2017/10/02

A noite das facas longas

Eleições: com seis freguesias por apurar (*) é possível concluir duas ou três coisas que se adivinhavam e que, hoje, são claras.
A primeira, diz respeito aos vencedores: desde logo o PS (159 câmaras conquistadas em 308, naquela que foi a maior vitória de sempre do partido) e Assunção Cristas (CDS) que, ao conquistar 4 dos lugares na câmara de Lisboa, não só ultrapassou o melhor resultado de Paulo Portas, como impediu uma maioria absoluta a Fernando Medina (PS).
A segunda, diz respeito aos vencidos: o PSD (98 câmaras conquistadas, naquele que foi o pior resultado do partido em eleições autárquicas) e a CDU que, ao perder 10 câmaras (algumas emblemáticas, como Almada, Barreiro e Beja), caíram para níveis impensáveis há poucos dias atrás.
A terceira, diz respeito aos partidos e movimentos sem grande expressão a nível autárquico: o BE, que elegeu um deputado em Lisboa, ainda que tenha falhado no Porto e em Salvaterra de Magos (duas apostas do partido) e diversos Movimentos de Cidadãos Independentes (17 lugares) que mantiveram a sua percentagem, numa tendência que pode vir a consolidar-se em futuros escrutínios.  
De assinalar, também, a alta abstenção (45%), ainda que as estatísticas nos digam que este ano houve menos 3% do que nas eleições anteriores.
Que concluir destes números?
Desde logo que o PS beneficiou dos bons indicadores do governo (levando por arrasto muita gente a votar "útil") enquanto que o PSD não soube capitalizar algum descontentamento e erros da governação (prevenção e vítimas de fogos, roubo de armamento em Tancos, etc.), apostando num discurso negativo e em candidatos perdedores, que não convenceram os seus eleitores.
Já Assunção Cristas, ao avançar em Lisboa quando os restantes candidatos ainda se encontravam no "bloco de partida", ganhou um "élan" que a sua candidata rival (Teresa Coelho) nunca conseguiria ultrapassar. Um erro de "casting", que poderá custar a "cabeça" a Passos Coelho, o principal culpado desta táctica suícida.
No PCP, as razões do debacle podem ser assacadas ao apoio do partido a este governo, o que dividiu os apoiantes entre "fundos" e "realos", numa contradição que se adivinha dificil de gerir no futuro. Que táctica escolherá Jerónimo de Sousa, a partir de agora? Continuação do apoio (ainda que condicionado) à "geringonça", ou confrontação directa com o governo, através de maiores exigências sindicais, procurando desse modo reconquistar na rua, o que perdeu nas urnas?
Para António Costa, reforçado a nível nacional com os melhores resultados em número de câmaras, freguesias e respectivas associações, o "caminho" nunca pareceu tão fácil. Poderá, agora, optar por continuar com a "geringonça", ou dissolvê-la, provocando uma "crise" que lhe permita antecipar eleições legislativas, com grandes probabilidades de ganhar a maioria absoluta, o que legitimaria o seu governo e dispensaria o apoio dos partidos à sua esquerda.
Uma última palavra para os dois candidatos "párias", que tiveram sorte diferente nas respectivas câmaras: desde logo Isaltino Morais, vencedor incontestado (Oeiras) que, em condições normais, nunca poderia ter-se apresentado a eleições; e André Ventura, um populista e racista "envergonhado" (Loures), que não foi além de um aumento pouco significativo de votos.
Em qualquer dos cenários, parece claro que, com os resultados de ontem, se encerrou um ciclo na política portuguesa. Um novo ciclo, começou hoje. Resta esperar pelas reacções nos principais partidos derrotados. Os "amoladores" de facas, têm um longo trabalho pela frente...

(*) números definitivos      

2017/10/01

Reflexões

Acabei de votar. Como habitualmente, na escola Alice Vieira, onde funciona a mesa de voto da minha freguesia (Águas Livres).  Hoje, como sempre em dias de votação, particularmente animada, com vendedores de "farturas" e de roupa de "marca", junto às portas da escola e da igreja em frente, donde saiam os fiéis da missa das onze, tradicionalmente a mais concorrida.
Lá dentro, a azáfama habitual, com as mesas de voto distribuidas pelas diversas salas dos edifícios que compõem a secção de voto onde, junto às urnas, os diligentes funcionários (muitos deles, conhecidos de anos anteriores) contribuiam para o bom andamento da votação.
De regresso a casa, cruzo-me com os diversos vendilhões, os da rua e os do templo, agora em animados grupos de convívio. Gostei do que vi. Resta aguardar pela noite e confirmar (ou não) uma boa participação eleitoral.
Ligo a televisão e ouço as notícias de Barcelona. Assisto, entre o surpreendido e horrorizado, que há 39 (trinta e nove!) feridos, alguns em estado grave, após confrontos com a polícia espanhola, que teria disparado balas de borracha, para impedir que os catalães pudessem votar em liberdade. Independentemente da opinião que possamos ter sobre o direito à independência da Catalunha, nada justifica tal violência, por parte de um poder centralizado que, apoiando-se em argumentos jurídicos, recusa o diálogo com os independentistas sobre um problema que é político.
Já tive mais certezas sobre uma Catalunha independente, mas nunca tive dúvidas sobre o direito à organização de um referendo, para ajuizar dos desejos do povo catalão. Se tivesse de escolher, apoiaria sempre esse direito, única forma de saber se a constituição actual é aceite pela maioria dos catalães. O mesmo, de resto, é válido para outras regiões europeias consideradas "problemáticas", como o País Basco ou, mais recentemente, a Escócia, que teve direito ao seu referendo.
Uma coisa é certa: se em Madrid pensam que é através da repressão que ganham os catalães para a sua causa, estão redondamente enganados: o mais provável é obterem o efeito contrário. Nada ficará como dantes, após o dia de hoje na Catalunha.
Nas eleições - escolha do povo - em liberdade, aplica-se o mesmo princípio dos clássicos: prognósticos só no fim. Aguardemos, pois, que o dia está para durar...

