2019/07/08
Viva o futebol!
O futebol (quem diria...?!) e, sobretudo, uma mulher deram uma lição política cujas proporções serão certamente ainda difíceis de contabilizar. Mas que tudo isto vai fazer estragos, vai!!! Dificilmente passaria pela cabeça de alguém que o futebel (quem diria...?!), muito menos o futebol feminino e, ainda por cima, a Megan Rapinoe iriam ter este papel.
Aguardo expectante pelos próximos tweets do Trump...
2019/07/04
O Cinema e a Memória
Em tempos de populismo iliberal, um eufemismo para o autoritarismo que alastra na Europa, assistimos à crescente influência de líderes que não disfarçam a sua aversão à democracia parlamentar que governa a UE. É o caso dos governos da Hungria, da Polónia, da República Checa ou da Eslováquia, mas também da Itália de Salvini, onde o respeito pelas instituições democráticas (justiça, imprensa, direitos humanos e laborais) é diariamente ignorado, em total contradição com a própria Constituição Europeia, que é suposto respeitarem. Aparentemente, o fenómeno, que não é novo, radica na insatisfação de largos sectores da sociedade, alarmados com o desenrolar de uma História, na qual deixaram de ser protagonistas. Não por acaso, estes movimentos populistas (de direita), medram em regimes democráticos, onde são tolerados e contra os quais podem protestar, acusando as elites (às quais pertencem) de serem os principais responsáveis por todos os seus infortúnios. Porque os argumentos racionais fogem ao seu controlo, refugiam-se na "razão" da emoção, uma arma poderosa na mão de demagogos, ou em explicações simplistas para problemas complexos, dos quais não lhe interessa saber. Junte-se a esta (falta de) ideologia, a negação da realidade e podemos perceber melhor uma receita que anima esta crença sem teoria. Um dos problemas maiores desta negação, é o apagamento da memória histórica, elemento essencial para entender um processo que nunca estará concluido, mas ao qual sempre recorremos quando a interpretação e a explicação dos factos, assim o exigem.
Como bem assinala o historiador Rui Bebiano, "vivemos uma inquietante vaga de rasura da memória projectada, a partir do apagamento da reescrita e da trivialização de episódios da História" que, segundo ele, urge reverter. A propósito de um inquérito feito em diversos países, junto das gerações mais novas, sobre factos marcantes do século XX, acrescenta: "O "dever da memória", intervém aqui como instrumento da necessidade de olhar o passado traumático, estudado e transmitido pela História, enquanto algo sobre a qual, face ao sofrimento das vítimas, aos crimes dos seus algozes e às circunstâncias que os determinaram, a interpretação exclui a indiferença moral. Responsabilizando Estados, grupos e indivíduos, para episódios passados e trabalhando, como sugeriu Primo Levi, para que não se repitam no futuro".
Entre os meios usados na perpetuação deste "dever da memória", o cinema, na sua versão documental, ocupa, por isso, um lugar central. Na linha dos grandes documentaristas da memória histórica - Claude Lanzmann (Shoah) sobre o holocausto; Leslie Woodhead (A Cry from the Grave) sobre o genocídio na Bósnia; Rithy Panh (S-21: The Khmer Rouge Killing Machine) sobre o regime de Pol-Pot; Patrício Guzmán (Nostalgia da Luz) sobre as vítimas de Pinochet; Joshua Oppenheimer (O Acto de Matar) sobre as milícias de Suharto, etc. - surgem, agora os realizadores Almudena Carracero e Robert Bahar (El Silencio de Otros), com um filme sobre as vítimas do franquismo.
O filme, estreado em Portugal, por ocasião do último "DOCs" e, posteriormente, agraciado com o prémio Goya para o melhor documentário espanhol 2018, ganharia outros prémios internacionais, entre os quais o do melhor documentário europeu, tendo ainda sido nomeado para os óscares de Holywood 2019. Documento impressionante, que relata o papel da "Associação de Recuperação da Memória Histórica" (ARMH), constituida em 2000 para recuperar os corpos das vítimas do franquismo, enterradas em valas comuns (114.000 desaparecidos),"O Silêncio dos Outros", mais do que a denúncia da barbárie fascista, permanece como um dos grandes filmes de memória de sempre.
No âmbito das sessões sobre temas da actualidade, a "Associação José Afonso" (núcleo de Lisboa) organiza uma sessão especial, com a projecção do filme "O Silêncio dos Outros", que contará com presença de Diana Andringa, jornalista e documentarista.
"O Silêncio dos Outros", será exibido no dia 5 de Julho, pelas 18.30h, na sede da AJA, Rua de São Bento 170, Lisboa.
Como bem assinala o historiador Rui Bebiano, "vivemos uma inquietante vaga de rasura da memória projectada, a partir do apagamento da reescrita e da trivialização de episódios da História" que, segundo ele, urge reverter. A propósito de um inquérito feito em diversos países, junto das gerações mais novas, sobre factos marcantes do século XX, acrescenta: "O "dever da memória", intervém aqui como instrumento da necessidade de olhar o passado traumático, estudado e transmitido pela História, enquanto algo sobre a qual, face ao sofrimento das vítimas, aos crimes dos seus algozes e às circunstâncias que os determinaram, a interpretação exclui a indiferença moral. Responsabilizando Estados, grupos e indivíduos, para episódios passados e trabalhando, como sugeriu Primo Levi, para que não se repitam no futuro".
Entre os meios usados na perpetuação deste "dever da memória", o cinema, na sua versão documental, ocupa, por isso, um lugar central. Na linha dos grandes documentaristas da memória histórica - Claude Lanzmann (Shoah) sobre o holocausto; Leslie Woodhead (A Cry from the Grave) sobre o genocídio na Bósnia; Rithy Panh (S-21: The Khmer Rouge Killing Machine) sobre o regime de Pol-Pot; Patrício Guzmán (Nostalgia da Luz) sobre as vítimas de Pinochet; Joshua Oppenheimer (O Acto de Matar) sobre as milícias de Suharto, etc. - surgem, agora os realizadores Almudena Carracero e Robert Bahar (El Silencio de Otros), com um filme sobre as vítimas do franquismo.
O filme, estreado em Portugal, por ocasião do último "DOCs" e, posteriormente, agraciado com o prémio Goya para o melhor documentário espanhol 2018, ganharia outros prémios internacionais, entre os quais o do melhor documentário europeu, tendo ainda sido nomeado para os óscares de Holywood 2019. Documento impressionante, que relata o papel da "Associação de Recuperação da Memória Histórica" (ARMH), constituida em 2000 para recuperar os corpos das vítimas do franquismo, enterradas em valas comuns (114.000 desaparecidos),"O Silêncio dos Outros", mais do que a denúncia da barbárie fascista, permanece como um dos grandes filmes de memória de sempre.
No âmbito das sessões sobre temas da actualidade, a "Associação José Afonso" (núcleo de Lisboa) organiza uma sessão especial, com a projecção do filme "O Silêncio dos Outros", que contará com presença de Diana Andringa, jornalista e documentarista.
"O Silêncio dos Outros", será exibido no dia 5 de Julho, pelas 18.30h, na sede da AJA, Rua de São Bento 170, Lisboa.
2019/06/21
E a Andaluzia aqui tão perto...
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Centro Andaluz del Flamenco |
Comecemos pelo fim, o Flamenco, ex-libris por excelência da comunidade andaluza.
Quando, há cerca de um ano, tentámos visitar o "Centro Andaluz del Flamenco", em Jerez de La Frontera, uma das cidades-cadinho do "cante" onde, em 1958, foi criada a 1ª "Catedra de Flamencologia" de Espanha, não foi possível fazê-lo. Era sábado e o palácio, que alberga o Centro, estava encerrado. Prometemos voltar e, desta feita, com resultado positivo.
Desde que foi criada, a "Catedra de Flamencologia" já conheceu diferentes localizações: primeiro, no imponente Alcazár da cidade, depois, num dos edifícios da bodega "Tio Pepe", outro dos "ex-libris" citadinos e, actualmente, no "Centro", da qual é parte integrante. De acordo com as informações recolhidas, virá a fazer parte da futura "cidade de Flamenco", idealizada e construída pelo Turismo local e regional, em parceria com o Ministério de Cultura espanhol. Coisa para dois anos, disse-nos, em tom de confidência, a secretária de serviço...

Após a teoria, restava a prática: O flamenco ao vivo. Em Sevilha, anunciavam-se dois concertos imperdíveis.. O primeiro, de Rocío Marquez e o segundo, de El Niño de Elche. Lá fomos, esperançados em conseguir entradas, coisa sempre difícil quando se trata de nomes consagrados.
O primeiro recital (gratuito) era organizado pela Tertulia Flamenca de Enseñantes "Calixto Sánchez Marín", um grupo de aficcionados militantes da "arte", que reune, regularmente, para ouvir e falar de Flamenco. O encontro teve lugar no auditório do Instituto Martínez Montañés, uma escola técnica superior sevilhana. Sala à cunha, para ouvir Rocío Marquez (voz) acompanhada por Manuel Herrera (toque), um virtuoso professor do Conservatório.
Ainda que jovem, Rocío (1985), tem já uma longa carreira e diversos albuns publicados. Originária de Huelva, cedo se impôs nos concursos locais e nacionais, tendo vindo a afirmar-se como uma das mais seguras e rigorosas intérpretes da nova geração do "cante". Dona de uma técnica vocal irreprensível e de um conhecimento profundo dos diversos estilos (palos) flamencos, é nos fandangos e nas bulerias, as suas imagens de marca, que tem ganho maior reconhecimento. Ao contrário da maior parte das "cantaoras", a sua voz não é grave e "arranhada", como as de origem cigana. Pelo contrário, é límpida e tem uma dicção perfeita, com predomínio das notas agudas. Da mesma forma que a célebre bebida, "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Uma revelação, pelo menos para mim, que nunca a tinha escutado ao vivo. De recital, destaque para o reportório do seu último album, intitulado "Visto En El Jueves" (2019), considerado, pela crítica do país vizinho, o seu melhor trabalho à data. Depois de Tavira, onde actuou no passado Verão, Rocío Marquez volta a Portugal, para actuar a 21 e 22 de Junho, em Albergaria-a-Velha e Sever do Vouga, respectivamente, integrada no "Festim" (Festival de Músicas do Mundo). Uma oportunidade a não perder.
