O anúncio, ontem feito em Bruxelas por Sócrates (e confirmado, horas mais tarde em Lisboa, por Teixeira dos Santos) sobre o novo pacote de medidas de austeridade apresentado pelo governo português para "sossegar" os mercados, confirmaram o pior dos cenários para o nosso país: nem os "mercados" parecem convencidos das nossas boas intenções (as taxas de juro continuam a subir e estão próximas dos 8%); nem o governo, nesta corrida contra o tempo, já se dá ao trabalho de informar os portugueses das suas intenções, limitando-se a pôr o país perante um facto consumado.
Que Sócrates, um mentiroso compulsivo, continue a afirmar tudo e o seu contrário, já estávamos habituados. Que Teixeira dos Santos, o único ministro vísível deste governo, ainda se preste a tais papéis, começa a tornar-se patético.
Ao que parece, a única pessoa informada (a partir de Bruxelas!) sobre este novo PEC, teria sido o líder da oposição; pois nem o Presidente da República, para não falar dos parceiros sociais (CIP e CGTP/UGT), ou outros partidos com assento no hemiciclo, foram postos ao corrente da situação. Ou seja, o primeiro-ministro, num desrespeito total pelo Parlamento, limitou-se a ir a Bruxelas apresentar o "caderno de encargos" acordado com Merkel, à revelia de qualquer acordo no quadro da União Europeia, da qual ambos os países fazem parte. Temos, assim, um governo subserviente e completamente dependente da ajuda externa, que negocia com um país, a Alemanha, que continua a impôr os seus "diktats" sobre os países periféricos mais vulneráveis.
Se isto não é anti-democrático, gostaria de saber o que é a democracia para estes políticos sem vergonha que nos desgovernam.
É possível que, Sócrates, encurralado no beco sem saída que ele próprio criou com as suas operações de "marketing", esteja hoje perante um dilema: sair, a exemplo de Guterres reconhecendo a inevitabilidade dos factos e condenando-se a uma "travessia do deserto" sem horizonte; ou resistir, na esperança de melhores dias que lhe permitiriam recandidatar-se em 2013. Outra hipótese, bastante provável, é a esperança que Cavaco o demita, para se apresentar como vítima de uma situação por ele mesmo criada.
Qualquer dos cenários, sendo possíveis, são insuficientes e não respondem aos justos anseios e protestos dos cidadãos (sempre os mesmos) espoliados e desprezados por um governo incapaz de perceber a realidade dos factos.
É contra esta situação, de impasse absoluto e discrédito total de uma classe política corrupta e incompetente que jovens precários e desempregados, mas também outros estratos da sociedade inconformados com o insuportável pântano social em que vivemos, vão hoje protestar em todo o país. Basta já!
2011/03/12
2011/03/11
Testemunhas circunstanciais
Independentemente das motivações (há sempre motivações...), a moção de censura apresentada pelo BE pareceu-me um acto coerente. Tal como escrevi quando o PCP apresentou a sua moção em Maio do ano passado, e tal como aconteceu na altura, parece totalmente legítimo e consequente que os partidos da oposição obriguem, em bloco, este governo a cair face às críticas que lhe são, no geral, dirigidas. BE e PC votaram a moção, PSD e CDS abstiveram-se, uma atitude oportunista e irresponsável.
A moção não passou. O PSD terá feito as suas contas e concluído que não é a altura de transformar as palavras de crítica ao governo em acções coerentes. O PS deve estar mortinho por passar a pasta. Adivinha-se no discurso socialista já uma estratégia pós-eleições e o semblante dos ministros trai-lhes os verdadeiros desígnios. Mas não seria naturalmente expectável que fosse o próprio PS a pedir a demissão do governo que apoia. Falta pois o pretexto e o PSD, inseguro de si e sem uma liderança categórica, não faz esse "favor" ao PS.
O PR, esse, lembrou-se agora de reagir com firmeza, com um discurso muito admirado, mas que, tal como no caso do PSD, não passa de conversa.
Entretanto, prosseguem as negociações por causa do preço do gasóleo industrial. Incompreensivelmente, o braço de ferro parece estar a levar a um extremar de posições e ameaça transformar um problema menor numa enorme convulsão. Aqui poderá estar o pretexto que o PS tanto esperava para sair e obrigar o PSD a pegar na pasta.
E nós no meio de tudo isto, PEC-a-PEC, sabe-se lá à espera de quê.
A moção não passou. O PSD terá feito as suas contas e concluído que não é a altura de transformar as palavras de crítica ao governo em acções coerentes. O PS deve estar mortinho por passar a pasta. Adivinha-se no discurso socialista já uma estratégia pós-eleições e o semblante dos ministros trai-lhes os verdadeiros desígnios. Mas não seria naturalmente expectável que fosse o próprio PS a pedir a demissão do governo que apoia. Falta pois o pretexto e o PSD, inseguro de si e sem uma liderança categórica, não faz esse "favor" ao PS.
O PR, esse, lembrou-se agora de reagir com firmeza, com um discurso muito admirado, mas que, tal como no caso do PSD, não passa de conversa.
Entretanto, prosseguem as negociações por causa do preço do gasóleo industrial. Incompreensivelmente, o braço de ferro parece estar a levar a um extremar de posições e ameaça transformar um problema menor numa enorme convulsão. Aqui poderá estar o pretexto que o PS tanto esperava para sair e obrigar o PSD a pegar na pasta.
E nós no meio de tudo isto, PEC-a-PEC, sabe-se lá à espera de quê.
2011/03/10
Something in the Air
Se alguma surpresa houve no discurso de ontem de Cavaco Silva, só pode ter sido a tónica posta na crise da juventude e o seu apelo ao "sobressalto cívico", que poderá ser interpretado como uma adesão à manifestação da geração de desempregados, agendada para sábado. Algo de surpreendente num presidente conservador e cauteloso nas palavras.
Alguns comentadores de serviço (António Barreto, Miguel Sousa Tavares) logo se apressaram a catalogar este apelo como uma tentativa do presidente em "cavalgar a onda" da contestação ao governo. Pode ser que sim. Cavaco tem, certamente, uma agenda política e - a acreditar nos "tudólogos" - tudo fará para tornar a vida mais difícil a Sócrates. Até aqui, isto faz algum sentido.
O que não parece fazer tanto sentido é a "avalanche" de críticas, veladas ou explícitas, de figuras gradas do regime, como Soares ou Sampaio, para já não falar nos inúmeros artigos e "blogs" afectos ao governo (Jugular, Aspirinab, Câmara Corporativa) que não perdem nenhuma ocasião para menosprezarem a geração dos "Deolindos". Como se a banda pop tivesse alguma culpa da popularidade atingida pela sua canção.
Tavares, uma das pitonisas de serviço, chegou mesmo a afirmar que o "manifesto", que convoca a manifestação, é dúbio e anti-partidos, não se sabendo bem quem a convoca (uma "nublosa" nas suas palavras). Ou seja, um terreno propício para a demagogia. Daí ao aparecimento de figuras populistas e ao fascismo é um passo...
Quem diria que um simples protesto divulgado pela Net (certamente inspirado pela "rua" árabe) viria a constituir motivo de discussões acaloradas e longos editoriais de tanta gente responsável (que sempre criticou o descalabro da política sem norte e autista do governo) e agora se mostra chocada com um protesto contra uma situação que sempre denunciou?
Não sei o que se vai passar no sábado, mas uma coisa parece certa: poucas vezes um apelo (aparentemente sem "dono") causou tanta irritação a tanta gente. É isto uma coisa má? Não necessariamente. Como não é má, nem boa, a moção de hoje, apresentada pelo BE, ou a vitória dos "Homens da Luta" na Festival da Eurovisão. São apenas sinais de que alguma coisa está mal na sociedade e que a população anónima começa a estar farta desta classe política. Anda, de facto, alguma coisa no ar...
Alguns comentadores de serviço (António Barreto, Miguel Sousa Tavares) logo se apressaram a catalogar este apelo como uma tentativa do presidente em "cavalgar a onda" da contestação ao governo. Pode ser que sim. Cavaco tem, certamente, uma agenda política e - a acreditar nos "tudólogos" - tudo fará para tornar a vida mais difícil a Sócrates. Até aqui, isto faz algum sentido.
O que não parece fazer tanto sentido é a "avalanche" de críticas, veladas ou explícitas, de figuras gradas do regime, como Soares ou Sampaio, para já não falar nos inúmeros artigos e "blogs" afectos ao governo (Jugular, Aspirinab, Câmara Corporativa) que não perdem nenhuma ocasião para menosprezarem a geração dos "Deolindos". Como se a banda pop tivesse alguma culpa da popularidade atingida pela sua canção.
Tavares, uma das pitonisas de serviço, chegou mesmo a afirmar que o "manifesto", que convoca a manifestação, é dúbio e anti-partidos, não se sabendo bem quem a convoca (uma "nublosa" nas suas palavras). Ou seja, um terreno propício para a demagogia. Daí ao aparecimento de figuras populistas e ao fascismo é um passo...
Quem diria que um simples protesto divulgado pela Net (certamente inspirado pela "rua" árabe) viria a constituir motivo de discussões acaloradas e longos editoriais de tanta gente responsável (que sempre criticou o descalabro da política sem norte e autista do governo) e agora se mostra chocada com um protesto contra uma situação que sempre denunciou?
Não sei o que se vai passar no sábado, mas uma coisa parece certa: poucas vezes um apelo (aparentemente sem "dono") causou tanta irritação a tanta gente. É isto uma coisa má? Não necessariamente. Como não é má, nem boa, a moção de hoje, apresentada pelo BE, ou a vitória dos "Homens da Luta" na Festival da Eurovisão. São apenas sinais de que alguma coisa está mal na sociedade e que a população anónima começa a estar farta desta classe política. Anda, de facto, alguma coisa no ar...
2011/03/09
De que massa é feito o défice de Estado?
Depois de ler notícias como esta, publicada no Público de hoje, ficamos a cismar. A referida notícia dá-nos conta do estado de falência técnica da PJ e revela problemas que colocam seriamente em causa a capacidade de actuação daquele organismo. São factos perturbantes como a brutal redução de quadros e o estado de calamidade a que chegou a frota automóvel desta instituição. Dois terços dessa frota estará parada por falta de manutenção, mas mesmo muitos dos veículos a circular não passariam numa vulgar inspecção.
Temos de perguntar de que raio é feito o défice do Estado, porque parece que em muitas instituições se vive em "contenção" há muito, muito tempo... Em que áreas foi então gasto o dinheiro, uma vez que, ao que parece, há atribuições absolutamente básicas do Estado que não estão a ser cumpridas por falta de verba?
Temos de perguntar de que raio é feito o défice do Estado, porque parece que em muitas instituições se vive em "contenção" há muito, muito tempo... Em que áreas foi então gasto o dinheiro, uma vez que, ao que parece, há atribuições absolutamente básicas do Estado que não estão a ser cumpridas por falta de verba?
O discurso do Presidente
Eu, se fosse um jovem desta nova geração, depois de ouvir um discurso de tomada de posse do Presidente da República como aquele que ouvi hoje, estaria mais à rasca que nunca...