           

2017/09/29

Baratas Tontas


Este Verão, caiu-me, literalmente, o céu em cima da cabeça.
Passo a explicar: em meados de Julho fui surpreendido para diversas fendas no tecto da minha casa de banho. Alertado, pois já tinha sofrido duas infiltrações provenientes do andar superior, avisei a senhoria. Esta, deslocou-se a minha casa para observar "in loco" os estragos e prometeu uma visita rápida do "mestre de obras", com vista a solucionar o problema rapidamente.
O homem apareceu na mesma noite e foi peremptório na sua avaliação: não se preocupe que isto não cai tão depressa! Passo por cá amanhã e vamos tratar disso.
Nessa madrugada, fui acordado por um estrondo que abanou todo o prédio. O tecto tinha caído parcialmente, mostrando uma abertura onde cabia uma pessoa adulta...
Novo alerta para a senhoria, nova visita do "mestre de obras" e avaliação dos estragos. Foi necessário fazer um tecto falso e substituir a banheira e o autoclismo, entretanto entupidos com o lixo acumulado pelos detritos. Nova canalização e azulejos novos. Quatro dias depois, as obras estavam prontas.
As surpresas surgiram nos dias seguintes: com a mexida na canalização e o calor de Agosto, começaram a aparecer baratas na casa-de-banho, algo inexistente até à data.
Nova queixa para a senhoria, nova visita do "mestre de obras" e novas obras, agora direccionadas à canalização. Não diminuiram as baratas e manteve-se o problema do autoclismo, que não faz bem as descargas, devido à deficiente colocação do dito e à canalização adjacente.
Nova queixa e nova visita do "mestre de obras" com a colocação de uma bomba de água mais sofisticada para facilitar as descargas.
Entretanto, e depois de uma rápida pesquisa na Net, para procurar uma empresa de desbaratização, cheguei a algumas conclusões que partilho com os leitores: estão identificadas mais de 70 variedades de baratas, das quais as mais vulgares, em Portugal, são a barata americana (acastanhada com asas), a alemã (preta, tipo "pantser") e a oriental (castanha alongada). Para além destas espécimes, existem ainda a cubana (verde), a barata da madeira (pequena e esguia) e a australiana (aloirada). Enfim, um verdadeiro jardim zoológico, neste país à beira-mar plantado. Para minha surpresa, entre todas as empresas consultadas, nenhuma me soube indicar se havia espécimes portuguesas e qual o seu aspecto.
Da minha observação empírica e diversos encontros nocturnos com as visitantes que habitam no subsolo da casa, penso estar confrontado com a barata americana (algumas voam) e com a barata oriental (alongada).
Pesem as penosas lutas quase diárias, tenho saído sempre vencedor dos confrontos, o que me dá alguma satisfação. O pior é a reprodução que, de acordo com a literatura especializada, pode atingir milhões de óvulos num só ano...
Tomei duas decisões: contratar uma empresa especializada em desbaratização e contratar um profissional de canalização, para recomeçar as obras, agora a expensas próprias. Para o problema das "baratas portuguesas" ("mestres de obras" incluídos) não encontrei ainda solução. Será que existe?...
     

