidas...Para além das vítimas do franquismo, também foram exumados os restos de centenas de pessoas que, ou estavam enterradas antes da guerra nesse ossário ou foram sendo enterradas posteriormente e, geralmente, sem nenhum escrúpulo, amontoando cadáver sobre cadáver. 

Durante o tempo em que decorreram as exumações, foram enviadas 1037 amostras de ADN ao laboratório de referência da Universidade de Granada, dependente da Junta da Andaluzia. No entanto, até ao encerramento da vala, não foi obtida nenhuma identificação, nem através dos restos ósseos, nem através de alguma má formação ou características antropomórficas, descritas pelos familiares. Para Carmen e Paquita, activistas da ARMH, o laboratório de Granada constitui a última esperança de encontrar provas de que seu pai, Rafael (conselheiro da autarquia de Sevilha, desaparecido a 8 de de Agosto de 1936), poderia estar enterrado em Pico Reja.  

Uma história de horror, a juntar a milhares de outras, conhecidas e reveladas nos últimos 20 anos, através do trabalho iniciado pela Associação de Vítimas, que hoje se estende a todo o território espanhol. Com o encerramento de Pico Reja, o trabalho de exumações não terminou em Sevilha. Durante a cerimónia, o edil Manuel Muñoz anunciou a abertura de novas escavações, agora na vala Monumento, a poucas dezenas de metros de Pico Reja. De acordo com estimativas da Associação, existirão cerca de 115 000 corpos em valas comuns, enterrados em todo o país. A Espanha é, depois do Cambodja de Pol Pot, o segundo país com mais valas comuns em todo o Mundo. 

2023/02/22

Sevilha recorda Saura

Sevilha foi, na passada semana, a cidade escolhida para a entrega dos prémios "Goya", os mais cobiçados galardões do cinema espanhol, outorgados pela Academia de Cinema do país vizinho. 

Para esta 37ª edição, transmitida em directo para toda a Espanha, engalanou-se o auditório do palácio de Congressos "Fibes" (capacidade 2000 lugares) por cujas passadeiras desfilaram os nomeados, com a pompa e a circunstância que a cerimónia sempre exige. Um pouco a exemplo dos "óscares" de Hollywood ou dos "Bafta" britânicos, ainda que mais formais e sem o "glitter" que caracteriza os prémios americanos. 

Este ano, para além dos prémios habituais nas diversas categorias a concurso, seria atribuído um "Goya de Honra" a Carlos Saura, pela sua obra. O prémio (um busto de Goya em bronze) foi-lhe entregue em casa, previamente, dado o seu estado de saúde, já bastante debilitado.

Acontece que, na véspera da cerimónia pública, Saura viria a falecer. O que teria sido a consagração de uma carreira de 70 anos, acabaria por tornar-se uma homenagem póstuma, como póstumo foi o "Goya" que a viúva, e dois dos seus filhos, receberam das mãos do presidente da Academia. 

Com a morte de Carlos Saura (1932-2023) desaparece um dos maiores cineastas europeus. Gregorio Belichón, jornalista cultural, especializado em cinema, do "El País", não hesita em classificá-lo como um dos quatro grandes nomes do cinema espanhol, a par de Buñuel, Berlanga e Almodóvar, cujas obras refletem a história de Espanha do último século.

Ainda que grande parte dos seus filmes, não seja conhecida em Portugal (vá lá saber-se porquê...) destacamos alguns dos títulos mais emblemáticos da sua extensa obra (mais de 50 títulos): 

Os filmes realizados durante o período franquista: "Cuenca" (1958), "Los Golfos" (1960), "La Caza" (1966), "Pippermint Frappé" (1967), "El Jardin de las Delicias" (1970), "Ana y los lobos" (1973), "La Prima Angélica" (1974), então sujeitos ao crivo da censura.

Os filmes da transição pós-democrática: "Cria Cuervos" (1976), "Elisa, vida mia" (1977), "Mamá cumple 100 años" (1979), "Deprisa, deprisa" (1981), que lhe granjearam notoriedade internacional.

Os filmes de "baile flamenco", iniciado com "Bodas de Sangre" (1981), "Carmen" (1983) e "El Amor Brujo" (1986), uma das suas grandes paixões;

E, finalmente, a sua época mais eclética, com "El Dorado" (1988), "La Noche Escura" (1989), "Ay Carmela!" (1990), "Sevilhanas" (1992), "Flamenco" (1995), "Taxi" (1996), "Tango" (1998), "El Séptimo dia" (2004), "Fados" (2007), "Flamenco, Flamenco" (2010) e "Jota" (2016), e.o. 

Sobre "Fados" (o filme) não resisto a contar um pequeno episódio. O realizador, convidado pela Câmara Municipal e pelo Turismo de Lisboa, para dirigir um filme sobre a canção portuguesa, veio ao Museu de Fado, falar sobre o projecto. Estávamos em 2005 e ainda não havia argumento. Lembro-me de ter perguntado se pensava fazer um filme baseado numa história original ou seguir o modelo já experimentado em "Sevilhanas" e "Flamenco", documentários onde os intérpretes se limitam a dançar ou a cantar perante a câmara, sem qualquer ligação entre si. Saura, achou a pergunta interessante ("já vi que conhece os meus filmes..."), mas respondeu que ainda não tinha decidido. Para quem não viu o filme, a fórmula é a mesma dos documentários referidos. Do ponto de vista formal, um filme perfeito: as canções, os cantores, os músicos, a fotografia (do grande Vittorio Storaro). Tudo bom. Só não percebemos, o que estão lá a fazer cantores como Miguel Poveda, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lila Downs ou Lura (!?). A menos que esta tenha sido uma exigência da produtora (espanhola) que pagou parte substancial do filme. De todos os filmes de Saura que vi, este é o que menos gosto... 

Finalmente, o grande vencedor dos "Goya" deste ano: "As Bestas" do realizador Rodrigo Sorogoyen, que levou para casa 9 estatuetas: melhor filme, melhor realizador, melhor actor principal (Denis Minochet), melhor actor secundário (Luís Zahera), guião original, montagem, fotografia, música e efeitos sonoros. Um filme denso e inquietante, sobre a propriedade rural, conflitos familiares, despeito, inveja, xenofobia e violência, num lugar ermo da Espanha profunda. Filmado na Galiza, em imagens de rara beleza, o filme prende-nos do primeiro ao último minuto, não nos largando muitas horas depois. "Un filmazo". Assim os distribuidores portugueses, o descubram e exibam. 


Foto- Anna Saura Ramón junto com o seu pai Carlos Saura- GTRES/GTRES

2023/02/11

Taxi Driver (26)

Então, para onde é a viagem?

- Para Sete-Rios, terminal de autocarros.

Vai para longe?

- Para Faro. Costumo ir de comboio, mas a CP está em greve...

Faz bem, com a CP nunca se sabe. Os autocarros são mais fiáveis.

- Talvez, mas prefiro o comboio. É mais cómodo, podemos esticar as pernas, ir até ao bar, enfim é melhor. Além disso, a viagem dura exactamente o mesmo tempo...

Quanto é que dura a viagem de comboio? 

- 3 horas e um quarto. O mesmo que o autocarro. A única diferença é que o comboio pára em 9 ou 10 estações até a Faro e o autocarro é directo. Se o comboio fosse directo e houvesse uma linha dupla, poderia chegar a Faro em 2 horas e meia. Seria uma grande economia de tempo...

Eu sei bem o que isso é. Tenho uma pequeno apartamento no Algarve, que alugo em "time-sharing" e todos os anos vou lá passar umas semanas. Os comboios no Algarve são uma desgraça! Comboios? Aquilo nem comboios são! Já vou para  Algarve há mais de 50 anos e as automotoras ainda são as mesmas! Só existe uma via e têm de esperar em Faro, para deixar passar as automotoras de sentido contrário. Não se percebe, sendo o Algarve a província mais turística de Portugal. Já era tempo de modernizarem a linha. 