2011/03/08
Wikileaks: 100 dias do Cablegate
2011/03/07
O grupo de trabalho
Quando ouço falar de grupo de trabalho logo penso que o trabalho que o grupo teria — ou terá, que eles estão para durar e crescer com o emagrecimento do Estado, pois não há nada para oferecer às clientelas que não seja temporário agora e fora dessa “eternidade” que era entrar para o quadro — de desenvolver está, logo no seu arranque de existência, suspenso pelas mil e uma contingências que fazem com que os grupos de trabalho sejam grupos de destrabalho. Só para se encontrar o tempo comum de trabalho neste tipo de grupos há desde logo todo o tipo de impossibilidades, pois grupo de trabalho quer na realidade dizer menos que part-time, biscate, desencontro regulado, qualquer coisa no meio de levar as crianças à escola ou de as trazer da escola e levar ao inglês, ou de ir de fim-de-semana prolongado para a casa do Alvito ou a Madrid ao Prado, ou mesmo do casamento da prima e por aí adiante.
Em primeiro lugar a questão da necessidade: um grupo de trabalho deve ser uma organização extraordinária para tratar de uma questão extraordinária e não uma associação de promovidos de circunstância a tratar de questões ordinárias. Ninguém de boa cepa e saúde mental pode aceitar que um Estado Democrático não cubra organizada e organicamente, através de serviços específicos, questões como as que se relacionam com a nossa identidade, chame-se a isso património imaterial ou património material. É inaceitável que não existam serviços permanentes do Estado a tratar da nossa memória global como da nossa vida futura, numa perspectiva prospectiva. Saberão o que isso é? É para o país o mesmo que a história nacional é para os portugueses que crescem na escola pública – pública sim, porque a privada, pode ser inglesa, chinesa, o que os privados entenderem legitimamente, podendo nelas decidir dar apenas a história dos mandarinatos, golfe e como chupar sumos frescos pela palhinha.
Em segundo lugar a questão do recrutamento: muitas vezes não se escolhem pessoas para integrar um grupo de trabalho que sejam competentes, idóneas, independentes, especializadas no trabalho em questão e finalmente com provas de produtividade dadas, isto é, com obra e não com currículo de funções apenas, cargos, proximidades electivas, primos no partido. Mostra-me a tua pintura, não me mostres o cartão do partido, já dizia o outro.
Em terceiro lugar os grupos de trabalho, sendo extraordinário, deve concentrar em si questões candentes das necessidades nacionais extraordinárias como trabalho, isto é, desenvolvimento de soluções de mudança para melhor – a maior parte das vezes muda-se para pior, as gerações que se têm sucedido, quanto mais escolarizadas menos capazes de agir e menos metódicas, eficazes, perdidas na ficção online ou na desconexão mental, na incapacidade de focarem um território, de sequer terem a capacidade de organizar uma reunião como produtividade e não como diletantismo anacrónico e passatempo (não se fala aqui de investigação e de pesquisa em áreas de ponta, pois este tipo de elites e organizações mantém uma patamar de rigor nos projectos que não existe em mais lado algum, o mesmo sucedendo em alguns serviços públicos).
Em quarto lugar os grupos de trabalho devem fazê-lo, ao trabalho, sem gratificação de algum tipo, dado que a maior parte das vezes são emprego acumulado mesmo que temporário. Devem, isso sim, ter as despesas pagas. Em alternativa, caso a relevância do caso se justifique, devem exercer a função temporária em termos de exclusividade. Isso é que é servir o país e não chular o Estado.
Em quinto lugar devem ter plano e prazos pré estabelecidos e não surgir no meio do desejo vago de resolver uma coisa não delimitada quanto ao quadro material de execução, datas, objectivos, etc. Quem cria o grupo de trabalho tem de saber porque cria o grupo de trabalho e não criar o grupo de trabalho para que o grupo de trabalho descubra aleatoriamente para que existe no meio de uma qualquer deriva.
Em sexto lugar e em nome do trabalho liquidem-se os grupos de trabalho, apetece dizer.
Da minha experiência de ter integrado a 11ª Comissão para a reforma do Ensino Artístico – trabalho não remunerado – a convite do Professor Rui Nery declaro o seguinte: as conclusões para lá andam, no Ministério da Educação e não serviram para nada. Depois desse trabalho, feito por pessoas generosas e sem pagamento, repito, surgiram outras comissões, a 12ª por certo e não sei se mais, perdi-lhes o rasto pois a certa altura são clandestinas, trabalham para a sua própria existência improdutiva em circularidade becketiana.
O problema disto tudo? Inconsistência ética e impreparação profissional, o que é mortal. A que se deve? À comercialização de todas as esferas da existência e à sujeição à “ética” do mercado, o tal que tudo regula pela concorrência competitiva mesmo que isso se faça à custa da destruição planetária, em doses de catástrofe regulada, claro. Isso faz a cabeça dos governantes e dos governados, tudo é negócio. Não há função de Estado que não seja negócio e não se argumente como economia, mercados, bens transaccionáveis e etc. Como poderá sobreviver o país das décimas, das brincas, da guitarra campaniça, dos caretos, etc., das rosas ramalhos que estão por vir também, sem que, em nome da sacrossanta rendibilidade e sustentabilidade (falta um alavancar aqui, esse verbo que cheira a pétalas) lhe ponham em cima a força bruta do que para ser turístico é pintado de fresco e repleto de flic-flac’s de amabilidade de cerviz dobrada, como aliás a história e o presente demonstram quando, sob uma ruína nova, surge a preciosidade anterior, ou quando sobre uma duna, uma arriba ou um leito natural se erguem aldeias turísticas e vivendas tipo senhorial. O problema é que o turismo, essa colonização global pelos mesmos padrões, é o mesmo mundo que tudo transforma em 3, 4 e 5 estrelas (às 6 chegam só os donos do mundo) o mesmo mundo mascarado de outros mundos. O desaparecimento das raízes dos mundos que se vendem como outros para supostamente sobreviverem é a sua destruição, a sua conversão em bordel ou casino, ou se se preferir em casino e bordel.
Então que dizer dos mundos dos bens imateriais coitados? Não se dá por eles, como poderão sobreviver à invisibilidade nos tempos da ditadura da visibilidade.
E não haverá dessas coisas no Centro Comercial? Faça-se um grupo de trabalho para averiguar.
Em primeiro lugar a questão da necessidade: um grupo de trabalho deve ser uma organização extraordinária para tratar de uma questão extraordinária e não uma associação de promovidos de circunstância a tratar de questões ordinárias. Ninguém de boa cepa e saúde mental pode aceitar que um Estado Democrático não cubra organizada e organicamente, através de serviços específicos, questões como as que se relacionam com a nossa identidade, chame-se a isso património imaterial ou património material. É inaceitável que não existam serviços permanentes do Estado a tratar da nossa memória global como da nossa vida futura, numa perspectiva prospectiva. Saberão o que isso é? É para o país o mesmo que a história nacional é para os portugueses que crescem na escola pública – pública sim, porque a privada, pode ser inglesa, chinesa, o que os privados entenderem legitimamente, podendo nelas decidir dar apenas a história dos mandarinatos, golfe e como chupar sumos frescos pela palhinha.
Em segundo lugar a questão do recrutamento: muitas vezes não se escolhem pessoas para integrar um grupo de trabalho que sejam competentes, idóneas, independentes, especializadas no trabalho em questão e finalmente com provas de produtividade dadas, isto é, com obra e não com currículo de funções apenas, cargos, proximidades electivas, primos no partido. Mostra-me a tua pintura, não me mostres o cartão do partido, já dizia o outro.
Em terceiro lugar os grupos de trabalho, sendo extraordinário, deve concentrar em si questões candentes das necessidades nacionais extraordinárias como trabalho, isto é, desenvolvimento de soluções de mudança para melhor – a maior parte das vezes muda-se para pior, as gerações que se têm sucedido, quanto mais escolarizadas menos capazes de agir e menos metódicas, eficazes, perdidas na ficção online ou na desconexão mental, na incapacidade de focarem um território, de sequer terem a capacidade de organizar uma reunião como produtividade e não como diletantismo anacrónico e passatempo (não se fala aqui de investigação e de pesquisa em áreas de ponta, pois este tipo de elites e organizações mantém uma patamar de rigor nos projectos que não existe em mais lado algum, o mesmo sucedendo em alguns serviços públicos).
Em quarto lugar os grupos de trabalho devem fazê-lo, ao trabalho, sem gratificação de algum tipo, dado que a maior parte das vezes são emprego acumulado mesmo que temporário. Devem, isso sim, ter as despesas pagas. Em alternativa, caso a relevância do caso se justifique, devem exercer a função temporária em termos de exclusividade. Isso é que é servir o país e não chular o Estado.
Em quinto lugar devem ter plano e prazos pré estabelecidos e não surgir no meio do desejo vago de resolver uma coisa não delimitada quanto ao quadro material de execução, datas, objectivos, etc. Quem cria o grupo de trabalho tem de saber porque cria o grupo de trabalho e não criar o grupo de trabalho para que o grupo de trabalho descubra aleatoriamente para que existe no meio de uma qualquer deriva.
Em sexto lugar e em nome do trabalho liquidem-se os grupos de trabalho, apetece dizer.
Da minha experiência de ter integrado a 11ª Comissão para a reforma do Ensino Artístico – trabalho não remunerado – a convite do Professor Rui Nery declaro o seguinte: as conclusões para lá andam, no Ministério da Educação e não serviram para nada. Depois desse trabalho, feito por pessoas generosas e sem pagamento, repito, surgiram outras comissões, a 12ª por certo e não sei se mais, perdi-lhes o rasto pois a certa altura são clandestinas, trabalham para a sua própria existência improdutiva em circularidade becketiana.
O problema disto tudo? Inconsistência ética e impreparação profissional, o que é mortal. A que se deve? À comercialização de todas as esferas da existência e à sujeição à “ética” do mercado, o tal que tudo regula pela concorrência competitiva mesmo que isso se faça à custa da destruição planetária, em doses de catástrofe regulada, claro. Isso faz a cabeça dos governantes e dos governados, tudo é negócio. Não há função de Estado que não seja negócio e não se argumente como economia, mercados, bens transaccionáveis e etc. Como poderá sobreviver o país das décimas, das brincas, da guitarra campaniça, dos caretos, etc., das rosas ramalhos que estão por vir também, sem que, em nome da sacrossanta rendibilidade e sustentabilidade (falta um alavancar aqui, esse verbo que cheira a pétalas) lhe ponham em cima a força bruta do que para ser turístico é pintado de fresco e repleto de flic-flac’s de amabilidade de cerviz dobrada, como aliás a história e o presente demonstram quando, sob uma ruína nova, surge a preciosidade anterior, ou quando sobre uma duna, uma arriba ou um leito natural se erguem aldeias turísticas e vivendas tipo senhorial. O problema é que o turismo, essa colonização global pelos mesmos padrões, é o mesmo mundo que tudo transforma em 3, 4 e 5 estrelas (às 6 chegam só os donos do mundo) o mesmo mundo mascarado de outros mundos. O desaparecimento das raízes dos mundos que se vendem como outros para supostamente sobreviverem é a sua destruição, a sua conversão em bordel ou casino, ou se se preferir em casino e bordel.
Então que dizer dos mundos dos bens imateriais coitados? Não se dá por eles, como poderão sobreviver à invisibilidade nos tempos da ditadura da visibilidade.
E não haverá dessas coisas no Centro Comercial? Faça-se um grupo de trabalho para averiguar.