Resta falar de El Niño de Elche (1985), que conhecíamos de actuações anteriores, a primeira da última Bienal de Flamenco e, a segunda, no mítico teatro Lope de Vega, ambas em Sevilha.
Sobre El Niño, que passou no Teatro da Trindade em Lisboa, na passada semana, já quase tudo foi dito. Do pior e do melhor. Um iconoclasta, destruidor de mitos e desconstrutor de géneros, os quais manuseia com a maior das facilidades: do flamenco, puro e duro às canções de ida-e-volta; do bolero às "cumbias" colombianas; da "bomba" porto-riquenha ao hard-rock; do batuque afro à batida "tecno", sempre acompanhado por um naipe de excelentes músicos, El Niño, ama-se ou odeia-se. Os puristas detestam-no e os seguidores não perdem uma actuação. Lá estavam todos (talvez mil, talvez um pouco mais), na apresentação do seu último trabalho, intitulado "Colombiana", este ano editado e já à venda em Espanha. Um turbilhão, que começou com a alocução "É bom estar aqui, porque aqui está a assistência mais inteligente de Sevilha". A provocação estava lançada e os fans adoraram. Seguiram-se duas horas de concerto, onde o cantor passou em revista os temas de "Colombiana", uma inflexão de 180 graus em relação ao seu último e polémico disco "Antologia del Cante Flameco Heterodoxo" (2017) que deixou os puristas de "orelhas a arder". Desta vez, a provocação, saíu do território sagrado do Flamenco andaluz, para centrar-se nas influências e ritmos do Caribe, uma das explicações (nas palavras do autor) para compreender o género. Para mim, que sou suspeito, "um disco e peras". Ver e ouvir El Niño de Elche, tornou-se, agora, uma obrigação.
2019/06/05
Taxi Driver (18)
- Para a Buraca, sff.
Quer ir pelo Monsanto, ou pela Radial Norte-Sul?
- Tanto faz, a esta hora já há pouco trânsito...
Eu pergunto sempre, pois há clientes mais esquisitos, uns querem ir por aqui, outros por ali...
- Acho muito bem. Não tenho preferência, deixo ao seu critério.
Então, vamos aqui pelo túnel do Marquês, está de acordo?
- De acordo.
Já vi que foi à Feira do Livro, não é verdade?
- É verdade, há que aproveitar depois das 21h., quando algumas editoras praticam 50% de desconto sobre o preço de venda dos editores...
Ah, sim? Não sabia...
- Pois, temos é que vir aqui à noite, o que nem sempre dá muito jeito...
E consegue ler tudo o que compra?
- Nunca se consegue ler tudo o que compramos, mas o "vício" é maior que a perna...
Eu já me deixei disso. É tudo uma falsificação...
- Uma falsificação? Não estou a perceber...
Sim, uma falsificação. Já não há livros e traduções como antigamente.
- Mas, está-se a referir a quê? À literatura, aos ensaios, aos autores estrangeiros?
Sabe, eu ando aqui na praça, mas já passei por isso tudo. O meu pai era livreiro e, quando era miúdo, passava os dias a ajudá-lo. Nessa altura, lia muito e conhecia aquela "maltinha" toda...
- Muito me conta...
Pois, li os clássicos todos: o "Principezinho" (o Principezinho!), o Mark Twain, o Charles Dickens, o Victor Hugo, o Émile Zola, o Kafka, o Camus, o Steinbeck, o Hemingway...não falhava um!
- Óptimo. Mas, porque é que diz que isto agora é tudo uma falsificação?
Porque já não há traduções como antigamente. Quando leio traduções novas dos livros antigos, vejo muitos termos adulterados, que não estavam nas traduções da Ulisseia e dos Livros do Brasil, por exemplo...as novas editoras reeditam os livros, mas não traduzem dos originais. Traduzem e adaptam de outras versões.
- Não me diga...
É como lhe digo. E isto não é só a minha opinião. Muitos escritores, que frequentavam a livraria do meu pai, também o diziam. Havia lá uma tertúlia, onde iam o Luiz Pacheco, o Herberto Hélder, o José Santos, o "Cabeça de Vaca", boa gente, que sabia da poda...Nunca ouviu falar do "Solar dos Galegos"?
- Sim, conheci muito bem. Cheguei a lá ir nos anos setenta e oitenta e até conheci o Luiz Pacheco, na Cervejaria Trindade, que era ali ao lado.
Pois, o grande Pacheco. Nunca o compreenderam, mas ele era genial, sabe?...
- Tenho livros dele. Confirmo, tinha coisas geniais, pena ser tão destrambulhado...Cheguei a comprar-lhe aqueles livrinhos, cosidos com linha, que ele vendia na Trindade...
Sim, para a cerveja, não era?...
- Era. Pedia-nos 20 "paus" e dáva-nos um livro em troca...
Eu sei muito bem a história dele. Eu sou o "miúdo" das histórias dele...o Milú...tá a ver?
- Não me diga!
Até lhe digo mais, ele era assim, porque herdou aquele carácter do pai. O pai era rico e, a dada altura, amantizou-se com a empregada lá de casa que, dizia, era "uma brasa"!
- Essa não sabia...
Pois, o pai fez um filho à criada e deserdou o Pacheco, que ficou na miséria. Mais tarde, para se vingar, ele fez o mesmo que o pai lhe tinha feito: Fez um filho à empregada (o Pedro, que mora em Setúbal) e, para sobreviver, começou a escrever. Primeiro, comprou uma máquina Remington, daquelas com o teclado Acert (está a ver?) e, depois, folhas de papel fininho e de papel químico e, assim, começou a fazer traduções e escrever cartas para pessoas analfabetas. Nessa altura, o analfabetismo era imenso, como sabe...
- Sim, para aí uns 30% da população, ou mais...
Exacto. Ou mais! Ora, foi dessa forma que o Pacheco ganhava a vida. Mas ele escrevia de tudo. Prosa, poesia, traduções, cartas, até documentos para as Finanças e para os Tribunais.
- Sim, sim, li a biografia e isso é conhecido.
Até lhe digo mais, naquele grupo da Tertúlia, eram todos bons, mas nem todos eram famosos. Famoso era o Herberto Hélder, mas algumas das suas histórias, não foram escritas por ele...ouvia-as do Pacheco e, depois, escrevi-as ele. Eu sei, que estava lá a ouvi-los...
- Muito me conta. Bons tempos, que não voltam mais...
Sim, anos setenta, oitenta, era eu um "puto". Por isso, é que não me entusiasmam estas literatices, está a perceber?
- Estou a ver. Mas, alguma coisa ficou. Graças aos livros, não é verdade?
É verdade, sim senhor. Bem, chegámos. Obrigado pela conversa e tenha uma boa noite.
- Igualmente.
2019/05/29
Atenção: há tensão no ar!
Aristóteles terá dito que a Natureza tem horror ao vácuo e a democracia parece ter horror à abstenção. Perante o público, os políticos, sobretudo os mais sabidões e desavergonhados, simulam horror à abstenção. Mas a verdade é que a abstenção facilita, em muito, a vida política institucional nas democracias do tipo da que temos. Ao contrário do que os abstencionistas ingenuamente crêem, para os políticos com carteira profissional, o melhor mesmo seria votarem neles próprios, sem intervenções terceiras, para garantir a manutenção ou alargamento das suas benesses. Quanto menos confusão, melhor. Durante 48 anos Portugal viveu, justamente, daquilo que podemos designar por abstenção funcional. Sob o ponto de vista prático, não estamos longe disso.
A abstenção foi a grande vencedora da eleição para a Europa, e isso foi claro em Portugal. Ignoro nesta altura se houve valores mais elevados da abstenção noutros países. Mas aqui a abstenção tem um significado que parece estar a ser mal lido.
Vamos ao que interessa. Aqui no território luso, alguns comentários que li e ouvi merecem atenção. Uma faixa de eleitores que eu situaria entre os 20 e os 40 anos, votando ou abstendo-se, não deixou de se manifestar contra esta eleição. Sentem-se descontentes, marginalizados, desprotegidos, desesperançados, impotentes. Não votaram, mas fizeram-no de forma totalmnte consciente. Esta é a geração que vai preceder a geração que vai ter de gramar com a crise ambiental sem retrocesso e a quem vai faltar tudo para continuar a apostar no crescimento sem limite.
Os sinais da reacção destes eleitores são claros. O seu afastamento da democracia é profundamente preocupante. Esta eleição dirá pouco a este grupo de eleitores, mas tudo indica que o afastamento se alastrará às outras.
Os mais velhos, a geração do poder, os que montaram ou sustentam todo este gigantesco esquema de Ponzi em que vivemos e de que alguns, em exercício da mais pura e criminosa hipocrisia, se queixam, são exactamente aqueles a quem a abstenção dá imenso jeito, que não querem mudar as coisas, que não se querem mudar a si próprios e teimam em continuar a agir de forma criminosa nos diversos sectores da nossa vida colectiva, como se o mundo tivesse parado há 40 anos e assim fosse ficar.
Na minha opinião, os donos da actual democracia vão levar com toda esta gente em cima não tarda nada. São 70%, lembre-se, terão esse peso a seu favor. Tendo em conta a forma pouco articulada como exprimem muitas vezes as suas posições e a notória falta de organização, os tempos não serão fáceis para eles, mas que vamos caminhar para um momento de ruptura real e para um contronto, isso parece-me inequívoco. Não é um proble a fácil de resolver: recusar dar aval ao arremedo de democracia ou participar para não a fragilizar ai da mais.
Em qualquer caso, esta eleições europeias, estas singelas, desvalorizadas, quase desapercebidas, eleições europeias, são uma lição. Uma lição escondida da qual ninguém parece querer extrair as devidas conclusões.
2019/05/27
Resultados das Eleições Europeias, confirmam sondagens
Vitória do PS (Partido Socialista), BE (Bloco de Esquerda) e PAN (Partido dos Animais e da Natureza).
Derrota do PSD (Partido Social-Democrata), CDS (Centro Democrata-Cristão) e CDU (Partido Comunista+Verdes).
