2018/08/28

Via Única

 foto Matt Dunham/AP
Sempre viajei e gostei de andar de comboio.
Porque é mais rápido, mais cómodo e menos poluente.
Nas viagens de médio-curso, porque compensa, em preço e tempo, o avião.
Nas viagens de longo-curso, porque é possível trabalhar, ir ao bar ou comer uma refeição.
Em muitos percursos, porque é ainda possível dormir num beliche-cama, com toda a comodidade.
Finalmente, foi nos comboios que estabeleci o maior número de contactos e amizades em viagens.
Ou seja, todas as vantagens e poucas desvantagens, em relação a outros meios de transporte.
De há uns anos a esta parte, graças à condição de aposentado, passei a usufruir de um desconto de 50% em todas as viagens internas e, caso possua um cartão nacional, de regalias similares noutros países europeus. É o caso da vizinha Espanha, mas há outros, com tarifas vantajosas.
Por razões que não vêm à colação, tenho viajado com relativa frequência na linha do Norte (Lisboa-Porto-Braga) e na linha do Sul (Lisboa-Faro). Mais regularmente no Intercidades e, com alguma frequência, no Alfa-Pendular.
E o que tenho observado, de há uns anos a esta parte, leva-me a concluir que as condições da ferrovia, desde o material circulante às estruturas, passando pelo pessoal disponível e atendimento, são hoje bastante piores do que há uma década atrás.
Agora, que toda a gente parece ter descoberto o estado calamitoso em que se encontra a maior parte das vias férreas (o jornal "Público" publicou, por estes dias, uma série dedicada ao caos existente nas linhas mais necessitadas de intervenção), sucedem-se as acusações ao governo actual (em função desde 2015) ou, da parte deste, ao governo anterior (2011-2015). No essencial, as críticas da oposição, atribuem a situação actual da ferroviária à política de "cativações" do Ministério das Finanças (que impedem o investimento do estado neste sector); enquanto o governo, justifica o mau estado da ferrovia, com a herança encontrada no sector, após os anos de austeridade a que o país esteve sujeito. Ou seja, por um lado o estado não investe, porque cativa o excedente-primário, para manter os compromissos com Bruxelas; por outro, sem investimento, a situação diária e os serviços vão continuar a degradar-se, pois deixaram de poder ser garantidos. 
Neste momento, parte das composições não são sequer utilizadas por falta de manutenção. Não existe manutenção suficiente, por falta de pessoal qualificado que, entretanto, foi passando à reforma e que não pode ser substituído sem haver concursos públicos e a necessária formação. Tudo isto leva tempo (anos) e, sem composições operacionais, a única forma de assegurar os serviços é reduzir a oferta, por uma questão de segurança. Entretanto, o governo anunciou a compra de novos comboios (para substituir composições com 50 e mais anos), o que obriga a concursos públicos internacionais, dado que Portugal, após o encerramento da Sorefame, deixou de construir material ferroviário. Por enquanto, a solução parece ser o aluguer de comboios a Espanha (Renfe), como aconteceu no passado. Acontece, que a Renfe já veio declarar que não dispõe de comboios suficientes para o próprio mercado, pelo que não se vislumbram soluções a curto prazo. Um ciclo vicioso.
Tudo isto podia ter sido previsto e evitado, caso Portugal tivesse optado - a exemplo da maior parte dos países europeus desenvolvidos - pela ferrovia em vez da rodovia, onde foram feitos os maiores investimentos, desde a adesão do país, à então CEE. Só no consulado de Cavaco (1985-1995), foram encerrados 1000km de ferrovia, tendência que continuou nos governos de Guterres (1995-2001) e Sócrates (2005-2011). Ao mesmo tempo foram construídos mais de 2000km de auto-estradas! Todos estes governos, sem excepção, encheram o país de auto-estradas (muitas delas, hoje, sub-aproveitadas) onde se transita pagando taxas obscenas, enquanto deixaram de investir na ferrovia, um transporte com futuro. Obviamente, estamos aqui em presença de um modelo de desenvolvimento errado, iniciado nos idos anos oitenta e cuja herança continuamos, hoje, a pagar. Resta saber se por incompetência, se por dolo. Provavelmente, por ambas as coisas.  

2018/08/23

"Silly Season" na SPA


Com o calor a apertar e o território nacional em "alerta vermelho", todos os cuidados são poucos. Os corpos ressentem-se e os neurónios não são excepção. Quando, ao calor, se juntam fenómenos paranormais, a coisa pode tornar-se perigosa. Sabemos que a "silly season" é, por definição, a época do ano mais propícia ao disparate e às notícias absurdas, mas esta é verídica e foi avançada por pessoas respeitáveis. A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) propôs, esta semana, a transladação do corpo de José Afonso para o Panteão Nacional. A razão, invocam, é o contributo desta figura maior da cultura portuguesa na história recente de Portugal e a homenagem que o país lhe deve prestar, colocando-o ao lado das "figuras prestigiadas" da nação, naquele que é o "sarcófago institucional" por definição.  Independentemente do que pode (ou não) significar o Panteão Nacional nos dias que correm, só a ideia faria o Zeca sorrir...
De facto, só quem não o conheceu poderia fazer tal proposta, mas — e isso é o mais estranho — o presidente actual da SPA (José Jorge Letria) conviveu com o cantor e conheceu-o bem melhor do que a maior parte dos seus contemporâneos. Certamente, animado pelas "melhores intenções" (agora que se fala em transladar Mário Soares e Sá Carneiro para o Panteão), o comunicado da SPA adiantava que caberia à família de José Afonso a última palavra e assim foi. Entrevistada pela TSF, Zélia Afonso (viúva do Zeca), limitou-se a declarar o óbvio: que seria a família a decidir em conformidade. Como era expectável, a família emitiu um comunicado onde rejeitava a proposta, "dado que José Afonso nunca quis receber qualquer homenagem em vida e tinha deixado bem expresso onde queria ser sepultado (campa rasa no cemitério de Setúbal), pelo que seria cumprida a sua vontade."
Assunto encerrado?
Aparentemente, não.
Instado a comentar, José Jorge Letria, declarou que a opinião da família de José Afonso não era determinante para a proposta da SPA. Como?
Mas, esta história bizarra parece não ter terminado aqui. Hoje mesmo, algumas das reacções críticas à proposta da SPA, foram simplesmente "apagadas" das páginas do FB, com a alegação que os "posts" publicados não se enquadravam na política da textos seguida pela rede "online" (!?).
Ora, como não acreditamos em bruxas, mas continuamos a pensar que elas existem, só há uma explicação "lógica" para este desatino: alguém (quem?) denunciou os autores das publicações e o "algoritmo" censurou os textos. Outra hipótese, que não deve ser descartada, é a própria SPA ter sido a instigadora da censura. Não queremos acreditar, mas que é estranho, é.
Pelos vistos, José Afonso, apesar de morto, ainda incomoda muita gente. E isso é bom.

2018/08/15

Le Pen, some-te!


A história, conta-se em poucas palavras.
Na última sexta-feira, começou a circular nas redes sociais, uma notícia sobre a eventual presença de Marine Le Pen (dirigente da extrema-direita francesa) na WebSummit, a maior feira mundial de empreendedores de plataformas tecnológicas que, pelo terceiro ano consecutivo, se realiza em Lisboa. O convite, teria sido feito pela organização irlandesa (sediada em Dublin), ao arrepio dos patrocinadores, a CML, o Turismo de Portugal e o ICEP, que acolhem e apoiam o evento com uma quantia estimada em mais de 3 milhões de euros.
Perante tal notícia, seguiu-se a natural estupefacção e reacções de repúdio, para além do silêncio dos organizadores e das instituições em questão.
No fim-de-semana, sem qualquer explicação, o nome de Le Pen, desapareceu da programação e, quando pensávamos tratar-se de mais uma "fake news" (destinada a dar publicidade ao evento), eis que surge o nome da francesa de novo, agora anunciada como oradora no painel principal de convidados.
Novos protestos, agora noticiados pela Comunicação Social. Da parte do governo e da autarquia, seguiu-se o silêncio total.
Perante o avolumar da indignação (como assim, convidar uma fascista para discursar num evento pago pelos portugueses?), o director da WebSummit, o irlandês Paddy Cosgrave, emitiu ontem um comunicado onde, de forma sonsa e chantagista, dizia que "caso o governo português se opusesse à presença de Le Pen, ele estaria disposto a aceitar a decisão, em respeito à vontade do povo português" (!?). Ou seja, remetia a responsabilidade para o governo do país que o convidou e pagou para ele organizar o evento em Lisboa!
Obviamente, que o PM português não pode exprimir-se explicitamente sobre um evento privado, ainda que a CML, o Turismo de Portugal e o ICEP - em tanto que patrocinadores do evento - possam e devam, ter uma opinião sobre este convite.
De novo, nada se ouviu.
Ontem, os baixo-assinados contra a presença de Le Pen, começaram a circular e um partido político (BE) chegou mesmo a pronunciar-se sobre o caso, denunciando o carácter fascista e racista da oradora, cujas mensagens de ódio são inclusive proibidas pela Constituição portuguesa.
Hoje, finalmente, o Paddy lá reconsiderou e anunciou o cancelamento do convite, dada a comoção gerada na sociedade portuguesa, que ele não deseja alimentar...É sempre comovedor ver empreendedores, que defendem a livre iniciativa e são contra a intromissão do estado, servirem-se do estado quando não querem assumir a responsabilidade dos seus actos.
De facto, para além da presença indesejável da criatura, não se percebe muito bem o que viria ela cá fazer, pois não consta do seu currículo ser uma "expert" em Web ou quaisquer outras plataformas tecnológicas. Já a sua ligação a redes neo-fascistas internacionais é por demasiado conhecida, pelo que dispensa apresentações. Fez bem o Paddy, pois ainda há quem tenha memória do Fascismo por estes lados...
Em conclusão: Le Pen, some-te!     