- Conheço bem a situação. Então, quando temos de mudar em Faro, para ir a Vila Real de Santo António, parece que mudámos de país. A linha passa a rasar o casario, as automotoras têm de abrandar e param em todas as estações. O problema é que, a partir do momento em que Portugal aderiu à CEE (já lá vão 36 anos) o país deixou de investir na ferrovia. O dinheiro dado pela Europa, para modernizar as vias de comunicação, foi maioritariamente para a rodovia (a chamada "política do betão"). Os governos estão mais interessados em investir em auto-estradas, pois dá mais dinheiro a ganhar às construtoras que, depois, cobram as portagens. Desde então, foram encerrados mais de 1200km de ferrovia! A que resta, pouco ou mal foi modernizado. O mesmo se passou com os comboios que ficaram a apodrecer no Entroncamento e noutros locais do país.

Pois foi. Nunca deviam ter encerrado a Sorefame! E, depois, venderam os comboios ao desbarato! Sabe para onde foram os comboios de Portugal? Para a Suíça! Eu fui emigrante, na Suíça, durante 15 anos. Sei bem. Também lá tiveram uma grande discussão sobre as auto-estradas (eles fazem referendos para tudo) e deram preferência aos comboios. Sabe o que fizeram na Suíça? Abriram túneis através dos Alpes para passarem os comboios. Os camiões entram directamente nos comboios de mercadorias e são transportados por linha férrea. Muito mais rápido e eficiente. Além disso, causam menos poluição.   

- Conheço mal a Suíça e nunca lá andei de comboio, mas, depois da França, sei que tem uma das melhores ferrovias da Europa. Não sabia que os nossos comboios tinham ido para lá. O mesmo se passa ao contrário, pois segundo li, muitos dos comboios que estavam "encostados", eram de origem espanhola e suíça e, agora, como não temos comboios modernos, estão a renovar essas carruagens e automotoras, para pô-las em linhas do interior, no turismo no Douro, etc...

Fazem muito bem, mas andam sempre atrasados. Não se percebe estes políticos! 

- Perceber, percebe-se. Eles não são todos incompetentes, só que as "prioridades" são outras. Dá muito mais lucro investir na construção civil e em auto-estradas, do que na ferrovia. Dessa forma, obrigam as pessoas a comprar carro e a gastar dinheiro em gasolina e em portagens, que geram mais impostos. Os comboio, são menos lucrativos. Não sei se sabe, mas grande parte dos contratos de construção, são por ajuste directo. As empresas que os ganham (a Mota-Engil, a Teixeira Duarte, etc...) inflacionam os preços, pois uma percentagem do lucro reverte para os partidos do poder. Por alguma razão há sempre "derrapagens" nos orçamentos. O maior financiamento dos partidos, vem da construção. Os partidos beneficiam as construtoras e estas retribuem, financiando as campanhas partidárias. Sempre se fez assim e foi assim que a Máfia italiana começou. Há mais de um século. Uma velha prática, que funciona sempre.

Pois é. Agora, é o que senhor acertou, É isso mesmo. Já vi que é uma pessoa informada e não se deixa enganar. Estamos nas mãos de piratas!

- Pois estamos. Bom, chegámos. Quanto é que lhe devo? 

 São 8 euros, bagagem incluída. Continuação de bom dia e boa viagem até ao Algarve. 

2023/02/07

O país de emigrantes que trata mal os imigrantes

Em Portugal, só nos lembramos de Santa Bárbara, quando fazem trovões.

Tem sido sempre assim e continuará a ser. Está nos genes. Somos um povo reactivo, mais do que proactivo. Gostamos de contemplar, mas não de actuar. Somos criativos, mas pouco organizados. 

No último fim-de-semana, o país "acordou" literalmente para um fenómeno existente e identificado há anos. Não faltaram vozes de espanto e de condenação. Depois do mal feito, trancas à porta. A hipocrisia lusitana, no seu melhor. 

Aconteceu em Olhão e na Mouraria, mas podia ter acontecido noutra cidade ou noutro bairro do país. 

Na primeira cidade, foram espancados dois jovens imigrantes nepaleses, recentemente chegados a Portugal, quando regressavam do seu trabalho diário. A agressão só foi conhecida, porque os principais canais televisivos transmitiram um vídeo da ocorrência, filmado pelo próprio grupo que cometeu o crime. Uma barbaridade sem nome, que durou minutos, sem que um único morador da rua acudisse aos desgraçados, apesar dos gritos de um deles, pontapeado, chicoteado e a quem queimaram o cabelo com um isqueiro. Inominável. Onde já se viu isto? 

No bairro mais multicultural de Lisboa, morreram 2 pessoas e 14 ficaram feridas, num incêndio que eclodiu numa loja do rés-do-chão, onde dormiam 16 pessoas! Eram todos estrangeiros, a maioria asiáticos, de nacionalidade bengali, paquistanesa e indiana. Aparentemente, o fogo teria sido provocado por um fogareiro a gás, já que os inquilinos cozinhavam no quarto onde dormiam (um T0, de dimensões reduzidas). 

No primeiro caso, os moradores de Olhão confirmaram as agressões e disseram mais: estas agressões não são uma excepção, mas acontecem com frequência (mais de 15 nos últimos tempos). Sempre contra estrangeiros, jovens imigrantes, que não falam português e não ousam queixar-se à polícia, com medo das represálias. No segundo caso, toda a gente da rua sabia, desde os vizinhos aos comerciantes, passando pela polícia e pela junta de freguesia de Santa Maria Maior, mas ninguém faz nada para combater a sobrelotação de casas alugadas por senhorios gananciosos.        

Ou seja, toda a gente sabe, mas ninguém se queixa, toda a gente convive com o crime, mas ninguém protesta. Seja por medo, seja por insensibilidade, seja pela falta de empatia, que tomou conta de nós. 

Foi assim, com o imigrante ucraniano, barbaramente assassinado às mãos da polícia de estrangeiros, nas instalações do SEF do aeroporto de Lisboa; foi assim, com o grupo de trabalhadores asiáticos, nas estufas agrícolas do sudoeste alentejano, que viviam  em condições sub-humanas, "descobertos" após a pandemia do Covid, no concelho de Odemira; foi assim, com o grupo de trabalhadores asiáticos, chantageados e torturados pela GNR do posto de Milfontes; foi assim, com dezenas de timorenses, aliciados para vir trabalhar para Portugal que acabaram a dormir à chuva e ao frio, no Martim Moniz em Lisboa; foi assim, com centenas de refugiados do Mediterrâneo, chegados a Portugal entre 2015 e 2016, que desapareceram sem deixar rasto; é assim, todos os dias, nas instalações do SEF, onde os imigrantes  pobres pagam para obter uma "senha" (!?) e chegam a aguardar anos por uma licença de estadia, única forma de trabalharem legalmente. Sem licença, ficam à mercê de engajadores sem escrúpulos que os exploram no salário e na habitação sem condições. É assim na zona de Arroios, onde se calcula viverem 20.000 estrangeiros e coexistirem mais de 80 nacionalidades. É assim, no eixo de Almirante Reis, onde nos últimos dois anos houve dez fogos, em habitações onde chegam a dormir 20 pessoas, amontoadas em colchões e beliches. É assim, em Portugal, um país de emigrantes no passado e no presente, que hoje necessita de imigrantes para fazerem o trabalho que nós recusamos fazer. Uma vergonha civilizacional. 

Perante este quadro tenebroso, poucas alternativas (soluções) são oferecidas. Toda a gente lamenta, mas não se conhecem medidas concretas para melhorar a situação. Começaram as respostas evasivas e o "passa culpas" habitual. O presidente da CML, promete alojamento temporário a quem ficou sem casa; o presidente da Junta de Santa Maria Maior (da qual faz parte o bairro da Mouraria) diz não caber à Junta solucionar o problema; a presidente da Junta de Arroios, diz conhecer o problema e estar a preparar um levantamento de casos conhecidos; a polícia, diz ser uma assunto do SEF que, por sua vez,  diz ser uma assunto da Segurança Social. Toda a gente se "descarta", à boa maneira portuguesa, mas ninguém resolve nada. 