Fora do Parlamento Europeu, ficam os novos partidos "Aliança" (liberal de direita) e "Basta!" (extrema-direita xenófoba) que, há um mês atrás, chegaram a ser referidos como potenciais ganhadores.
Contas feitas, o PS conseguiu 33,4% dos votos (9 deputados), o PSD 21,9% (6 deputados), o BE 9,8% (2 deputados), o CDU 6,9 (1 deputado), o CDS 6,2 (1 deputado) e o PAN 5,8 (1 deputado). À hora de escrevermos este texto, faltava atribuir 1 lugar de deputado, que poderá ser do PS ou do CDU.
Com este resultado, os socialistas vêem reforçada a sua liderança, já que tiveram mais votos do que a direita em conjunto (PSD e CDS), a maior derrotada da noite. Não por acaso, no seu discurso de vitória, António Costa referiu a confiança dos eleitores na actual solução governativa, o que pode indiciar uma nova "geringonça", após as eleições legislativas de Outubro. Resta saber, a quem Costa se aliará, caso obtenha uma vitória sem maioria absoluta. Dada a quebra de votos na CDU, resta o BE e, eventualmente, o PAN, para formar nova coligação.
Sem surpresa, mas lamentável, foi o nível de abstenção (68%6), a maior de sempre desde a adesão de Portugal à UE. Como sublinhou o presidente da república, "os portugueses abstencionistas escolheram não escolher". Números dramáticos que devem fazer pensar os políticos (aqui e na Europa) sobre a forma como fazem e transmitem as suas (ideias) políticas quando governam.
Já na Europa houve resultados para todos os gostos:
Crescimento da extrema-direita nacionalista, xenófoba e anti-imigração em França, Itália, Hungria, Polónia e Bélgica; crescimento dos euro-cépticos no Reino-Unido e entrada do VOX (Espanha) e do FvD (Holanda), pela primeira vez no PE. E, bons resultados, que permitem uma contenção do crescimento dos movimentos populistas, obtidos na Holanda, na Alemanha e em Espanha, com vitórias respectivas do PvDA, da CDU, dos Verdes e do PSOE, que obrigarão a um novo (re)arranjo das bancadas parlamentares no PE, onde a maior fracção (PPE) deixou de ter a maioria. Entretanto, na Grécia, Tsipras anunciou eleições antecipadas para Julho, na tentativa de manter o governo do Syriza, ameaçado pela Nova Democracia (liberais de direita), os vencedores das eleições de ontem.
Resumindo: crescimento dos partidos de extrema-direita, ainda que abaixo das previsões (têm agora 10% dos deputados do hemiciclo europeu); menor crescimento dos partidos euro-cépticos (provavelmente "assustados", com as complicações do "Brexit"); vitórias claras dos partidos sociais-democratas, em Portugal, em Espanha e na Holanda; vitórias relativas dos liberais, conservadores e "verdes", em países como a Irlanda, a Áustria e a Alemanha.
Neste quadro, Portugal é uma excepção, sendo um dos poucos países onde os movimentos populistas e de extrema-direita são residuais. Nada mau.
2019/05/25
Eleições Europeias (eles "andem" aí...)
Nada a opôr, ainda que nalguns países se faça campanha até à vespéra das eleições (caso da Grã-Bretanha ou da Holanda), da mesma forma que, em muitos países, as eleições sejam em dias de semana (Holanda e Grã-Bretanha votaram na quinta-feira e Irlanda, Eslováquia, Letónia e República Checa, votaram na sexta); já em Portugal, vota-se ao domingo. Também não se percebe muito bem porque é que, na era digital, ainda continuamos a votar em papel (que desperdício!) quando as novas tecnologias já permitem o voto electrónico muito mais prático e seguro. É verdade que, este ano, foi autorizado o voto antecipado em Lisboa e, amanhã, haverá um teste de voto electrónico em Évora. Algo é algo.
Outra coisa que não se percebe, é como foi possível (em plena campanha eleitoral) 30.000 cidadãos poderem votar antecipadamente em Lisboa, quando 6 milhões de votantes estão, hoje, impedidos de terem qualquer actividade partidária no espaço público, só porque devem "reflectir" um dia, sobre a sua escolha política...
Isto, para não falar de milhares de portugueses (e outros estrangeiros) a viver no Reino Unido que, depois de terem votado nas últimas eleições distritais daquele país, não puderam votar nas eleições europeias, por não terem recebido o boletim de voto em tempo (!?).
Pese o número de "indecisos", sempre existente em todas as eleições, não parece que a percentagem seja suficiente para alterar a tendência observada nas sondagens publicadas ao longo do último mês. Já a taxa de abstenção (normalmente maior, em eleições europeias), será da ordem dos 60% (66% em 2014), o que é deveras preocupante. A questão da abstenção é, de resto, um problema em muitos países, pois a média europeia ronda os 55% nas eleições para o Parlamento Europeu. A abstenção, levanta ainda outro tipo de problemas, como seja a percentagem em termos populacionais, havendo exemplos em que o presidente da república de um país (Portugal, por exemplo) representar apenas 25% da população...
De acordo com diversas sondagens publicadas por estes dias, o resultado das eleições de amanhã não deve ser muito diferente das projecções publicadas pelo "Público", já que este matutino congregou as 4 sondagens principais e extraíu uma média aritmética, considerada a forma mais correcta (ainda que falível) de obter resultados aproximados. Teremos assim, uma vitória expressiva do partido do governo (PS), que obterá 33% dos votos; seguido do PSD com 23%; do Bloco de Esquerda com 9%; do PCP e do CDS, com 8% cada e a provável estreia, no Parlamento Europeu, dos partidos PAN e ALIANÇA, com 3% cada.
A confirmarem-se estas projecções, o Partido Socialista aumentará a sua representação no Parlamento de Estrasburgo, passando de 8 para 9 deputados; o PSD diminuirá a sua representação de 7 para 6 deputados; o BE aumentará a sua representação de 1 para 2 deputados; enquanto, os restantes partidos (PCP, CDS, PAN e ALIANÇA) poderão eleger 1 a 2 deputados, cada. Portugal têm, actualmente, 21 deputados no PE.
Já nos países europeus, que entretanto foram a votos (Holanda e Grã-Bretanha), as sondagens à boca das urnas (exit-polls), deram uma clara e surpreendente vitória ao PvDA (Partido Trabalhista) na Holanda e ao novo partido populista de Neil Farage (Brexit Party), respectivamente.
Difíceis de vaticinar, são as eleições em França, onde o partido de Macron (em perda acelerada de popularidade) e a União Nacional, de Marine Le Pen (com o seu discurso nacionalista e anti-imigração) se mantém num "empate técnico" imprevisível. Ao contrário, em países como a Itália, a Hungria e a Polónia (ainda que por razões diferentes) onde imperam os discursos xenófobos e nacionalistas, os partidos de extrema-direita devem ser os mais votados. Essa é, de resto, a esperança de Putin, interessado como está, no enfraquecimento da UE; assim como Bannon, ex-conselheiro de Trump e ideológo do Alt-Right americano, que aposta numa grande representação do bloco populista de extrema direita a nível europeu.
Como nos lembra Severiano Teixeira, esta semana: "Acontece que o populismo, não é uma ideologia como as outras. Ao contrário do liberalismo, do fascismo ou do comunismo, não tem uma visão global do Mundo, nem uma agenda política completa. É uma ideologia estreita, não é auto-suficiente e, por isso, surge associada a outras ideologias de esquerda e de direita (...) Em qualquer dos casos, afirmam-se sempre pela negativa. São sempre contra qualquer coisa. São, essencialmente, "anti-austeridade, anti-imigração, anticorrupção, anti-Europa". Se a estas questões juntarmos o "regionalismo", temos a agenda completa" (in "Público", 22 de Maio).
Nalguns casos (Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Vox em Espanha ou Forum voor Democratie na Holanda) vão ainda mais longe e são contra o que chamam "ideologia de género", criticando a emancipação feminina, quando advogam o regresso da mulher ao lar ou penalizando o aborto. Um verdadeiro retrocesso civilizacional, como se o regresso aos anos '50 do século passado, seja algo realizável e desejado pelas mulheres actuais.
Aparentemente, Portugal parece estar imune ao fenómeno dos populistas de extrema-direita. Resta saber, até quando. Porque a idiotice não conhece fronteiras, não vão desaparecer de um dia para o outro. Pelo contrário: vão andar por aí e há que continuar a combater, firmemente, as suas ideias. Até que desapareçam no caixote de lixo da História.
2019/05/17
Taxi Driver (17)
- Para o Rossio, para variar...
Muito bem, importa-se que tenha o rádio ligado? (no rádio, notícias sobre as condecorações de Berardo)
- Desde que o som não esteja muito alto...
O que interessa, tirar-lhe as condecorações? O que interessa é que ele pague as dívidas...
- Claro. As medalhas são simbólicas. Entretanto, os bancos recuperam os créditos mal-parados, através de taxas impostas aos clientes. Alguém há-de pagar...
Isto é uma vergonha e nós é que temos a culpa, pois somos um povo de parvos. Anda toda a gente preocupada com o pagamento de 800 milhões de euros a 100.000 professores e há um gajo que deve 1000 milhões e ninguém se preocupa!...
- É isso mesmo. O que interessa é o futebol e as notícias-sensação. Ninguém parece preocupado com o assalto aos dinheiros públicos, mas estão preocupados com um grupo profissional que reivindica os seus direitos.
Veja lá, o senhor. Eu, por exemplo, trabalho numa cooperativa de taxis. No fim-do-ano, uma pequena percentagem dos lucros, é depositada num fundo para a nossa reforma. É pouco, mas ajuda. Toda a gente concorda, mas alguns dos meus colegas dizem que o governo não deve pagar os anos "congelados" dos professores. Eu já lhes disse que, na próxima assembleia geral, ia fazer uma proposta: como o mercado está mau, a partir de agora devíamos também "congelar" os nossos salários, durante 10 anos, para ver se gostam...
- Imagino, que ninguém concordou...