2018/08/12

Prova de Fogo


2 de Agosto de 2018. São duas da tarde, na estação de serviço de Loulé, a primeira para quem vem de Lisboa e segue, via A22, em direcção a Vila Real de St. António. Enquanto espero pela refeição, olho o televisor que transmite as notícias do dia. O meteorologista de serviço alerta para as temperaturas esperadas no fim-de-semana, que podem atingir mais de 40º na maior parte do território (alerta vermelho). O mapa indica as regiões mais afectadas pelo calor. A zona de Monchique está a roxo. São feitas as habituais recomendações: fazer poucos esforços, procurar a sombra e beber muita água. Tento cumprir os mínimos: já estou sentado, à sombra e peço uma limonada. Lá fora, a caminho do carro, levanta-se um vento estranho e quente, a lembrar o Magreb. Os antigos chamavam-lhe "vento Soão". Por alguma razão devia ser...
Três horas mais tarde, chego a Sevilha. São 18h e os termómetros, no bairro da Macarena, marcam 42º. Relembro a primeira passagem pela cidade, corria o Verão de 1977 e a jura que fiz nesse mesmo dia: nunca mais voltar no mês Agosto. Preparo-me para o pior...
O dia seguinte, não dá sinais de abrandamento. Surgem as primeiras notícias de fogos: desde logo na serra de Aracena (perto de Huelva) e no Algarve (serra de Monchique). Um pouco por toda a Europa, da Suécia à Alemanha, as temperaturas atingem valores impensáveis. Porque Deus é magnânimo, a Califórnia também teve direito ao seu incêndio anual. Lá é sempre tudo maior (America, great again). Só o imbecil do Trump não percebe.
Refugio-me em casa, onde há ar condicionado e bebo sumo de limão. Para distrair, leio os jornais trazidos de Lisboa, que já previam o aumento de temperatura excepcional para aquele fim-de-semana. Sábado, seria o pior dia, afirmavam os jornais de referência.
Tento sair à noite e o mais longe que consigo ir é Salteras, uma vila-dormitório de Sevilha, onde supostamente a temperatura estaria mais baixa, dada a altitude do local. São 23h e estão 34 graus, menos 2º, do que na capital andaluza. É fim-de-semana e não se vê vivalma na rua. Os habitantes da cidade, ou saíram para o litoral, ou estão em casa, com o ar condicionado ligado.  Sevilha é, agora, uma cidade fantasma. O relógio em La Macarena, marca 46º.
Sábado à noite, amigos espanhóis, perguntam-me pelo fogo em Monchique. Que sei eu? Falam-me em feridos e milhares de hectares ardidos (!?). Temo o pior: será castigo de Deus, ou somos mesmo incompetentes? Entre o apreensivo e o envergonhado, pelo meu país ser falado pelas piores razões, tento uma explicação lógica para esta calamidade. Procuro, nas notícias televisivas e nos jornais "online", outras explicações para o fenómeno. O aquecimento global e a sua influência na região mediterrânica, desertificada e sujeita aos ventos quentes de África são, com certeza, uma causa que não deve ser menosprezada. A combinação de altas temperaturas, humidade relativa e ventos ciclónicos, parecem-me uma explicação razoável para a propagação e violência das chamas. Esta é a parte que não podemos controlar (quanto muito, ajudando em tanto que país, na aplicação dos Acordos de Paris). Só Trump, o imbecil, se recusa a assinar, interessado em voltar às energias fósseis, como se o Mundo pudesse andar para trás...
Quando regressei a Portugal, no dia 9 de Agosto, o fogo de Monchique ainda lavrava. Sete dias, sem parar. Nas televisões e jornais, debatem-se acaloradamente as causas e meios usados para combater o flagelo. Os "experts" são mais que muitos e parte da comunicação social não esconde um certo desalento, por não ter havido vítimas. Sim, uns mortos, vinham mesmo a calhar, pois podia ser que um ministro caísse e lá ia o governo atrás. O Marcelo já avisou: se houvesse outra catástrofe, como a do ano passado, ele seria o primeiro a demitir-se...
Estamos a 12 de Agosto e o fogo de Monchique está debelado. Balanço final: 7 dias de incêndio, 27.000 hectares ardidos (o maior fogo europeu), 41 feridos (um deles, grave), 50 casas destruídas (total ou parcialmente), 509 pessoas retiradas das suas casa, 700 pessoas afectadas que receberam apoio das equipas de segurança social. Na operação, foram utilizados 1137 operacionais, 13 aeronaves, 396 viaturas de combate, tendo ainda sido criadas 9 zonas de concentração e apoio às populações. É obra.
Este fim-de-semana, foi um rodopio. Do presidente da república, ao primeiro-ministro, do ministro da administração interna ao ministro do ambiente, do ministro da agricultura aos partidos de oposição, estiveram lá todos. Enquanto os representantes do governo exultavam, por não ter havido vítimas (não é essa a principal missão da protecção civil?), alguns populares, obrigados a sair de casa pela GNR, protestavam por terem perdido as suas casas e haveres (!?). Marcelo, o presidente dos afectos, beijava-os a todos e ouvia com atenção, prometendo uma avaliação de toda a operação, para quando terminasse o Verão. Afinal, ainda falta um mês e meio para terminar a "época dos fogos" e nunca se sabe...
Estou contente por não ter havido vítimas. A protecção civil aprendeu a lição do ano passado e esteve bem desta vez. Não se compreende as críticas daqueles que recusavam sair das casas, pondo as suas vidas em perigo. Entre salvar bens materiais e vidas humanas, não pode haver hesitação.
Obviamente, que perder casas, animais e plantações agrícolas, é sempre doloroso. Muitas daquelas pessoas já não voltarão à agricultura. Mas, uma casa pode reconstruir-se sempre e haverá apoios para recomeçar uma nova vida. Não perceber isto e criticar esta intervenção do governo, é ajudar à onda de populismo que a oposição, à falta de alternativas, tenta cavalgar a todo o custo.
Outra coisa, não menos importante, é a prevenção que continua a falhar, pese embora os esforços feitos no último ano. Coisas básicas como o cadastro do território, o ordenamento da floresta, o combate à desertificação e os incentivos económicos, de que toda a gente fala (mas que só uns poucos usufruem), devem estar no topo da agenda política de qualquer governo. A floresta portuguesa (que já foi a maior a nível europeu, em termos proporcionais de território), é ainda a nossa segunda maior riqueza natural (a primeira é o mar). As causas dos fogos estão estudadas e os diagnósticos apontam todos no mesmo sentido: desertificação do interior (75% da população vive no litoral); ordenamento do território (não existe um cadastro de terras a Norte do Tejo, o que dificulta a identificação e emparcelamento das propriedades); monocultura de determinadas espécies, como o eucalipto e o pinheiro bravo (o que aumenta a combustão e alimenta o fogo) e, finalmente, o aquecimento global que existe e vai aumentar. À excepção da última variável, que não podemos controlar, o governo pode tentar inverter e melhorar a situação. Fogos, existirão sempre. Trata-se de minimizá-los e para isso é preciso investir na prevenção, que é como quem diz, no futuro. Deixar o país melhor, deve ser o desígnio de qualquer político. A verdadeira "prova de fogo".    
  



  

        

2018/07/12

Taxi Driver (14)

Boa noite, então para onde vamos?
- Para a Buraca, se faz favor...
Pelo Monsanto, não é verdade?
- Sim, a esta hora, parece-me melhor. Há pouco trânsito...
Pouco trânsito? Isto até parece de dia!
- Sim, é Verão. Há muitos turistas na cidade...
Isto está cheio, amigo. Ainda por cima havia futebol no Terreiro de Paço...
- Também, também...agora, com o Mundial, é todos os dias.
Grande "jogatana", hoje. Viu o jogo?
-  Vi, mas gostei mais do jogo de ontem...
O França-Bélgica? Claro. Também eu. Mas, olhe que a Croácia também dá uns "toques"...
- Sim, sim, muito boa equipa, mas penso que não terá grandes hipóteses, contra a França, na final.
Pois não. Devem estar cansados. Tiveram dois prolongamentos, "penalties", um dia a menos de descanso...
- Nunca se sabe, mas tanto faz, agora que Portugal foi eliminado...
E bem eliminado. Não mereciam ter passado da fase de grupos.
- Se calhar, não. Fizeram os mínimos, mas esperava mais.
Olhe, amigo eu gosto muito de futebol, mas a selecção portuguesa já não me entusiasma...
- Pois. Já teve melhores dias, apesar de ser o actual campeão da Europa.
Pois é, mas deviam ter levado outros jogadores. Eu, se fosse treinador, tinha levado o Éder.
- O Éder?...
Sim, o Éder. Não o queria na minha equipa, mas na selecção...nem que fosse para jogar só 10 minutos, eu tinha-o convocado...
- Para ser franco, não me entusiasma nada...
Pois não. Já lhe disse, o Éder nunca faria parte de uma equipa que eu treinasse, mas devia ter ido à Rússia. Como talismã. Entrava, quando os outros estivessem cansados, atrapalhava os defesas e, no meio da confusão, ainda marcava um golito!..
- Quem sabe?...
Era cá uma fé. Não viu no Spartak de Moscovo? Foi ele que marcou o golo que deu o campeonato russo ao Spartak. Os russos nunca mais se vão esquecer dele..levava só o Ronaldo e punha o Éder ao lado, para marcar golos...
- E os outros?
Quais? O André Silva e o Guedes? Mas, jogaram alguma coisa? Só atrapalharam, homem...
- De facto, desiludiram um bocado. Também esperava mais...
Até o Bernardo, que fez uma grande época no Manchester, não jogou metade do que sabe...
-  Pois não...talvez estivesse cansado...
Cansado? Nada disso. Os gajos são todos uns "mimados" e passam sempre a bola ao Ronaldo, para não terem responsabilidades se falharem...
- É verdade, esta selecção está muito dependente do Ronaldo...
Essa é que é a questão. O amigo já percebeu que eu adoro futebol...podia estar aqui a falar a noite inteira. Eu também gostava da selecção, mas, de há uns anos a esta parte, não me convence. Olhe que eu cheguei a ir a Inglaterra ver a selecção em 1996. Vi 3 jogos. Nessa altura tínhamos uma selecção de luxo...
- A chamada "geração de ouro"...
Isso, a "geração de ouro": o Figo, o Rui Costa, o João Pinto, o Paulo Sousa, o Fernando Couto...
- Estou de acordo. Todos bons jogadores, mas fomos eliminados...
Sim, com o "chapéu" do Poborsky ao Victor Baía...isso, sim era uma selecção...
- Está a ver: quando jogávamos bem, éramos eliminados, quando jogamos menos, somos campeões da Europa...
Exactamente. Não merecíamos ter ganho o campeonato. Aquela fase de grupos, foi uma lástima...
- Mas, em 2000, também tínhamos uma boa selecção. Eu cheguei a ver um jogo na Holanda, contra a Turquia. A selecção, nesse ano, era treinada pelo Humberto Coelho.
Sim, sim, essa também era boa. Durou até 2002, quando fomos eliminados na Coreia. Aí começou a decadência, com aquele murro do João Pinto...
- Mas olhe que em 2004, com o Scolari, quase que éramos campeões europeus...
Pois, mas convenceram-se que iam ganhar e estragaram tudo. E a "geração de ouro", já estava no fim...o Figo estava a jogar os seus últimos anos e o Ronaldo ainda estava "verde"...
- Sim, houve ali um período de transição menos bom, mas de há uns anos a esta parte, temos uma nova geração de talentos...
Qual talento? Eles são todos muito bons, mas é nos clubes que lhes pagam! Agora, é o Ronaldo, que está muito acima dos outros e mais dois ou três: o Patrício, o Pepe, o Quaresma, vá lá...
- Os veteranos...
Claro. Ainda são os melhores. Não temos grandes talentos, convença-se disso. Daqui a dois ou três anos, já nem esses jogam e, com este treinador, não vamos longe...
- Sim, é verdade, às vezes irrita um bocado, aquele jogo mastigado...
Se irrita! É só passes para o lado, passes para trás...além disso, este ano os adversários já conheciam a forma de nós jogarmos e não conseguimos marcar golos. Marcámos aqueles 3 à Espanha, sem saber como. Se não fosse o Ronaldo, não sei, não sei...claro que contra o Uruguai, já não tivémos hipótese. Têm uma grande defesa e depois, aqueles dois "cavalões" no ataque, o Suaréz e o Cavani...Nós só temos um "cavalão", o Ronaldo... 
- É verdade.
Bom, estamos a chegar. Desculpe lá a conversa, mas já deve ter percebido que eu gosto muito de futebol...
- Não faz mal. É sempre bom desabafar. Ficamos por aqui, então. Até uma próxima vez...
Até a uma próxima. E, no domingo, que ganhe o melhor!
- Isso mesmo.