No meio destes governantes medíocres, esteve bem Marcelo Rebelo de Sousa, que ontem se deslocou a Olhão para conhecer os dois jovens nepaleses agredidos, a quem apresentou desculpas em nome de Portugal. Voltou a estar bem, mais tarde, quando aproveitou a visita à cidade, para dar uma aula de cidadania sobre racismo e xenofobia, a alunos do secundário de Olhão. "Chapeau"! 

2023/02/06

"Pope in Rio"

A história é conhecida e conta-se em poucas palavras:

Em 2018, no Panamá, o nosso país candidatou-se a organizar as próximas "Jornadas da Juventude" em Lisboa, previstas para 2022.

Para surpresa de muitos (os que não sabem como estas coisas se fazem), Portugal ganhou a nomeação. Todos nos lembramos das reacções de júbilo do Presidente da República, presente nas jornadas latino-americanas, após o anúncio do nome de Portugal.

Seguiram-se as manifestações nacionalistas do costume: vinha cá o Papa, com ele viriam mais de 1 milhão de peregrinos, Lisboa seria o "centro" do Mundo durante uma semana e, o evento, traria dinheiro, muito dinheiro, como é habitual nestas coisas...

Começaram a ser programadas as diversas fases do evento. Primeiro, a escolha do lugar: esta recaiu sobre um espaço devoluto, ocupado por contentores, na zona fronteiriça entre Lisboa e Loures. Os presidentes de ambas as autarquias, ao tempo Fernando Medina (PS) e Bernardino Soares (PCP), não escondiam a sua satisfação: o primeiro por poder terminar a obra de requalificação da zona Oriental de Lisboa, iniciada com a Expo'98; o segundo, porque Loures, deixaria de ter contentores na Bobadela, que ocupavam aquele espaço desde a Expo. Foram feitas as fotos da praxe com o presidente da república, tendo por cenário um "outdoor" onde se anunciava o evento e voltaram todos para casa, contentes, já que faltavam 4 anos para as Jornadas e havia tempo...

Entretanto, pelo meio, surgiu a Pandemia Covid, que viria alterar a fase de planeamento. A Igreja, "compreensiva" como sempre, percebeu as dificuldades e concedeu um ano-extra de preparação. Aparentemente, estava tudo em ordem e deixou de falar-se nas "jornadas", excepção feita às reportagens televisivas que iam mostrando a Bobadela, "limpa" de contentores. 

Eis senão quando, a sete meses do evento, uma notícia do "Observador", veio revelar a maqueta idealizada para o palco-altar onde o Papa celebrará a missa principal. Mais do que o modelo proposto, foi o seu preço (5 milhões de euros + IVA) que escandalizou toda a gente. A coisa chegou aos telejornais e pior ficou quando o responsável pela coordenação do evento (o ex-vereador José Sá Fernandes), mostrou uma maqueta mais pequena, por ele aprovada, que custava metade do preço (!?).

A partir daqui, a história é conhecida. Há duas semanas que não falamos de outra coisa. Não fora a guerra da Ucrânia ou terramoto na Turquia, o assunto "palco" seria certamente "manchete" por muitos dias. Pediram-se explicações à igreja, ao presidente da república, às câmaras implicadas no processo, à construtora Mota Engil (responsável pela maqueta) e, inclusive, foi "convidado" um empresário de festivais (Álvaro Covões) para coordenar o evento. Só faltou mesmo, convidar a Medina (brasileira) organizadora do "Rock in Rio" em Lisboa...

Como é habitual nestas coisas, começou o "passa-culpas" (num país onde a culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é verdade?). Nisso, somos especialistas. Carlos Moedas, qual "Presidente da Junta", já veio anunciar que, a partir de agora, será ele o responsável pelo evento. Entretanto, recomeçaram as reuniões, para reestruturar o projecto, com o fim de reduzir custos. De acordo com as últimas notícias, a Mota-Engil irá apresentar um plano mais barato, que dispensa a capela para o Papa rezar (notícia do jornal "Sol")

Esta história de (falta de) planeamento, lembra-me sempre uma anedota que se contava sobre o Inferno dos ingleses e dos portugueses. Os primeiros, encontraram-se com os portugueses e contaram-lhe o sofrimento em que viviam: "sofremos queimaduras terríveis, mergulham-nos em vinagre e atiram-nos com merda o dia inteiro. Como é o inferno português, já que vocês parecem sempre felizes?". Ao que o português respondeu: "É exactamente igual ao vosso, só que há dias em que não há fósforos, dias em que falta o vinagre e dias em que não há merda. Por isso, suportamos melhor o Inferno".  

Faz sentido: haverá Papa, mas não haverá capela.  

2023/01/31

O país está melhor, mas os portugueses estão pior...

O governo comemorou um ano de existência e o primeiro ministro deu uma entrevista para assinalar a efeméride. Uma entrevista evasiva, onde o entrevistador de serviço se prestou ao papel de "caixa de ressonância" do PS.

Nada que espante, já que aos jornalistas cabe interrogar os políticos (governantes ou não) e a estes responderem de acordo. O problema é quando o entrevistado é uma "velha raposa" e o entrevistador um "soft", que faz perguntas e dá as respostas, o que sempre facilita o papel do convidado. 

Depois da maioria absoluta, conquistada há um ano (a segunda da história do Partido Socialista), nada fazia antever um ano tão atribulado para o governo, como este último que atravessámos. Se é certo que há variáveis que o governo não pôde controlar (pandemia, inflação, guerra na Ucrânia) outras há que lhe são favoráveis: o facto de ter obtido uma maioria confortável, ter 4 anos de governo pela frente e ter dinheiro para gastar (programas europeus de coesão 20/20 e 23/30, para além do PRR), num total de cerca de 60.000 milhões de euros, até 2029! Uma "pipa de massa"! 

Mais, após dois anos de pandemia, o país voltou a ter o seu melhor ano de turismo desde 2019 e as perspectivas de crescimento do PIB (em comparação com o período homólogo) são positivas (6,8%). O desemprego continua em baixo (6,7%), a previsão da diminuição da dívida pública é de 122% para 114% do PIB e o deficit ronda os 1,5%. Acresce que a inflação média, apesar de alta (8,9%), revelou-se um "maná" para o governo, já que o IVA arrecadado nas transações comerciais, ajudou a "encher" os cofres do estado, o que permite ao governo mostrar um bom quadro macro-económico. Bom, se é assim (e é assim), porque é que o governo continua a falhar nas principais áreas sócio-económicas da governação? 

Lembremos: 

A saúde continua um caos (com falta de meios e pessoal especializado nos hospitais), o que tem obrigado ao encerramento de unidades de obstetrícia e pediatria, um pouco por todo o país; as filas, nas urgências, não diminuem e, para suprimir as faltas, o governo recorre à contratação de "tarefeiros", os quais são pagos muito acima da contratação colectiva acordada para o sector público;       

A educação, em crise de há dez anos a esta parte, atravessa mais um período turbulento com as maiores manifestações a nível nacional de que há memória, não se vendo fim à vista para a situação gerada; 

A habitação, nomeadamente nas grandes cidades, tornou-se impossível para a classe média, devido aos preços inflacionados por fundos imobiliários e estrangeiros (através dos famigerados "vistos gold"), para além da dificuldade em obter créditos e as taxas de juro praticadas;

Os transportes, nomeadamente a ferrovia, estão caducos, continuando por renovar vias importantes como a ligação a Espanha, da qual fomos isolados por iniciativa espanhola, após a pandemia; 

A nacionalização da TAP revelou-se um "fiasco" e só servirá para revendê-la (leia-se privatizá-la) caso seja recuperada em tempo e valores correspondentes;

As indemnizações milionárias (a administradores falhados) continuam na ordem do dia, não se compreendendo os valores pagos e a "dança de cadeiras" entre ex-CEOs e administradores do estado e empresas privadas;    

Finalmente, a "cereja em cima do bolo": os valores conhecidos para acolher as jornadas de Juventude da Igreja (leia-se Papa) completamente pornográficos, quando comparados com as necessidades vitais da população, após anos de privação e austeridade imposta pelas sucessivas crises a que fomos e estamos sujeitos (resgate, pandemia e inflação). 