Claro que não. Tenho colegas, aqui na "praça", que atingiram a idade de reforma e agora não podem deixar de trabalhar, pois o que recebem não dá para viver. No entanto, trabalharam 40 e mais anos! Como é isto possível? Claro que ninguém pode viver com uma reforma de 600 euros!
- Ordenados baixos e poucos descontos, imagino...
Isto é tudo uma farsa. Veja o exemplo dos motoristas de materiais perigosos: metade do ordenado é pago por "debaixo da mesa". Os patrões dizem que eles ganham 1200 euros, mas na folha de pagamento, só estão declarados 640 euros...
- Sim, muitas empresas utilizam essa forma para fugir aos impostos. Pagam uma parte do salário em "ajudas de custo".
Uma aldrabice pegada, mas esta gentinha não percebe isto e depois fica muito surpreendida por ter reformas baixas! Não percebem que a reforma é calculada sobre o dinheiro declarado pelo patrão e não sobre o que receberam durante os anos que trabalharam. É evidente que se o IRC for calculado sobre 640 euros, os descontos para a reforma são mais baixos do que se forem calculados sobre 1200 euros...
- É mais uma forma de economia paralela. Calcula-se que possa atingir 30% do PIB nacional...
É evidente. Não falta dinheiro, falta é controlo das contas e justiça.
- São vários os problemas, a começar pela impunidade. Os aldrabões, com dinheiro, sabem que podem pagar a advogados que prolongam os processos por décadas, que muitas das vezes acabam em nada.
Quer uma água das "pedras"? (abre uma garrafa de água). Eu vou lá trás, buscar outra...
- Não obrigado, agora vou almoçar...
Pode beber antes de almoço, que não faz mal. Eu chego a beber 4 ao dia! Não há nada melhor...
- Cuidado, que demasiada água mineral pode ser contraproducente. São águas sulforosas e prejudicam os rins. Mas, estou de acordo que as nossas águas são muito boas...
É das poucas coisas boas que temos, pode crer...
- É verdade. Temos muitas e boas. Podíamos exportá-las ou trocá-las por petróleo. Devíamos fazer uma proposta aos árabes: trocávamos água (que eles não têm) por petróleo, que têm em demasia.
Bem pensado. Porque é que não escreve a fazer essa proposta?
- Alguém já deve ter pensado nisso, imagino...
Olhe que não. Porque é que não escreve? Sei lá...ao Marcelo, ou assim...ele vai lá e vende a sua ideia...
- Capaz disso era ele. Vende tudo e o seu contrário...
Por exemplo, 1000 garrafas de água por um barril de "crude". Claro que, depois, era preciso um intermediário, a meio do percurso, para distribuir a água...
- "Intermediários", é o que não falta em Portugal. Talvez o Berardo, sei lá...
Esse, é um "génio". Era capaz de transformar a água em acções e quem tinha de pagar a água, éramos nós...
2019/05/11
Joe "babe" boy
Que o homem é um "gangster" já toda a gente sabia. Bastava ler a sua biografia e o modo como enriqueceu. Um "chico-esperto", na gíria local. Acontece, que os "chico-espertos" só chegam a determinadas posições, ajudados por outros, normalmente mais influentes ainda. Chama-se a isto patrocinato e consiste na troca de favores destinados a manter o poder recíproco, segundo a velha fórmula "faço-te uma oferta que não podes recusar" (D. Corleone). A partir daí, é sempre a subir...
Até que um dia se descobre a "tramóia" e é o cabo dos trabalhos. Foi o que aconteceu agora. Dadas as imparidades existentes na maioria dos bancos portugueses (quatro dos quais foram à falência, provocando um "rombo" de 20.000 milhões na economia portuguesa!), alguém se lembrou de publicar a lista de devedores da Caixa Geral de Depósitos, da qual fazia parte, em lugar de destaque, o "comendador" Joe Berardo. Como tudo isto aconteceu, é fácil de perceber: o homem (Joe para os amigos) pedia dinheiro emprestado aos bancos, com o qual comprava acções dos mesmo bancos, as quais serviam de caução para novos empréstimos, e assim por diante. Ou seja, o dinheiro nunca faltava, as dívidas aumentavam e o "comendador", levava uma vida de "lord". Mais, devido ao respeito que lhe tinham, agraciaram-no com uma "comenda" (porquê?) e até lhe cederam um espaço (museu Berardo) no CCB, onde está exposta a sua colecção de arte (avaliada em 800 milhões de euros) em regime de "comodato". Para além disso, o estado português comprometeu-se a doar 500 milhões de euros/ano, durante dez anos, à Fundação Berardo, para que esta pudesse renovar a sua colecção. É o que se chama um negócio leonino.
Agora que o homem foi confrontado com o arresto dos seus bens por dívidas aos bancos, viemos a saber (pelo próprio) que ele - pessoalmente - não deve nada a ninguém (!?). Isto, porque quem deve é a Fundação Berardo e outros organismos que, entretanto, foram sendo criados, em nome dos quais ele comprava as acções e pedia os empréstimos. O estado pode processar a Fundação e fazer um arresto dos bens desta, menos os quadros, que não podem ser considerados bens da Fundação, dado estarem emprestados ao estado...
E agora? Mesmo que Joe seja preso (o que duvido), temos de perceber que a sua ascensão e aceitação pelo "jet set" nacional, só foi possível dadas as relações de subserviência e bajulação que os "pares" lhe prestaram. Políticos e banqueiros. Os mesmos que, depois de terem "acreditado" no "comendador", exigem agora o seu dinheiro de volta. Se não o recuperarem, ninguém irá preso por má gestão. Pelo contrário, continuarão alegremente a prevaricar e a enriquecer, agora através de uma taxa, cobrada aos depositantes, pelo uso do Multibanco. A máfia lusitana, em todo o seu esplendor.
2019/05/02
Espanha: Recuperar a memória
Dia 27 de Abril, 12 horas da tarde. Uma vintena de homens e mulheres, concentram-se junto à entrada principal do cemitério de S. Fernando, em Sevilha. Transportam cartazes e fotos de familiares, que dispõem ao longo do gradeamento, enquanto um dos presentes coloca, a seu lado, uma bandeira republicana. Motivo: assembleia mensal do núcleo local da Associação de Recuperação da Memória Histórica (ARMH) que, excepcionalmente, reúne naquele lugar, devido à proibição de manifestações públicas em véspera de eleições, "dia de reflexão". Têm mais de cinquenta anos em média e partilham histórias, relacionadas com amigos e familiares desaparecidos, a maior parte deles executados e enterrados em valas comuns, durante a ditadura franquista. Muitas dessas vítimas estão neste cemitério, em 8 dessas valas, duas das quais já foram prospectadas. A reunião tem lugar em frente à vala 7, onde se encontram "dissidentes e judeus". Um verdadeiro "buraco negro", silenciado pela repressão fascista que, mais de 40 anos depois, permanece um dos temas malditos da democracia espanhola. A razão deste "silêncio", conhecido pelo "pacto del olvido", reside na Lei de Amnistia, aprovada por todos os partidos parlamentares em 1977, segundo a qual "todos os funcionários e agentes implicados nas violações de direitos humanos durante o regime franquista, são amnistiados". O "ponto de retorno" nesta situação, dá-se a 5 de Março de 2000, quando, durante uma investigação para escrever um livro sobre a história do seu avô, Emilio Silva encontrou um homem que sabia onde o tinham enterrrado. O avô, republicano, fora assassinado por falangistas em 1936. Com outros 12 presos, que tiveram a mesma sorte, foi enterrado numa vala comum, em Priaranza del Bierzo, Léon. Conseguiu exumá-lo em Outubro desse ano, sem ajuda do Estado e com pouco eco mediático. Mas, o primeiro passo estava dado e a exumação dos que ficaram conhecidos pelos "Os 13 de Priaranza", abriu o debate na sociedade espanhola.
"Quando abrimos a vala, não estávamos conscientes do que ia acontecer, mas aquilo despertou o interesse da sociedade pela memória histórica, sem medos e com argumentos legítimos", conta Francisco Etxeberria, médico forense e professor da Universidade do País Basco, responsável pela exumação. "Que em Espanha existissem valas comuns, no monte, com pessoas assassinadas, cujo destino nunca fora investigado, despertou uma ideia de injustiça", explica.
A partir daí, Etxeberria começou a receber telefonemas de pessoas que procuravam os corpos dos familiares, vítimas da guerra civil ou da ditadura e que faziam parte dos 115.000 desaparecidos do conflito. "A Espanha tinha milhares de valas comuns e ninguém falava disso. Eu próprio ignorava que houvesse gente enterrada fora dos cemitérios. Foi um choque", recorda.
Desse choque, nasceu um movimento civil que deu origem à ARMH, liderada por Emilio Silva e que se dedica à localização e exumação de valas comuns e a pressionar para conseguir o que estipula o direito internacional para as vítimas: verdade, justiça e reparação.
Em 2007, o governo de Rodriguez Zapatero aprova a Lei de Memória Histórica que, pela primeira vez, condena o franquismo de forma explícita. Entre outras coisas, estipulava uma "reparação moral das vítimas"; declarava a "ilegitimidade dos tribunais civis da guerra civil e das condenações por motivos políticos, ideológicos ou religiosos"; autorizava "a localização e a identificação de valas comuns"; determinava "a retirada dos símbolos de exaltação franquista"; definia que o Vale dos Caídos "não poderia exaltar a guerra civil ou a ditadura"; e garantia "o acesso a todos os arquivos públicos".
A Lei, seria contestada à direita (PP), que receava pelo julgamento de todos os responsáveis dos crimes franquistas e pela esquerda (PSOE) mais crítico, apesar da Lei nunca pôr em causa o "status quo" de uma elite franquista que continuava a existir. A Lei, seria igualmente criticada por não se adequar ao direito internacional, não satisfazer o direito da verdade e a reparação e justiça das vítimas.
Foi precisamente para tentar satisfazer esse direito à justiça que, em 2008, o juíz Baltasar Garzón abriu um inquérito e declarou que os abusos cometidos se enquadram no contexto dos crimes contra a humanidade. O Juíz atribuiu a Franco e a outros 34 dirigentes do regime, um plano de repressão e extermínio dos opositores, que terminou com mais de 100.000 desaparecidos (115.000 segundo a ONU) e se enquadra nos crimes contra a humanidade. A Espanha é o 2º país do Mundo, depois do Cambodja, com o maior número de desaparecidos.