2017/08/03

Sinais Preocupantes

foto Raul Morgado
Algo está podre no reino da Dinamarca e os meses da "Silly Season" não explicam tudo.
Veja-se o caso dos fogos florestais: há décadas (pelo menos desde os anos sessenta do século passado) que a desertificação do interior português é um facto insofismável. O fenómeno tem vindo a aumentar exponencialmente e foi assinalado em dezenas de estudos e relatórios de "experts" das mais diferentes áreas: administração do território, engenheiros do ambiente, agrónomos, sivicultores, géografos, autarcas, economistas...
A desertificação é um dos problemas que está na origem deste flagelo cíclico, mas não é a única causa. Com o desaparecimento das populações (causado pela emigração em massa dos campos para o litoral e para o estrangeiro) nas décadas de sessenta e setenta, os campos deixaram de ser cultivados e o número de cabeças de gado (pastoreio) diminuiu igualmente. Com as terras abandonadas e sem agricultura/pastoreio, que as mantivesse produtivas, deixou de haver investimento nas zonas rurais, até porque as novas gerações (mais bem preparadas e a viverem em zonas urbanas) não voltaram para as suas localidades de origem, muito menos para os trabalhos agrícolas.
Os que mantêm casas, ou construíram de raiz novas casas, vivem muitas vezes no estrangeiro e só voltam em férias. Os que restam, estão cada vez mais velhos para poderem tratar das parcelas que ainda possuem.
Com a adesão de Portugal à (então) CEE, os terrenos agrícolas (até aí maioritariamente constituidos por uma agricultura de subsistência) foram abandonados (a troco de compensações monetárias) ou reconvertidos em culturas intensivas, que exigiram outro tipo de investimento e productividade. Ficaram as propriedades mais produtivas e diminuiu ainda mais a população agrícola. Sem outros meios de sobrevivência, muitos dos pequenos agricultores dedicaram-se à plantação de eucaliptos, por ser mais rentável e de fácil manutenção.
Acresce, que muitas dessas terras, para além dos eucaliptos, não possuem mais nada e o mato, em seu redor, cresce sem ser tratado. Não existem carreiros entre as árvores e, quando existem, estão muitas vezes cobertos de arvoredo, dado que ninguém trata deles. Porque são privados (97% do total florestado) o estado não pode obrigar os donos a fazê-lo, pois não possui um cadastro de terras actualizado. De resto, não existe cadastro de terras a Norte do Tejo!
Junte-se a isto tudo, a proverbial "falta de meios" humanos e materiais, de que todos os responsáveis se queixam, e começamos a ter uma ideia da situação a que chegámos.
Obviamente, que o calor e as médias de temperatura (a aumentar gradualmente) contribuem para este desastre anunciado. Aqui, a mão humana vale de pouco. Ou melhor, pode valer muito, se houver um consenso internacional que a isso obrigue.
Resta, contudo, uma questão central: se sabemos isto tudo, e os diagnósticos estão feitos, porque é que os gestores da coisa pública (governo, partidos, especialistas) não conseguem chegar a um consenso minímo para atacar este problema estrutural, que afecta não só uma das nossas maiores fontes de riqueza (a floresta), mas todo o país, a começar pelos seus cidadãos?
Outra questão, é a dos famigerados roubos de armas (em Tancos e não só) que regularmente têm lugar e sobre os quais, para além das medidas mais óbvias, pouco ou nada se sabe e, quando se sabe algo, as respostas são tão evasivas e ridículas (veja-se o caso do responsável do SIS que soube do roubo pela comunicação social!) que não sabemos se rir se chorar.
Finalmente, que este "post" já vai longo: ontem despenhou-se uma avioneta na praia de S. João da Caparica quando tentava aterrar na areia (!?). Morreram duas pessoas (entre as quais uma criança de oito anos) que estavam na praia. Podiam ter morrido dezenas. Nos minutos que antecederam o acidente, o piloto comunicou com a torre de comando (Tires) anunciando a pane, enquanto pedia autorização para aterrar...na praia! Ia a cerca de 300 pés (500 metros) que é, de acordo com os "experts", a altura média daquele "corredor" de voo, para não colidir com os aviões de carreira que voam mais alto...Mas passam todos os dias, por ali, dezenas de avionetas. Há anos! Por cima de uma praia, para mais cheia (às 4 horas da tarde) em pleno mês de Agosto. Mas, então, o avião não podia voar por cima do mar, ou o "corredor" é assim tão estreito que as avionetas de treino só podem passar por cima das praias? E o piloto, não podia ter tentado a amaragem no oceano? É a opinião de muitos "experts", de resto. Podia morrer? Claro que podia. E, então? Já nem comento o texto da "pivot" da SICn que, no fim da notícia, dizia que "a avioneta estava intacta e só tinha uma asa partida" (!?). Só tinha uma asa partida? Mas esta gente ensandeceu?
Nem tudo se pode evitar, certamente. Mas, não podemos prever estas e outras coisas, bem mais graves, e estabelecer regras mínimas que reduzam a possibilidade de existirem tais acidentes? Ou isto é tudo "inevitável"? Ou somos todos irresponsáveis, ainda que uns mais que outros, como é óbvio? Não quero acreditar que sejamos assim tão maus.     

2017/07/11

Likes e tiragens


A página do Facebook chamada Truques da Imprensa Portuguesa (TIP) é paragem obrigatória e a sua leitura é sempre um exercício feito com enorme prazer. 
É um verdadeiro serviço público este que nos é prestado.
O acervo do TIP deveria ser leitura recomendada para qualquer estudante de comunicação e referência para todos os actuais jornalistas.
Um subdirector do Público decidiu publicar na sua página do FB a identidade dos administradores do TIP, nunca divulgada por razões que agora se percebem.  Fá-lo em termos reveladores, usando uma linguagem pidesca, que faz lembrar um período que a criatura, quase de certeza, não viveu, mas cujos métodos então empregues parece ter herdado, revelando nesta "denúncia" saber servir-se deles na perfeição.
Significativo é o facto de a página do TIP no Facebook ter seguramente mais seguidores que a tiragem do Público. E significativo é também o facto de, no post onde é feita a "denúncia",  ter sido colocado um esclarecimento (feito em termos bastante dignos e correctos, que contrasta fortemente com a linguagem trauliteira usada pela "denunciante") de um dos administradores do TIP, que tem 5 vezes (pelos menos tinha há umas horas...) mais likes que a própria "denúncia".
O Público — que eu deixei de ler e, posteriormente, de seguir no FB há muito — e os restantes monos da imprensa portuguesa, não se devem admirar quando vêem fugir-lhes público. Devem antes perguntar-se, com toda a humildade, por que razão páginas como  Truques da Imprensa Portuguesa interessam tantos seguidores.
Por que diabo tanta gente quer descobrir os truques da imprensa portuguesa? Por que será...?