Perante este quadro contraditório - com uma situação financeira controlada, uma maioria absoluta para quatro anos e dinheiro a rodos, por um lado; e a pobreza envergonhada, de uma população que ganha, em média, 1200 euros/mês, 25% da qual ganha menos do que 600 euros e 40% passa frio no Inverno - que diz Costa? 

Reconhece os momentos menos bons do último ano (mais de uma dezena de escândalos com ministros, secretários de estado e autarcas) que levaram à demissão do ministro Pedro Nuno Santos, do ex-autarca de Caminha e secretários de estado diversos. Reconhece problemas com o Ministro de Educação, a Ministra da Agricultura, João Cravinho e Fernando Medina, mas desculpa-se com o facto da justiça estar a fazer o seu papel e não caber à política influenciar os processos. 

Mais, diz que houve atrasos nalguns programas e investimentos, o que põe em risco as verbas europeias disponibilizadas para a sua conclusão, mas contrapõe que, apesar de todos estes percalços, o país está a crescer mais do que a média europeia e a situação financeira é estável...

Ou seja, o país está melhor, mas os portugueses vivem pior. Esta não lembrava ao careca. O Costa é um cómico. 


2023/01/11

2023: Ano Novo, Vida Nova?

Começou o ano e, até ver, poucas novidades. 

A guerra não terminou, a inflação aumentou, o fascismo não morreu e a corrupção está viva e recomenda-se. Para piorar a situação, o vírus pandémico reapareceu na China, pelo que não tardará a chegar à Europa...

Sobre a primeira questão: só os ingénuos podiam pensar que uma operação de "conquista territorial" iria terminar em dias, ou mesmo em semanas. Já lá vai (quase) um ano e não se vê fim à vista. Pesem os milhares de milhões, investidos na "defesa do Ocidente," nem a Rússia de Putin desiste dos seus intentos imperialistas, nem a Ucrânia de Zelensky, consegue expulsar os invasores. No meio, uma Europa sem recursos energéticos, sem exército e sem estadistas, incapaz de fazer ouvir a sua voz nos Fora internacionais. Apesar das "boas intenções" e aparente "unidade na acção", que Von der Leyen, Borrell e Stoltenberg continuam a propagar, nada de essencial mudou. Basta seguir o comportamento de figuras como Órban ou Erdogan (o primeiro membro da UE e o segundo membro da NATO) para deixar de acreditar em actos de coesão e lealdade, vindos de dois autocratas que, de democratas, pouco têm. O primeiro, não respeita direitos constitucionais e continua a desafiar e a desrespeitar as regras democratas europeias, que lhe valeram várias repreensões e penalizações da Comissão; o segundo, continua a receber milhões de euros da UE, para impedir a passagem de refugiados para a Europa, enquanto faz negócios com Putin e oferece gás e petróleo russo à Europa (!?). Uns cómicos, uns e outros. Ou seja, nesta guerra, perdem todos: perde a Ucrânia (parcialmente ocupada e destruída); perde a Rússia (o povo russo, entenda-se) sujeita a uma guerra que não escolheu e confrontada com as sanções do Ocidente; perde a União Europeia (dependente de recursos energéticos e alimentares, agora mais difíceis de obter devido às contra-sanções russas). O único país (até ver) que parece ganhar com esta guerra, são os EUA, que vendem armamento, gás liquefeito, petróleo e cereais à Ucrânia e à Europa. Um negócio das arábias! Porque não há "almoços grátis", quando a guerra terminar, serão os norte-americanos que irão "reconstruir" a Ucrânia, com um programa já anunciado como novo "Plano Marshall" (plano de recuperação europeia, após a 2ª guerra mundial.) Também, aqui, nada de novo. Trata-se da aplicação da "Doutrina de Choque", experimentada noutras latitudes (Iraque, Haiti, Grécia, Tailândia, Alemanha de Leste, União Soviética, etc...) onde, após uma catástrofe (guerra, terramoto, tsunami), os "empreendedores" norte-americanos, utilizam a sua capacidade económica e logística, para ajudar a "reparar" os danos. Os empreiteiros fazem fila...      

Porque isto anda tudo ligado, temos mais inflação. Acontece que a inflação, notória antes da guerra, piorou com esta. É natural. Com a pandemia, os preços que estiveram artificialmente congelados (juros, moratórias, etc...), voltaram ao nível previsto e agora, devido às contra-sanções russas, junta-se a especulação habitual em tempos de crise. Entretanto, a presidente do BCE (Christine - j´adore Dior - Lagarde) já decretou um aumento de juros bancários de 2% e anunciou que a coisa não vai ficar por aqui. O pior, são as consequências económicas para o cidadão comum. Apanhado, literalmente, "entre-dois-fogos", perdeu, no último ano, mais de 15% de poder de compra (basta ir ao supermercado) e vê, todos os dias, as taxas Euribor, (calculadas no pagamento das suas hipotecas) subir centenas de euros por mês! Já as medidas, anunciadas pelo governo, para compensar a perda de poder de compra, mostram-se insuficientes, pois os anunciados aumentos de 5%, ficam muito abaixo da inflação prevista. Uma "pescadinha de rabo-da-boca", que os "crânios" das finanças, parecem não ser capazes de resolver. Aparentemente, não há dinheiro para tudo, dizem-nos (Portugal é um país pobre, patati, patatá...). É verdade. Mas, então, se somos pobres e não temos dinheiro para tudo, porque é que insistimos em salvar bancos falidos, aumentamos a nossa contribuição para a guerra (NATO), continuamos a pagar uma dívida odiosa (contraída pelo estado) e queremos à viva força manter o deficit abaixo de 1%?...

O fascismo está de volta. Nunca desapareceu, de resto. O último exemplo, veio do Brasil. Uma horda de bárbaros organizados e pagos pelos inimigos da democracia, resolveram assaltar o "planalto", onde se encontram os símbolos dos "três poderes" brasileiros (o político, o judicial e o legislativo). Um atentado terrorista, contra um governo sufragado e eleito democraticamente pelo Povo, invocando uma pretensa irregularidade que nunca existiu. De resto, as eleições brasileiras, foram amplamente escrutinadas por organismos internos e externos, que confirmaram a transparência de todo o processo. Só débeis mentais poderiam acreditar numa narrativa completamente falsa (as "fakes news" existem), que já tinha sido experimentada nos EUA, pelos acólitos de Trump (outro atrasado mental). Não vingou nos EUA, nem vingou no Brasil. Acontece que, ao contrário da sociedade americana - mais culta, com mais cidadania e mecanismos de transparência (transparency) e prestação de contas (accountability) - a democracia brasileira é frágil. A democracia tem apenas 37 anos e, numa sociedade pouca instruída, onde a desigualdade e os níveis de pobreza extrema são gritantes (33 milhões de pessoas com fome), a corrupção é transversal e a criminalidade mata 60 000 pessoas ao ano, torna-se mais difícil a gestão. Proliferam os interesses corporativos, infiltrados na corporação militar (veja-se a passividade da polícia e dos militares, durante o assalto aos edifícios governamentais), nos grandes agrários (agro-negócios do gado e soja) e nas igrejas evangélicas (populadas por débeis mentais). Estes são os principais bastiões de apoio do psicopata Bolsonaro. No domingo, pareciam "zombies", completamente possessos, espumando pela boca, enquanto eram conduzidos de volta para os autocarros que os transportaram para Brasília. Bolsonaro pode estar morto politicamente, mas o núcleo duro dos seus apoiantes não desapareceu. São fascistas e devem ser combatidos como tal. "Não podemos ser tolerantes com intolerantes", lembrava Popper. Lula e os democratas brasileiros que se cuidem. 