O Ministério Público recorreu e pediu a anulação do caso, por considerar que os crimes prescreveram ao abrigo da Lei de Amnistia, de 1977. Fechava-se, assim, a porta ao julgamento.
Para Garzón, "a Lei da Amnistia, foi usada por sectores políticos e judiciais para evitar a investigação sobre os crimes do franquismo. É uma interpretação errónea, porque os crimes de lesa-humanidade não prescrevem". Afastado dos tribunais, após ter instaurado um processo ao PP por corrupção (caso Gurtel), o juíz Garzón ficou impedido de exercer a magistratura até 2012, quando foi absolvido. Entretanto, em 2010, dá entrada, num Tribunal em Buenos Aires, uma denúncia, que acusa o Estado espanhol de crimes de genocídio e contra a humanidade, com base no caso de Dario Rivas (um galego exilado na Argentina, cujo pai fora assassinado em 1936 e cujas ossadas foram recuperadas em 2005, juntamente com mais 318). As diligências do colectivo argentino de juízes (dirigido por Maria Servini), para julgarem os responsáveis espanhóis na Argentina, através de um processo de extradição, esbarraram sempre na recusa por parte do governo de Rajoy. Até hoje, nenhum dos imputados foi detido ou extraditado, apesar das pressões por parte de organismos como a ONU. O argumento era sempre a Lei de Amnistia de 1977. Foi este caso, denominado como a "Querella Argentina", que esteve na origem do celebrado documentário "El Silencio de Otros" de Almudena Carracedo e Roberto Bahar (2018). O filme, nomeado para diversos prémios, entre os quais o prestigiado Goya e o Óscar, para o melhor documentário estrangeiro, pode ser visto, actualmente, em diversas salas portuguesas.
Dezanove anos após a sua criação, a ARMH dispõe hoje de delegações em todo o território espanhol, conta com mais de 5000 voluntários (entre arqueólogos, antropólogos, médicos forenses e estudantes), tendo contribuido para a localização de 400 valas comuns e exumado mais de 150, num total de 1400 vítimas do franquismo. Uma tarefa ciclópica, muito longe de terminada e sobre a qual pesam dificuldades de todo o tipo, desde as orçamentais às políticas, os principais obstáculos à recuperação e preservação de uma memória que muitos pretendem esquecer.
2019/04/29
De Espanha, sopram bons ventos
De assinalar, ainda, a alta percentagem de votantes (75,76%), a segunda maior do século, que demonstra bem a mobilização dos espanhóis para estas eleições, antecipadas pela queda da coligação anterior (PSOE-Podemos-ERC), devido à recusa do partido catalão em aprovar o Orçamento de 2019.
Com um Parlamento (350 deputados) pulverizado e sem maioria absoluta de nenhum dos partidos, restam duas certezas: a vitória global da esquerda e a derrota global da direita, o que inviabiliza, desde logo, qualquer coligação à direita. Restam, portanto, três cenários possíveis: uma coligação de esquerda alargada, de 197 deputados (PSOE + Podemos + Compromis + PNV + CC-PNC + PRC + ERC + JXCat); uma coligação de esquerda reduzida, de 175 deputados (PSOE + Podemos + Compromis + PNV + CC-PNC + PRC); ou uma coligação "centro-esquerda", de 180 deputados (PSOE + Ciudadanos), uma espécie de "bloco central" espanhol, agora que o PP perdeu metade dos votos e Sanchez (PSOE) já recusou qualquer compromisso com os Populares.
Com estes resultados, a Espanha passa igualmente a integrar o bloco de países europeus com partidos populistas de extrema-direita (nacionalistas, eurocépticos, xenófobos, islamofóbicos e machistas) no Parlamento, já que o VOX entrou para o hemiciclo espanhol. As únicas excepções são, agora, os parlamentos de Portugal, Irlanda, Luxemburgo e Malta.
Neste novo xadrez político, não são de esperar grandes decisões antes das próximas eleições europeias, que terão lugar entre 23 e 26 de Maio. Provavelmente, só nessa altura (e dependendo dos resultados obtidos pelas diversas forças políticas em presença) Sanchez tomará uma decisão final sobre com quem irá governar. Tudo aponta para que se incline para a esquerda, desde que os partidos nacionalistas catalãs concordem em refrear os seus ímpetos independentistas. Não será fácil. Dado o crescimento exponencial do ERC (Esquerda Republicana Catalã) prevêm-se negociações difíceis.
Também para o Senado (1ª Câmara) foram eleitos 266 deputados. Nestas eleições, a vitória do PSOE foi esmagadora (141 deputados, entre votos directos e votos das regiões autónomas), o que lhe permitirá governar em maioria absoluta, sem necessitar de qualquer coligação.
Depois de semanas de agitação com o espantalho VOX, um partido "novo" de ideias velhas, a montanha pariu um rato e, pesem os receios (fundados) de grande parte dos espanhóis e dos europeus progressistas, a mobilização popular acabou por triunfar, dando novo alento às forças do progresso que estão vivas e alerta na Europa como, de resto, as recentes eleições finlandesas (com a vitória dos sociais-democratas), já o tinham demonstrado. Algo é algo.
2019/04/25
Uma data inesquecível
2019/04/20
2019/04/16
A ver passar os comboios...
Os primeiros 30 minutos da viagem decorrem sem incidentes. Em Pinhal Novo, a primeira paragem prolongada. Vejo o maquinista atravessar a carruagem em passo acelerado. Passam 10 minutos. O maquinista volta a passar, agora a correr. Através dos altifalantes, uma voz anuncia que "devido a problemas técnicos" o comboio, a partir dali, não poderá ultrapassar os 50km horários...
Preparo-me para o pior e telefono para comunicar que chegarei atrasado. Quanto tempo, não sei.
Os passageiros começam a dar algum sinal de inquietação. Uma senhora, acompanhada pelo pai, pergunta-me se chegará a tempo de apanhar a ligação, em Casa Branca, que a conduzirá a Cuba...
Não faço a mínima ideia, mas vou dizendo que poderá sempre reclamar e exigir o dinheiro do bilhete de volta. É o que vou fazer. Gera-se animada discussão na carruagem. Há mais queixosos. Todos portugueses. Os estrangeiros riem-se e perguntam-nos o que se passa...
São 11.26 da manhã (hora prevista para chegar a Évora) e ainda não chegámos a Casa Branca...
Novo telefonema, a avisar que devo chegar com mais de uma hora de atraso. Em Casa Branca, metade dos passageiros sai para apanhar a ligação para Beja. Debalde. O comboio já tinha partido...
São 14.10h. quando chego a Évora. Com 3 horas de atraso, em relação à hora prevista, num percurso que demora habitualmente 1.20h a cumprir.
Dirijo-me ao chefe da estação para expor a situação. Bilheteira encerrada (hora de almoço). No bar, informam-me que "ali, não há chefes!". Fico mais descansado. Vou almoçar com o amigo, que teve a gentileza de esperar.
Ás 15h. volto à estação. A bilheteira está aberta. Entregam-me um formulário para pedir a devolução do bilhete. Como não tenho o comigo o Número Fiscal, não posso entregar o formulário. O funcionário acalma-me: "Pode entregá-lo em qualquer estação. Não há pressa. A resposta pode durar um ano...".
Peço o "livro de reclamações" e começo a escrever, enquanto os funcionários da estação olham para mim, com cara de quem presencia um acto inédito. Aproveito para criticar o estado dos comboios em Portugal, tema recorrente de muitas críticas e reclamações. Encolhem os ombros e concordam: "pois, só investiram no betão e deixaram a ferrovia ao abandono".
É verdade. Releio alguns artigos, dedicados ao tema, publicados na imprensa portuguesa:
"De 20 projectos do plano ferroviário nacional, apresentado por Pedro Marques (ex-ministro dos transportes), 8 já deviam estar concluídos e 11 deviam estar em execução. Mas, só há 6 em obra", escreveu Carlos Cipriano, especialista em ferrovia, no "Público". Estávamos em 31 de Janeiro deste ano.
Mais à frente: "Dos 2,7 mil milhões de euros anunciados para modernizar os caminhos-de-ferro portugueses até 2020, só há investimentos em curso no valor de 158 milhões de euros, o que dá uma taxa de execução de 7%. Mas, se se retirar os 675 milhões estimados para a nova linha Aveiro-Mangualde, que já foi chumbada duas vezes pela Comissão Europeia por falta de rentabilidade, a Ferrovia 2020 reduz-se a 2 mil milhões de euros. Ainda assim, só 8,8% está em execução.
(...) O Ferrovia 2020 previa intervir em 1193 quilómetros de via férrea, dos quais 214 seria construção de linha nova e 979 alvo de modernização. Destes ultimos, só 166 estão a ser modernizados. Da linha nova, zero. Entre os investimentos mais importantes está o célebre corredor Sines-Badajoz, que implica a construção de linha Évora-Elvas, a qual deveria ter início em Janeiro de 2018, para ficar concluída em Setembro de deste ano, mas ainda não houve adjudicação" (ibidem).
A que se deve tal situação?
Com o argumento de que o interior estava despovoado e a ferrovia não era rentável, cancelaram grande parte dos comboios. Com o encerramento das vias (mais de 1000 quilómetros) e o consequente abate de comboios (muitos foram vendidos para a Argentina, por exemplo) deixaram de ser fabricadas carruagens e automotoras em Portugal e o número de técnicos foi reduzido. As oficinas fecharam e não há especialistas em quantidade para a manutenção dos comboios em funcionamento. As composições existentes têm, em média, mais de 40 anos de idade e, desde 1974, que não há investimentos estruturais no caminho de ferro. A excepção, é o Alfa-Pendular (10 composições) comprados à Fiat italiana, nos anos noventa.
"Nas últimas três décadas, as linhas de caminho de ferro, encolheram cerca de 30%, enquanto a rede rodoviária, multiplicou por nove a sua dimensão e atingiu em 2017 uma extensão total de 66% superior à da rede ferroviária. Não surpreende: entre 1999 e 2017 o investimento na rodovia foi de 19,8 mil milhões de euros, contra 6,1 mil milhões aplicados na ferrovia" (Cipriano, idem).