2018/07/11

A república brasileira é uma banana


Se dúvidas houvesse sobre a situação política e a justiça brasileira actuais, os acontecimentos do último fim-de-semana (relacionados com a prisão do ex-presidente Lula da Silva) bastariam para dissipá-las
O que se passou, afinal?
No passado domingo, o Tribunal Federal Regional de Porto Alegre, aceitou um pedido de "habeas corpus" para a libertação de Lula, que está a cumprir uma pena de 12 anos e um mês por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. O "habeas corpus", fora apresentado na passada sexta-feira, por 3 deputados do Partido dos Trabalhadores (PT), com o argumento de que não existiria fundamento jurídico para a prisão de Lula. Surpreendentemente, o juiz desembargador Rogério Favreto, de turno no fim-de-semana, deferiu o pedido no domingo. A reacção não se fez esperar: o juíz Sérgio Moro, responsável pela investigação e acusação de Lula, no processo Lava Jato, recusou o cumprimento da ordem, argumentando que Favreto (na sua qualidade de juíz de turno) seria "incompetente" para deliberar, sem o acordo do relator (João Gebran Neto) do Tribunal Regional Federal (TRF). 
Seguiu-se uma nova ordem de libertação, por parte de Favreto, a exigir a libertação imediata de Lula. Foi nesta altura, que João Gebran Neto, na sua qualidade de relator do processo e instigado por Moro, decidiu suspender a ordem, subscrita pelo desembargador, pela segunda vez. O argumento utilizado, foi o de "evitar maior tumulto para a tramitação do "habeas corpus", dado que a decisão foi tomada durante um turno (plantão)" pelo que só ele a poderia confirmar ou recusar.
Ou seja, Lula esteve "livre", durante duas vezes e, no mesmo dia, "regressou" à prisão, sem desta ter saído. A "saga" parece, no entanto, não ter terminado e aguardam-se os próximos capítulos deste caso singular, sobre o qual o parecer dos especialistas está dividido: enquanto Sérgio Moro, defende a decisão, com base na condenação de Lula em 2ª instância (que, na sua interpretação, permite enviar um acusado para a prisão); outros especialistas, como o juíz Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal de Justiça (que ainda não se pronunciou sobre o caso), considera a prisão ilegal, com base no estado de direito internacional, segundo o qual um acusado é considerado inocente, até o processo transitar em julgado. Como na justiça portuguesa, por exemplo.
Independentemente das interpretações da lei, a verdade é que todo o processo está inquinado desde o início, pois há muito deixou de ser apenas um processo judicial, para tornar-se um processo político, no qual os juízes possuem a sua própria agenda. Mais do que provar quem cometeu crimes de corrupção, de que toda a "elite" brasileira é hoje acusada, os juízes (com Moro à cabeça) aspiram a tornar-se uma força determinante na cena brasileira, a exemplo do que sucedeu em Itália, onde - perante o caos e a desagregação da sociedade italiana - juízes "justiceiros", como Falcone, decidiram "limpar a sociedade de políticos corruptos, com ligações à Máfia". Sabemos o que aconteceu: os partidos políticos tradicionais perderam a pouca credibilidade que ainda tinham e, em sua substituição, surgiu o populista Berlusconi que, após três mandatos e inúmeros processos em tribunal, acabaria por ser condenado por...corrupção.
Mais importante do que isto, no entanto, parece ser a completa desorientação da maioria do povo brasileiro, dividido entre o apoio a um líder popular preso, que poucas hipóteses parece ter neste momento; e um governo impopular, destituído de qualquer moral, tantos são os implicados na corrupção generalizada que atravessa o país.
O que resta?
Muito pouco e mau: à direita, as principais forças políticas estão fragmentadas e não conseguem arranjar um candidato unificador que possa destronar Lula (31% da intenção de voto). À esquerda, é notória a incapacidade em arranjar outro candidato, que não Lula, no qual o PT e as restantes forças parecem apostar todas as fichas. Entretanto, na extrema-direita populista, o candidato preferido parece ser o fascista Jair Bolsonaro (17% na intenção de votos), que é hoje apoiado pela maioria das forças evangélicas, cuja mensagem o candidato passou a utilizar com vista a obter os votos que lhe dêem uma vitória na segunda volta. Como aconteceu com Trump, na América, de resto.
As eleições são já em Outubro e, a menos que surjam novos candidatos para além dos nomes tradicionais, não há ninguém, suficientemente consensual, que possa ganhar numa primeira volta. À excepção de Lula, que está preso. Ora, parece ser essa, precisamente, a questão. Com Lula em liberdade, as probabilidades do ex-presidente se candidatar e ganhar, seriam enormes. Esse é, de resto, o medo da "elite" e da classe média brasileira, que acantonadas nos seus privilégios de classe, querem, a todo o custo, impedir o regresso do PT ao poder.
Entre o medo e o desânimo, a maioria do povo brasileiro parece descrente numa solução que possa melhorar o seu futuro. Se nada de radical mudar, o país pode vir a tornar-se uma república inviável, igual a tantas outras da mesma latitude que, num passado não muito longínquo, determinado fruto ajudou a popularizar.
   

 

2018/07/10

Tudo bem, quando acaba bem.


"All well that ends well", diria Shakespeare.
Os jovens tailandeses e o seu treinador, estão a salvo. Os últimos a sair, serão agora os mergulhadores-salvadores, que garantem a operacionalidade nas zonas submersas.
Durante a última semana, o Mundo pôde ver em directo uma das maiores e mais dramáticas operações de salvamento a nível internacional, pese embora a morte, no início das operações, de um mergulhador tailandês. Impossível não pensar nos mineiros chilenos das minas de Atacama que, em 2010, ficaram soterrados no local onde trabalhavam.
Um feito notável, tanto a nível técnico como de entreajuda e solidariedade internacional, sem a qual uma operação desta envergadura muito dificilmente seria possível.
Este acto, verdadeiramente heróico, nunca será demais realçado e passará, a partir de agora, a constituir um "case study" para futuras acções de salvamento.
Pena que os meios e a solidariedade internacional, não estejam sempre presentes em cenários não menos dramáticos e que merecem, igualmente, a nossa atenção. Desde logo, em situações onde crianças e adultos estão - por razões alheias à sua vontade - em perigo: guerras, perseguições ou tragédias climatéricas, hoje um pouco por todo o Mundo. É o caso do drama das vítimas das guerras no Médio-Oriente, dos refugiados do Mediterrâneo ou dos migrantes latino-americanos, que tentam entrar nos EUA, para citar três dos exemplos mais gritantes da última década.
Nesse sentido, a última cimeira europeia, agendada para discutir o Euro (que não chegou a ser discutido) acabou por se transformar numa cimeira sobre migrações, com cedências impensáveis de Merkel às chantagens do seu ministro do interior, apoiado pelos governos xenófobos da Itália, Áustria, Hungria e Polónia. A Europa "fecha-se" assim, mais uma vez, agora à volta de um "eixo", que cobre todo o território da Itália,  o antigo império austro-húngaro e a "grande" Alemanha, a lembrar velhos fantasmas do século passado. Sabemos da história, que o nacionalismo nunca foi boa opção e esteve na origem das duas últimas guerras. Liderados por políticos populistas, que desejam voltar às fronteiras do passado, os países do centro e Norte da Europa dão, desta forma, um exemplo negativo do que deve ser a solidariedade e o cosmopolitismo das sociedades modernas. Resta acrescentar que às (vagas) propostas dos líderes europeus citados - entre as quais a criação de centros de "contenção" e "triagem" dos migrantes que chegam à Europa, nos países a Sul e a Norte do Mediterrâneo - nenhum país ou governo se ofereceu para tê-los nos seus territórios. Sim, existe uma proposta, mas ninguém quer ficar com o ónus desta decisão. Enquanto a Europa não estiver de acordo sobre uma estratégia comum, para tentar solucionar este problema, continuarão a morrer milhares de pessoas, que não terão a atenção do Mundo, como tiveram (e bem) as crianças na Tailândia. O adiar deste problema, certamente um dos maiores da actualidade, contribuirá para acirrar os discursos de ódio e o populismo crescente na Europa. As eleições europeias do próximo ano, só conformarão esta tendência, mas pode já ser tarde.
Uma última palavra sobre as intermináveis reportagens e cobertura das operações de salvamento na Tailândia. Não fora os relatos sucintos e objectivos da Reuters, da SkyNews, da CNN e do The Guardian, estaríamos reduzidos aos comentários em estúdio de dezenas de "experts"que, ao longo da semana, foram passando pelos diversos canais e, na maior parte dos casos, se limitavam a especular sobre as dificuldades sentidas na gruta...Até especialistas, em meditação budista foram ouvidos em estúdio. Já não havia pachorra. 
Ainda bem, que tudo acabou bem.      