Finalmente, o jornal "Público" de hoje (11.01.23) "puxou" para a primeira página a notícia da detenção de um ex-autarca de Espinho, acusado de corrupção, tráfico de influências e lavagem de dinheiro (mais um!). Desta vez é do PSD. Qual a novidade? O problema é todos os partidos (do poder) terem "telhados de vidro." Por isso, protegem-se mutuamente. A questão da corrupção (é disso que estamos a falar) é transversal à sociedade portuguesa. Uma sociedade profundamente desigual, onde a pobreza, a iliteracia e o medo, continuam enraizados. Uma cultura de séculos, que não mudará por simples decreto ou alterações da constituição. No fundo, os partidos (os políticos) mais não são do que o "espelho" da nação. Se a "média" é má, porque é que os políticos haviam de ser melhores? É como falar de "ética republicana." O que é isso? Ética, tem-se ou não se tem. Não compreender isto e "esperar" que os "nossos" políticos sejam melhores que os da "direita" (ou vice-versa) é pensar que as diferenças ideológicas tornam os cidadãos mais honestos. Uma treta, claro. 

 

2022/12/21

Imagem real

 

A imagem que ilustra este artigo é real. É a de um troço do muro exterior de um conhecido hospital da capital do reino, Lisboa. O resto do muro, melhor, o resto das paredes exteriores e interiores deste hospital, tem "acabamento" semelhante. Lá dentro trabalham centenas de profissionais de saúde, que acolhem e tratam milhares de doentes. Parece que estamos numa qualquer cidade vítima de um daqueles bombardeamentos que a gente vê na televisão, pelos quais todos vertem lágrimas de crocodilo e os levam logo a ir pôr bandeirinhas no facebook. Entramos nestes pardieiros (são vários,) temendo o pior e, contudo, lá dentro somos recebidos com uma infinita doçura e com um grau de profissionalismo que comove.

Vergonhosa!!! Vergonhsa é como se pode classificar a acção dos sucessivos governos, relaxados, criminosos, que deixaram chegar isto a este ponto. Vergonhosa é como se pode classificar a atitude da esmagadora maioria dos dirigentes políticos, deputados, autarcas e também de uma data de servidores do Estado, que, pactuando com os governos relaxados e criminosos, andam há muito a montar uma campanha para vender saúde. Querem entregar ou preparam, alegremente, o caminho para entregar esse "negócio" aos "privados". Vergonhosa, é como se pode classificar a atitude de certos profissionais do sector, que fazem vista grossa a estas condições de trabalho, aproveitando para sacar o seu, pactuando assim com os governos relaxados e criminosos e com a esmagadora maioria dos dirigentes políticos, deputados, autarcas e de uma data de servidores do Estado. Vergonhosa é como se pode classificar a atitude de uma percentagem da população que embarca nisto, sem perceber o buraco em que se está a meter, pactuando assim objectivamente com os governos relaxados e criminosos e com a esmagadora maioria dos dirigentes políticos, deputados, autarcas e de uma data de servidores do Estadoe e certos profissionais do sector, numa espiral de loucura. Estão todos metidos no mesmo caldinho.

O bem mais precioso é a saúde, diz-se por aí, sem se pensar certamente no verdadeiro alcance destas palavras. Lá dentro a coisa não é assim tão arrepiante e badalhoca, mas este exterior dá-nos uma leitura clara sobre o que significa exactamente a palavra "saúde" e o grau de consideração que merecem os doentes e os seus cuidadores, em Portugal. Olhamos para estes exteriores e percebemos o que vai na alma deste país.

2022/11/18

Sob o signo do Zeca

 

A 18 de Novembro de 1987, foi criada a Associação José Afonso (AJA), cuja principal missão tem sido, para além da divulgação da obra poética e musical do cantor, a defesa dos princípios que sempre nortearam a sua intervenção cívica, enquanto canto-autor e cidadão engajado.   

Ao longo destes 35 anos, muitas foram as iniciativas levadas a cabo pela AJA, a maior parte das quais de índole cultural, um pouco por todo o país e no estrangeiro, onde o Zeca nunca deixou de ser uma referência. Uma destas iniciativas, é o concerto temático, em Novembro, que nos últimos anos homenageou Alípio de Freitas, Francisco Fanhais, Manuel Freire, Rui Pato e José Mário Branco, alguns dos "compagnons de route" de José Afonso.

O concerto deste ano, que será subordinado ao tema "A Música Tradicional Portuguesa na Obra de Zeca Afonso", contará e.o. com as presenças de Miguel Calhaz, Brigada Victor Jara, Janita Salomé e "Moçoilas". Data: 19 de Novembro, pelas 16horas no Fórum Lisboa, Avenida de Roma, 14. 

Também para este mês, está programada a apresentação do álbum "Com as Minhas Tamanquinhas" (1976) de há muito esgotado e que reaparece agora, numa edição da "Lusitanian Music", responsável pela reedição do catálogo da Orfeu. Participam na sessão e.o. Teófilo Duarte, Ruy Vieira Nery, Nuno Pacheco, Nuno Saraiva e Nuno Galopim.  Seguir-se-ão, no próximo ano, as edições dos restantes álbuns da Orfeu, respectivamente, "Enquanto há Força" (1977), "Fura, Fura" (1979) e "Fados de Coimbra" (1981). A sessão de apresentação do álbum "Com as minhas Tamanquinhas", está programada para o dia 27 de Novembro, pelas 16horas, na Casa da Cultura, em Setúbal. 

Finalmente, em Dezembro, sairá mais uma edição do livro "Textos e Canções", desta vez reeditado sob o nome "José Afonso - Obra Poética", que reúne a vasta obra do poeta-cantor, onde para além dos poemas cantados são incluídos outros poemas, alguns pela primeira vez. A edição é do "Relógio de Água" e a apresentação do livro contará com a presença e.o. de Jorge Abegão (responsável pela compilação e prefácio), Francisco Vale (orador), Ruy Vieira Nery (musicólogo), Sérgio Godinho (músico), Maria do Céu Guerra e Luís Lima Barreto (declamadores) e Catarina Anacleto (cello). Data: 8 de Dezembro, pelas 17horas, na Livraria Broteria, Rua São Pedro de Alcântara 3, em Lisboa.

Um mês, sob o signo de José Afonso. O Zeca. A não perder.

2022/10/31

Lula ou a vitória da democracia

foto EFE

Lula da Silva é, desde ontem, o novo presidente do Brasil.  

Foi preciso esperar até às 22.58h (hora portuguesa) para confirmar a vitória de Lula, naquelas que foram consideradas as eleições mais disputadas do país. No final, o resultado foi de 51% para Lula, contra 49% para Bolsonaro, o que corresponde, "grosso modo", a 2 milhões de votos de diferença entre os candidatos.

Apesar de não constituir propriamente uma surpresa, a vitória de Lula (prevista em todas as sondagens) era aguardada com alguma expectativa, já que as percentagens anunciadas situavam-se dentro da margem de erro. Esta dúvida, que persistiu até final, aumentou com o bom resultado conseguido por Bolsonaro na 1ª volta das presidenciais (muito acima do previsto) e pela polémica gerada sobre a fiabilidade das sondagens, contestadas pelo (ainda) actual presidente.       

Como previsto, à medida que os votos iam sendo contados, os estados mais populosos (S. Paulo, Rio, Minas, Bahia) começaram por dar mais votos a Bolsonaro, que se manteve à frente até cerca de 2/3 da contagem. A "virada" deu-se por volta das 22horas, quando estavam contabilizados cerca de 67% dos votos e Lula passou para a frente. A partir daí, a diferença foi-se acentuando e a vantagem do candidato do PT, nunca mais esteve em dúvida. A única questão, residia na diferença final, já que uma pequena margem de vantagem poderia dar argumentos a Bolsonaro para contestar os resultados. 