2017/07/10

Do Estado de Graça à Lei de Murphy

Escrevemos, há menos de dois meses, que o nosso primeiro-ministro tinha "estrelinha de campeão". A razão era simples: no primeiro ano sob a sua liderança, os sucessos do governo, a nível politico, social e económico (tanto nacional, como internacional) eram inquestionáveis. Relembro: reembolso total ou parcial de salários, pensões e subsídios, cortados entre 2011 e 2015; recuperação das 35 horas semanais; recuperação de 4 feriados nacionais; controlo do "déficit", abaixo das exigências da União Europeia (2,1%); crescimento económico acima da média europeia (2%); redução da taxa de desemprego (9,8%); aumento das exportações (17%); saldo primário positivo (1,8); o melhor ano de sempre do turismo; pagamento antecipado de juros ao FMI, no valor de 1000 milhões de euros, etc... Como se esta "performance" não fosse, já de si, impressionante, Portugal viu o seu candidato (António Guterres) ser eleito secretário-geral da ONU; a equipa de futebol sagrar-se campeã da Europa; um intérprete português ganhar, pela primeira vez, um concurso da Eurovisão e, "last but not least", o país foi visitado pelo Papa, o que não sendo um feito directamente ligado a este governo, contribuiu para a visibilidade e notoriedade de um país reconhecido por ser um dos mais pacíficos e tolerantes do Mundo. Portugal está "in" e do estrangeiro só vinham elogios. Ou seja, o governo do PS, encontrava-se num verdadeiro "estado de graça", confirmado por todas as projecções eleitorais, que lhe dão mais de 40% nas intenções de voto. Perto da maioria absoluta, portanto...
O sucesso foi de tal ordem, que até o circunspecto Schauble, teve de reconhecer os méritos da política financeira do governo, ao comparar o ministro Mário Centeno ao "Ronaldo das Finanças"!
Ora, diz-nos a sabedoria popular, que da mesma forma que "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe", o contrário não é menos verdadeiro. Era quase inevitável que, mais cedo ou mais tarde, esta sucessão de bons indicadores, fosse ensombrada por outros, menos positivos e, eventualmente, tão funestos, que poderiam fazer esquecer todo o resto.
Se tivéssemos de classificar os acontecimentos das últimas três semanas, provavelmente teríamos de apelidá-las de "mensis horribilis", tal a sucessão de factos negativos com que o país (todos nós) foi confrontado de uma só vez.
Registámos: incêndio de proporções gigantescas na zona de Pedrogão-Grande (64 mortos, 200 feridos, 500 habitações e mais de 100 empresas destruídas, 50.000 hectares ardidos - metade da área ardida em 2016), para além das perdas de material diverso, carros, gado, rebanhos e criação, pertencentes às vítimas. O maior furto de armamento em Portugal, à guarda num dos paióis da base de Tancos; demissão compulsiva dos 5 comandantes responsáveis pelos paióis; duas demissões de generais, em protesto contra a medida aplicada aos seus camaradas da base. Três demissões, de outros tantos secretários de estado, por terem aceitado bilhetes da patrocinadora da selecção nacional de futebol para assistirem aos jogos de Portugal em França; fraude e invalidação da prova final de exame de português deste ano, etc. Como se tudo isto não bastasse, António Costa iria de férias em pleno rescaldo do incêndio e estava ausente, aquando do roubo em Tancos.
"Quando as coisas têm de correr mal, tudo pode correr pior", deve ter pensado o primeiro-ministro. E se é verdade que ainda falta apurar muito do que se passou (as comissões de inquérito já foram constituidas e estão a trabalhar), não é menos verdade que, mais do que apontar culpas, há que apontar responsabilidades. Obviamente que a ministra do MAI não poderá ser "culpada" pelo "downburst" ou pelo raio que rachou o eucalipto e incendiou a pradaria, mas é certamente responsável pela coordenação do ministério que supostamente zela pela protecção civil e pelas forças no terreno, assim como dos contratos ruinosos que pagam sistemas inoperantes! Da mesma forma, que o ministro de defesa, não tem de saber quando são feitas rondas aos paióis e se existem buracos na rede da Base de Tancos, mas tem de dotar as forças militares de meios e pessoas que sejam responsáveis pela política seguida.
Ora o que todos estes factos - ainda que não tenham ligação entre si - vieram demonstrar, é a deficiente preparação e coordenação de múltiplos serviços e meios ao dispôr, que agora se acusam mutuamente, num passar culpas verdadeiramente deplorável.
Restam duas observações:
A primeira, diz respeito aos partidos da oposição (PSD/CDS), que não têm qualquer moral para criticar o actual governo, depois dos cortes e do regime de austeridade imposto durante os anos da "Troika", que vieram debilitar todo um sistema de protecção e defesa, já de si pouco funcional. É verdadeiramente extraordinário, que os maiores arautos do neoliberalismo, defensores de "menos estado, melhor estado", venham agora hipocritamente exigir mais responsabilidade ao estado, que eles foram os primeiros a desmantelar.
A segunda, diz respeito aos compromissos com o pagamento da dívida, nalguns casos superados pelo governo (PS) que, indubitavelmente, limitam a capacidade de investimento do estado, em serviços públicos tão essenciais como a protecção e a segurança, mas também a saúde, a educação ou a justiça, para citar três pilares do estado social. Também este governo parece estar "obcecado" pelo "déficit". Ora, como sabemos, o óptimo pode ser inimigo do bom. Querer, à viva força, diminuir o "déficit" para além do exigido (3%), como o fez o governo, pode agradar a Bruxelas e fazer de Portugal "o bom aluno da UE", mas não ajuda a combater melhor os fogos em Portugal.
Como bem observou um comentador da nossa praça, não podemos querer "ter sol na eira e chuva no nabal": ou pagamos a dívida, ou mantemos o estado social a funcionar. É assim.
Já sabemos o que quer a Troika. Resta saber o que quer o governo.
Esperemos que os recentes e tristes episódios, tenham sido um "turning point" na política de prevenção e planeamento dos gestores da coisa pública. De todos os governos. Para pior, já basta assim...