Grande parte das composições em circulação está "presas por arames" e, por razões de segurança, foram suprimidos, só este ano, mais de 1100 comboios. Trás-os-Montes e o Alentejo, foram as regiões mais prejudicadas.
"O desastre da ferrovia é uma das falhas mais nítidas da gestão de infra-estruturas por parte do Governo. O estado deplorável das linhas ou do material circulante resulta de um longo processo de abandono no qual todos os governos das últimas décadas, têm responsabilidade", acusa Manuel Carvalho, director do "Público", em editorial dedicado a este tema. Não podia estar mais de acordo. Enquanto espero pela resposta da CP, vou continuar sentado...
2019/04/11
Consanguinidades
A coisa teria começado há cerca de dois meses atrás, quando o primeiro-ministro, aproveitando a aprovação do último Orçamento de Estado, decidiu substituir diversos membros do seu gabinete, numa tentativa de "refrescar" o governo com vista ao ciclo eleitoral que se avizinha. Até aqui, nada de anormal (todos os governos o fazem) e as substituições foram globalmente bem aceites e até elogiadas.
O "problema" surgiu, quando foram conhecidos os nomes dos novos ministros e secretários de estado e se percebeu que, muitos deles, eram familiares em primeiro grau (filhas, esposas, irmãos, etc.) de governantes em exercício de funções, o que levou alguém a comparar o actual gabinete a uma família que almoçava e dirigia o país em conjunto...
De facto e analisando a composição do actual governo, não podemos deixar de nos espantar:
Mariana Vieira da Silva, ministra da Presidência, é filha de José Vieira da Silva, ministro da Segurança Social; José Gomes Cravinho, ministro da Defesa, é filho do ex-ministro João Cravinho; António Mendonça Mendes, secretário de estado dos Assuntos Fiscais, é irmão de Ana Catarina Mendes, secretária-geral adjunta do PS; Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, é marido de Ana Paula Vitorino, ministra do Mar. Esta, por sua vez, escolheu o advogado Eduardo Paz Ferreira, marido da actual ministra da Justiça, Francisca van Dunem, para negociar a concessão do terminal de Sines; Maria Manuela Leitão Marques, ex-ministra de modernização e actual candidata a deputada no PE, é mulher do ex-deputado europeu Vital Moreira; A mulher do eurodeputado Carlos Zorrinho, Rosa Matias Zorrinho, ex-secretária da saúde, foi nomeada para o Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Lisboa; Nélson de Sousa (ex-assessor de António Costa na CML) vai para secretário-de-estado, onde já trabalha Pedro Siza Vieira, seu amigo, no ministério de Energia; Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e Habitação, nomeou a sua mulher para uma secretaria de estado, etc...Isto, para citar os mais conhecidos. A lista, entretanto divulgada, já vai em 40 nomes!
A oposição (leia-se, direita) indignou-se e Cavaco Silva aproveitou para declarar que, no tempo dos seus governos (1985-1995), isto nunca tinha acontecido (!?). Ora, como bem demonstrou o insuspeito "Observador", foram quinze as nomeações, entre cargos políticos e familiares directos, durante o seu mandato.
Lembremos:
Maria dos Anjos Nogueira, mulher do ministro da Presidência e da Defesa, Fernando Nogueira; Sofia Marques Mendes, mulher de Marques Mendes, para a secretaria de estado de Agricultura; Margarida Cunha, mulher do ministro de Agricultura, Arlindo Cunha; Maria Filomena de Sousa Encarnação, mulher de Carlos Encarnação, para adjunta do secretário geral da Cultura, Sousa Lara; Regina Estácio Marques, mulher de Pedro Estácio Marques (assessor de Cavaco), para secretária de Carlos Encarnação; Fátima Loureiro, mulher de Carlos Loureiro, para a Administração Interna; Eduarda Onorato Ferreira, irmã de José Onorato Ferreira, chefe de gabinete de Cavaco Silva; Isabel Elias da Costa, mulher de Elias da Costa, secretário de estado das Finanças; Teresa Corte-Real Silva Pinto, irmã do secretário de estado de modernização; Isabel Ataíde Cordeiro, mulher de Manuel Falcão, chefe do gabinete de Santana-Lopes; Margarida Durão Barroso, mulher do ex-secretário de estado nos Negócios Estrangeiros, Durão Barroso, entre outros menos conhecidos...
É isto normal? Parece-nos bem que não, ainda que se possa argumentar que, todos os escolhidos, têm currículos invejáveis e sejam altamente competentes. Mas, então, não há mais ninguém competente neste país, para além dos familiares, certamente de confiança política? Haverá, com certeza e, em si, a confiança política fortalece a coesão governamental.
Portanto, o argumento, tem de ser outro.
Como bem demonstrou Francisco Louçã, o poder (social e económico) fortalece-se através das famílias. O autor investigou, conjuntamente com Jorge Costa e Teixeira Lopes, para o livro "Os Burgueses" (Ed. Bertrand, 2014), o percurso profissional de todas as pessoas que foram ministros ou secretários de estado nos 19 governos constitucionais desde 1976 até 2013, exceptuando os dois últimos governos (Passos/Portas e o actual). Do PSD foram 296 governantes, do PS 295, e do CDS 54, havendo ainda 81 independentes. Verificou que algumas empresas foram a "escola" dos partidos que mais governaram.
"Como nos interessava em especial essa ligação dos governantes, medida pela presença em conselhos de administração, antes ou depois ou antes e depois do cargo público, verificámos se havia uma diferença notória entre os trajectos de gente do PS e do PSD nessas relações. Sim, há diferenças, mas ligeiras: dos governantes do PS, 47% tinham ou criaram ligações com as empresas, ao passo que o número sobe para 64% no PSD. Nos governos Durão Barroso-Paulo Portas e Santana-Lopes-Paulo Portas chegou a haver quatro governantes com ligações empresariais para um que não as tivesse. E o actual é o primeiro governo do PS que não tem um representante destacado no Grupo Espírito Santo (que, entretanto, deixou de existir).
Destes 776 governantes, 230 foram da finança para o Governo ou saíram do Governo para a finança, ao longo da sua vida. O PSD tem vantagem nesta corrida, pois aí se encontram 75 governantes do PS, mas 102 do PSD. Se cuidarmos da evolução de todos os ministros das Finanças, temos que 14, entre 17, prosseguiram ou fizeram carreira em instituições financeiras. No PSD, foram quase todos: oito em nove. No PS, idem: seis em oito. Os ministros das Finanças vão para as finanças, parece ser o seu destino garantido e, entre todos os governantes, um em cada três teve ou passou a ter um lugar de topo na finança.
Se registarmos as relações com os grandes grupos económicos, estes albergam 53 governantes do PS e 90 do PSD. Se se tratar especificamente das empresas PSI20 (cotadas em bolsa), foram 51 do PS e 68 do PSD. Se olharmos em contrapartida para as parcerias público-privadas, o mapa tem uma diferença um pouco mais acentuada, 35 do PS e 53 do PSD. (...) Depois de saírem do Governo, temos 79 do PS e 83 do PSD e do CDS: um em cada quatro dos governantes de todos os governos constitucionais não era e passou a ser administrador. Estas pessoas foram para a finança (113), para a industria e energia (92) e para o imobiliário e comunicações (43 cada).
(...) O argumento segundo o qual o PS tem de recrutar governantes entre familiares que têm o mesmo percurso partidário, porque esse é o seu meio natural, ao passo que o PSD os vai buscar a empresas, onde se move mais à vontade, cai portanto por terra. Ambos os partidos, cada um à sua maneira, têm cultivado intensas relações empresariais, que lhes devolvem o cuidado recrutando os seus dirigentes e ex-governantes para cargos de topo" (Louçã, Francisco: "A família que importa mesmo é o negócio" (in "Expresso" d.d. 30 de Março 2019).
Perceberam, agora?
Como diria o (saudoso) Zeca: "Isto é genético, pá!".
2019/03/28
O eterno retorno do fascismo (6)
É o caso do VOX (Espanha), fundado em 2013 por dissidentes do PP, que acusam de estar minado pela corrupção e de ser pouco firme na questão catalã, considerada uma ameaça para a unidade nacional. Após um período de hibernação e de pouca expressão nacional (elegeu 1 deputado provincial), o VOX cresceria 20% em 2017, devido ao atentado terrorista em Barcelona e ao processo independentista catalão. Embalado por este êxito e aproveitando a realização de eleições intercalares na Andaluzia, o novo partido surgiria na praça pública com um programa "renovado", que expressa bem a ideologia que defende: condena o aborto, condena o matrimónio de pessoas do mesmo sexo, é contra a exumação dos restos mortais de Franco, é contra a Lei de Memória Histórica (que denuncia os crimes do franquismo), é contra o islão, a favor de imigração por quotas, contra o multiculturalismo, defende a centralização do estado e o nacionalismo espanhol. Com este programa, apresentou-se às eleições regionais de Dezembro último, tendo conquistado 10% dos votos e eleito 12 deputados para o parlamento andaluz. Esta votação, permite-lhe apoiar a coligação de direita (PP-Ciudadanos) que, desta forma, passou a ter maioria no parlamento regional.
Já na Holanda, o Forum voor Democratie (FvD), surgido em 2016 a partir de um "think tank" de inspiração neoliberal, conquistou 13 dos lugares em disputa para a 1ª câmara holandesa, tornando-se o partido mais votado nas recentes eleições de 20 de Março. Entre 2017, quando elegeu dois deputados para o parlamento nacional, e 2019, conheceu diversas purgas, devido à saída de alguns membros prominentes, que acusaram o partido de ser pouco democrático. Hoje, o FvD, está fortemente centralizado à volta da figura carismática do seu líder e ideólogo, T. Baudet, um filósofo de formação, cujo programa, defende menos dinheiro para as questões climatéricas, menos imigração, menos Islão, corte nos impostos, sobre as doações e as rendas, alterações radicais no ensino obrigatório, expansão das forças armadas, privatização da emissora nacional pública e reforma do sistema eleitoral. O FvD, é ainda pró-Nexit (saída da União Europeia), defende uma cultura de referendo, quer mais controlo fronteiriço e proibição do véu islâmico. Um programa populista de direita, que conquistou votos de uma grande franja eleitoral, nomeadamente da população mais idosa e dos descontentes com a política de imigração holandesa, esta semana posta em causa com um atentado terrorista cometido na ante-véspera das eleições. Contrariamente ao solicitado pelo governo (suspensão da campanha eleitoral, num país em luto), o FvD viu aqui uma oportunidade para granjear mais votos, tendo sido o único partido a fazer campanha no dia seguinte ao atentado. Entre oportuno e oportunista, que venha o diabo e escolha...