Não sendo 2% uma diferença expressiva, é uma vitória clara e indiscutível - por um se ganha, por um se perde - obtida de forma legal e limpa, pesem as acusações (infundadas) dos mais fanáticos apoiantes de Bolsonaro, que não se conformam com a derrota do "mito". Após o resultado ser conhecido, o presidente remeteu-se a um silêncio, que dura há 20 horas, o que alguns analistas interpretam como a sua incapacidade de justificar uma derrota, para a qual não tem saída airosa. Outra interpretação é, à imagem de Trump, esperar que os seus acólitos venham para a rua protestar contra os resultados e aproveitar-se do caos instalado para tentar atrasar e, no limite, impedir a nomeação de Lula. Há ainda uma terceira leitura possível: contra membros da família Bolsonaro, correm diversos processos por corrupção e implicação noutros crimes (Marielle), pelos quais o "clã" poderá ter de responder em tribunal. Uma vez terminada a presidência e, sem a imunidade de que gozam nos cargos, poderão mais facilmente ser acusados.

Já em relação a Lula, qual Ajax renascido das cinzas, esta é a vitória da coragem e da resiliência que sempre mostrou ao longo da vida. Um "animal político", que influenciou e moldou o Brasil dos últimos 40 anos. Pesem todas as vicissitudes porque passou e apesar das acusações que continuam a ser-lhe feitas, Lula não se deixou quebrar pelo desânimo, nem nunca desistiu. Voltou, com a força da razão, quiçá mais sábio, sabendo que tem pela frente uma tarefa ciclópica: a de "unir os brasileiros" e de voltar a "pôr o Brasil no mapa". Tem a seu favor a experiência acumulada e o carisma inato, que fazem dele o mais popular líder político de toda a América Latina. Não por acaso, os líderes das principais potências mundiais - Biden, Macron, Putin, Xi Jinping, Sunak, Mori, Sanchez, Von der Leyen - apressaram-se a reconhecer a vitória. Todos eles sabem ser mais fácil negociar com um país democrático, do que com um país "pária" (o Brasil de Bolsonaro), isolado pela comunidade internacional. Da mesma forma que no passado, esse será o maior trunfo de Lula. Se puder (e souber) usá-lo, este terceiro mandato poderá tornar-se o seu maior legado. O Brasil espera por ele.

2022/10/20

Brasil: democracia versus barbárie

 

Faltam 10 dias para a 2ª volta das eleições presidenciais brasileiras. 

De acordo com a maioria dos analistas e institutos de opinião, o debate do passado domingo, entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, saldou-se por um "empate técnico", o que não permite extrair grandes conclusões para as eleições do próximo dia 30. O debate teve uma primeira parte de nível bastante aceitável, resvalando, na segunda, para as habituais acusações "ad hominem", que não contribuíram para elevar a discussão. De facto, ambos os candidatos pareceram bem preparados, com um Lula mais desenvolto, usando a sua experiência política e poder de comunicação que sempre o caracterizou; e um Bolsonaro, mais hirto e em pose militar, com as mãos atrás das costas, que teve de socorrer-se de uma cábula para defender os seus argumentos. As críticas de Lula, centraram-se fundamentalmente nas políticas de educação, na gestão da pandemia e na desflorestação da Amazónia, durante a actual legislatura; enquanto as críticas de Bolsonaro, tiveram como alvo o tema da corrupção durante os governos de Lula, de que foram exemplos maiores o "mensalão" e o "lava jato", como se previa. Até aqui, poucas novidades. 

Esta parece ser, também, a opinião da maioria da população, a avaliar pelas sondagens posteriores ao debate e publicadas esta semana pelo IPEC e pela Data Folha, dois dos principais centros de sondagem no Brasil. Assim, com base na sondagem do IPEC (efectuada entre 15 e 17 de Outubro últimos) Lula terá agora 50% das intenções de voto, enquanto Bolsonaro terá 43% (na primeira volta, estas percentagens foram, respectivamente, de 48% e 43%). Ou seja, Lula, depois do debate, terá aumentado ligeiramente a sua vantagem para 7 pontos percentuais. Já na sondagem da Data Folha, publicada hoje (19 de Outubro) as percentagens são de 50% para Lula e 44% para Bolsonaro (uma diferença de 6 pontos). Para além destes votos, há ainda a considerar 5% de votos nulos e 2% de votantes, que não sabem e/ou desconhecem em quem votar. 

Resumindo: os votos em Lula mantêm-se constantes (a rondar os 49%) enquanto os votos em Bolsonaro, (depois de um crescimento surpreendente, relativamente às sondagens pré-eleitorais) parecem ter atingido o seu valor máximo (a rondar os 44%). A percentagem dos votantes, que não mudam de opinião, mantém-se estável: 93%. A dúvida parece estar, agora, nos 7%, que ainda não decidiram em quem votar. É neste grupo, com cerca de 10 milhões de eleitores, que ambos os candidatos se concentram, pois dele pode depender a vitória no dia 30. Uma coisa é certa: mesmo que Lula ganhe, como previsível, Bolsonaro terá a maioria no Senado e no Congresso, o que não facilitará a vida do próximo governo. É prevendo este desfecho, que ambos os candidatos se desdobram, esta semana, em múltiplas acções eleitorais de última hora, para tentar conquistar o voto dos indecisos. Lula, mantém o apoio do Nordeste, da população mais pobre, do mundo cultural e do eleitorado feminino; enquanto Bolsonaro, tem o apoio da maioria das seitas evangélicas, dos ruralistas e dos militares, os chamados três BBBs (Bíblia, Boiada e Bala),  tradicionalmente os grupos populacionais mais despolitizados e conservadores do país.     

De Lula, todos sabemos que foi operário metalúrgico, sindicalista, fundador do PT, candidato perdedor em três eleições presidenciais e ganhador noutras duas. Durante os seus mandatos (2002-2010) muita coisas boas e más aconteceram. Desde logo, as políticas sociais e educacionais, que tiraram da miséria extrema 40 milhões de brasileiros e permitiram aos mais desfavorecidos estudar e tirar cursos superiores, contribuindo para a qualidade de vida do brasileiro médio e aumentando o PIB nacional, como nunca até aí. O Brasil tornou-se uma das dez economias mais competitivas do Mundo e acedeu ao excelso clube do G20, fazendo parte dos BRICs de sucesso. Lula saiu do governo com uma taxa de popularidade de 87% e, só não foi eleito pela terceira vez, porque a constituição não o permite. Há, no entanto, um lado escuro nesta história de sucesso, devido às acusações de corrupção, que lhe custaram diversos processos judiciais e, inclusive, a prisão. Sobre este candidato, que muitos preconizavam morto politicamente, escreveu esta semana, André Lamas Leite, cronista do "Público": "O "cadáver político" que esteve 20 meses preso e que - digamo-lo com frontalidade - não se duvida que tenha cometido os crimes pelos quais foi condenado transitoriamente, beneficiou messianicamente de Sérgio Moro - oportunista obcecado, agora senador, e que mercadejou o seu cargo por uma breve passagem pela pasta da Justiça - que, assim, se transformou, suprema ironia, no desfibrilhador "lulista"". Ou seja, apesar de todos os revezes, Lula renasce das cinzas, graças ao seu principal acusador no processo Lava Jato. "Bolsonaro, não teve o engenho de transformar os 87% de aprovação, com que Lula abandonou a presidência em cinzas, mesmo após as condenações judiciais" (Leite, André Lamas: in "Público" d.d. 4/10/22).