2018/07/05

Na rota do Flamenco (5)

Entre 1992 e 2014, desapareceram quatro dos maiores nomes da "renovação flamenca", a geração surgida no panorama musical espanhol - após a queda do regime franquista - que rompeu com o denominado "flamenco operático" e outros estereótipos do género, popularizados através dos "tablaos" para consumo turístico. Camarón de La Isla (1950-1992), Enrique Morente (1942-2010) no "cante"; Antonio Gades (1936-2004) no "baile" e Paco de Lucia (1947-2014) no "toque", foram as figuras principais desta transição que contribuiu para a renovação do "cante jondo" e a sua projecção internacional. O género deixou de ser uma arte marginal (interpretada por ciganos) e desprezada durante a ditadura, para se afirmar nos circuitos musicais de renome, sendo hoje reconhecido pela Unesco, como Património Imaterial da Humanidade.
Um longo caminho, com mais de 200 anos, onde pontuam nomes como El Planeta, Silverio, Antonio Chacón, Manuel Torre, El Fosforito, Manolo Caracol, La Niña de Los Peines, Tomas Pavón, Antonio Mairena, Fernanda e Bernarda de Utrera, Carmen Amaya, Antonio Gades, Farruco, Ramón Montoya, Sabicas, Pepe Habichuela e tantos outros...   
A vitalidade do Flamenco pode ser constatada nos inúmeros locais onde continua a praticar-se, sendo a cidade de Sevilha um bom exemplo desta popularidade. Para turistas apressados, "O Museu del Baile Flamenco" (com sessões contínuas diárias e um corpo de baile residente), situado a meio caminho entre o Centro e o Barrio de Santa Cruz, pode ser uma boa alternativa. Para os mais conhecedores, a "Casa de la Memoria" (Centro Cultural Flamenco) situada em pleno Centro (Calle Cuna), oferece sessões de flamenco tradicional, com actuações de "cante", "toque" e "baile" de muito boa qualidade. Foi lá que vimos a excelente "bailaora" La Choni e, mais recentemente, uma sessão dedicada ao "cante jondo", com Ana Real, David Bastidas e Marta "La Niña" (cante), Yolanda Osuna e Óscar de los Reyes (baile) e Raúl Cantizano (toque). Um programa para iniciados, com incursões polifónicas nas "saetas", "martinetes" e "soléas", de nível. Outra boa opção, é "CasaLa Teatro", um teatro de bolso (28 lugares), situada em pleno Mercado de Triana, no bairro do mesmo nome, junto à Ponte de Isabel II. Vimos lá um trio flamenco constituído por Carmen Lara, Celedonio Garrido e Sergio Gòmez, que valeu bem a visita.
Porque, em 22 de Junho, actuava Miguel Poveda na cidade, não resistimos ao apelo de um dos maiores nomes do Flamenco actual, que ali apresentou o seu último concerto "Enlorquecido", dedicado ao poeta andaluz Federico Garcia Lorca.
O concerto, esgotado com antecedência, teve lugar no auditório "Rocío Jurado" (inaugurado em 1991 para a Exposição Universal de Sevilha) que dispõe de 4000 lugares sentados. Pesem os preços algo exagerados e as deficientes condições de comodidade (cadeiras de plástico), o programa era aliciante e não defraudou as expectativas.
Poveda, velho conhecido do público português, tinha estreado duas destas canções no programa que apresentou aquando da sua última passagem pela Gulbenkian, no passado mês de Novembro. Desta vez, foram doze os poemas de Lorca escolhidos pelo cantor e musicados pelo pianista Joan Albert Amargós, os quais constituem a primeira parte do concerto. Excelentes músicos (13 pessoas em palco), entre os quais Amargós (no piano) e Jesús Guerrero (na guitarra), que também tinham acompanhado Poveda em Lisboa.  
Entre os clássicos "Chapéu de Três Bicos" e "Sevilhanas del Siglo XVIII", tempo para novo reportório, com "No me Encontraron", "Alba", "El Silencio", ou o pictórico "Son de Negros en Cuba". Um concerto, misto de flamenco e rock sinfónico, onde o som (óptimo) era apoiado por imagens projectadas em fundo, que sublinhavam a dramaticidade das canções, numa simbiose perfeita entre as diversas técnicas multimédia utilizadas.
A segunda parte, deu-nos a ver o Poveda, cuja carreira acompanhamos há vinte anos. Flamenco puro e duro, onde as "saetas", as "soléas" e as "seguiriyas", foram interpretadas com a mestria de alguém que domina os "palos" básicos do Flamenco como poucos. Nos "encores", tempo ainda para homenagear Camarón e Morente, com uma interpretação épica do hino "La Leyenda del Tiempo". O concerto, que duraria duas horas, terminaria com as tradicionais "bulerías", cantadas e dançadas, por todos os músicos em palco. Um magistral Poveda, no auge da sua maturidade artística.  
Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se!

2018/07/02

Na rota do Flamenco (4)

Reservámos para o fim do nosso curto périplo, a cidade de S. Fernando, vizinha de Cádiz, a capital da província do mesmo nome.
Situada à entrada do istmo, sobre o qual foi edificado o porto mais importante da Andaluzia, San Fernando - também conhecida por "La Isla" - é uma densa urbe de 97.000 habitantes, limitada a sul por uma extensa área de salinas e braços do mar, que é atravessada pelo Caño, o rio da cidade. 
Falar de Cádiz e de S. Fernando, é falar de duas das mais emblemáticas cidades flamencas de Andaluzia. De Cádiz partiram (e chegaram) as conhecidas cantigas de "ida e volta", que haveriam de influenciar os "cantes aflamencados", de origem hispano-americana: as "guajiras", as "colombianas", as "habaneras", as "milongas", as "vidalitas" e as "rumbas".
Entre os flamencos notáveis, nascidos nesta província, destaque para Manuel de Falla (compositor) Paco de Lucia (guitarrista), Sara Baras (bailaora), os "cantaores" Niña Pastori, José Llerena Ramos "El Chato" e, o maior de todos, Camarón de La Isla.
José Monje Cruz, El Camarón (1950-1992) é hoje o maior legado do Flamenco na cidade. Logo à entrada, na Praça Juan Vargas, deparamos com o monumento em sua honra, uma estátua em bronze, da autoria de Antonio Mota, fundida em 1992 e recentemente decorada com letras garrafais vermelhas, por ocasião do 25º aniversário da sua morte. O departamento de turismo criou, inclusive, um trajecto (La ruta de Camarón de La Isla), assinalado no mapa da cidade: inclui a "Casa-Museu", situada na Calle Carmén, onde nasceu e viveu o cantor; a mítica "Venta de Vargas", a "peña" flamenca onde Camarón começou a cantar aos oito anos de idade; o monumento referido; a "Fragua de Camarón", onde ele aprendeu a profissão de ferreiro; o "Mausoléu de Camarón", situado no cemitério da cidade e a "Peña de Camarón", lugar tradicional do "cante". A marca "Camarón" é, de resto, visível na maior parte dos estabelecimentos e lojas de "souvenirs", desde os artefactos mais simples aos mais elaborados (canecas, cachecóis, t-shirts, porta-chaves, estatuetas, bustos, reproduções do mausoléu...).
Porque era sábado e a "siesta" é sagrada, tivemos de aguardar pelas cinco da tarde, para visitar a Casa-Museu, ex-libris da "ruta Camarón". Trata-se de uma casa renovada, construída sobre as ruínas do pátio, onde a família do cantor viveu com mais seis famílias, em divisões minúsculas, dispondo apenas de uma cozinha e lavabos comuns, num dos bairros mais pobres da cidade. Acontece que a casa estava fechada (!?). No posto de turismo da cidade, uma simpática funcionária, informou-nos que, com a crise, o "ayuntamento" não tinha dinheiro para destacar uma pessoa a tempo-inteiro para a função, pelo que o Museu só abria em dias de festa ou nos meses de Verão, durante os festivais de Flamenco. Depois de nos contar a história da família do cantor, cujos descendentes continuam a habitar a cidade, aconselhou-nos a visitar a igreja matriz, um austero local de culto, onde, de acordo com a "lenda", o cantor ia rezar junto do nazareno vestido de roxo à esquerda da porta principal. Lá fomos, não sem antes termos preenchido o livro de reclamações do posto de turismo, na esperança de poder visitar a Casa-Museu numa próxima excursão a bela cidade de S. Fernando.
A recompensa surgiria em Sevilha, dois dias mais tarde, quando assistimos ao documentário "Camarón: flamenco y revolución", uma longa-metragem de Alexis Morante, com guião de Raúl Santos, narrada por Juan Diego, conhecido actor sevilhano. O filme, realizado em 2017, foi este ano apresentado no festival de Málaga, tendo aí recebido os maiores elogios. Nele se conta a atribulada e fascinante vida do cantor, da qual não são omitidos os aspectos mais dramáticos (dependência de drogas e a ruptura com Paco de Lucia), num estilo moderno e inovador, onde o "flash-back" e as sequências de animação, alternam com imagens de arquivo, nem sempre em ordem cronológica, mas certamente fiéis ao homem que foi El Camarón, por muitos considerado o maior "cantaor" da história do Flamenco.     
(continua)

2018/06/29

Na rota do Flamenco (3)

Centro Andaluz del Flamenco
Jerez de la Frontera, principal cidade da província de Cádiz, é o coração da rota flamenca.
Cidade monumental, onde se destacam a Catedral, o Alcázar e a antiga muralha que circunda parte do casco histórico, concentra - nos bairros de Santiago e de S. Miguel - os principais santuários flamencos. É lá que podemos encontrar grande parte das "peñas", onde diariamente cantam e tocam os intérpretes do género, para além dos "tablaos", mais vocacionados para os turistas em busca do "baile" andaluz. Registámos, só nas ruas circundantes à Plaza del Arenal (onde parámos para as "tapas" e para a "caña" habitual), as "peñas" flamencas, "Buena Gente", "La Buleria", "Antonio Chacón", "Los Cervícalos", "Garranzo" e "Tablao Flamenco Pura Arte"...