Após diversas vitórias, ainda que parciais, em países democráticos como o Reino Unido, a França, a Suécia e na Austria, na Polónia e na Hungria (onde são governo), os partidos populistas de extrema-direita, crescem na Europa onde, apenas Portugal e Irlanda, são agora as excepções.
Da Russia de Putin, à Turquia de Erdogan, das Filipinas de Duterte à Venezuela de Maduro, passando pela América de Trump e pelo Brasil de Bolsonaro, a democracia está em retrocesso e não se trata de uma opinião. Estas são, de resto, as conclusões do último relatório Freedom in the World, publicado no passado mês, pela Freedom House, uma organização independente, sem fins lucrativos, que publica anualmente um relatório sobre o estado da democracia no Mundo.
Em 2018, 68 países desceram nos índices de liberdade, enquanto apenas 50 subiram. Desceram a Hungria (suspensa pelo Parlamento Europeu por não respeitar os direitos humanos), a Sérvia, a Polónia, a Nicarágua e o Uganda. Subiram, a Etiópia, a Malásia e Angola, entre outros.
Não é o fim do Mundo, mas é bom saber reconhecer os sinais. O fascismo, ainda que sob outras designações, está em marcha e ignorá-lo pode ser fatal.
2019/03/20
Brasil-EUA: quando os "bons espíritos" se encontram
Faz sentido. Bolsonaro nunca escondeu a sua admiração por Trump, o seu ídolo.
Agora que o Brasil necessita de abrir-se ao exterior, para cativar investimentos em áreas nevrálgicas para a sua economia, nada melhor que o "amigo americano", para garantir o apoio e a cooperação de que o pais precisa.
Mas, Bolsonaro e Trump comungam outras coisas, para além de interesses económicos. Ambos são particularmente broncos, desprovidos de qualquer experiência ou visão política; não se lhes conhece uma ideia positiva, sobre questões prementes para o planeta, como o desarmamento ou o clima; ambos governam por "tweets" e usam "fake news", através das quais espalham o ódio, que é a "marca de água" de todos os seus discursos; ambos são apoiados pelas facções mais retrógadas da sociedade, desde o "Tea Party" e os "Wasp" (que defendem a supremacia branca na América), até às seitas evangélicas e os ruralistas, que pululam no Brasil; ambos são profundamente racistas e xenófobos, seja contra os negros e imigrantes (Trump), seja contra os negros e índios (Bolsonaro); ambos são notórios misóginos e criticam os movimentos de emancipação das mulheres; ambos defendem o uso de armas por civis.
Não admira, pois, que a sua estratégia, seja semelhante.
O alvo é o mesmo: fanatizar os grupos dominantes na sociedade, assustar o adversário, mobilizar os deserdados. A abordagem, também é a mesma: gerar bolsas de ódio contra indivíduos ou colectivos. Os temas escolhidos, são idênticos: queremos andar armados, a família está sob ataque (ideologia de género), os imigrantes aproveitam-se das facilidades das nossas sociedades e ficam com os nossos empregos.
Quando Bolsonaro foi eleito, em finais do ano passado, muitos analistas duvidavam que pudesse ser tão cretino, ao ponto de pôr em prática as ideias que defendeu antes das eleições. Um atentado, de que foi vítima durante a campanha eleitoral, poupou-o à humilhação nos debates, para os quais não estava manifestamente preparado. Um tosco, o Jair.
Nessa altura, as opiniões dividiram-se sobre o caminho que o presidente poderia seguir, quando fosse eleito: manter-se coerente com o seu discurso, contra tudo e contra todos, correndo o risco de ficar isolado; negociar com as bancadas dos sectores que o apoiam no Congresso, os tradicionais três "Bs" (Bala, Boi e Bíblia); ou decidir, de acordo com as matérias em discussão, tentando "surfar a onda" conforme os temas e os apoios.
Menos de três meses decorridos sobre a tomada de posse, a presidência de Bolsonaro não podia ter sido mais errática. A tal ponto que, Olavo de Carvalho, um dos ideólogos do populismo brasileiro, já veio avisar que, caso o governo não melhore, o Brasil corre sérios riscos de um golpe militar. Lembremos, que os militares, têm 8 ministros no actual governo, mais de 1/3 do total de governantes. Os casos começam a ser muitos e demasiado graves para passarem em claro: Bolsonaro (a exemplo de Trump, de resto), começou por levar a família para o governo. Um dos filhos (governador do Rio) foi, entretanto, associado às mílicias para-militares, acusadas de matarem Marielle Franco, há um ano atrás. Os alegados assassinos, já foram presos, faltando esclarecer quem foram os mandantes. O outro filho, que faz parte do governo, depois do pai ter anunciado a proclamação da Lei de Porte de Armas, foi o primeiro a exibir uma arma, em vídeo divulgado nas redes sociais. O pai, não lhe ficou atrás e declarou, após o morte dos alunos da escola em Suzano, que dormia com uma arma debaixo da almofada. Não contente com isto, divulgou um vídeo de índole pornográfica, sobre os "desmandos" do carnaval carioca, que pode valer-lhe um "impeachment". Frequentemente, as suas declarações são emendadas pelos assessores e, não raro, os ministros têm de vir desculpá-lo pelas "gaffes" cometidas. Pior, era impossível.
Conforme escreve o "El País" de hoje: "Quando o presidente assinou um decreto para facilitar a posse de armas no Brasil, a professora Marilene Umizu, escreveu numa rede social: "Estamos a favor do porte de livros, que é a melhor arma para salvar os cidadãos na educação". No dia 13 de Março, a professora Marilene, era um dos sete corpos crivados de balas no solo da escola estatal Professor Raul Brasil, em Suzano, na região de São Paulo. Bolsonaro não é o responsável directo pelo massacre. Não premiu o gatilho. Mas, deve ser responsabilizado por apertar todos os dias o gatilho com as suas palavras e actos, perante 200 milhões de brasileiros, como fez durante a campanha em que imitava uma arma com os dedos".
Um dos seus assessores, Mayor Olímpio, chegou ao desplante de declarar que "se os professores estivessem armados, podia ter-se evitado a tragédia". Entretanto, o filho mais velho de Bolsonaro, senador eleito, já apresentou o primeiro projecto-lei: A autorização para instalar fábricas civis de armas e munições.
É este Brasil que convive com o genocídio da juventude (negros na maioria, as principais vítimas) e um índice de criminalidade de 63.000 mortos por ano (a maior do Mundo), para além do silêncio que continua a pairar sobre mais de 200 mortos desaparecidos durante a ditadura militar.
Nas conversações entre Bolsonaro e Trump, não foram estabelecidos acordos, mas intenções. Sobre instalação de uma base americana em Maranhão, sobre privatizações que facilitem a entrada de capital americano no país e uma política mais flexível de taxas aduaneiras, o que obrigará o Brasil a "abrir mão" do seu proteccionismo, em troca de entrada na OMC, na OCDE e, quem sabe, na NATO (!?).
Não é pois de admirar que Bolsonaro, após o encontro com Trump, tenha declarado à Fox News que estava em sintonia com o presidente americano e que os imigrantes deviam ser impedidos de entrar no país, pois muitos deles eram criminosos.
É verdade. Os índios, que o digam!
2019/03/14
Flamenco e Bandoleros em terras de Carmen (3)
Carmen Linares, de seu nome Carmen Pacheco Rodriguez (1951), dispensa apresentações. Artista de renome internacional, ela é a voz contemporânea do Flamenco. Precisamos de recuar à legendária Niña de Los Peines (1890-1969), para encontrar tamanho talento. Nos anos setenta e oitenta, já cantava em Madrid com Camarón e Enrique Morente, onde era acompanhada por Juan e Pepe Habichuela. Participou na produção "El amor brujo" de Manuel Falla, dirigida pelo maestro Joseph Pons, tendo passado por palcos como o Lincoln Center de Nova-Iorque, a Opera Housa de Sidney ou o Albert Hall em Londres. Gravou inúmeros albuns de referência, como "Canções Populares de Lorca", "Antologia de la mujer el Cante" ou "Raíces e Alas". Cantou todos os grandes poetas espanhóis, de Lorca a Alberti, de Hernández a Machado. Alguns dos mais reputados prémios da sua carreira, incluem o Melhor Album da Academia Francesa (1991), a Medalha de Prata da Andaluzia (1998) o Prémio Musical de Espanha (2001), a Medalha de Ouro de Belas Artes (2001), o Prémio do Melhor Album de Flamenco (2008) e o Prémio da Academia de Música (2011).
Sempre que posso, corro a vê-la, com a ansiedade que caracteriza a descoberta. É assim, desde 1998, quando a contratei pela primeira vez para uma digressão em Portugal, realizada em Outubro do mesmo ano. Do programa, constavam as "Canções Populares Antigas", compiladas por Garcia Lorca e popularizadas pela mítica La Argentinita, em 1931. Uma epifania.
No dia 8 de Março, descobri que ela cantava no centenário teatro Lope de Vega, a sala de visitas da cidade de Sevilha. Como resistir? Reservados os lugares, lá fomos, para assistir à apresentação do seu último e aclamado album "Verso a Verso", baseado em poemas de Miguel Hernández.