2011/03/06
Incertezas e desafios
Há dias, o dr. Jorge Sampaio declarou numa conferência que teve lugar no Porto: "Portugal está em apuros". Não sei a que "Portugal" o ex-Presidente da República se referia. Não sei se falava do "meu" Portugal, que está efectivamente à rasca e não sabe para onde se há-de virar, ou se de um outro "Portugal", o dos banqueiros, gestores milionários, oportunistas e especuladores, a quem a crise, misteriosamente, poupa ou trata com grande suavidade. Não sei se falava do "meu" Portugal que se vai queixando para dentro, ou se de um outro, o dos média controlados pelos banqueiros, gestores milionários, oportunistas e especuladores, que transformam os seus interesses de forma despudorada em doutrina do Estado, arrebanhando os megafones todos para nos fazer crer que o fazem em nome do nosso interesse, em nome do interesse do "meu" Portugal. Não sei se se referia ao "meu" Portugal sem voz, ou o dos desavergonhados que, a soldo de banqueiros, gestores milionários, oportunistas e especuladores, a toda a hora emitem grande soma de opiniões, mais doutas certamente que as minhas porque, a eles, os microfones e as câmaras os procuram constantemente e com grande sofreguidão para colher essas opiniões que depois se transformam na coisa. Não sei se o "Portugal" do dr. Sampaio é o dos banqueiros, gestores milionários, oportunistas e especuladores, cujo estatuto resulta também da total impunidade e regabofe que grassa no exercício da justiça, ou se é o daqueles que são vítimas de tudo isso. Não sei se o "Portugal" que o dr. Sampaio classifica "em apuros" é o Portugal dos banqueiros, gestores milionários, oportunistas e especuladores, malandrins que cometem as mais inconfessáveis malfeitorias públicas ou o outro, o "meu" Portugal que as acaba sempre por pagar e que por isso... está em apuros. Não sei se o "Portugal em apuros" será o daqueles que têm um iate de 24 m e agora têm de tomar a grave decisão de reduzir para um de 17 m, certamente um momento de verdadeiro apuro para eles...
Não querendo perturbar a bonomia do dr. Sampaio, nem a languidez do seu retiro, deixava-lhe contudo um desafio para, quando achar conveniente, precisar melhor a que raio de Portugal se referiu ele na sua arenga.
Não querendo perturbar a bonomia do dr. Sampaio, nem a languidez do seu retiro, deixava-lhe contudo um desafio para, quando achar conveniente, precisar melhor a que raio de Portugal se referiu ele na sua arenga.
2011/03/05
O Senhor Galliano
Os média gostam das stars e têm os estilistas por uma espécie de nobreza kitch, seguindo-lhes passos e desamores, pois são eles os autores das aparências que supostamente distinguem os sempre expostos desejosos de uma singularidade absolutamente única, dos outros sempre expostos que desejam uma mesma singularidade absolutamente única e detêm pela celebridade o mesmo poder de espectáculo de si mesmos – os restantes gostariam de um dia ser como eles e de andar de passerelle em passerelle, a laurear a pevide virtualizando-a. A realidade virtual é preenchida, na pausa das guerras em directo e nos intervalos, por um enchido de novelas em constante encruzilhada e a moda é um feliz ingrediente chamariz de casos – o pobre mortal que só necessita de mudar de roupa quando o rei faz anos sempre que o ligam ao mundo global lá tem de gramar a pastilha de um Galliano qualquer que perdeu o tino num qualquer Bar Pérola, numa capital do mundo claro e que é um criativo de roupas que têm conceitos, a filosofia e a braguilha de mãos dadas.
Com ou sem saldos, por indução ideológica, pois nos vemos no modo como nos olham os outros quando saímos da média, a engrenagem lá nos faz agir como peças suas, põe e dispõe, separando o que é sistémico do que é marginal e indo às margens buscar as novas fontes e inspirações do sistémico. Assim sucedeu com as baias comportamentais derrubadas no Maio de 68 e em Woodstock, logo potencialidades de mercado, independentemente de outras consequências da esfera do político e democrático. Ao mercado, para tudo penetrar, falta apenas derrubar alguns tabus e estamos mais perto disso do que sonhamos.
O Senhor Galliano, um estilista da casa Dior, soubemo-lo mundialmente, é mundialmente referência mais incontornável que Hamlet, por uns instantes da história claro, para quem o mercado se está nas tintas, a não ser que renasça accionista renomado depois de se ter canibalizado a si mesmo tendo sobrevivido – um caso de sangue em sede própria dirá o jurista. Assim vai a imaginação criativa dos contemporâneos, dominada pela confusão entre a publicidade como modo de pensar e o crime.
Os média chulam as stars e puseram o senhor Galliano a dizer o que disse num bar de Paris, cenário ideal, terra de ninguém para uma celebridade que ninguém veria em bares de gente normal, pois o Senhor Galliano estava completamente bêbado – em tribunal será atenuante – e disse aos vizinhos de mesa que eram feios e que por isso se vivessem no tempo de Hitler, de quem ele gostava, seriam gaseados. O Senhor Galliano repetiu o que disse quando as pessoas, gentilmente pelo que se percebe do tom das vozes, lhe perguntaram se não gostava de paz, de paz entre os homens, repetindo ele que para os feios só havia um caminho, as câmaras de gás – isto é o que se chama uma conversa de merda em bom português, desculpem lá. E não teria importância nenhuma se o indivíduo, como outras celebridades a raiar a psicopatia e os psicopatas são obviamente perigosos, não fosse notícia em tudo o que é voz falada e escrita, em todos os telejornais, em todos os diários, tanto os de referência como os da falta dela, já que assunto mediático é notícia mesmo não sendo notícia: a voz do mundo sintetizada é uma cloaca aberta de jogos de interesse – a quem na concorrência tudo isto serve, ou será ao próprio patrão da Dior? Intriga já skakespereana esta.
A notícia faz-se, alimenta-se, tem os seus seguimentos e é prenhe, na raiz, de potencialidades ilimitadas de ficção e os protagonistas das notícias, as celebridades, têm os seus assessores e as suas centrais de reconstrução cirúrgica de prestígios para score eleitoral e valor de mercado, quando, porque a natureza humana é assim, erram e mostram os dentes, a monstruosidade da sua intimidade, a face humana exposta ao globo – no El País, num excelente artigo sobre o caso, fala-se da passagem do sistema pan-óptico prisional para a videovigilância como generalização globalizada do que é policial e prisional a um tempo.
Deste modo o passo seguinte dado pelo estilista e seus advogados, porque em França onde proferiu a blasfémia celebrizada e por ainda restar alguma democracia escarrapachada na lei constitucional, o estilista vai ter de responder em tribunal, o que ele acata pela voz do advogado. Alguém filmou o estilista, a videovigilância está no telemóvel de toda a gente e a alma de polícia de cada um tem instrumentos para produzir factos com eficácia de prova desde que os capte parecendo sem ponto de vista, em bruto – se a câmara entrasse no olho do estilista dentro poderia parecer uma experiência estética, o olho muito grande e o texto extraordinário mediado por um primeiro plano de filme de terror.
Agora, já no terceiro episódio globalizado da interessante história, estamos numa clínica no Arizona dizem uns – por cá fala-se Nova Iorque (somos pacóvios até ao impossível) - onde, também Elton John esteve a fazer uma cura de alcoolismo.
No fim desta coisa toda vai ser processado por ter mau vinho, é mais que certo. Não teve agora Elton John uma criança e não será um pai de família perfeito? E nós com isso, porque não deixam o homem em paz? O que de facto espanta nisto tudo é como o espaço mediático abre deste modo as pernas a tanta quantidade de lixo. É caso para dizer: mas o que é feito das notícias? E porque raio é que um pobre idiota bêbado num bar de Paris é mais do que um pobre idiota bêbado num bar de Paris?
Pobre ficção esta que se globaliza no momento do insulto nazi de um imbecil perdido no planeta. Dentro de momentos seguem-se os episódios quatro e cinco: Galliano à saída da clínica muito arrependido e depois no tribunal a pedir desculpa aos judeus. Enfim, dantes dizia-se: e não têm mais nada para fazer, ou melhor, para contar?
Com ou sem saldos, por indução ideológica, pois nos vemos no modo como nos olham os outros quando saímos da média, a engrenagem lá nos faz agir como peças suas, põe e dispõe, separando o que é sistémico do que é marginal e indo às margens buscar as novas fontes e inspirações do sistémico. Assim sucedeu com as baias comportamentais derrubadas no Maio de 68 e em Woodstock, logo potencialidades de mercado, independentemente de outras consequências da esfera do político e democrático. Ao mercado, para tudo penetrar, falta apenas derrubar alguns tabus e estamos mais perto disso do que sonhamos.
O Senhor Galliano, um estilista da casa Dior, soubemo-lo mundialmente, é mundialmente referência mais incontornável que Hamlet, por uns instantes da história claro, para quem o mercado se está nas tintas, a não ser que renasça accionista renomado depois de se ter canibalizado a si mesmo tendo sobrevivido – um caso de sangue em sede própria dirá o jurista. Assim vai a imaginação criativa dos contemporâneos, dominada pela confusão entre a publicidade como modo de pensar e o crime.
Os média chulam as stars e puseram o senhor Galliano a dizer o que disse num bar de Paris, cenário ideal, terra de ninguém para uma celebridade que ninguém veria em bares de gente normal, pois o Senhor Galliano estava completamente bêbado – em tribunal será atenuante – e disse aos vizinhos de mesa que eram feios e que por isso se vivessem no tempo de Hitler, de quem ele gostava, seriam gaseados. O Senhor Galliano repetiu o que disse quando as pessoas, gentilmente pelo que se percebe do tom das vozes, lhe perguntaram se não gostava de paz, de paz entre os homens, repetindo ele que para os feios só havia um caminho, as câmaras de gás – isto é o que se chama uma conversa de merda em bom português, desculpem lá. E não teria importância nenhuma se o indivíduo, como outras celebridades a raiar a psicopatia e os psicopatas são obviamente perigosos, não fosse notícia em tudo o que é voz falada e escrita, em todos os telejornais, em todos os diários, tanto os de referência como os da falta dela, já que assunto mediático é notícia mesmo não sendo notícia: a voz do mundo sintetizada é uma cloaca aberta de jogos de interesse – a quem na concorrência tudo isto serve, ou será ao próprio patrão da Dior? Intriga já skakespereana esta.
A notícia faz-se, alimenta-se, tem os seus seguimentos e é prenhe, na raiz, de potencialidades ilimitadas de ficção e os protagonistas das notícias, as celebridades, têm os seus assessores e as suas centrais de reconstrução cirúrgica de prestígios para score eleitoral e valor de mercado, quando, porque a natureza humana é assim, erram e mostram os dentes, a monstruosidade da sua intimidade, a face humana exposta ao globo – no El País, num excelente artigo sobre o caso, fala-se da passagem do sistema pan-óptico prisional para a videovigilância como generalização globalizada do que é policial e prisional a um tempo.
Deste modo o passo seguinte dado pelo estilista e seus advogados, porque em França onde proferiu a blasfémia celebrizada e por ainda restar alguma democracia escarrapachada na lei constitucional, o estilista vai ter de responder em tribunal, o que ele acata pela voz do advogado. Alguém filmou o estilista, a videovigilância está no telemóvel de toda a gente e a alma de polícia de cada um tem instrumentos para produzir factos com eficácia de prova desde que os capte parecendo sem ponto de vista, em bruto – se a câmara entrasse no olho do estilista dentro poderia parecer uma experiência estética, o olho muito grande e o texto extraordinário mediado por um primeiro plano de filme de terror.
Agora, já no terceiro episódio globalizado da interessante história, estamos numa clínica no Arizona dizem uns – por cá fala-se Nova Iorque (somos pacóvios até ao impossível) - onde, também Elton John esteve a fazer uma cura de alcoolismo.