A cidade produziu inúmeros "cantaores" de nomeada, mas dois destacam-se dos restantes pela sua excepção na interpretação da arte "jonda": Antonio Chacón e Manuel Torre.

Don Antonio Chacón
Don Antonio Chacón (1869-1929) é, ainda hoje, considerado a grande figura do "cante" da primeira metade do século passado. Homem culto e estudioso, dominava a maior parte dos estilos,  ainda que fosse especialista em "granaínas", "malagueñas" e "cartageneras", o que lhe granjeou a popularidade e admiração entre os pares. Foi um dos grandes animadores dos "cafes cantantes" de Sevilha e, dele se dizia, que tinha de ser o último da noite a cantar, porque se fosse o primeiro, os clientes saiam da sala e já não queriam escutar mais ninguém. Na sua qualidade de "cantaor" e conhecedor do género, foi escolhido para presidir ao júri do 1ª Concurso de Cante Flamenco (Granada, 1922) acontecimento histórico, idealizado pelo compositor Manuel de Falla e que teve o apoio e divulgação do poeta Garcia Lorca e do guitarrista clássico Andre Segovia. De Chacón, são históricas as suas gravações em estúdio com os guitarristas Ramón Montoya e Sabicas, recentemente reeditadas numa caixa de luxo, para gáudio dos seus inúmeros admiradores. Enquanto deambulávamos pelas estreitas travessas da cidade, encontrámos, na Calle Salas 2, próximo das caves do vinho Xerez, o "Centro Cultural Don Antonio Chacón", que promove regularmente noites flamencas onde, para além do "cante", "toque" e "baile", são organizadas tertúlias sobre o tema.

Manuel Torre
Manuel Torre (1878-1933) de origem cigana, e unanimemente considerado um dos maiores nomes do "cante" de sempre, é a outra grande figura da cidade. Foi convidado especial para participar no Concurso de Granada, onde cantou "seguirias", tendo recebido variados prémios de consagração ao longo da carreira. Era avesso a gravações em estúdio e dele restam poucos registos de qualidade, ainda que as "gravações históricas", sejam um "must" para qualquer coleccionador. Um busto, recorda o homem, numa das praças da cidade.

Destaque ainda para intérpretes como La Paquera, El Torta, El Pipa e Jose Mercé, este último nomeado para os Grammy Latinos 2012, todos eles filhos de Jerez e grandes intérpretes da "arte jonda", que (à excepção de El Torta, falecido em 2013) actuam regularmente na cidade.
Em Jerez, existe ainda o único instituto de flamencologia de toda a Espanha, objectivo último da nossa visita. O instituto, entretanto rebaptizado de "Centro Andaluz del Flamenco", está alojado num antigo solar, que dá para uma pequena praça, na Calle San Juan. Alberga mais de 5000 registos escritos e fonográficos, para além de filmes, vídeos, trajes e cartazes, considerada uma das maiores colecções iconográficas do país. Porque era sábado (feriado, 31 de Maio), o Centro estava fechado.

Frustração absoluta, para quem tinha viajado mais de 100km. para visitá-lo. Resta-nos, como consolação, ter descoberto uma cidade magnífica e, agora, um novo pretexto para voltar...
(continua)
     

2018/06/27

Na rota do Flamenco (2)

A pouco mais de 30km de Sevilha, na estrada que liga a capital andaluz a Cádiz, encontram-se três das mais emblemáticas localidades flamencas, naquele que é considerado o triângulo dourado do "cante": Utrera, Lebrija e Las Cabezas. Uma região plana, de grande latifúndio, onde a criação de touros e o cultivo do tomate, constituem as principais actividades da população, considerada uma das mais pobres da região.

Para lá nos dirigimos, na acalentada esperança de um dia compensador, sabendo de antemão que a hora do dia não seria propícia a grandes revelações. Já passava do meio-dia e, quando o sol cai a pique, é melhor procurar outras paragens, como o castelo local, a magnífica Casa da Cultura (onde tivemos direito a uma visita guiada) e ao "Hospitalito", situado no antigo edifício do Convento de las Carmelitas, hoje transformado num museu famoso, onde pudemos admirar o pátio decorado com motivos "mudéjares" e largos espaços onde, em tempos, funcionaram as enfermarias.

irmãs Bernarda e Fernanda
Em Utrera, terra de nascimento das míticas irmãs Bernarda e Fernanda, as mais famosas filhas da terra, realiza-se o "Potaje Gitano", o mais antigo festival de Flamenco do Mundo (1957) que tem lugar no último fim-de-semana de Junho. O programa deste ano era de fazer crescer "água na boca", ainda que as temperaturas já ultrapassem largamente os 30 graus positivos, algo comum nesta altura do ano. Lá estarão, a partir de amanhã, El Pele, La Mañanita, Rancapino Chico, Tomás de Perrate, Inés Bacán, Tomasito, Perico El Pañero, El Galli y El Chimenea, acompanhados por Pedro Maria Peña e Antonio Higuero (toque) e Pepe Torres, Farru e María Marrufo (baile). A sessão de abertura estará a cargo de Enrique El Extremeño e haverá um debate dedicado a Enrique Montoya, nos 25 anos da sua morte. Um programa 100% cigano, como é aliás timbre do festival.

Antonio Mairena
Entre "tapas" e "cañas", tempo para deambular pelo bem conservado casco histórico da vila, à procura da "última experiência". Para o fim, estava-nos reservado o melhor. Quis o destino termos ido parar à Pérez Galdós, uma "calle" como as outras, onde, no número 11, está situada a Peña Cultural Flamenca "Curro de Utrera". Para quem não sabe, uma das mais famosas da região e lugar de culto por onde passaram todos os grandes nomes do "cante" flamenco. Um largo espaço, decorado com motivos flamencos, repleto de mesas e com um palco ao fundo, onde têm lugar as actuações e concursos, avaliados por júris que elegem os melhores em cada categoria. Nas paredes, cobertas por fotografias autografadas, lá estava Antonio Mairena (1º "chave de ouro" do "cante"), as irmãs Utrera, Paco de Lucia, Camarón, Carmen Linares ou Mayte Martín, entre dezenas de muitos outros. Os mentores da "peña", ainda que ocupados nos preparativos para a sessão daquela noite, não quiseram deixar os seus créditos por mãos alheias e disponibilizaram-nos toda a informação solicitada, tendo-nos inclusive convidado a regressar este mês, quando o "Potaje" estiver no auge.

No regresso ao centro, passagem pela Plaza de Altozano, lugar de confluência da população local que, ao fim da tarde, enche as esplanadas e confraterniza ao redor de "cañas" e de "mostachones", o doce local vendido em todas as pastelarias. Por coincidência, ou talvez não, realizava-se a Feira do Livro anual. Não resistimos e adquirimos "La Música Preflamenca", um estudo de José Miguel Hernández Jaramillo, editado pela Junta de Andaluzia, por ocasião da Bienal de Flamenco 2002. O dia estava ganho.
(continua)

2018/06/20

Na rota do Flamenco (1)