De Bolsonaro, sabia-se pouco até ter chegado ao Planalto, mas os quatro anos que leva à frente do governo, chegam e sobram para fazer o retrato da criatura. O que sabemos de Bolsonaro? Sabemos que: "Bolsonaro acha bem os cidadãos terem em casa armas de uso militar. Na primeira campanha presidencial, em 2018, disse que "Uma arma, mais que defender a nossa vida, defende a nossa liberdade". Agora, na segunda campanha, descreveu-se como "Um presidente que defende a legitima defesa e o armamento para o cidadão de bem". "E digo a vocês: povo armado jamais será escravizado". Desde que chegou ao governo, assinou um decreto a facilitar a venda de armas. Em 2018, havia 350 mil armas registadas em nome de "coleccionadores, atiradores e caçadores". Em 2022, há 1 milhão. Os brasileiros compram hoje uma média de 1300 armas por dia". Entretanto, a criminalidade no país, cresceu para 63.000 vítimas por ano. "Bolsonaro não acredita na ciência. Em 2020 disse que o Covid-19 era "uma gripezinha" e que os brasileiros não apanhavam doenças. No Orçamento do Governo Federal de 2021, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, teve um corte de 30%, o maior de todos. O segundo maior corte foi na Educação e o terceiro no Ambiente. O Brasil, registou 700.000 mortes por Covid, uma das maiores percentagens do Mundo". "Bolsonaro não acredita na importância da Amazónia. Em 2019, disse que "é uma falácia dizer que a Amazónia é património da humanidade" e que "é um equívoco dizer, como atestam os cientistas, que a Amazónia, a nossa floresta, é o pulmão do Mundo". Nos anos do governo Bolsonaro, a desflorestação na Amazónia brasileira cresceu 56,6%" (Reis, Bárbara: in "Público" d.d. 8/10/22). Podermos ainda falar da misoginia. Bolsonaro, pai de três mulheres, disse que teve uma filha assim "Dei uma fraquejada e veio uma mulher", da homofobia (disse "Seria incapaz de amar um filho homosexual: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo", ou do racismo (disse que "os índios estão a ficar seres humanos como nós" e fala do peso dos negros em arrobas, medida para pesar gado)" (Ibidem).  

Perante tal cenário, e uma vez afastados os restantes concorrentes políticos (que ficaram pelo caminho na primeira volta e hoje se perfilam ao lado de um dos candidatos) só resta aos brasileiros votar num dos finalistas. Acontece, que estas eleições, as mais importantes no período pós-ditadura militar, não são apenas entre Lula ou Bolsonaro. Estas eleições, são sobre dois projectos antagónicos, dos quais dependerá em grande parte o futuro próximo do Brasil. Na realidade, as eleições brasileiras são entre a Democracia e a Barbárie.             

2022/10/11

Taxi Driver (25)

 

Bom dia, para onde vamos? 

-Para o Rossio. É preciso pôr a máscara? 

Não, já ninguém põe isso. Mas se quiser pôr...

- De facto, já quase ninguém usa, mas como é um transporte público...

Eu deixei de usar. Claro que se for num hospital ou num espaço pequeno, por muito tempo, é melhor ter cuidado. E depois, as vacinas, há quem tome e quem não tome. O senhor já tomou?

- Eu tomei já 4 doses e 2 contra a gripe. Melhor é impossível.

Então, está melhor que eu. Só tomei 3 doses, mas conheço pessoas que nunca tomaram e não morreram e outras que tomaram e morreram...

- Certo. Tem a ver com muitos factores: imunidade, patologias associadas, idade, estilo de vida, sei lá...

Isso mesmo. Há países, onde as pessoas morrem aos milhões. Também tem a ver com os cuidados de saúde...

- Claro. Só nos Estados Unidos morreram milhões, devido aos negacionismo e a Trump, que negava a ciência. O mesmo aconteceu no Brasil, com Bolsonaro, onde, oficialmente, morreram mais de 700.000 pessoas. Um crime.

Oficialmente, diz bem. Sabem eles bem, quem morreu de Covid, nesses países...bastava ver as valas abertas nos cemitérios...

- Uma coisa é certa, é sempre melhor estar vacinado. Se não houvesse vacinas, teriam morrido muitos mais. 

Claro. Veja só os milhares de operações e consultas que ficaram por fazer, durante a pandemia. Os hospitais só tratavam do COVID. As outras patologias, ficavam para trás...

- Sim, ainda hoje os serviços não recuperaram. Fiz, há pouco tempo, diversos exames pelo SNS e só paguei 25 euros. Claro que tive de esperar 3 meses, para fazê-los todos. Se os tivesse feito pelo privado, podia fazê-los no mesmo dia, por 300 ou mais euros...

Uma vergonha, a saúde em Portugal. Em vez de ajudarem os mais necessitados, mandam as pessoas todas para o privado, pois é aí que estão os lucros...

- Exactamente. É o "sistema americano", que está divido em "Medicare" (para quem tem seguro de saúde) e o "Medicaid" (para quem não tem). Calcula-se que, 40% do sistema de saúde em Portugal, já está nas mãos do privado. 

Está a ver? Como é possível isso? E anda este governo a prometer "mundos e fundos"... Ainda agora me deram uma esmola de 250 euros (meia pensão), mas para o ano vão congelar tudo. Este Costa é um mentiroso. A mim já não me engana mais...

- Pois, mas o PS nunca enganou ninguém...

Mas, em quem é que devemos votar? Ninguém se aproveita. Qualquer dia, deixo de votar...

- Isso, não resolve nada. Se não votarmos, ainda será pior, pois podem governar à vontade...

O problema é que não são só os partidos que são maus. Isto é tudo uma quadrilha. Depois, põem no governo os amigos e os familiares e fica tudo em "família". O mesmo se passa nas empresas e nos bancos. Só há trabalho garantido para os amigos...

- Certo. As clientelas e o nepotismo, são um cancro da sociedade portuguesa. 

Não é só na sociedade portuguesa. Veja lá na Rússia ou na Coreia do Norte. Quem não estiver de acordo, vai para a prisão ou é morto. Até no estrangeiro, matam os opositores. Não viu aquele programa na televisão sobre as esquadras chinesas no estrangeiro? Para que servem?

- Por acaso vi. Em Portugal, detectaram três dessas "esquadras". Segundo a reportagem, há dezenas em todo o Mundo. Destinam-se a identificar os opositores do regime e a devolvê-los à China, ou a fazer chantagem, exercendo represálias sobre os familiares na China...

E o senhor acredita nisso? 

- Não me custa a acreditar. São ditaduras, é mais fácil controlar a dissidência...

Pois é. Mas aqui, vivemos em democracia e os aldrabrões incriminados, como esse Salgado e o Sócrates, andam à vontade há oito anos e continuam a aguardar julgamento. Eles protegem-se uns aos outros. Têm dinheiro e bons advogados e nunca mais são julgados...

- É verdade. A justiça em Portugal, perdeu toda a credibilidade. Demasiadas garantias. Mas, prefiro assim. Em caso de dúvida, temos de defender a "presunção de inocência". O problema é a demora dos processos. Uma justiça lenta, é terrível. 

Claro, o que é preciso é julgá-los e depois logo se vê. Se forem culpados, devem ir para a prisão. 

- Não podia estar mais de acordo. Ficamos aqui. 

São €9,85. Obrigado pela conversa. 

 

(Imagem: Témis, Museu Arqueológico Nacional de Atenas)

2022/10/09

O DOC's está de volta!


Entre 6 e 16 de Outubro, está a decorrer a 20ª edição do DOC's Lisboa (Festival Internacional de Cinema) que mais uma vez regressa à capital lisboeta. 

Depois de dois anos de "menor visibilidade", devido à pandemia reinante, o DOC's regressa, com uma programação à altura da qualidade a que nos habituou, desde a sua criação, já lá vão uns bons vinte anos.

São mais de 300 documentários/filmes, entre obras em competição, primeiras obras, ciclos e retrospectivas diversas, que poderão ser vistos em sessões únicas e repetidas (a maior parte dos filmes), em salas tão diversas como o cinema S. Jorge, a Culturgest, a Cinemateca Portuguesa, o cinema Ideal, ou a sala Fernando Lopes, recentemente inaugurada e a funcionar na Universidade Lusófona. 

Como habitualmente, e para além dos filmes a concurso, divididos em duas secções distintas, respectivamente, "Competição Internacional" e "Competição Nacional", o Festival mantém as habituais secções: "Da Terra à Lua", "HeartBeat", "Riscos", "Verdes Anos", "Doc Alliance" e "Cinema de Urgência". 

Na secção "Retrospectivas",  destaque para o cinema de Carlos Reichenbach (Brasil) e para "A questão colonial" (esta, com enfoque nas guerras de libertação da Argelia e das ex-colónias portuguesas), em dois dos ciclos mais aguardados deste Festival. Para além dos filmes, haverá debates com os realizadores presentes, sobre as temáticas respectivas ("cinema novo" brasileiro em tempos de ditadura e lutas anti-coloniais em África). 