No fim desta coisa toda vai ser processado por ter mau vinho, é mais que certo. Não teve agora Elton John uma criança e não será um pai de família perfeito? E nós com isso, porque não deixam o homem em paz? O que de facto espanta nisto tudo é como o espaço mediático abre deste modo as pernas a tanta quantidade de lixo. É caso para dizer: mas o que é feito das notícias? E porque raio é que um pobre idiota bêbado num bar de Paris é mais do que um pobre idiota bêbado num bar de Paris?
Pobre ficção esta que se globaliza no momento do insulto nazi de um imbecil perdido no planeta. Dentro de momentos seguem-se os episódios quatro e cinco: Galliano à saída da clínica muito arrependido e depois no tribunal a pedir desculpa aos judeus. Enfim, dantes dizia-se: e não têm mais nada para fazer, ou melhor, para contar?
2011/03/01
A vida num "flash"
Dizem que, na hora da morte, o filme da vida regressa em "flash-back". Por desconhecer a experiência, não posso falar dela. Mas, posso falar da experiência que me levou à Holanda, país onde vivi quarenta e quatro anos, para "desfazer" a casa onde vivi vinte e dois. Da primeira caderneta de poupança, presente da polícia de Amsterdão para o caso de ser deportado e ter de pagar a minha própria viagem de regresso; ao passaporte côr-de-rosa de "alien", que exigia "visas" sempre que saía do país; ou a fotografia do primeiro emprego numa empresa seguradora e os certificados das diferentes instituições por onde passei, tudo lá estava. Como lá estavam as colecções de jornais da oposição emigrada, as revistas literárias e os livros da minha formação. Também lá encontraria os discos "vinyl" e os vídeos que o gravador muitas vezes registava enquanto dormia, as diferentes máquinas de escrever, ou primeiro computador. Sim, estava lá tudo, como se a vida tivesse parado na Borgerstraat.
Depois, estavam os amigos. As fotos dos que já "partiram" e os vivos que me ajudaram na penosa tarefa de seleccionar os pertencentes para o futuro. Serão eles que, daqui para a frente, manterão viva a memória dos anos passados fora de Portugal. Para que um dia, quando a minha vida passar em "flashback", todos eles possam ser recordados como merecem. Até lá, a vida continua.
Depois, estavam os amigos. As fotos dos que já "partiram" e os vivos que me ajudaram na penosa tarefa de seleccionar os pertencentes para o futuro. Serão eles que, daqui para a frente, manterão viva a memória dos anos passados fora de Portugal. Para que um dia, quando a minha vida passar em "flashback", todos eles possam ser recordados como merecem. Até lá, a vida continua.
2011/02/26
CABARET FILOSÓFICO
O que será? Parece não jogar, a liga a cair, a coxa a espreitar e o raciocínio a ir-se. Mas não será assim na tradição alemã. Desde logo porque Karl Valentin marca um estilo que faz do burlesco uma metafísica, ou não será isso que acontece quando uma carteira da primeira classe antiga perde as pernas e esmaga um corpo infante, como num desmoronamento, ficando de fora o pé descomunal do adolescente na crise de crescimento quando o corpo estica mais que a cabeça. Não lhe chamou Brecht clown metafísico? Aquele ar desorbitado, aquela capacidade de fazer do non sense uma anarquia estimulante, aquele tipo de resposta inesperado que deu a quem lhe oferecera um livro: e não pode mandar-mo já lido? E não dizia dele, também Brecht, que era a blague em corpo e não um contador de anedotas?
Que o cabaret é de um tempo de crises é certamente. Que é um lugar mais liberto que outros de polícias e interditos também é verdade. É mesmo um lugar em que os polícias podem ser foras-da-lei. Nele tudo se diz, tudo vale, na penumbra e de sentidos alçados e a censura quando entra, entra com o porrete e vai tudo para a esquadra. Mas quando acontece e o espectáculo está no ar, no espaço do Cabaret todos os tráficos se cruzam, os “sérios e respeitáveis” e os obscuros e sanguinários. A crise não é mole e faz vítimas. Um dos seus aspectos mais salientes é a intensidade da violência. Na crise a violência desregula e vai para patamares de vulgarização que choca apenas os despertos. A crise é um adormecimento generalizado, um dormir acordado que não passa, um modo de hibernar. No cabaret a regra, sendo o vale tudo, permite que a verdade apareça, sem disfarce. E na tradição alemã, a que este Cabaret Keuner se refere, mais pelos textos que pelo espectáculo, não há nenhum desprezo do que possa ser pensar e fundamentalmente exercer a crítica num cinismo abrangente e na blague, lançar a dúvida em que outros se estatelam, colocar a pergunta proibida. Neste conjunto de pequenas histórias e apotegmas, de dúvida burlesca e de afirmações de recorte clownesco – o parvo vicentino espreita lá do seu século 15, como o bobo de Shakespeare, essas figuras da verdade autorizada por falta de estatuto que o José Carlos Faria seleccionou, montou e interpreta – viajamos por dentro de um pensamento e não propriamente saltando por um aleatório caminho de raciocínios soltos, como se salta sobre as pedras de uma ponte improvisada nas águas de um ribeiro. Por detrás, de facto, do que é representado, está um modo de indagar a realidade, uma realidade que nos coloniza como seres incapazes de a conter e mesmo de a perceber nos outros, de a decifrar relacionalmente, pois sendo o que é, de uma violência inumana, parece que não a conseguimos mudar. E é isso que Keuner detesta, a insensibilidade à dialéctica, à predisposição para a mudança que ajuda a mudar. Numa sociedade de estatutos, hierarquias e frases feitas, é cada vez mais importante que se abram espaços de perspectiva, abertas como se diz da tempestade que cessa e que regressará, abertas de pensamento. Nada mais prático e operacional que o que foi pensado com plano e principalmente o que é laborado na consciência do erro como caminho. A experimentação é a transformação do erro, a qualificação do realizado no pressuposto da democracia, da consideração do outro, como outro que é também um eu.
Este nosso Cabaret é um Cabaret da resistência ao lugar comum e principalmente à inevitabilidade do abismo, como ele é pintado pelos que entoam constantemente o coro da dívida e têm na Crise uma espécie de emprego garantido e também a garantia de lucros cada vez mais fabulosos.
Disseram ao Senhor Keuner que ele estava na mesma e ele corou. A nós dizem-no que apertando muito o cinto nos fortaleceremos. E nós dizemos: até quando? Quando soará a hora da democracia concreta neste totalitarismo kitsch que nos leva manipulados? O populismo novelizado da era mediática estará para a sociedade do espectáculo como a fé cega outrora para os grandiosos autos de fé da inquisição.
Que o cabaret é de um tempo de crises é certamente. Que é um lugar mais liberto que outros de polícias e interditos também é verdade. É mesmo um lugar em que os polícias podem ser foras-da-lei. Nele tudo se diz, tudo vale, na penumbra e de sentidos alçados e a censura quando entra, entra com o porrete e vai tudo para a esquadra. Mas quando acontece e o espectáculo está no ar, no espaço do Cabaret todos os tráficos se cruzam, os “sérios e respeitáveis” e os obscuros e sanguinários. A crise não é mole e faz vítimas. Um dos seus aspectos mais salientes é a intensidade da violência. Na crise a violência desregula e vai para patamares de vulgarização que choca apenas os despertos. A crise é um adormecimento generalizado, um dormir acordado que não passa, um modo de hibernar. No cabaret a regra, sendo o vale tudo, permite que a verdade apareça, sem disfarce. E na tradição alemã, a que este Cabaret Keuner se refere, mais pelos textos que pelo espectáculo, não há nenhum desprezo do que possa ser pensar e fundamentalmente exercer a crítica num cinismo abrangente e na blague, lançar a dúvida em que outros se estatelam, colocar a pergunta proibida. Neste conjunto de pequenas histórias e apotegmas, de dúvida burlesca e de afirmações de recorte clownesco – o parvo vicentino espreita lá do seu século 15, como o bobo de Shakespeare, essas figuras da verdade autorizada por falta de estatuto que o José Carlos Faria seleccionou, montou e interpreta – viajamos por dentro de um pensamento e não propriamente saltando por um aleatório caminho de raciocínios soltos, como se salta sobre as pedras de uma ponte improvisada nas águas de um ribeiro. Por detrás, de facto, do que é representado, está um modo de indagar a realidade, uma realidade que nos coloniza como seres incapazes de a conter e mesmo de a perceber nos outros, de a decifrar relacionalmente, pois sendo o que é, de uma violência inumana, parece que não a conseguimos mudar. E é isso que Keuner detesta, a insensibilidade à dialéctica, à predisposição para a mudança que ajuda a mudar. Numa sociedade de estatutos, hierarquias e frases feitas, é cada vez mais importante que se abram espaços de perspectiva, abertas como se diz da tempestade que cessa e que regressará, abertas de pensamento. Nada mais prático e operacional que o que foi pensado com plano e principalmente o que é laborado na consciência do erro como caminho. A experimentação é a transformação do erro, a qualificação do realizado no pressuposto da democracia, da consideração do outro, como outro que é também um eu.
Este nosso Cabaret é um Cabaret da resistência ao lugar comum e principalmente à inevitabilidade do abismo, como ele é pintado pelos que entoam constantemente o coro da dívida e têm na Crise uma espécie de emprego garantido e também a garantia de lucros cada vez mais fabulosos.
Disseram ao Senhor Keuner que ele estava na mesma e ele corou. A nós dizem-no que apertando muito o cinto nos fortaleceremos. E nós dizemos: até quando? Quando soará a hora da democracia concreta neste totalitarismo kitsch que nos leva manipulados? O populismo novelizado da era mediática estará para a sociedade do espectáculo como a fé cega outrora para os grandiosos autos de fé da inquisição.
2011/02/23
O teste do tempo
O "Plano Inclinado" foi suspenso. Não é um programa que se veja de forma neutra, os seus actores não são neutros, o que dizem não é neutro, o próprio aparecimento do programa na grelha da SIC N não terá sido neutro. Revejo-me em muitas opiniões ali emitidas, não me revejo noutras. Há milhentas razões para concordar e outras tantas para discordar daquilo que ali é dito. Ouvimos os seus intervenientes, questionamos o que dizem, tentamos aferir a sua coerência e fazemos a nossa avaliação.
Acontecerá certamente isso com todos os espectadores. E porquê? É o conceito do programa que o dita. Quem fala é responsável pelo que diz e quem ouve é responsável pelas conclusões que tira. O "Plano Inclinado" é uma introdução à cidadania. Diz-nos enquanto decorre e eu digo-o depois de a ele assistir: "somos todos responsáveis! Haja ferramentas..."
A minha avaliação pessoal sobre o programa nem sequer é positiva. Considero que muitos intervenientes ficam claramente aquém do seu papel e da sua crítica, por exemplo. Mas prezo bastante o facto de que, em geral, não se colocam tão pouco além do seu papel e da sua crítica.
E prezo, sobretudo, o respeito que o conceito do programa revela pela capacidade de ser eu a decidir o que penso de tudo aquilo. O respeito pela inteligência dos outros não é um valor muito estimado em Portugal e isso reflecte-se na televisão portuguesa. Se fosse, um programa que pratica o respeito não seria exemplo praticamente único, inserido na grelha de um canal temático, emitido a horas tardias.
Não sei porquê, ao assistir a certos episódios mais contundentes, daqueles em que se punham nomes aos bois e aos boys, pensava para com os meus botões que poderíamos estar perante um exemplo de que afinal alguma coisa mudou de facto em Portugal. A denúncia pública dos responsáveis pelos problemas do país, feita de forma sistemática e sustentada, é possível sem que estes ou as forças obscuras que os comandam caiam na tentação de intervir. O tique inquisitorial ou pidesco poderiam estar a desvanecer-se finalmente. Desvanecer não é desaparecer, mas, pensei muitas vezes, pode ser, insh'Allah, um sinal de que algo está a mudar.