Mais do que um género musical, o Flamenco é um "modo de vida", seguido por milhares de intérpretes e aficionados em todo o planeta, o que o torna simultaneamente universal e uma industria cultural de sucesso. Poucas músicas serão de imediato tão identificáveis e arrebatadoras, seja pela força telúrica expressa no "quejio" dos seus "cantaores", seja pela destreza e coreografias das "bailaoras", elas próprias um verdadeiro ex-libris da região andaluza. Quando ambas as vertentes são acompanhadas por guitarristas de excepção (e eles são tantos!) a magia impõe-se por definição. Nesses momentos, o "duende" acontece. Assistir a um concerto de Flamenco, nos locais onde o género nasceu e se afirmou é, ainda hoje, quase dois séculos passados sobre os primeiros registos conhecidos, uma experiência única que qualquer melómano não deve perder.
Em 2003, durante uma visita a Sevilha, por ocasião da "Feira de Músicas do Mundo" (Womex), tive o privilégio de assistir ao "Festival Mundial de Flamenco" que tinha lugar paredes-meias com a Womex. Durante três dias, pude conviver e assistir a diversos "showcases" dos flamencos participantes e, se até então, a paixão já era indisfarçável, depois dessa data tornou-se uma obsessão. Nesse ano, a Junta de Turismo local, produziu um guia, composto de 1 livro, dois CDs e um desdobrável, sobre as "Rutas del Flamenco de Andaluzia" o qual, para além da história do género e de uma introdução geral sobre os diversos "palos", indicava os trajectos culturais ligados aos estilos popularizados pelos grandes mestres do género, alguns deles ainda vivos.
Por razões que a razão desconhece, e ainda que tenha voltado inúmeras vezes a Sevilha, nunca tinha tido oportunidade de fazer os trajectos sugeridos. Guardei, no entanto, o guia, para a eventualidade de um dia lá voltar. Foi agora, ou melhor, começou este ano e não vai parar...
Ainda que toda a Andaluzia seja, por definição, "terra flamenca", existem dentro das suas fronteiras lugares considerados verdadeiros "cadinhos" da arte. Dos sete trajectos sugeridos pelo guia, iniciámos a nossa peregrinação pela rota 4, intitulada "El compás de tres por quatro: los cantes básicos" (la soleá, la buleria, el flamenco y la sociedad rural). Um vasto triângulo, localizado na planície que se estende ao longo do Guadalquivir e que abrange, para além de Sevilha, Utrera, Lebrija, Jerez de la Frontera e Cádiz.
Iniciámos a nossa visita pela zona de Triana, na margem direita do Guadalquivir, hoje um bairro de Sevilha que, no século XIX, ainda era uma zona portuária afastada da cidade, maioritariamente ocupada por populações rurais e pela comunidade cigana. Foi aí, que teriam surgido as primeiras formas de flamenco, também chamadas de "cante hermético", por serem cantados em espaços fechados, normalmente em casas particulares onde só os iniciados tinham acesso. A grande revolução dá-se a partir de 1850, quando o Flamenco passa a ser cantado e escutado em estabelecimentos públicos, os chamados "cafés cantantes" ou "cafés de cante", que conheceram a sua época áurea entre 1850 e 1936. O mais célebre dos primeiros "cafés cantantes" foi o "Salón de Recreo", dirigido por Luís Botello, nos anos sessenta do século XIX, situado na Rua Tarifa, a que sucedeu uma academia de dança, instalada no mesmo local. A maior parte destes cafés apresentava espectáculos de dança (baile) que nem sempre eram anunciados como Flamenco. Um dos mais famosos, foi o "La Escalleria", criado em 1880 por Silvério Franconetti, que mais tarde abriu o "Café de Silvério". Nesse período, considerado a "idade de ouro do Flamenco", passaram pelos dois cafés os maiores nomes do "cante" andaluz. Para além do próprio Silvério, discípulo de "El Fillo", cantou no café o grande António Chacón, discípulo de outro "cantaor" fundador, Enrique Jiménez (El Melizzo). No café "El Burrero", mais um cantor de nomeada fazia, entretanto, a sua aparição: Francisco Lema "El Fosforito".
No seu apogeu, e só em Sevilha, os "cafés cantantes" eram mais de trinta, Existiam ainda cafés em Cádiz, Jerez, Segóvia, Granada, Málaga e quase todas as cidades andaluzas.
Hoje, já não há cafés. Restam as lápides, onde se assinala a sua existência nos lugares onde há cem anos imperava o "cante" e agora se homenageiam os grandes "cantaores" do passado, como Tomás Pavón (1893-1952), irmão da mítica Niña de los Peines, cuja passagem está assinalada na Alameda de Hércules, um espaço aberto que, em tempos foi um braço fluvial e onde a "movida" sevilhana começa sempre para lá das dez da noite...
(continua)

PEDOFILIA DE ESTADO!


2018/06/19

O eterno retorno do fascismo


Assistimos, nos dias que correm, a acontecimentos que julgávamos banidos da história da Humanidade, pelo menos daquela parte que considerávamos civilizada.
As imagens de milhares de migrantes que diariamente atravessam mares e fronteiras, correndo riscos que só podem ser justificados quando nada mais há a perder; ou de crianças apartadas dos seus pais, enquanto esperam pela deportação num qualquer barracão de uma fronteira norte-americana, são, para além da sua crueldade extrema, um exemplo paradigmático de regimes que, desprezando todas as regras civilizacionais e democráticas, se outorgam o direito de utilizar métodos que julgávamos banidos desde a 2ª guerra mundial. Não que, desde então, noutros países e latitudes, o autoritarismo, o racismo, a xenofobia e a discriminação, não se tenham manifestado, porventura com maior virulência e de forma brutal, como é próprio dos regimes ditatoriais, como sabemos.
O que espanta nos casos mais recentes (emigrantes africanos, abandonados pelo governo italiano e emigrantes latinos expulsos dos EUA) é estarmos perante acontecimentos passados em países e democracias sólidas, elas próprias construídas graças ao esforço e trabalho de milhões de migrantes ao longo de séculos.
Nada disto é, na realidade, novo, mas há um contexto que ajuda a explicar o aumento exponencial de tais atitudes em diversos países ao mesmo tempo.
É verdade que Trump nunca escondeu as suas intenções e anunciou-as vezes sem fim, durante a campanha eleitoral de 2016. Sempre disse que uma das suas primeiras medidas, seria a de construir um "muro", para impedir a entrada de imigrantes pela fronteira do Sul, ainda que tivesse desistido da ideia quando percebeu que o Congresso (republicanos incluídos) não estava disposto a pagar os biliões que custaria tal desvario. Da mesma forma, recuaria em outras tantas proclamações, cada qual mais disparatada do que a anterior, não porque não desejasse pô-las em prática, mas porque alguém mais "avisado" do seu gabinete, ou os próprios "checks and balances" que protegem o sistema democrático americano, o impediram.
O mesmo se passou em Itália, durante a campanha para as últimas eleições, que dariam a vitória aos partidos "Cinco Estrelas" (populista) e à "Liga Norte" (xenófobo e anti-imigração), que tendo feito campanhas anti-Europa e anti-sistema (o que quer que isso seja) desde sempre disseram ao que vinham. E ganharam. Como, de resto Trump (apesar de ter menos votos), ganhou.
Ou seja, apesar dos seus programas nacionalistas e reaccionários, conseguiram aliciar uma parte não negligenciável da população que (na falta de alternativas credíveis e descrentes das elites políticas tradicionais) optaram por votar em líderes populistas, cuja única mensagem era a recusa do "status-quo" e o ódio ao estrangeiro, bode expiatório de todos os males em sociedades com fortes componentes de imigração, ainda fortemente abaladas por uma crise económica e social, da qual não se refizeram.
O mesmo, de resto, está a passar-se na Europa "civilizada" (Hungria, Polónia, Áustria e Eslovénia) onde os respectivos governos, que incluem partidos de extrema-direita, já alteraram as constituições, advogam a diminuição dos direitos civis, querem o registo de minorias (ciganos, etc.) e a expulsão de estrangeiros ilegais. Também na Europa mais a Norte, em países onde governam coligações liberais, assiste-se com apreensão ao crescimento dos movimentos xenófobos e racistas, como é o caso de Le Pen (França), de Wilders (Holanda), ou o novo partido AfD (Alemanha).
O curioso em toda esta história, é que nenhum dos líderes dos partidos mencionados se reconhece nas práticas que caracterizam os partidos fascistas. Como bem nos lembra Rob Riemen, num seminal ensaio sobre a matéria, o fascismo novo, adapta-se aos tempos. Escreve o filósofo holandês: "Em 2004, o eminente historiador americano e especialista em história do fascismo, Robert O. Paxton, publicou a sua notável obra "The Anatomy of Fascism", onde sublinha que no século XXI nenhum fascista se designará a si próprio como tal. Os fascistas não são estúpidos e são mestres na arte da mentira. Os fascistas contemporâneos distinguem-se em parte pelo que dizem, ainda que seja importante o modo como actuam. À semelhança de Togliatti, Paxton afirma que o fascismo, devido à sua angustiante falta de ideias e ausência de valores universais, assumirá sempre a forma e as cores do seu tempo e da sua cultura. Assim, o fascismo na América será religioso e contra os negros, ao passo que na Europa Ocidental será laico e contra o Islão, na Europa de Leste, católico, ou ortodoxo e anti-semita. A técnica usada é a idêntica em toda a parte: um líder carismático, populista, para mobilizar as massas; o seu próprio grupo é sempre vítima (das crises, da elite ou dos estrangeiros); e o ressentimento orienta-se para um "inimigo". O fascismo não necessita de um partido democrático cujos membros sejam individualmente responsáveis; necessita de um líder  inspirador e autoritário ao qual se atribuem instintos superiores (as suas decisões não têm de ser justificadas), de um líder capaz de ser seguido e obedecido pelas massas. O contexto em que esta forma de política pode dominar é o de uma sociedade de massas afectada pela crise que ainda não aprendeu as lições do século XX" (Riemen, Rob: "O eterno retorno do fascismo", Bizâncio, 2012).
Só não percebe quem não quer.