 

            

2017/07/02

Taxi Driver (13)

Foto Think Market

Estação de Metro de São Sebastião da Pedreira, 6 da tarde.
Longas filas de passageiros, muitos deles turistas, tentando entrar nas plataformas.
Do lado interior das cancelas, dois seguranças do metro esbracejam e gritam, tentando impôr alguma ordem no caos: "a linha azul, não funciona, só a linha vermelha, a linha azul não funciona...".
Desisto dos meus propósitos e volto a subir em direcção à rua. Em frente ao El Corte Inglês, vejo dois táxis com passageiros dentro. Dirijo-me para um deles. No passeio, uma senhora espera a sua vez. Não me responde e continua a falar ao telemóvel. O motorista olha-me e faz sinal. Posso entrar.
"Para onde?", pergunta-me
- Para a Buraca, sff...
"Quer ir por onde? Voltamos para trás, ou vou direito ao Monsanto?"
- Pode ir pelo Monsanto, já que está virado para esse lado...
"Isto hoje está um caos".
- Talvez tenha a ver com o Metro. A linha "azul" não funciona e os passageiros estão a ser mandados para trás...
"Então, deve ser por isso. Viu aquela "gaja" de verde, que estava à sua frente?"
- Vi, e até lhe perguntei se ia apanhar o táxi.
"Pois ia...mas queria entrar com um passageiro cá dentro. Eu disse-lhe para esperar e ela foi apanhar o táxi de trás. Era o que faltava! No meu táxi, só entram as pessoas que eu quero..."
- Faz muito bem. De facto, os táxis já tiveram melhores dias...
"A culpa é destes gajos que fazem as leis. São os "Ubers", são os "tuc-tucs", isto é cada um por si e Deus por nós todos"...
- Mas, então não estava para sair uma lei sobre os carros "Uber"?
"Pois estava e está. Há quanto tempo? Pelo menos, desde Outubro passado. Era para ter ficado pronta em Dezembro e estamos em Junho...está a perceber a coisa?"
- O laxismo português, no seu melhor...
"Isto é tudo uma "tanga". Estão todos feitos uns com os outros e ninguém desata o nó. Contratam gajos estudantes com 18 anos, que querem ganhar umas coroas à noite, pagam-lhe à corrida, com recibos verdes, sem seguros nem nada e, quando não precisam deles, "despacham-nos". Eu também posso guiar os carros da "Uber". Fui lá responder ao anúncio: tenho 40 anos de experiência, todos os seguros em dia, pago 3000euros por ano (só do seguro de passageiros), 60 horas de curso de dois em dois anos, fora as revisões do carro, contabilidade organizada, impostos, mais as "alcavalas" do costume...se me dessem 2000euros limpos por mês, com contrato, estava interessado".
- E?...
"Sabe o que o gajo me respondeu? Isso não ganhamos nós aqui...depende tudo dos clientes e dos percursos. Há dias em que muitos dos nossos carros, nem sequer saem..."
- Não falou dos impostos?
"Quais impostos? Mas, você acredita que aqueles "manfios" pagam impostos? Vai tudo para a Holanda, que lá pagam menos. Aos motoristas (os putos de 18 anos) pagam à corrida e a recibo verde. Nem 5 euros liquídos por hora! Não há seguros para ninguém, nem táximetros! Eu, se for apanhado pela fiscalização, podem sempre controlar as corridas que fiz e quanto entrou em caixa. A máquina, não mente. Aqueles gajos, não. O dinheiro passa pelo cartão de crédito e é debitado à cabeça. Grande negócio!"
- Pois é. Há países, como a Dinamarca, onde a "Uber" já foi proibida.
"E fazem eles muito bem. Só cá, neste país de "tansos", é que autorizamos tudo. Uma bandalheira."   
- Se fosse só nos táxis...os transportes públicos, estão uma desgraça. O Metro, então, nem se fala...
"Pois não. Sabe porquê? Porque não têm dinheiro para mandar arranjar as composições e têm de tirar peças das carruagens paradas. Só andam com metade da frota. Por isso faltam combóios!".
- Sim, já li isso. São os próprios directores dos serviços que o dizem.
"Claro. Olhe para os combóios. É a mesma coisa. E os barcos para a outra banda. Só uma parte dos barcos é que está operacional. O resto, está encostado, à espera de reparações e manutenção".
- Com este aumento do turismo, não sei como vai ser...
"Como vai ser? À "portuguesa", como queria que fosse? Olhe para os "tuc-tucs". Sabe quantos são"?
- Sei lá, para aí uns trezentos...
"Quatrocentos e cinquenta!"
- Já?
"Sim, sim. E não têm horários, nem táximetros, levam o preço que querem, podem andar com motores a gasolina a poluir o ambiente, é uma "balda".
- Mas, a Câmara de Lisboa criou uma lei para ordenar os "tuc-tucs"...
"Pois criou. Leis não faltam. Somos o país das leis. Mas, alguém cumpre alguma coisa?"
- Estou de acordo, leis não faltam. Um país onde impera o laxismo.
"E depois, não sabem nada. Nem ruas, nem nada. Como é que hão-de saber? Há dias chegou-se um gajo da "Uber" ao pé de mim e perguntou-me onde ficava a Rua das Titias...eu sei onde fica. Perguntei-lhe se ele tinha GPS. Disse-me que sim, mas o GPS não indicava a rua. É uma rua pequena, ao pé do edifício da RTP, só com duas vivendas de um marquês qualquer...eu disse-lhe: se o GPS não indica, nunca mais vais dar com a rua".
- Pois, também nunca ouvi falar de tal rua...
"E sabe onde fica a Travessa das Bolachas? Pois é, ninguém sabe. Mas, nós, os motoristas de táxi, temos de saber. É a diferença. São muitos anos a "virar frangos", caro amigo"...
- Nada como um bom profissional.
"Bom, chegámos. Desculpe lá o desabafo. Também é preciso. Agora, vou direito a casa, que a "patroa" está lá com o petisco à espera".
- Boa noite.