Ao mesmo tempo, confesso-o, também me perguntava como e se um programa destes iria resistir. Se vencesse o teste do tempo, então sim, estaríamos perante um sinal inequívoco de que algo mudou de facto. O teste do tempo provaria que um programa deste género pode esgotar-se e desaparecer naturalmente com o tempo, por causa das suas fraquezas próprias, mas nunca, fora de tempo, pela tentação da intervenção totalitária.
Ficamos então a saber que o programa foi suspenso, sem data de regresso, para "repensar" o conceito... Não resistiu ao teste do tempo.
Acontecerá certamente isso com todos os espectadores. E porquê? É o conceito do programa que o dita. Quem fala é responsável pelo que diz e quem ouve é responsável pelas conclusões que tira. O "Plano Inclinado" é uma introdução à cidadania. Diz-nos enquanto decorre e eu digo-o depois de a ele assistir: "somos todos responsáveis! Haja ferramentas..."
A minha avaliação pessoal sobre o programa nem sequer é positiva. Considero que muitos intervenientes ficam claramente aquém do seu papel e da sua crítica, por exemplo. Mas prezo bastante o facto de que, em geral, não se colocam tão pouco além do seu papel e da sua crítica.
E prezo, sobretudo, o respeito que o conceito do programa revela pela capacidade de ser eu a decidir o que penso de tudo aquilo. O respeito pela inteligência dos outros não é um valor muito estimado em Portugal e isso reflecte-se na televisão portuguesa. Se fosse, um programa que pratica o respeito não seria exemplo praticamente único, inserido na grelha de um canal temático, emitido a horas tardias.
Não sei porquê, ao assistir a certos episódios mais contundentes, daqueles em que se punham nomes aos bois e aos boys, pensava para com os meus botões que poderíamos estar perante um exemplo de que afinal alguma coisa mudou de facto em Portugal. A denúncia pública dos responsáveis pelos problemas do país, feita de forma sistemática e sustentada, é possível sem que estes ou as forças obscuras que os comandam caiam na tentação de intervir. O tique inquisitorial ou pidesco poderiam estar a desvanecer-se finalmente. Desvanecer não é desaparecer, mas, pensei muitas vezes, pode ser, insh'Allah, um sinal de que algo está a mudar.
Ao mesmo tempo, confesso-o, também me perguntava como e se um programa destes iria resistir. Se vencesse o teste do tempo, então sim, estaríamos perante um sinal inequívoco de que algo mudou de facto. O teste do tempo provaria que um programa deste género pode esgotar-se e desaparecer naturalmente com o tempo, por causa das suas fraquezas próprias, mas nunca, fora de tempo, pela tentação da intervenção totalitária.
Ficamos então a saber que o programa foi suspenso, sem data de regresso, para "repensar" o conceito... Não resistiu ao teste do tempo.
2011/02/22
Rio sem rir
Num seminário sobre regionalização e revisão constitucional, Rui Rio usou palavras fortíssimas para classificar a situação actual. Observou que a "economia está de gatas", acrescentou que temos gente que "está a sofrer por causa disso e vamos ainda ter mais gente a sofrer por causa disso". Descobriu que o sistema é "injusto para com essas pessoas". Classificou a dívida pública de "monstruosa". A dívida externa, rematou, é "ainda pior". Recordou os princípios do 25 de Abril, e sentenciou, grave, que o clima geral é de "impunidade". Atentos e veneradores os orgãos de comunicação reproduzem-lhe fielmente as palavras.
São necessárias "rupturas", descobriu com brilho nos olhos. E quem as promove? Ora, é muito simples: o PS, o PSD e o CDS, os partidos pleonasticamente considerados "democráticos", "os três que mais se identificam com o regime e a democracia", pois claro, os três pilares do sistema político português.
Os partidos a quem alguma divindade entregou a dura tarefa de governar, estes partidos do arco do poder, são os mesmos... que deixaram a economia de gatas e que com isso fazem sofrer os portugueses. São os mesmos que elevaram a dívida pública à categoria de monstruosa. Os mesmos que fizeram da dívida externa algo ainda pior que uma monstruosidade! Os mesmos que construíram, pedra a pedra, a injustiça do sistema. Os mesmos que são agora convocados por Rui Rio para destruir o sistema...
E Rui Rio diz tudo isto sem rir.
E nós ouvimo-lo também, sem qualquer vontade de rir.
A sério!
São necessárias "rupturas", descobriu com brilho nos olhos. E quem as promove? Ora, é muito simples: o PS, o PSD e o CDS, os partidos pleonasticamente considerados "democráticos", "os três que mais se identificam com o regime e a democracia", pois claro, os três pilares do sistema político português.
Os partidos a quem alguma divindade entregou a dura tarefa de governar, estes partidos do arco do poder, são os mesmos... que deixaram a economia de gatas e que com isso fazem sofrer os portugueses. São os mesmos que elevaram a dívida pública à categoria de monstruosa. Os mesmos que fizeram da dívida externa algo ainda pior que uma monstruosidade! Os mesmos que construíram, pedra a pedra, a injustiça do sistema. Os mesmos que são agora convocados por Rui Rio para destruir o sistema...
E Rui Rio diz tudo isto sem rir.
E nós ouvimo-lo também, sem qualquer vontade de rir.
A sério!
2011/02/20
PRAÇATAHIR DO PAÇO
Séculos de hieróglifos, formas piramidais, paredes de símbolos em diálogos cabalísticos emaranhados, a morte omnipresente e cultuada, faraós de carne e osso o sagrado cu assente em tronos de ouro no serviço quotidiano de adorações, baixos-relevos de perfil dançante em meio corpo sugerindo a outra metade apetecida, figuras hieráticas em consonância ritual com os entrecruzados raios solares, o sol em Deus por justíssima razão, maior que outra que faz de um Deus Deus sem que isso nos aqueça, arquitectura funerária como nenhuma em grandeza e ciência construtiva, os crocodilos do Nilo e uma agricultura fertilizada pela riqueza dos detritos das cheias construíram um mito civilizacional – e a nossa escola, “nos tempos” como se diz em Moçambique, ilustrava tudo isto a cores - a que a figura de Cleópatra, enigmático poder feminino absoluto numa sociedade de absoluto poder masculino, se acrescentava como enigmática cereja no topo da pirâmide que todos vimos, agora as mais das vezes pelos olhos de um turismo obsessivo com camelos e bossas a roçar o burlesco e uma promessa de nariz partido na velha areia a levantar a adrenalina bem comportada.
Nada mais claro do que a pirâmide para se chegar à consciência de uma complexa diversidade das formas em três D, e sou fascinado de cilindros ao alto, cilindriformes mas algo fusiformes porque não, atentando contra a forma cilíndrica, e por poliedros ligeiramente aparentados na vocação de contrariar a gravidade pelo lado da inclinação que fez de Pisa a fama da sua torre. Pois hoje, muito mais tarde na história e com uns faraós de pacotilha descartáveis a mandar mais palpites que exercer poder, mas de uma arrogância personalizada ao vivo enquanto durar o que duram os mandatos, nas cidades que percorremos, raramente conseguimos conviver com seja que grandeza for, afinal, na origem, feita de lógicas artesanais, matemáticas, cáculos geométricos perfeitos e trabalho braçal escravo e colectivo – hoje todos se desvanecem perante o ecrã portátil de um PC, chame-se-lhe Magalhães ou Maçã. Hoje as formas são mais comuns pela falta de arrojo porque o arrojo é kitsch, blasé, prédio em forma de guitarra portuguesa com brilhos de madrepérola chinesa e sons de fado requentado no sonho rasteiro. É apenas endinheirado ou megalómano e faltando-lhe uma sustentação ritual humanamente convicta e anterior, como aquela que levou os homens a converter justamente o Sol em Deus. Pobres e pouco arrojadas certas partes das nossas cidades e mesmo as partes mais “sagradas” estão longe de praticar o arrojo a que esta arquitectura funerária chegou em diálogo com a morte e a eternidade – as excepções andarão por aí, poucas e austeras talvez.
Difícil será dizer que a tecnologia, hoje em dia, alcançou ou alcance o feito das pirâmides, tendo em conta a relativização das engenharias construtivas comparando épocas. Estamos de facto na era dos mercados, das fundações, dos banqueiros e das bolsas, e os poderes eleitos não têm na verdade projectos democráticos capazes de contrariar o princípio imposto da força dos interesses imediatos – os juros sobem e descem diariamente numa febre imposta a todos - a bloquear outros futuros. Não termos futuro fora dos juros da dívida é de um alcance não só reles como feito por vir, mas verdadeiramente rasteiro como destino. Os poderes de facto têm um défice de imaginação semelhante ao que equivale em imaginação o princípio reles da concorrência e do consumo (princípio da realidade dirá o outro voltando-se na tumba) ditados pela força massiva da convergência do desejo aquisitivo, construído pela vivência do simulacro de vida que as formas publicitárias engendram como auto-consciência possível – grande frase com raios, mas creio que justa!
E tudo mudou com a Praça Tahir, mesmo as pirâmides que o turismo já traíra pelo exercício até à náusea dessa doença fabril da foto de recordação ao serviço de uma nostalgia de pacote em previsão de culto mórbido, com ou sem netinhos. Mudou tudo a Praça Tahir. Praça que, como toda a Praça, é um lugar de libertação. As praças são lugares de memória, de acumulação de factos e feitos, de coragem, de atentados, de luta política e de encontro, de correrias e frentes a frentes, confronto. Quem não marca encontros numa Praça também, lugar absolutamente exposto, última probabilidade de uma conspiração e por isso apetecível? E procuro a nossa praça, a praça possível da nossa cólera convertida em actos e explosões colectivas, energias novas varrendo a mediocridade e a corrupção instaladas, capazes de ajudar a varrer os que da democracia fizeram a Casa Pia, a Dívida Pública, a face oculta, os negócios em horizonte curto e a democracia como instrumento. O Terreiro do Paço? O símbolo de séculos de centralismo exercido por todos os recém-chegados das Beiras altas e baixas e outros aparentados provincianos de costas para as suas origens, com desejo cego de Paço? Que outra Praça deitar por terra vivendo-a de outro modo, agora que a refizeram? Os Aliados? O Rossio, o pequenino rossio, sem tamanho para Revolução alguma e com aquele Teatro Nacional tacanho e coxo ao serviço de um pequeno meio também tecendo o atraso e o arcaico pós modernamente?
Quando os cravos tomaram conta de Lisboa, bem me lembro, por ter estado no Carmo e na Trindade, também no Rossio e no Terreiro do Paço, foi necessário ocupar a cidade, toda ela. Mas agora, sem os militares, mais corporativos do que nunca, o caminho é mesmo o Terreiro do Paço sem eles. Avancemos, comecemos a avançar, o primeiro passo atrairá os outros.