Outros menções, a atribuir pelo Festival, são o prémio para "Melhor Realizador", o prémio "Melhor Curta-Metragem até 40' ", prémio "Lugares de Trabalho e condições sociais", prémio "Práticas, Tradição e Património" e prémio "Fernando Lopes". Todos os filmes premiados receberão, para além do diploma respectivo, um prémio pecuniário como estímulo para futuras produções. 

Que escolher, entre tanta oferta, sabendo que a maior parte dos filmes não será distribuída e não voltará a passar no circuito comercial? Eis uma pequena lista de filmes, que não vimos e gostaríamos de ver: ""A Human Condition" (Louis Malle), "The Fire Within" (Werner Herzog), "I, a Negro" (Jean Rouch), "Mueda, Memória e Massacre" (Ruy Guerra), "Godard Cinema" (Cyrill Leuthy), ""Getúlio Vargas" (Ana Carolina Teixeira de Sousa), ""Lynch/OZ"  (Alexandre O. Philippe), "Invisible Hands" (Hugo Santos), "Everything will be OK" (Rithy Panh)...       

Entre estes títulos, não podemos deixar de destacar "Les mains invisibles" (Invisible hands), que passará no ciclo "Da Terra à Lua", do realizador português, residente em França, Hugo Santos. Uma sinopse possível: "Nos anos 1970, uma casa em Paris acolhia dezenas de desertores portugueses que se esquivavam à guerra colonial. Só os arquivos da polícia política portuguesa guardavam provas das suas actividades anti-coloniais. De personagem em personagem, reunindo testemunhos e imagens amadoras, reconstruo esta memória" (Hugo Santos).  

P.S. Declaração de interesses: porque conheci bem a casa referida no filme de Hugo dos Santos, não posso deixar de recomendar este documentário. A ver, desde logo. 

Bom Festival e Viva o Cinema! 

2022/10/03

XXII Bienal: em Sevilha, o Flamenco está vivo!

 

Decorreu, durante todo o mês de Setembro, mais uma edição da Bienal de Flamenco, o maior e mais prestigioso evento dedicado à arte "jonda" que, de há dois séculos a esta parte, apaixona os melómanos e estudiosos de todo o Mundo. 

Após a edição de 2020, condicionada pela pandemia reinante, em que a maior parte dos concertos foram  limitados a metade da sua assistência habitual, a Bienal voltou, quiçá mais pujante que nunca, com dezenas de espectáculos de "cante",  "toque" e "baile", o tripé sob o qual assenta o género musical mais popular de Espanha. 

Com nomes sonantes no programa, entre os quais a Cia. Eva y Yerbabuena,  Olga Pericet, Vicente Amigo, Gerardo Núñez, Israel Galván, La Tremendita, Niño de Elche, Marina Heredia, Segundo Falcón, La Macanita, Rafael Carrasco, Pastora Galván y Marina Marín, Manuela Carrasco, Bolita, Mayte Martín, Rocío Molina (com Niño de Elche), era difícil escolher. Dificuldades de datas e bilhetes esgotados com antecedência, impediram uma selecção mais abrangente, ainda que o critério de qualidade estivesse garantido à partida. 

Lá fomos, munidos de entradas para três concertos, que não podiam desiludir: o guitarrista Vicente Amigo, a "cantaora" Mayte Martín e a "bailaora" Rocío Molina, esta com um convidado especial, o iconoclasta Niño de Elche.

Regressado a Sevilha, após um largo período de ausência, Vicente Amigo (Córdoba) voltou ao nível dos seus melhores dias: versátil, intimista e arrojado, nos variados "palos", que executou com a mestria que lhe conhecemos. Reportório renovado e clássicos que todos sabem de cor. Um guitarrista a um tempo clássico e moderno, que sabe agradar aos mais aficionados e ao público em geral. Poucos são os guitarristas que esgotam La Maestranza, a sala de visitas de Sevilha e Vicente Amigo voltou a consegui-lo. Depois de uma introdução clássica, em que interpretou um "medley" de "soleás", "seguiriyas" e "bulerías", Amigo iniciou uma viagem pelos seus temas mais conhecidos, culminando com a homenagem à arte do toureio, dedicada a um famoso lidador de Sevilha. Passou em revista temas do seu último álbum "Memoria de los sentidos", entre os quais "Requiem Coral" (uma homenagem a Paco de Lucía), aqui numa interpretação contida, mas dramática de Rafael de Utrera. Com Amigo, estiveram mais sete acompanhantes, entre músicos, "cantaores" e "bailaores", todos de qualidade ímpar. Destaque para o "cantaor" Rafael Usero Vilches (Rafael de Utrera), excelente nas interpretações mais dramáticas e Antonio Molina Redondo (El Choro), magnífico na sua curta mas rigorosa intervenção de "baile". 

Outra "cantaora", que acompanhamos há mais de 25 anos e que nunca desilude, é Mayte Martín (Barcelona) uma das vozes e presenças mais apreciadas no circuito flamenco. Mayte, não tem apenas uma boa voz, mas uma presença que o público e a crítica especializada sabem reconhecer. Lá estivémos todos, num Lope de Vega cheio até ao tecto, para acompanhá-la nas duas horas que duraram a actuação, pontuada por momentos de pura magia, em que nem uma mosca se ouvia na velhinha sala de Sevilha. Uma actuação a todos os títulos brilhante, em que interpretou, com igual desenvoltura, os "palos" mais clássicos. De destacar, aqueles em que foi acompanhada pelo guitarrista José Gálvez, num dos momentos mais solenes do concerto. Não faltaram outros temas e incursões por géneros não-flamencos e dois "encores", respectivamente, o celebrado  "S.O.S.", do seu álbum de estreia "Muy Frágil" e a "Milonga del Solitario" do argentino Atahualpa Yupanqui, ambos cantados com a mestria que lhe conhecemos. Mayte Martín está no topo da carreira e arriscamos a dizer que, das vezes que a vimos ao "vivo" esta foi, sem dúvida, a sua melhor actuação. Brilhante.     

Finalmente, um dos espectáculos mais aguardados desta Bienal: "Carnación" (estreia nacional), uma criação de Rocío Molina (Málaga), "bailaora" e "dansaora", reconhecida pela sua abordagem à dança flamenca contemporânea e de fusão, que a tornaram famosa no circuito da arte. Desta vez, rodeada de um elenco notável, entre os quais, o conhecido El Niño de Elche (voz), Pepe Benitez (piano, electrónica, programações), Maureen Choi (violinista), Calude Alemán (soprano) e ProyectoeLe (coro). Pese embora a encenação operática, em que as luzes, o som e as cores dominaram, o espectáculo pecou por falta de ritmo, aliado a uma duração que nos pareceu excessiva, dado o desafio - difícil - a que Molina se propôs. Uma performance de quase duas horas, com muito de teatro pós-dramático, "bondage" e provocação, em que todos os intérpretes se expuseram ao limite. Nada que não tivéssemos visto em companhias de dança contemporânea (Pina Bausch, Teresa De Keersmaeker) com a diferença de que, aqui, a "mensagem" não passou. Acresce que, de Flamenco, houve muito pouco (afinal, o tema da Bienal), salvo um "martinete", interpretado a preceito por El Niño de Elche e um bailado soberbo de Molina, num despique furioso com a violinista Choi, certamente dois dos momentos mais conseguidos de "Carnación". Como em todas as experiências, a inovação não agradou a todos. Entre espectadores meio bocejantes, que pediam "mais baile" e fãs incondicionais, que não regatearam aplausos no final, ficou uma sensação de vazio, difícil de interpretar. Nem toda a crítica local gostou do espectáculo e o diário "El Mundo", considerou-o mesmo o "pior da Bienal"...

A Bienal terminou, mas o Flamenco continua. Hoje, mais vivo que nunca, renovando-se com intérpretes de excepção, que prosseguem com a arte "jonda", um género musical universal.