2017/06/29

More sheep than in Australia

Sábado de madrugada, após uma noite de fados na Mouraria.
Dirigimo-nos, eu e a minha hóspede de nacionalidade holandesa, para a Rua do Bem Formoso, também conhecida pela artéria mais multicultural de Lisboa, àquela hora já com poucas lojas de serviço abertas. A ideia era comprar uma garrafa de água, coisa aparentemente simples. Não conseguimos à primeira e tivemos de atravessar a Bem Formoso no sentido ascendente, até ao Largo do Intendente, que continuava animado. Após os "sightseeings" da praxe (no caso a instalação da Joana de Vasconcelos e a fábrica da viúva Lamego) lá conseguimos comprar a desejada garrafa a preço multicultural...Regressamos, agora através da Almirante Reis, à procura de um táxi. A minha amiga, queixa-se de uma dor na perna, entretanto desmesuradamente inchada e optamos por procurar uma farmácia para medir a tensão. Tudo fechado. De farmácias abertas, nem sinal.
Já na praça Martim Moniz, o almejado táxi. Entramos e enquanto relato ao taxista a dificuldade de encontrar uma farmácia aberta, este diz-nos que àquela hora só na farmácia em S. Mamede, a única que está aberta 24horas por dia. Para lá nos dirigimos. A porta estava fechada, mas o letreiro dizia "aberta". Após umas campainhadas, apareceu o farmacêutico. Fala através do intercomunicador e recusa-se a abrir a porta (!?). Teremos de ir a outra farmácia, diz-nos. Há uma à entrada do largo do Rato. Também aberta 24horas sobre 24horas.
Dirigimo-nos ao Rato. De facto, a farmácia exibia o letreiro "aberta", mas estava fechada. Mesma cena. O farmacêutico recusa-se a abrir a porta, invocando medidas de "segurança", enquanto aponta para uma câmara de televisão postada estrategicamente por cima da sua cabeça. Julgo estar num filme de ficção científica. Dirijo-me ao homem e explico-lhe que ele só tem de medir a tensão à minha amiga. O farmacêutico olha-me com ar aparvalhado e diz-nos não saber mexer no aparelho de medir a tensão que é novo (!?). Aconselha-nos a ir às urgências do hospital S. José, pois pode ser um problema cardiovascular...Volto ao táxi e peço ao motorista para inverter a marcha. Teríamos de ir às urgências. Passava da uma da madrugada, quando demos entrada no hospital de S. José.   
Nas urgências, o ambiente habitual de um sábado à noite: muitas gente jovem, alguns comas alcoólicos e um jovem esmurrado. Àparte isso, três ou quatro casais, aparentemente em sofrimento controlado. O jovem que nos atendeu, falava inglês e foi solicito e prático. Depois de fazer fotocópias dos documentos da minha amiga, chama-lhe a atenção para o facto do cartão de seguros internacional dela, se encontrar caducado desde 2011...Ups, ela nunca tinha reparado nisso! "No problem", sossegou-a o funcionário. Como se tratava de serviço público, ela só pagaria 18euros pela consulta e, depois, quando chegasse à Holanda, tinha de pedir um cartão novo e enviar-lhe rapidamente uma fotocópia, para ele substituir a fotocópia deste, por uma actualizada. De outra forma, teria de pagar 180euros...
Dirigimos-nos depois para o gabinete de triagem onde, após ouvirem a história clínica, lhe deram uma pulseira de cor-verde. Restava esperar...
Eram 7horas da manhã, quando saímos do hospital de São José. Nos intervalos, a minha amiga, foi vista duas vezes, a primeira por uma médica de clínica geral que lhe fez um exame sumário e, mais tarde, por um médico ciurgião cardiovascular, que sugeriu o seu envio para outra unidade hospitalar dentro do complexo do S. José, para ser sujeita a um teste intravenoso. Foi levada numa ambulância, enquanto eu fiquei à espera. Uma hora mais tarde, voltava com um relatório e uma receita passada pelo médico. Teria de mostrar o relatório ao médico de família, quando voltasse à Holanda e seguir a medicação. Aparentemente, tudo em ordem.    
Voltámos à recepção, onde o jovem que nos tinha atendido, continuava de turno. A minha amiga entrega-lhe o relatório do médico e pergunta quanto deve. O funcionário, abre o seu melhor sorriso, enquanto imprime um recibo e diz: "18euro".
"That cheap"? Pergunta admirada a minha amiga.
"Yes. More sheep than in Australia"!...
 

2017/06/13

Morreu o Alípio

O CÍRCULO FECHOU-SE *
(Com um abraço grande para o grande Alípio)