Nada mais claro do que a pirâmide para se chegar à consciência de uma complexa diversidade das formas em três D, e sou fascinado de cilindros ao alto, cilindriformes mas algo fusiformes porque não, atentando contra a forma cilíndrica, e por poliedros ligeiramente aparentados na vocação de contrariar a gravidade pelo lado da inclinação que fez de Pisa a fama da sua torre. Pois hoje, muito mais tarde na história e com uns faraós de pacotilha descartáveis a mandar mais palpites que exercer poder, mas de uma arrogância personalizada ao vivo enquanto durar o que duram os mandatos, nas cidades que percorremos, raramente conseguimos conviver com seja que grandeza for, afinal, na origem, feita de lógicas artesanais, matemáticas, cáculos geométricos perfeitos e trabalho braçal escravo e colectivo – hoje todos se desvanecem perante o ecrã portátil de um PC, chame-se-lhe Magalhães ou Maçã. Hoje as formas são mais comuns pela falta de arrojo porque o arrojo é kitsch, blasé, prédio em forma de guitarra portuguesa com brilhos de madrepérola chinesa e sons de fado requentado no sonho rasteiro. É apenas endinheirado ou megalómano e faltando-lhe uma sustentação ritual humanamente convicta e anterior, como aquela que levou os homens a converter justamente o Sol em Deus. Pobres e pouco arrojadas certas partes das nossas cidades e mesmo as partes mais “sagradas” estão longe de praticar o arrojo a que esta arquitectura funerária chegou em diálogo com a morte e a eternidade – as excepções andarão por aí, poucas e austeras talvez.
Difícil será dizer que a tecnologia, hoje em dia, alcançou ou alcance o feito das pirâmides, tendo em conta a relativização das engenharias construtivas comparando épocas. Estamos de facto na era dos mercados, das fundações, dos banqueiros e das bolsas, e os poderes eleitos não têm na verdade projectos democráticos capazes de contrariar o princípio imposto da força dos interesses imediatos – os juros sobem e descem diariamente numa febre imposta a todos - a bloquear outros futuros. Não termos futuro fora dos juros da dívida é de um alcance não só reles como feito por vir, mas verdadeiramente rasteiro como destino. Os poderes de facto têm um défice de imaginação semelhante ao que equivale em imaginação o princípio reles da concorrência e do consumo (princípio da realidade dirá o outro voltando-se na tumba) ditados pela força massiva da convergência do desejo aquisitivo, construído pela vivência do simulacro de vida que as formas publicitárias engendram como auto-consciência possível – grande frase com raios, mas creio que justa!
E tudo mudou com a Praça Tahir, mesmo as pirâmides que o turismo já traíra pelo exercício até à náusea dessa doença fabril da foto de recordação ao serviço de uma nostalgia de pacote em previsão de culto mórbido, com ou sem netinhos. Mudou tudo a Praça Tahir. Praça que, como toda a Praça, é um lugar de libertação. As praças são lugares de memória, de acumulação de factos e feitos, de coragem, de atentados, de luta política e de encontro, de correrias e frentes a frentes, confronto. Quem não marca encontros numa Praça também, lugar absolutamente exposto, última probabilidade de uma conspiração e por isso apetecível? E procuro a nossa praça, a praça possível da nossa cólera convertida em actos e explosões colectivas, energias novas varrendo a mediocridade e a corrupção instaladas, capazes de ajudar a varrer os que da democracia fizeram a Casa Pia, a Dívida Pública, a face oculta, os negócios em horizonte curto e a democracia como instrumento. O Terreiro do Paço? O símbolo de séculos de centralismo exercido por todos os recém-chegados das Beiras altas e baixas e outros aparentados provincianos de costas para as suas origens, com desejo cego de Paço? Que outra Praça deitar por terra vivendo-a de outro modo, agora que a refizeram? Os Aliados? O Rossio, o pequenino rossio, sem tamanho para Revolução alguma e com aquele Teatro Nacional tacanho e coxo ao serviço de um pequeno meio também tecendo o atraso e o arcaico pós modernamente?
Quando os cravos tomaram conta de Lisboa, bem me lembro, por ter estado no Carmo e na Trindade, também no Rossio e no Terreiro do Paço, foi necessário ocupar a cidade, toda ela. Mas agora, sem os militares, mais corporativos do que nunca, o caminho é mesmo o Terreiro do Paço sem eles. Avancemos, comecemos a avançar, o primeiro passo atrairá os outros.
2011/02/16
A justiça da moda

Troquemos isto por miúdos. Um homem manobrava uma escavadora que transportava uma pesada pá junto a uma linha de caminho de ferro na zona da Azambuja. A pá caiu na linha, enquanto o comboio se aproximava e o homem tentou libertar a linha e evitar um acidente grave. Conseguiu fazê-lo mas perdeu a vida neste "acto heróico" que podia ter tido "consequências terríveis", segundo o acórdão do STJ. A CP, indiferente à heroicidade, que evitou certamente consequências bem mais gravosas para si, move uma acção à família pelos prejuízos que, alegadamente, o acidente provocou.
Há uma quantas perguntas que me surgem no espírito.
Primeiramente, não sei quais são as condições financeiras desta família, mas pergunto-me o que leva uma empresa como a CP, uma E.P.E. que vive da caridade pública e acumula prejuízos de gestão verdadeiramente inacreditáveis, a virar-se assim contra esta família? Que significado financeiro teve e tem esta decisão?
Em segundo lugar, há algo que me deixa verdadeiramente perplexo. Independentemente de no plano meramente técnico a sentença poder ser correcta, haverá justiça na condenação de uma família por um acto cometido por um seu membro, que, por acaso, até perdeu a vida nesse acto e evitou com isso uma tragédia maior, conforme reconhece o próprio STJ? Não tiveram castigo suficiente? Não haverá clemência, direito a "perdão"? Não deveria a sociedade reconhecer o exemplo, a dádiva e reparar a perda, em vez de condenar implicitamente o acto? A Justiça leva vinte anos para decidir isto?
O que está o STJ a dizer aos cidadãos com esta sentença?
Finalmente, estamos manifestamente perante um caso de aplicação da dura lex. Se e quando a CP prevaricar, vamos ter uma aplicação equivalente desta dura lex? Ou o peso corporativo fará desequilibrar o prato da balança?
2011/02/15
O dedo e a lua
Anda o país em "polvorosa" por causa de uma canção dos "Deolinda" e da moção de censura anunciada pelo Bloco de Esquerda. Não está em causa a "correcção política" de qualquer das intervenções, uma mais artística, outra mais política, ambas discutíveis na forma, mas interessantes no conteúdo. Independentemente do que cada um possa pensar da estética de intervenção dos Deolinda, ou da oportunidade da moção anunciada, uma coisa é certa: o desemprego é galopante, os falsos recibos verdes são uma prática comum e os novos desempregados têm a melhor formação das últimas gerações. Só licenciados são 50.000! Um maná para os empregadores que podem contratar estagiários e tarefeiros ao preço da "uva mijona". Esta é que é a realidade.
Logo, algo está errado neste modelo de desenvolvimento e não é culpa da crise actual (que tem as costas largas!), muito menos dos Deolinda ou do BE, quando todos os anos saem milhares de jovens das universidades, muitos deles com mestrados e doutoramentos, aos quais nada mais resta do que emigrar para outro país. Também não nos parece uma inevitabilidade que tal aconteça, pois há muito tempo que as "cassandras da desgraça" vêm alertando para uma estratégia (!?) suicida do mau aproveitamento da nossa melhor matéria, os recursos humanos.
Como sempre, os jornais fazem "manchete" do que não interessa e os papalvos lêem os títulos e acreditam. Cada um acredita no que quer. Até nas notícias que não interessam. Como diz o provérbio chinês, "olha para a Lua e não para o dedo que para ela aponta".
Logo, algo está errado neste modelo de desenvolvimento e não é culpa da crise actual (que tem as costas largas!), muito menos dos Deolinda ou do BE, quando todos os anos saem milhares de jovens das universidades, muitos deles com mestrados e doutoramentos, aos quais nada mais resta do que emigrar para outro país. Também não nos parece uma inevitabilidade que tal aconteça, pois há muito tempo que as "cassandras da desgraça" vêm alertando para uma estratégia (!?) suicida do mau aproveitamento da nossa melhor matéria, os recursos humanos.
Como sempre, os jornais fazem "manchete" do que não interessa e os papalvos lêem os títulos e acreditam. Cada um acredita no que quer. Até nas notícias que não interessam. Como diz o provérbio chinês, "olha para a Lua e não para o dedo que para ela aponta".
2011/02/13
Um retrato perturbante do País
Depois de Augusta Martinho, a senhora que apareceu mumificada ao fim de 9 anos de encarceramento na sua casa da Rinchoa, há um novo caso de um idoso que, suspeita-se , terá permanecido morto na sua casa em Cantanhede durante três meses.
Um país em falência, cujos velhos morrem sozinhos em casa e aí permanecem sem ninguém parecer dar por isso. Um país em falência cujos novos se ausentam, para ir buscar novamente na emigração a sua salvação económica. Esta ausência, para tratar da vida, talvez explique aliás a dificuldade, que pelos vistos se está a tornar regra, em dar conta da morte dos velhos nos sarcófagos da Rinchoa ou de Cantanhede.
São muitos os que se mostram escandalizados com tudo isto. Não talvez o suficiente, contudo.
A verdade é que falta deitar seriamente mãos à obra e criar as condições necessárias para atacar as causas remotas desta morte solitária dos velhos e desta nova morte longínqua para que empurrámos os novos.
PS- E vão três!
Um país em falência, cujos velhos morrem sozinhos em casa e aí permanecem sem ninguém parecer dar por isso. Um país em falência cujos novos se ausentam, para ir buscar novamente na emigração a sua salvação económica. Esta ausência, para tratar da vida, talvez explique aliás a dificuldade, que pelos vistos se está a tornar regra, em dar conta da morte dos velhos nos sarcófagos da Rinchoa ou de Cantanhede.
São muitos os que se mostram escandalizados com tudo isto. Não talvez o suficiente, contudo.
A verdade é que falta deitar seriamente mãos à obra e criar as condições necessárias para atacar as causas remotas desta morte solitária dos velhos e desta nova morte longínqua para que empurrámos os novos.
PS- E vão três!
2011/02/12
Autofilatelia pesada...
Para desanuviar temporariamente dos grandes temas da actualidade, aqui está uma notícia insólita e perturbante. Segundo o Sol, "Os CTT apresentaram uma queixa-crime no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa contra a Mercedes-Benz Portugal, por alegada falsificação de selos." A notícia está aqui.
Resta esperar que não tenha sido a única solução encontrada para contrariar a esperada quebra de vendas do sector, esta da empresa agora se virar para a filatelia.
Que levem a carta a Garcia e que não se trate então de uma aposta restante...
Resta esperar que não tenha sido a única solução encontrada para contrariar a esperada quebra de vendas do sector, esta da empresa agora se virar para a filatelia.
Que levem a carta a Garcia e que não se trate então de uma aposta restante...
2011/02/11
Os heróis da praça da libertação
Há festa no Cairo e não é razão para menos.
Dezoito dias após as primeiras manifestações que encheram a praça de Tahrir, os egípcios viram hoje a sua principal reivindicação satisfeita: a saída de Mubarak. Era uma exigência antiga, mas a ditadura militar, longa de trinta anos, resistia a todos os protestos. Com o apoio dos Estados Unidos e agitando o papão do fundamentalismo islâmico, Mubarak soube construir a imagem que convinha ao Ocidente. Afinal, ele podia orgulhar-se de ter assinado o mais durável acordo de Paz com Israel e, simultaneamente, manter a "irmandade muçulmana" fora do poder. Dito de outro modo, "era um sacana, mas era o nosso sacana".
As coisas começaram a mudar com a revolta na vizinha Tunísia. Se os tunisinos conseguiram, os egípcios haviam de conseguir também. Dezoito longos dias e 300 mortes mais tarde, durante os quais o Mundo pode seguir em directo o heróico braço de ferro entre os ocupantes da praça da libertação e o governo, o povo venceu. Mubarak demitiu-se hoje ao fim da tarde.