2018/06/15

O populismo, pai do hooliganismo

Decorreu um mês sobre o incidente de Alcochete. Nesse dia (15 de Maio), cerca de meia centena de "alegados apoiantes", de um clube da capital, invadiram as instalações de treino da equipa principal de futebol e espancaram selvaticamente os seus jogadores e treinador, tendo ainda, durante a fuga, destruído parte do balneário e outras instalações. Algo nunca visto neste país e que, até hoje, associávamos a outros países e latitudes, normalmente fora da Europa.
Um mês decorrido, sobre este lamentável episódio, que balanço pode ser feito?
Foram detidos cerca de trinta indivíduos, que participaram nesta acção, faltando ainda apurar quem são e onde se encontram os vinte restantes; não são conhecidos formalmente os cabecilhas da acção, apesar da maioria das denuncias apontarem na mesma direcção (os líderes de uma das claques e, por extensão, a direcção do clube em causa, que autorizou e incentivou tais formas organizadas dentro das suas instalações). Finalmente, a ligação dos membros desta claque, ao tráfego de drogas, extorsão e associação criminosa, com extensões a movimentos de extrema-direita, como a própria polícia reconhece e vem a alertar há anos a esta parte.
Entretanto, no clube em causa, as recriminações sucedem-se: parte dos orgãos sociais já se demitiu, metade do plantel rescindiu unilateralmente os seus contratos e o próprio treinador (também ele, um dos agredidos) rumou a outras paragens. Os prejuízos, materiais e não só, são agora difíceis de calcular, mas irão afectar gravemente, não só o clube, mas todo o futebol português por extensão, já que o que se passou na Academia de Alcochete, podia ter-se passado noutro clube, onde a maioria dos "hooligans" (que compõem as claques) são apoiados pelas próprias agremiações e incentivados a comportamentos que extravasam o simples meio desportivo. Quando é o responsável máximo de um clube a criticar os seus jogadores e a incentivar os sócios contra a própria equipa, não nos devemos admirar dos efeitos destes discursos demagógicos e populistas nas claques apoiantes, muitas delas ligadas a práticas violentas e com cadastro criminal conhecido das autoridades. É o caso do "skinhead" Mário Machado, líder e fundador do Partido neo-nazi português (entretanto proibido) acusado e preso por diversos crimes, entre os quais o da morte do cabo-verdiano Alcindo Monteiro, no dia 10 de Junho de 1995, sobre cuja morte passou esta semana mais um aniversário (ver artigo de Rui Tavares in "Público" de 13 de Junho de 2018).
Monteiro, que passeava com outros amigos em Lisboa, foi barbaramente espancado por um grupo de "cabeças rapadas", sem motivo aparente, apenas por ser negro. O caso, muito badalado à época, terminou com a acusação e prisão dos 15 implicados nestas agressões, entre os quais Manuel Machado, condenado a dez anos de prisão, dos quais cumpriu apenas seis. Encontra-se actualmente em liberdade, tendo há poucos meses sido visto (e entrevistado por uma estação de televisão!) à saída de um restaurante, onde acabara de participar numa refrega, contra outro grupo da extrema-direita, por alegadas disputas sobre territórios de tráfego de droga. Ora, foi este mesmo Manuel Machado que - após a prisão do ex-líder da claque, que invadiu a Academia de Alcochete - anunciou, em comunicado, querer candidatar-se a líder dessa mesma claque (!?). Lemos e não acreditamos.
Os acontecimentos de Alcochete deixaram marcas e, porque um dos seus principais culpados morais  se encontra ainda em funções (deu ontem mais uma conferência de imprensa, transmitida em horário nobre pelos principais canais de televisão) é de admitir que, daqui a um mês, ainda estejamos a ouvir falar das consequências desta situação verdadeiramente aberrante, a que toda a comunicação social continua a dar cobertura, contribuindo para incendiar paixões, que há muito extravasaram o simples clubismo. O futebol profissional (não só em Portugal, de resto) deixou de ser apenas um desporto, para se tornar uma industria, que gera milhões e encobre negócios ilícitos (tráfego de influências, corrupção, fugas ao fisco, lavagem de dinheiro de drogas, etc.), como é conhecido de toda a gente.
Ora, o que fazem os governantes portugueses, perante factos e provas irredutíveis desta criminalidade organizada (dirigentes, bancos, máfias, neo-nazis), que gira à volta do futebol profissional português há décadas? Recusam falar sobre tal matéria, remetendo as questões polémicas para a justiça, para não ferir susceptibilidades, não vá o poderoso mundo do futebol (um estado dentro do estado) insurgir-se contra as críticas. Só esta semana, quatro dos principais governantes portugueses portugueses (o presidente da república, o primeiro-ministro, o ministro da educação/desporto e o presidente da Assembleia da República) irão à Russia "apoiar" a selecção nacional e, implicitamente, bajular Putin, um ditador sem escrúpulos, que é hoje o grande vencedor desta competição que se chama campeonato mundial de futebol. A promiscuidade entre o futebol e a política é total e não pode ser ignorada. Assim, não vamos lá.              
 

    

2018/05/16

O hooliganismo, filho do populismo


O que se passou ontem, em Alcochete, não tem classificação possível.
Foi, desde logo, um acto bárbaro e terrorista, praticado por um grupo de delinquentes que, em grupo e disfarçados, agrediram atletas de um clube em plena academia de treino.
Trata-se, sem dúvida, de um acto criminoso, perpetrado nas "barbas" da comunicação social, que estava presente e "condescendeu" em abandonar as instalações, sob a ameaça dos "hooligans". Desde logo, matéria para averiguação policial que, entretanto, já prendeu e levou a tribunal mais de uma vintena de implicados que se encontram em prisão preventiva. Resta, agora, aguardar pelas suas declarações e procurar perceber o que esteve por detrás desta acção colectiva, pois o acto em si indicia ter havido uma preparação prévia, o que aponta para uma "organização do terror".
Depois, e esta não é uma matéria de somenos, onde há grupos organizados há líderes, pelo que caberá à polícia esclarecer este ponto, pois podemos estar em presença de algo mais sofisticado do que uma simples claque de futebol. Não seria a primeira vez que uma claque tivesse sido infiltrada por elementos de extrema-direita (vulgo neo-nazis) um fenómeno frequente no Norte europeu e que, em Portugal, não tem tido a dimensão de outros países.
Aqui chegados, e esta é uma tarefa dos associados do clube em causa, devemos questionar-nos sobre o comportamento leviano (a roçar a psicopatia) de um presidente, que se tornou um verdadeiro incendiário das próprias hostes, qual Nero a quem só parece interessar ver "Roma a arder".
A personalidade tem antecedentes e há tratados sobre o perfil psicológico destes demagogos e populistas, que não hesitam em criar o caos para, na confusão gerada, melhor poderem exercer o seu autoritarismo. Pelos vistos, a loucura compensa e os referendos organizados só fortaleceram a legitimação do cargo. Se os sócios apoiam, é porque deve estar certo, é o raciocínio.
Finalmente: independentemente da investigação e (espera-se) pena exemplar aplicada aos prevaricadores e consequente "limpeza" dos orgãos sociais do clube, vítima destes personagens, é de esperar que as autoridades (o estado português) aproveite a ocasião para "limpar" o sujo mundo do futebol e, de uma vez para sempre, termine com esta vergonha, ainda que a tarefa não pareça fácil. Na Inglaterra e na Holanda, que foram confrontados com este fenómeno, foi possível, logo deve ser possível, também, em Portugal. Assim haja vontade e coragem política.   
  
       

2018/04/26

Entrevista a Varoufakis

foto Cyprus Mail online
O Público traz hoje uma entrevista ao economista e antigo ministro das finanças grego Yanis Varoufakis. O tal que mostrou que o Eurogrupo vai nu.
Segundo Varoufakis, a nudez, de resto e pelos vistos, mantém-se, apesar da nova liderança...
Varoufakis desceu a Avenida neste 25A.
Ler aqui.

2018/04/17

E o Brasil aqui tão perto...



Vimos, ouvimos e não queremos acreditar.
Há vinte quatro horas que o país assiste, incrédulo (falo por mim) a uma transmissão televisiva da SICn onde, a todas as horas, são emitidos diversos excertos de três interrogatórios, feitos pelo juiz de instrução Carlos Alexandre ao ex-ministro José Sócrates, no âmbito da "operação marquês", onde este é acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e fuga ao fisco.
Não tenho qualquer simpatia por Sócrates e é-me completamente indiferente que seja condenado ou não, desde que as provas e métodos, usados na investigação, sejam credíveis.
Recordemos: a "operação Marquês", que dura há 4 anos, começou por ser uma investigação à situação financeira do ex-primeiro-ministro, quando este deixou o cargo e foi estudar para Paris, onde levava uma vida considerada "acima das suas possibilidades", num apartamento de luxo, supostamente propriedade do amigo Santos Silva (dono do grupo de construção Lena) que receberia e pagaria avultadas somas de dinheiro a Sócrates. Numa fase inicial, foram detidos e ouvidos quatro suspeitos de envolvimento neste alegado caso de lavagem de dinheiro (Carlos Silva, Sócrates, o advogado e o motorista), tendo Sócrates ficado preso preventivamente (Novembro de 2014) ao abrigo da lei (perigo de fuga, contacto com os restantes arguidos e perturbação do processo). Após dez meses de prisão preventiva, o ex-primeiro ministro foi posto em liberdade e aguarda, desde então (Setembro de 2015) pelo início do processo, que ainda continua em fase de instrução.
Entretanto, nos quatro anos que mediaram desde o início deste caso, o "foco" da acusação deixou de ser Santos Silva e o grupo Lena (considerado um "testa de ferro", usado na "lavagem" de dinheiro) e passou a estar centrado noutras personalidades e empresas (PT, TVI, BES, Empreendimento Vale do Lobo) alegadamente envolvidas num esquema de corrupção mais alargado, à frente do qual estaria Ricardo Salgado (BES) e fomentado durante o governo de Sócrates. Graças a este esquema, o ex-primeiro ministro teria recebido qualquer coisa como 36 milhões de euros de subornos, que serviriam para facilitar os negócios de Salgado.  
A "operação Marquês" transformou-se, assim, num "mega-processo", já que o juiz instrutor optou por juntar todos estes casos, aparentemente sem qualquer conexão, o que atrasou as diligências do MP e obrigou a sucessivos adiamentos na instauração do caso, que continua a aguardar uma data concreta para o início das audições. A data-limite, para a defesa dos arguidos "abrir" o processo, é agora o dia 3 de Setembro próximo e as audições em tribunal (dezenas de milhares de páginas e centenas de testemunhas arroladas) só deve iniciar-se em inícios de 2019.
Escusado será dizer que, apesar do "segredo de justiça" existente, já toda a gente conhece o conteúdo da acusação, colocada de forma cirúrgica  nos principais orgãos de comunicação social do país, com destaque para o "Correio da Manhã", "Expresso" e os canais televisivos CMTV e SICn.
Ou seja, mesmo muito antes da defesa de Sócrates ter acesso ao processo, já este era conhecido nos seus detalhes pela opinião pública.
Posto isto, resta saber se o "segredo de justiça" é algo que ainda valha a pena defender e, como só há uma possibilidade do processo ter chegado à comunicação social (através do MP), perguntar o que se pretende através desta prática, completamente ao arrepio de um estado de direito que se preze.
As imagens a que estamos a assistir nas últimas 24horas, são porventura o "último degrau" na devassa da vida de um cidadão acusado, independentemente dos crimes que possa ter cometido. É também, o "último degrau" na credibilidade da justiça portuguesa, que há muito perdeu qualquer neutralidade. Quando tal é possível (não nos lembramos de ter visto algo semelhante em Portugal, muito menos num processo tão complexo como este) vem-nos à memória o Brasil de "má memória", um país onde a arbitrariedade e o atropelo dos direitos civis já faz parte da paisagem de corrupção que atinge toda a sociedade. Ainda que Portugal não seja o Brasil, nem o juíz Alexandre tenha o poder de Moro (um juiz digno da Inquisição, que usa a "delação premiada", como "prova" de acusação), a verdade é que já estivemos mais longe. Porque estas as coisas estão todas ligadas, resta saber quem está interessado em que as imagens da SICn, sejam divulgadas. A acreditar na jornalista "responsável" (!?) pela divulgação destes interrogatórios, a direcção da estação televisiva ponderou e analisou profundamente o interesse público da "cacha", antes de torná-la pública. Imaginem, se o mesmo lhe acontecia a ela, ou a qualquer de nós?...
     