Pediram-me um texto para o Alípio.
Não que seja difícil escrevê-lo. A dificuldade reside em escrever algo que não tenha sido ainda escrito. Por outras palavras, se já tudo foi dito, que poderei eu dizer de novo?
Recuo no tempo e "procuro" nas minhas memórias o dia em que o "conheci".
Se bem me lembro, teria sido em Janeiro de 1976, ano em que José Afonso foi à Holanda cantar, a convite do Festival Contracultura, uma manifestação organizada por diversos movimentos ligados às artes performativas.
Nesse dia, José Afonso, acompanhado pelo inseparável Fanhais, subiu ao palco e, entre diversas canções, dedicou uma a alguém que, à época, ainda se encontrava preso no Brasil. Chamava-se Alípio de Freitas, era português e estava preso por lutar contra a ditadura militar que governava aquele país.
Alguns meses depois, quando passava férias em Portugal, saiu o álbum "Com as minhas tamanquinhas", que me apressei a comprar. Lá estava a mesma canção que o Zeca tinha interpretado em Utrecht. Por alguma razão, que não sei explicar (estas coisas são sempre subjectivas) sempre foi uma das minhas preferidas do álbum e aquela que escutava mais vezes. Lembro-me também de algumas conversas com o Zeca, em posteriores visitas do cantor à Holanda, sobre esta personagem que, lá longe, continuava preso e de quem só ouvia falar através da canção.
Anos mais tarde, tornei-me assinante do semanário "O Jornal", que passei a receber pelo correio. Lembro-me, agora muito bem, das crónicas brasileiras do Alípio, entretanto homem livre e que, à época, era correspondente do jornal.
Passariam muitos anos (mais de uma década) até me convidarem para uma função em Portugal, no CIDAC, onde permaneceria dez meses. Foi aí que encontrei o Alípio de "carne e osso", que era visita frequente do Centro de Documentação. Foram meses de são convívio, entre almoços e jornadas de Educação para o Desenvolvimento, a "especialidade" da casa.
Em 1996, voltei definitivamente a Portugal e reiniciei a minha colaboração com a Associação José Afonso, onde viria a reencontrar o Alípio. Primeiro, em encontros informais; mais tarde, nos corpos sociais da Associação, da qual o Alípio foi presidente entre 2006 e 2009. Muitas foram as conversas, daqueles anos, no percurso entre Lisboa e Setúbal, onde a AJA tem a sua sede. Penso ter sido nessas viagens quinzenais que nos conhecemos melhor.
Entretanto, a AJA fortaleceu-se e alargou a sua influência a outras regiões do país.
Com a criação do núcleo de Lisboa e posterior abertura de uma sede em 2012, voltaria a reencontrar o Alípio, agora frequente animador e participante activo das nossas sessões. Sempre igual ao que sempre foi. Ou seja, criando desassossego e com inquebrável vontade de lutar. E já lá vão 40 anos. Faz sentido. Porque é que havia de ser diferente?

* Este texto, foi originalmente publicado na colectânea "Alípio de Freitas - Palavras de Amigos", editado pela Pangeia (2017), por ocasião do 88º aniversário de Alípio de Freitas.
       

2017/05/16

"Estrelinha" de campeão


Depois de um fim-de-semana verdadeiramente alucinante, Costa bem pode ir a Fátima de novo, agora para pôr uma velinha pelos sucessos alcançados. Juntar no mesmo dia (reparem na data!), o Papa e a canonização dos pastorinhos em Fátima, a conquista do "tetra" pelo clube de que é adepto e a vitória de Portugal no festival da Eurovisão, não acontece todos os dias. Logo no ano do centenário das "aparições". Se isto não é "milagre", não sei o que seja...
Como se todas estas coisas não bastassem, veio agora, o Relatório das Finanças Públicas, demonstrar que a economia portuguesa cresceu 2.8% no primeiro trimestre deste ano, por comparação com o período homólogo do ano passado. Um dos maiores crescimento da zona Euro.
Como todos sabemos, estas coisas não acontecem por acaso. Há muito trabalhinho por detrás (especialmente em Fátima...), mas que o homem tem "sorte", isso parece inegável. Ainda por cima, este crescimento económico, surge após a revelação (cá está...), de outros dados positivos relativos ao bom desempenho da economia: "deficit" abaixo dos mínimos exigidos pela União Europeia (2%), saldo primário positivo (1,8%), aumento de exportações (17%), desemprego a baixar (10%) e o melhor ano de turismo de sempre. É obra.
Claro que todas estas coisas, se não forem estruturais (o chamado crescimento sustentável) não resolvem a difícil situação em que Portugal se encontra. Podemos estar em face de números conjunturais, sabendo que o investimento ainda é débil e que, sem este, não haverá crescimento económico e criação de emprego. Daí as reticências das famigeradas agências de "rating" que parecem não acreditar em milagres. Acresce que o recente "boom" turístico  é, em grande parte, provocado pela instabilidade existente em países como a Síria, a Turquia ou o Egipto, o que traz a Portugal muitos turistas que fogem das zonas de guerra, à procura de paz e estabilidade. Como o clima é bom, os preços são acessíveis e a hospitalidade é algo inato aos portugueses, estão reunidas as condições para as coisas correrem bem.
Falta a dívida (130% do PIB), que não pára de crescer, ainda que haja países na zona Euro, bem mais ricos do que Portugal (França e Itália, por exemplo) em que os números são preocupantes. De resto, e para quem não saiba, a França, há dez anos consecutivos que não cumpre as metas do "deficit" que tem ficado sempre acima dos 3%! Porquê? Ora bem, como diria Juncker, "parce que, la France, ces't la France!". Perceberam? Exactamente: critérios diferentes para situações semelhantes. Um querido, o Juncker...
Já o Costa, não sendo um "querido", conseguiu o chamado "milagre dos peixes": Reposição de salários e pensões, crescimento da economia e diminuição do "deficit". É o que se chama "três em um". Os deuses, só podem estar loucos! Perante tais evidências, apenas nos resta concluir com aquela máxima futebolística que nunca falha: não há campeões sem estrelinha...