Ainda é cedo para extrair conclusões de um processo que vai, agora, iniciar-se. O exército, principal sustentáculo da ditadura, continua intacto e o substituto do presidente deposto é, ele mesmo, um militar. Ou seja, o período de transição necessário às mudanças de regime, terá sempre a supervisão militar. Nada garante que este se mantenha neutral, pois não quererá perder as regalias que os 1,3 mil milhões de dólares anuais dos Estados Unidos lhe garantem. Esta é, no momento, a grande incógnita: até onde poderão ir as reformas?
Uma coisa parece certa. Nada será como dantes. No Egipto e nas ditaduras mais ou menos musculadas da região. Repúblicas ou monarquias, todos terão de mudar e é bom que o façam depressa, para não terem de sair à força. Esta é a grande lição destas semanas alucinantes.
Para já, o tempo é de festa e só por isso devemos regozijar-nos.
Dezoito dias após as primeiras manifestações que encheram a praça de Tahrir, os egípcios viram hoje a sua principal reivindicação satisfeita: a saída de Mubarak. Era uma exigência antiga, mas a ditadura militar, longa de trinta anos, resistia a todos os protestos. Com o apoio dos Estados Unidos e agitando o papão do fundamentalismo islâmico, Mubarak soube construir a imagem que convinha ao Ocidente. Afinal, ele podia orgulhar-se de ter assinado o mais durável acordo de Paz com Israel e, simultaneamente, manter a "irmandade muçulmana" fora do poder. Dito de outro modo, "era um sacana, mas era o nosso sacana".
As coisas começaram a mudar com a revolta na vizinha Tunísia. Se os tunisinos conseguiram, os egípcios haviam de conseguir também. Dezoito longos dias e 300 mortes mais tarde, durante os quais o Mundo pode seguir em directo o heróico braço de ferro entre os ocupantes da praça da libertação e o governo, o povo venceu. Mubarak demitiu-se hoje ao fim da tarde.
Ainda é cedo para extrair conclusões de um processo que vai, agora, iniciar-se. O exército, principal sustentáculo da ditadura, continua intacto e o substituto do presidente deposto é, ele mesmo, um militar. Ou seja, o período de transição necessário às mudanças de regime, terá sempre a supervisão militar. Nada garante que este se mantenha neutral, pois não quererá perder as regalias que os 1,3 mil milhões de dólares anuais dos Estados Unidos lhe garantem. Esta é, no momento, a grande incógnita: até onde poderão ir as reformas?
Uma coisa parece certa. Nada será como dantes. No Egipto e nas ditaduras mais ou menos musculadas da região. Repúblicas ou monarquias, todos terão de mudar e é bom que o façam depressa, para não terem de sair à força. Esta é a grande lição destas semanas alucinantes.
Para já, o tempo é de festa e só por isso devemos regozijar-nos.
11 de Fevereiro de 2011
Do corpo dos nossos mortos
E da sua alma
Irradiou uma voz
Que subiu ao céu,
Uma espiral
Cujo eco
Tornará a descer
Poderoso.
Uma hoste de cólera.
Marthiya de Abdel Hamid
Segundo Alberto Pimenta
Confissão tardia
Confesso que nunca me confessei. Também é verdade que não tenho um iPhone. Estou tramado.
Parágrafo extemporâneo - Do ego à idolatria
Parece que passar a própria fronteira do eu é qualquer coisa que a pele limita como exterior do corpo, a sua alfândega simbólica e real, isto é, o corpo, a pele e os sentidos são as nossas antenas ao fora de nós e simultaneamente a porta de entrada para o exercício de todas as sensibilidades e subjectividades, quando o sensorial toca as cordas do sensível e o faz ficcionar ou mesmo quando fica ali na beira, à espera de se expressar ou perceber, já que os sentidos não são propriamente um sensor de descodificações absolutamente científico, se é que isso existe, esse absoluto científico, e não é mais uma ficção sempre em busca de uma confirmação que não vem e esse nunca vir é a nossa própria existência. Mais que animal político somos animal de ficções e essa é a descoberta do capitalismo cultural, a matéria dos sonhos, o desejo e as suas vias, como mercadoria. Teremos dificuldade em sair da própria pele e o outro, essa abertura ao outro, é temporária, como se a identidade, sob a forma de uma solidão fatal nos cerceasse a própria vontade do outro em nós, essa troca sem troca, essa identidade dual. E quando projectamos esse egocentrismo num ídolo, ou em qualquer fetiche, o que fazemos é regressar a nós, ou melhor perdermo-nos numa deriva do desejo que é marcada por algo que significa deixar de ser, temporariamente, para voltar ao reduto do eu, seguro porto de abrigo. Já o amor é outra praia. Como se de facto nos tocasse com uma varinha de condão de outro tipo que não a fábula que infantiliza e de repente fosse algo como sentir que a água ligeira da maré que nos toca os pés, macia e fresca ali ao verão mas sem excessos de temperatura, nos integrasse numa outra realidade e essa é o cosmos. Aí a abertura ao outro é realizada no exterior do mundo que o mercado dita, pois na realidade só acontece quando não é ditada pelas condicionantes da mercadificação total.
2011/02/10
Mubarak: pouco e tarde
Parece claro que o discurso de Mubarak ficou claramente aquém das expectativas (para quem tinha expectativas...). A revolta no Egipto ficou mais distante de uma solução e o futuro imediato parece apontar para um levantamento ainda mais violento. Os egípcios querem Mubarak simplesmente fora de cena.
Também os parceiros políticos do Egipto, pode-se imaginar, não terão ficado certamente tranquilizados com as palavras de Mubarak.
Não deixa de ser curioso verificar que o ainda presidente privilegiou claramente no seu discurso a juventude, dirigindo-se-lhe em primeiro lugar, se bem que de forma paternalista, e fazendo-lhe o rapapé com a promessa de castigar os autores das mortes que esta revolução já gerou. A juventude egípcia já mostrou que não se deixa impressionar com manobras dilatórias, discursos de transferência pacífica de poder, de diálogo construtivo, e muito menos com o papão do telecomando a partir do estrangeiro do curso dos acontecimentos. O Twitter, o Facebook e os SMS, são um simples visto para os jovens egípcios passarem a fronteira electrónica, não para entrar no Egipto.
No momento exacto em que Mubarak fazia o seu discurso, víamos nos diferentes canais de televisão esses jovens a mostrar-lhe os sapatos e líamos nos newsfeeds das agências noticiosas e dos jornais que a multidão lhe gritava para que se fosse embora.
Víamos isto na hora, embora a milhares de quilómetros de distância. Será que ele não viu?
Também os parceiros políticos do Egipto, pode-se imaginar, não terão ficado certamente tranquilizados com as palavras de Mubarak.
Não deixa de ser curioso verificar que o ainda presidente privilegiou claramente no seu discurso a juventude, dirigindo-se-lhe em primeiro lugar, se bem que de forma paternalista, e fazendo-lhe o rapapé com a promessa de castigar os autores das mortes que esta revolução já gerou. A juventude egípcia já mostrou que não se deixa impressionar com manobras dilatórias, discursos de transferência pacífica de poder, de diálogo construtivo, e muito menos com o papão do telecomando a partir do estrangeiro do curso dos acontecimentos. O Twitter, o Facebook e os SMS, são um simples visto para os jovens egípcios passarem a fronteira electrónica, não para entrar no Egipto.
No momento exacto em que Mubarak fazia o seu discurso, víamos nos diferentes canais de televisão esses jovens a mostrar-lhe os sapatos e líamos nos newsfeeds das agências noticiosas e dos jornais que a multidão lhe gritava para que se fosse embora.
Víamos isto na hora, embora a milhares de quilómetros de distância. Será que ele não viu?
O estado social que temos
A descoberta de um cadáver, velho de nove anos, num andar de um condomínio dos subúrbios de Lisboa, é grave por diversas razões. Desde logo as responsabilidades da família directa que, apesar dos sinais existentes, não exigiu às autoridades uma acção consentânea com o desaparecimento da familiar; depois, o laxismo das autoridades, no caso a GNR, que preferiu ignorar os avisos de uma vizinha e de um familiar, recusando dar seguimento aos seus pedidos para forçar a porta da habitação; por fim, os serviços da segurança social e finanças que, durante anos a fio, nunca se questionaram sobre o não levantamento da pensão de reforma e o pagamento de impostos pela falecida. Que a vizinhança, de uma forma geral, nunca se tenha questionado sobre o repentino desaparecimento de uma idosa que vivia só, é apenas mais um dado a acrescentar ao individualismo e à solidão existentes nesta sociedade.
Temos pois, aqui, dois problemas de há muito conhecidos: a falta de solidariedade e crescente isolamento na sociedade portuguesa; e as insuficiências de um estado pretensamente "social" que falha em toda a linha em questões tão prementes como o apoio a idosos, certamente o grupo mais frágil de uma sociedade doente.
Finalmente, a descoberta deste insólito e macabro caso, que só foi possível graças à acção de penhora e a venda em leilão da habitação em questão. Ou seja, foi preciso haver uma dívida ao fisco, para as autoridades descobrirem o que o "simplex" não conseguiu em nove anos de descuido social. Quando os cidadãos deixam de contar como pessoas e passam a simples números fiscais, é isto que pode acontecer. Resta-nos a consolação de que, mais tarde ou cedo, o fisco acabará por dar sempre connosco. Na pior das hipóteses, nove anos depois de mortos.
Temos pois, aqui, dois problemas de há muito conhecidos: a falta de solidariedade e crescente isolamento na sociedade portuguesa; e as insuficiências de um estado pretensamente "social" que falha em toda a linha em questões tão prementes como o apoio a idosos, certamente o grupo mais frágil de uma sociedade doente.
Finalmente, a descoberta deste insólito e macabro caso, que só foi possível graças à acção de penhora e a venda em leilão da habitação em questão. Ou seja, foi preciso haver uma dívida ao fisco, para as autoridades descobrirem o que o "simplex" não conseguiu em nove anos de descuido social. Quando os cidadãos deixam de contar como pessoas e passam a simples números fiscais, é isto que pode acontecer. Resta-nos a consolação de que, mais tarde ou cedo, o fisco acabará por dar sempre connosco. Na pior das hipóteses, nove anos depois de mortos.
Nuno Teotónio Pereira: a minha homenagem
Falo da homenagem de sábado passado, em que participei, a Nuno Teotónio Pereira.
Sabendo que a grandeza desse homem está muito para lá das homenagens que lhe possam fazer, também vou tentar a minha. Vai por escrito, contando histórias, porque de viva voz não conseguiria.
Quando, na referida sessão, lhe tocou falar, a primeira coisa que o Nuno fez foi tornar a homenagem extensiva «a todos aqueles que conhecemos e lutaram naqueles anos difíceis»; assim acompanhado, a homenagem parecia tolerável a esse homem humilde e solidário. Depois informou que, estando a chegar aos 90 anos, tinha órgãos a falhar, um deles «a memória, que se está a desfazer como pó». Falou não como quem se queixa, mas como quem se justifica, quase que a pedir desculpa, por já não poder ir a todas, como antes fazia.
Fazia mesmo!
Ora vejam:
Costumo passar pela FNAC, em cuja sala de leitura leio uma ou outra passagem de livros que não pretendo comprar, mas que quero ler.
Estava eu, um dia do ano de 2007, nessa actividade, quando ouvi pela instalação sonora o anúncio de que ia ocorrer o lançamento do livro Entre as Brumas da Memória, de Joana Lopes. Tinha visto uma referência sobre o mesmo no Expresso: tratava-se de reportar a acção do sector católico progressista, com que também tive ligação, e resolvi ir ao lançamento, no andar de cima.