2018/04/08

No país do pontapé de bicicleta


No país do "pontapé de bicicleta", os principais meios de comunicação social, dedicaram, esta semana, mais espaço e horas de televisão ao feito desportivo de um jogador de futebol e à paranóia egocêntrica de um dirigente desportivo, do que à crise na cultura, à crise brasileira, ao atentado de Munster, à guerra comercial EUA-China, aos bombardeamentos com armas químicas na Síria ou a repressão israelita na faixa de Gaza.
No país do "pontapé de bicicleta", um dos canais "informativos" (!?) mais populares, passou um excerto de uma longa entrevista do presidente Marcelo Rebelo de Sousa a um jornal galego, onde este considerou as boas "performances" económicas de Portugal, um "milagre a dois tempos" (!?): a coragem do governo anterior, ao enfrentar a crise; e os sacrifícios do povo português, que soube "compreender" (!?) a austeridade exigida. De acordo com o presidente "milagreiro", sem estes dois milagres, não haveria mérito do actual governo... 
No país do "pontapé de bicicleta" e apesar da "página da austeridade ter sido virada", os sacrifícios continuam, como alguns títulos, desta mesma semana, confirmaram: a falta de meios para a cultura e para as artes, onde um orçamento miserável de 19 milhões de euros (0,98% do PIB) é a única resposta do governo à crise do sector; a falta de meios humanos e financeiros nos hospitais;  a falta de pessoal nas escolas; ou os crimes contra o meio-ambiente, para citar apenas alguns exemplos mais gritantes.  
No país do "pontapé de bicicleta" e apesar da "página de austeridade ter sido virada" (como atestam a reposição de salários, reformas e pensões dos funcionários públicos, do "déficit" ter diminuido, da economia ter crescido e do desemprego ter baixado), o salário mínimo continua abaixo de 600euros brutos (verba prometida em 2011); o desemprego camuflado continua com precários e contratados a prazo e andará à volta dos 15% na realidade (a terceira maior percentagem da UE); o mercado de arrendamento, nas grandes cidades, tornou-se uma quimera só ao alcance de ricos (com rendas médias de 850euros em Lisboa e no Porto); a manutenção de serviços públicos (protecção civil, hospitais, escolas, transportes urbanos, meio-ambiente, etc.) deixa cada vez mais a desejar, como os repetidos acidentes, neste último ano, têm vindo a confirmar: basta lembrar o drama dos fogos (ligados à desertificação e à falta de ordenamento do território e da floresta); a crónica falta de meios humanos nas escolas e nos hospitais (que provocam esperas de anos nalgumas especialidades), ou à poluição dos principais rios portugueses, (este um verdadeiro crime ambiental, permitido por quem de direito), não falando já da falta de manutenção nos transportes públicos.  
Ou seja, pesem os bons resultados (inquestionáveis) da macro-economia, a verdade é que o país continua a funcionar a duas velocidades: por um lado, conseguem-se resultados invejáveis e elogiados por toda a Europa (o tal "milagre" de que fala o presidente); e, por outro, continuamos a "marcar passo" em áreas tão vitais para o bom funcionamento da sociedade, como as referidas acima, quando (em tese) o "saldo primário" (excedente contabilístico) obtido nos dois últimos anos, daria para investir e recuperar muitas dos atrasos estruturais de Portugal.
Porque é que isto, então, não é feito?
Muito simplesmente, porque o actual governo (na pessoa do seu ministro das finanças) considera mais importante diminuir o "déficit" e a dívida odiosa, para obter empréstimos com juros mais baixos nos mercados internacionais, do que libertar verbas do Orçamento de Estado para dinamizar o investimento e, por consequência, a própria economia.
Um plano arriscado (a chamada quadratura do círculo), onde o governo procura manter a imagem e comportamento de "bom aluno" no clube dos ricos (na procura das boas graças do Eurogrupo), ao mesmo tempo que procura manter a paz social, distribuindo migalhas do orçamento, para contentar os sindicatos e os partidos à sua esquerda, sem os quais não poderia governar.
Dado que o "jogo" (leia-se o futebol) segue dentro de momentos, as pantalhas vão voltar ao "serviço público" que melhor sabem fazer: dar mais minutos aos "pontapés de bicicleta" que é, como quem diz, continuar a "chutar a bola para canto". No fundo, a táctica das equipas medíocres. Assim, não vamos lá...

2018/04/06

Brasil: o poder dos juízes

As "tias" e os "tios" de S. Paulo, que foram para a rua bater panelas, têm saudades da ditadura...
Uns tristes, estes brancos urbanos da classe-média brasileira, que odeiam negros e tudo o que cheire a emancipação das classes mais desfavorecidas e querem fazer de Lula o "bode expiatório" de uma sociedade podre de corrupta, desta vez, com o apoio do justiceiro Moro e de um sistema justicialista ao serviço do poder político vigente.
O Brasil, a caminho de um regime populista de direita, apoiado pelos militares saudosistas de 1964.
Pobre país... 

2018/03/20

Marielle, presente!

foto Esquerda.net
Realizaram-se, ontem, em todo o país, diversas vigílias em memória da deputada brasileira Marielle Franco, barbaramente assassinada, há uma semana, na cidade do Rio de Janeiro. Em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Aveiro, Santarém, Faro e Vila Real, as comunidades brasileiras, apoiadas por milhares de portugueses e representantes de partidos políticos com assento no Parlamento, sairam à rua para denunciar mais um crime (este político) cometido pelas forças para-militares, que controlam, hoje, a cidade do Rio.
O ocorrido com Marielle, infelizmente, não é um facto isolado. Em cada 100 pessoas assinadas no Brasil, 71 são negras. Em cada 100 mulheres assassinadas, 66 são negras. Tão pouco é incomum a violência contra lideranças de movimentos sociais: vide o assassinato de Paulo Sérgio Almeida Nascimento - líder da Associação de caboclos, indígenas e quilombolas da Amazónia - no Pará, há quatro dias.
O Brasil tornou-se um país tenebroso, onde o fascismo avança a passos largos. O terror é parte desta estratégia e visa a instauração de um estado de excepção, com vista a implementação de uma ditadura (militar) "desejada" e aceite pela população que vive, há muito, num clima de medo.
Começou com a farsa do "impeachment" de Dilma, (para impedir processos como o Lava-Jato, onde estão envolvidos muitos dos governantes do país, a começar pelo presidente Temer); seguiu-se a sua destituição, num processo que muitos apelidaram de golpe constitucional; prosseguiu com as acusações a Lula, (muitas das quais baseadas em delações, sem que algum facto tenha sido provado), tentando, dessa forma, impedi-lo de concorrer às próximas eleições, onde é indicado como favorito; e, finalmente, há um mês, concretizou-se com a ocupação militar do Rio de Janeiro, onde o exército passou a desempenhar as funções da polícia da cidade.
Temer, o grotesto vampiro, ensaia, deste modo, uma "fuga para a frente", tentando satisfazer uma burguesia branca e urbana, que há dois anos batia panelas pela demissão da presidente democraticamente eleita, reclamando medidas contra a "corrupção". Uns tristes, estes brasileiros da classe média, que não aprenderam nada com o Chile de Pinochet.
O assassínio de Marielle (um, entre milhares no último ano) é mais um passo nesta escalada do terror, com vista a incutir o medo na população e a evitar o aparecimento de líderes carismáticos que critiquem o sistema.
A canadiana Naomi Klein, num extraordinário livro (A Doutrina do Choque) explica bem como funciona esta estratégia, utilizada pelo capitalismo desregulado e predador, em situações de caos e calamidade: perante a perda da margem de lucro e na eminência da falência do "sistema" que sempre protegeu os seus ganhos e mordomias, cria (artificialmente) um clima de caos (a criminalidade, apoiada pelas milícias para-governamentais, faz parte deste cardápio) não hesitando em eliminar todos aqueles que denunciam o estado de violência consentido por um estado fraco. Desta forma, procuram assegurar a manutenção da "Ordem e Progresso", tão de agrado das classes dominantes, apenas interessadas num mercado a funcionar "normalmente".
No Brasil, morrem anualmente 60.000 pessoas por homicídio (um record mundial!) A maior parte, vítima de assaltos e do crime organizado (máfias de drogas, etc.). Os crimes políticos (24, no último ano), são de natureza diferente, pois visam atingir aqueles que denunciam esta situação e servir de exemplo para outros que ousem criticar o "sistema". Uma estratégia conhecida, utilizada em diversos países sul-americanos, nas décadas de setenta e oitenta (Operação Condor), quando quase todo o continente esteve sujeito a ditaduras militares de direita.
Aparentemente, alguns brasileiros nada aprenderam com a História e já esqueceram a ditadura militar sob a qual viveram entre 1964 e 1985. Não foi o caso de Marielle que, como muitos outros brasileiros, continuam a lutar por um país mais igualitário, onde a exclusão social, o racismo, o machismo e a homofobia, não tenham lugar.