Hernández, um dos nomes maiores da geração de '27, da qual faziam parte Garcia Lorca e Rafael Alberti, teve uma vida dramática. De origem camponesa, foi pastor, após ter deixado os estudos para ajudar a família. Tornou-se auto-didacta, nunca deixando de estudar e escrever para diversas publicações da época. O seu primeiro livro, "Perito en Lunas" (1933), foi publicado em Madrid, onde entretanto conseguira um emprego. A Guerra Civil veio interromper um dos seus períodos mais criativos. Juntou-se ao 5ª Regimento, como voluntário, ao lado dos Republicanos. Datam dessa época, alguns dos seus mais conhecidos escritos: "Elegia a Ramón Sijé" (1934), "El Rayo que no Cesa" (1936), "Viento del Pueblo" (1937) e "El Hombre Acecha" (1939), que incluem poemas memoráveis como "Andaluces de Jaén", "El Niño Yuntero" e "El Herido". Após a guerra, conseguiu escapar, mas, ao regressar à sua terra natal (Orihuela), seria preso, libertado e preso de novo. Os dois anos que passou entre prisões, aproveitou para escrever os poemas que fazem parte do "Cancionero Y Romancero de Ausencias", obra-maior da sua produção. Desta compilação, fazem parte composições fundamentais como "Nanas de la Cebolla", "Llegó con tres heridas" e "El sol, la rosa y el niño". Após ter-lhe sido diagnosticada uma infecção pulmonar, morreria em 1942, com a idade de trinta e nove anos.
Foram os poemas, deste poeta maior da língua espanhola, que Carmen Linares apresentou em Sevilha, perante uma sala praticamente esgotada. Um concerto algo desigual, onde a cantora, após um início contido, na interpretação do lindíssimo poema "Para La Liberdad" (bulerias), avançaria para as canções mais dramáticas "Andaluces de Jaén" (peteneras y tarantas), "Compãnero" (cantes de Levante), "Canción de los Vendimiadores" (alegrias) e as versões musicais de "Casida del Ciedo" e ""llegó con tres heridas", os momentos altos do concerto, nos quais foi acompanhada pelo trio constituido por Josemi Garzón (contrabaixo) Karo Sampala (percussão) e Pablo Suárez (piano). O concerto, sempre a subir, não terminaria sem os habituais "encores", com a cantora a interpretar canções populares espanholas, entre as quais, os clássicos "Anda Jaleo" (buleria) e "Sevillanas del siglo XVIII" (Sevilhanas). Uma soirée para recordar.
2019/03/13
Flamenco e Bandoleros em terras de Carmen (2)
Foi essa sensação que sentimos, ao chegar pela primeira vez à praça principal da cidade, que desemboca na "puente nuevo" (construída no século XVIII) a ligação da parte moderna, vibrante de vida e comércio, à parte antiga, com os seus edifícios de origem românica e árabe. Ronda é também atravessada pelo rio Guadalevín, cujo caudal provocou uma fenda (El Tajo) com 120 metros de profundidade, o mais conhecido "ex-libris" da cidade. Olhando para baixo, é a vertigem. Olhando para o Sul, podemos avistar, no horizonte, a cordilheira que separa a planície da orla marítima. Marbella dista apenas 54km. Não é Xanadu, mas quase.
Percebemos agora, melhor, a frase de Orson Welles, que passou longos períodos em Ronda e cujas cinzas permanecem, por seu desejo, na herdade do amigo e toureiro Ordoñez, situada a 6km da cidade: "A man does not belong to the place he was born in, but to the place he choose".
Welles não foi, no entanto, o único americano famoso a apaixonar-se por Ronda. Também Ernest Hemingway, que cobriu a guerra civil espanhola como "reporter", ao lado dos republicanos, voltava frequentemente a Espanha, para assistir às touradas, de que era aficcionado. Alguns dos seus mais famosos livros ("Por Quem os Sinos Dobram", "Death in the Afternoon", "The Dangerous Summer"), foram escritos em Ronda. A cidade não esqueceu a passagem destes dois ícones da cultura americana e retribuiu da melhor forma, honrando-os com bustos, que podem ser admirados no parque principal, ao lado da famosa praça de touros, uma das mais antigas e importantes de Espanha. Na praça, inaugurada em 1785, existe ainda um museu e uma escola de equitação, que recebe a visita de milhares de turistas diariamente. Todos os anos, em Setembro, realiza-se a famosa corrida "Goyesca" (única em Espanha) na qual os toureiros se apresentam vestidos com trajes de famosas pinturas de Goya. Foi aliás, nesta praça, que Francesco Rosi filmou as cenas finais de "Carmen" (1984), considerada uma das melhores adaptações cinematográficas da famosa ópera de Bizet. Por Ronda, se apaixonou o poeta austríaco Rainer Marie Rielke (1875-1926), que viveu na cidade entre 1912 e 1913. O hotel Reina Victoria, onde viveu, ainda existe, mas o quarto (208) foi completamente remodelado. Restam a secretária, a cadeira e um armário, que se encontram no "lobby" do hotel.
Na impossibilidade de tudo ver, em apenas dois dias, optámos pela Real Colegiata de Santa María Mayor, um imponente complexo, mandado construir pelos Reis Católicos, sobre as ruínas da antiga mesquita Mayor de La Medina, da qual ainda é possível admirar o Arco del Mirhab e parte do muro da mesma. Impressionante, é a nave central da igreja e os seus retábulos, para além de uma importante colecção de ícones ortodoxos, que podem ser admirados no primeiro andar. Subir ao telhado, através de uma íngreme escadaria em caracol, é um sacrifício compensador. Dele se avista toda a cidade e a planície em redor. Imperdível, o pôr-do-sol.
Imperdíveis são, ainda, os "baños árabes", em perfeito estado de conservação, que podem ser visitados diariamente. Trata-se de uma adaptação dos antigos banhos romanos, que constituem uma das heranças maiores da cultura muçulmana, quando Granada era o último reduto do Islão na Península Ibérica (Séc. XII-XV). Numa das salas, pode ser visto um filme sobre a técnica de construção dos banhos e o seu funcionamento.
Dada a sua localização, Ronda foi, durante um largo período da história (Séculos XVI-XIX), um refúgio para "bandoleros", assaltantes dos viajantes que ousavam atravessar as serras circundantes. Ainda que o fenómeno existisse noutras regiões de Espanha (e de Portugal), foi na Andaluzia que ele se manifestou com maior intensidade. Não é pois de admirar, que tivesse sido em Ronda, que abriu o primeiro, e único, museu espanhol dedicado à temática dos Bandoleros e Viajantes Românticos (uma espécie de "banditismo social", à imagem do nosso Zé do Telhado). Uma verdadeira "meca", para os estudiosos do tema, que dispõe de mais de 1400 objectos, entre livros, armas, vestuário, fotos e documentação original.
O Museu, dispõe de cinco salas, dedicadas a temas tão diversos como "Os Viajantes Românticos", "Viver o Banditismo", "Os Homens e os seus Nomes", "Aqueles que os perseguiam (Guardia Civil)" e "Armas e Testemunhos escritos", para além de uma sala onde são projectados filmes e uma loja de "souvenirs" e literatura especializada, já que o tema é estudado por académicos, que se reunem periodicamente em colóquios dedicados à matéria. Lá encontrámos os nomes e as relíquias dos mais famosos representantes do bandoleirismo: Los Niños de Écija, El Tempranillo, Diego Corrientes, Francisco Jiménez e Pazos Largos, o último "bandolero", falecido na prisão em 1934. Uma verdadeira preciosidade, este museu.
2019/03/11
Flamenco e Bandoleros em terras de Carmen (1)
Antonio Canales, que tive o privilégio de ver dançar no CCB há meia dúzia de anos, é hoje considerado uma das grandes figuras masculinas do baile flamenco de sempre. Apesar de jovem (57), o seu nome já pertence ao panteão dos imortais "bailaores", ainda que os excessos e uma saúde precária o tenham forçado a abandonar a dança precocemente. Porque as homenagens se fazem em vida ("antes que lhe paguem uma miserável pensão de reforma", como escrevia por estes dias o "Diario de Andalucia") sucedem-se os espectáculos, um pouco por toda a Espanha. Foi assim, mais uma vez, no passado dia 28 de Fevereiro, no Teatro Municipal Enrique de La Quadra, em Utrera, uma das cidades-cadinho do Flamenco, situada a cerca de 30km de Sevilha.
Lá fomos, com a devida antecedência, uma vez que a sala é pequena e estava há muito esgotada. Apesar do inusitado da hora (6 da tarde) para este tipo de espectáculos, a azáfama nos arredores do teatro - um velho edifício do século passado, situado no casco histórico da cidade - era enorme. Famílias inteiras, onde não faltavam os carros de bébés e mulheres em trajes festivos que, em voz alta, como é timbre dos andaluzes, bebiam uma "caña", enquanto esperavam pela abertura das portas do teatro.
Não era caso para menos: do cartaz, entre dezenas de convidados, faziam parte nomes como Manuela Carpio, Eva la Yerbabuena, Família Farruco, Carmen Lozano (no "baile") e Remedios Amaya, Marina Heredia, Montse Cortes e Rafael Utrera (no "cante"). Um programa de luxo, reunido para uma ocasião especial. E esta era, certamente, uma ocasião especial.
Destaque para as intervenções de Carmen Lozano e da família Farruco (mãe e o filho), responsáveis pelos momentos mais altos na disciplina da dança, em especial "Farru", que em nada fica a dever ao patriarca da família, o grande El Farruco (desaparecido em 1997) e ao seu irmão mais velho (Farruquito), celebrados por Carlos Saura no filme "Flamenco". Electrizante, é o mínimo que se pode dizer da arte dos Farrucos, arrebatadora na sua técnica e dramaticidade.
O melhor "cante", ficaria guardado para duas intérpretes clássicas do género, respectivamente Remedios Amaya e Marina Heredia, que cumpriram com o profissionalismo que se lhes conhece. Uma nota ainda para "El Bomba", membro da associação que organizou a homenagem, inexcedível como "cantaor", "bailaor", "palmero" e tudo que, com uma energia transbordante, não parou durante as três horas e meia que durou o espectáculo.
Resta falar do homenageado. Presente na sala, subiria ao palco, acompanhado da sua mãe, para agradecer a homenagem num longo discurso. A noite não terminaria, sem mais uma "buleria" cantada pela senhora Canales, na qual seria acompanhada por Antonio, em breves passos de dança...
Que mais poderíamos desejar?
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