Encontrei uma série de amigos e conhecidos que não via há anos, pois, embora alguns de nós tenhamos coincidido em actividades cívicas subsequentes, essa minha fase católica acabou aos vinte e poucos anos.
Ao lado da autora, na mesa, estava Nuno Teotónio Pereira. José Manuel Galvão Teles, também na mesa, referiu que, consultando os documentos do livro, havia muitas pessoas que participaram em várias das acções de católicos progressistas constantes do livro (abaixo-assinados, manifestos, fundação de cooperativas, edição de revistas, etc.), mas só havia uma que participara, em posição de destaque, em TODAS. Adivinhem quem; evidentemente Nuno Teotónio Pereira.
Esta revelação motivou uma grande ovação por parte dos assistentes.
Nuno, que ouve mal, não deve ter percebido bem a referência, pois viu-se que se debruçou sobre Joana Lopes (a autora), certamente informando-se sobre o que tinha sido dito.
Quando foi a sua vez de falar, começou por se regozijar por falar depois de Galvão Teles, pois podia corrigir algumas afirmações entretanto feitas. E disse que a sua pessoa não devia ser destacada, pois todas as iniciativas e acções dos católicos progressistas tinham sido colectivas; é certo que ele participara nelas, mas a iniciativa não fora nunca dele, mas de um grupo de activistas. (Não é preciso comentar!)
O resto da intervenção revelou a extraordinária lucidez que mantém; deu, por exemplo, nota de que faltava ao livro a campanha de Delgado de 58, porque acha que, por exemplo, as cartas de D. António, Bispo do Porto, derivam daí.
Disse depois que o angustiara pensar que as primeiras atitudes dos católicos de oposição ao conluio da Igreja com o Estado ditatorial só se tinham registado aos trinta anos de existência da ditadura. E que as primeiras posições colectivas de oposição à guerra colonial por parte de católicos só tinham vindo a público onze anos depois do início desta (em 1972). A sua tese é de que os católicos acordaram muito tarde, devido à força que sobre as suas mentes tinha a hierarquia da Igreja. Que lhes foi difícil libertar-se desta e tomar posições ditadas pelas suas próprias consciências. Aproveitou para, no momento mais comovente do fim de tarde, sacudir a água (os elogios que lhe haviam feito) do capote, dizendo que, talvez por ser mais independente da hierarquia da Igreja, importante tinha sido a figura de Natália (sua mulher, ao tempo, entretanto precocemente falecida), e não ele, no incentivo e dinamização das iniciativas.
Assim, Nuno homenageava a sua querida e saudosa mulher e, ao mesmo tempo, humildemente reduzia a importância da sua própria participação.
Em todo o discurso, Nuno situou-se, não no passado, a que os factos do livro nos remetem, mas na necessidade da aprendizagem, a partir daí, para a acção quotidiana. Para ilustrar esta postura, relembrou que o convidaram para discursar no primeiro 1.º de Maio livre, em representação dos «católicos progressistas». E o que ele disse foi que, nesse mesmo dia, acabara esse «rótulo». Deixava de haver católicos progressistas, pois estes passariam a exercer a sua acção integrados em organizações e partidos, no novo Portugal democrático. O passado já era… agora, profeticamente, ele soube ver onde era preciso mergulhar as mãos para continuar a actuar civicamente e inscreveu-se no MES (onde nos reencontrámos).
Agora que já não pode, ele mesmo, estar na liderança das iniciativas, Nuno preocupa-se com o que continua a precisar de ser feito e apela «a todos, para que, em conjunto ou individualmente, façam o que for necessário, mesmo com risco, para acabar com situações de clamorosa desumanidade que existem no nosso país, muitas vezes mesmo ao nosso lado».
A propósito desta preocupação do Nuno, de sempre estar a pensar no que há a fazer, de preferência a repisar no que está feito, conto agora o que se passou na comemoração dos 60 anos da Luísa Allen, no Banzão. Eu, por essa altura, fazia os possíveis por puxar pelo Vítor Wengorovius, para que ele conseguisse a oportunidade de uma segunda vida, pelo que me encarregara de tratar dele durante as saídas do Alcoitão. Ficámos, pois, na mesma mesa do Nuno. Durante o repasto, contei a história da passagem dos clandestinos, a salto.
O Nuno tinha uma casa em Marvão, no cume daquela inusitada montanha que se ergue na peneplanície alentejana, bem perto da raia. Beneficiando dessa situação privilegiada para a função, uma das actividades a que se dedicava – esta muito arriscada, nesses tempos de ditadura e de guerra colonial – era a de «passador» clandestino. A estratégia, por ele delineada, era a seguinte: um grupo numeroso, mulheres e crianças incluídas, em atitude de alegre passeio pelos campos, enquadrava os fugitivos à tropa, e ia deixá-los do outro lado. Dos cerca de vinte que fomos, regressámos, na circunstância desse dia, dezoito. Quem visse a trupe à ida e à vinda certamente que não iria contar as cabeças e a ausência dos que «saltavam» passaria despercebida. Se a guarda nos atalhasse o passo, o discurso era deixado ao Nuno, o mais velho e responsável, e que o tinha bem preparado. Aconteceu realmente que um GNR nos abordou, mas, felizmente, só à vinda. «Fomos à aldeia espanhola mais próxima comprar caramelos, senhor guarda. Os miúdos gostam imenso!» (Para o confirmar, os miúdos agitavam os seus pacotes de caramelos, efectivamente acabados de comprar na tal aldeia.) O guarda arvorou o seu melhor ar de autoridade, para dizer: «Sabem bem que isso é proibido. Vá lá, desta vez, mas não voltem a fazer.»
Chegados a Marvão, alguns de nós metemo-nos no 4L do Nuno, para ir, pela fronteira, buscar os foragidos, entretanto aboletados numa gruta, no meio do mato, quedos e silenciosos, trementes de medo e de frio. Eram uns bons 40 km que se tinham de fazer, por estrada, até chegar ao local. O Nuno, que conduzia, procurava abreviar o tempo de espera dos rapazes. Às tantas avistámos um polícia, de moto, atrás de nós. Torci os dedos para que não nos incomodasse. Não deu resultado: passou-nos e fez sinal para pararmos. Preparámo-nos para o embate, tentando acalmar-nos uns aos outros. Logo que desmonta, o polícia dirige-se a nós e diz qualquer frase em que avulta o nome denuncia, que os espanhóis dizem acentuando o i. O impacto foi tremendo no meu jovem coração; «estamos tramados», pensei. Contudo, o Nuno parecia manter a sua característica calma olímpica, só Deus sabendo como estaria por dentro. E a coisa logo se resolveu. Como? Denuncía quer dizer multa, em espanhol, e o chui logo se justificou dizendo que vira o nosso carro pisar um traço contínuo. Paga a multa, pensámos: «Ufa, foi por pouco!»
A história provocou risos e um ou outro comentário.
Logo o Nuno atalhou: «Sim, a história tem graça. Mas é passado, e eu estou mais interessado no futuro.» Acabado de se inscrever no PS, queria saber a opinião das cabeças que se sentavam àquela mesa sobre que acção útil seria possível desenvolver, tirando partido da inscrição partidária. O Nuno tinha então 80 anos, era o mais velho da mesa, mas era o que mais se preocupava com o futuro.
Nuno Teotónio Pereira é a pessoa que mais admiro e, para mim, uma referência muito mais importante do que ele próprio pode suspeitar.
Quando se deu o 25 de Abril, eu estava a fazer a tropa no Regimento de Transmissões de Lisboa, em Sapadores, e fui chamado, manhã muito cedo, de emergência, para o quartel, onde fiquei de prevenção. Não tendo tido prévio conhecimento do golpe, fechado no quartel, sem informações do exterior, aconteceu comigo o mesmo que se passou com os emigrados políticos: num primeiro momento, não estava seguro da natureza do golpe – seria democrático, ou uma coisa dos ultras do regime?
Só no dia 26, quando, na messe dos oficiais do quartel, vi pela televisão a reportagem da saída, de Caxias, do Nuno Teotónio Pereira e dos outros prisioneiros políticos, tive a certeza do que se passava e, ainda condicionado pelo medo instilado pelo regime anterior, tentei, encostado à parede da messe, evitar as lágrimas de felicidade, para não manifestar em frente da oficialidade as minhas inclinações antifascistas.
Os dias que se seguiram acabaram com tal tipo de inibição, e eu encetei movimentações de militares dentro do quartel, tentando consciencializá-los, numa perspectiva progressista. Passados uns tempos, vim a encontrar, numa reunião interpartidária em que representava o MES, um rapaz que trabalhara comigo na contabilidade do quartel, representando uma outra organização de esquerda. «Você aqui? Veja lá que, embora considerando-o um gajo porreiro, nunca suspeitei que sob a sua farda de cabo miliciano pulsasse um coração ardente em ímpetos progressistas.» Ao que ele retorquiu que nunca se interessara por política, até ao dia em que, nos tempos de brasa próximos do 25 de Abril em que tudo era possível, promovi uma reunião na messe dos soldados, na qual lhes falei dos seus direitos e deveres cívicos e dos perigos do regresso da velha ordem, contra os quais nos tínhamos de precaver. Só o acaso do encontro com esse meu ex-subordinado na tropa me deu consciência da importância de pequenas acções, como a da tal reunião em que se ganhara mais um adepto para a luta pela liberdade.
É uma das coisas que gostaria de dizer ao Nuno: eu sou um dos «cabos milicianos» das tropas dele. Ele é um dos principais inspiradores da minha dedicação a causas cívicas, individuais ou colectivas, no sentido de contribuir para melhorar as pessoas e as condições de vida.
É uma daquelas personagens de quem se pode dizer «quero ser como ele quando for grande».
Mas não é só isso: é também uma pessoa que me é muito querida. À sua maneira, quase com pudor de o demonstrar, o Nuno é uma pessoa muito afectiva. Por mais que fizesse por isso, nunca me poderia esquecer da cena que se passou vai para 40 anos, tantos quantos os que a minha filha mais velha comemorará este ano (sim, estou velho, também eu).
Deu-se, nesses idos, a coincidência de as nossas respectivas mulheres ficarem grávidas na mesma altura, estando os nascimentos previstos para datas muito próximas. Mas a gravidez da Natália complicou-se e ela morreu antes de dar à luz. Entre a Natália (querida, saudosa Natália) e o Nuno havia uma harmonia perfeita; eram quase uma só pessoa. A sua partida foi uma enorme tristeza para todos nós; para o Nuno, como que a amputação de uma parte do coração.
Tinha a minha filha mais velha muito poucos dias de vida, quando recebemos a visita do Nuno. Na nossa modesta e pouco recheada casa de jovens recém-casados, na Cruz-Quebrada, a porta de entrada dava directamente para a sala. Com o ar sereno de sempre, aquele característico movimento um pouco desajeitado sobre as pernas arqueadas, o Nuno mantinha as mãos atrás das costas enquanto espreitava, com um olhar duma ternura quase envergonhada por se dar a ver, a recém-nascida no berço. As mãos saíram-lhe de trás das costas, para exibirem o presente que seguravam: um casaquinho de bebé. «Foi a Natália que o tricotou, com muito carinho, para a vossa filha.»
O amarelo do casaquinho (a ecografia era uma ferramenta recente, e antes do nascimento não sabíamos o sexo do bebé) encheu a sala de luz, e Nuno pareceu-me um Rei Mago, que teve de arrostar-se com a morte de quem lhe era mais querido, para fazer a sua oferenda.
Eu não queria, mas fraquejo sempre nestes momentos e não consegui evitar que as lágrimas me corressem pela cara.
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