2017/05/08

França: a vitória do liberalismo e a derrota do fascismo


Sem surpresa, Emmanuel Macron, o candidato liberal pró-europeu, ganhou à candidata xenófoba e nacionalista, Marine Le Pen. Os números não enganam (66,1% contra 33,9%) ainda que todas as sondagens apontassem nessa direcção, muito antes da segunda volta. Ou seja, os franceses votantes (75%) nunca tiveram muitas dúvidas nas suas escolhas.
Ao contrário de muitas opiniões democratas, que receavam uma repetição do fenómeno Trump na Europa (com nefastas consequências para o projecto europeu), teriam sido precisamente as "gaffes" de Trump que serviram de vacina nestas eleições. Outra questão, que não deve ser escamoteada, é a consciência política do francês médio, quando comparada com a politização na sociedade americana e, finalmente, o modelo das eleições francesas a "duas voltas", o que permite um melhor sistema de "pesos e contrapesos" nas escolhas políticas. Nada de novo na frente ocidental, desta vez.
A meio de um ciclo de escolhas, que podem ser determinantes para o futuro da Europa e do Mundo Ocidental no seu todo, o balanço é, para já, o seguinte:
Duas eleições negativas (no sentido regressivo do termo) com o "Brexit" britânico e a escolha do imprevisível Trump; e duas eleições, onde ganhou o "mal menor" (na Holanda e em França) com escolhas sempre discutíveis, mas que, no curto prazo, podem assegurar maior democracia e afastar os representantes do fascismo (Wilders e Marine Le Pen) do poder.
Já da Polónia e da Hungria, onde as políticas autoritárias e xenófobas ganham terreno, continuam a  não vir boas notícias; enquanto da Austria, pese o aumento da influência da extrema-direita, tivemos a boa notícia da vitória do candidato presidencial, um veterano democrata e ecologista. Algo é algo.
Restam dois países-chave nesta equação, a Alemanha (que vai a votos no Outono) e a Itália, que pode ir a votos, caso o impasse político, originado pela demissão do primeiro-ministro depois de um referendo falhado, não seja resolvido a contento.
Resumindo e concluíndo: a vitória de Macron pode ter tirado um peso da consciência dos franceses e europeus que receavam um regresso às ideias nacionalistas e xenófobas mais retógradas (Marine é uma fascista assumida, como o debate com Macron confirmou), mas o "ovo da serpente" foi chocado e existe. Dentro de cinco semanas, terão lugar as eleições legislativas francesas e, depois da implosão dos partidos do centro (socialistas e republicanos), restam apenas a Frente Nacional (o maior partido em votos) os "insubmissos" de Mélechon  e os apoiantes do "En Marche!" de Macron. É pouco, como forças partidárias organizadas. Resta esperar que a esquerda francesa tenha aprendido com o susto e saiba extrair daqui as lições para o próximo acto eleitoral. De Macron, e da eventual "co-habitação" que venha a surgir após as eleições de Junho, ainda é cedo para extrair conclusões. Para já é o que temos. Podia ter sido pior.    

2017/04/25

O Fascismo é a ignorância (para quem não sabe...)

Jovem emigrante português, em Champigny, anos 60.


Há dias, na SIC-Notícias:

Rapaz francês, formado em direito, 23 anos, entrevistado.

"- É francês?
- Sim, a minha mãe é imigrante portuguesa e, aqui em França, conheceu o meu pai, um imigrante espanhol, eu já nasci cá...
- Em quem vai votar?
- Na Maria Le Pen.
- Porquê?
- Porque ela é contra a imigração e eu acho muito bem, porque nós não queremos cá imigrantes".

(fim de citação)

2017/03/25

Dijsselbloem (et pour cause...)


Comemoram-se, hoje, 60 anos do Tratado de Roma, que daria origem ao Mercado Comum Europeu, posteriormente apelidado de União Europeia.
Um projecto idealizado pelos franceses Jean Monnet (Economista) e Robert Schuman (Ministro), apoiado pelo chanceler alemão Adenauer, considerados os "pais fundadores" da actual Europa.
Com todos os seus avanços e recuos, o projecto europeu - criado no pós-guerra, para evitar futuros conflitos no continente - teve desde logo um mérito: o de conseguir manter a paz durante sessenta anos. Outros avanços significativos foram, entretanto, conquistados, bastando lembrar a abolição de fronteiras entre os estados, a livre circulação dos cidadãos, a criação de uma moeda única (o Euro), para além do "estado social" mais desenvolvido e protector de todo o Mundo Ocidental.
É este modelo que, nos últimos anos, vem sendo posto em causa, não só por muitas das forças partidárias que representam os estados-membros da União, como por uma grande parte das populações, as quais não se revêem em muitas das políticas e burocracia das diversas instituições (Comissão, Conselho, Parlamento) que constituem a União Europeia.
As críticas têm, muitas delas, fundamento e sessenta anos passados sobre o "sonho" de uma Europa unida, são visíveis as "fendas" verificadas no edifício da UE, com o aparecimento de movimentos e partidos que, mais do que a união e a solidariedade, procuram a divisão e o regresso ao estado-nação que esteve na origem dos dois maiores conflitos do século passado na Europa.
O caso mais recente e paradigmático, deste sentimento anti-europeu, foi o "Brexit" (do qual as "ondas de choque" estão longe de ter terminado), ainda que outros países do Reino  (Escócia e Irlanda do Norte) possam seguir o caminho inverso. Já a França (de Le Pen), advoga a saída da Europa, enquanto a Hungria e Polónia, defendem modelos autoritários de sociedade em tudo contrárias ao espírito da Europa democrática. No meio, um bloco nórdico, que perfilha o modelo alemão e um bloco mediterrânico, onde se ensaiam novos modelos fora do jugo monetarista germânico.
Paralelamente (et pour cause) novos problemas internacionais, trouxeram para a Europa outros desafios (crise da banca internacional, guerras no Médio-Oriente, refugiados e terrorismo) que agravaram as condições e a percepção das populações, sobre a necessidade de mudar o paradigma actual, única forma de ultrapassar o impasse existente reconhecido pela maior parte dos seus intervenientes. Basicamente, parecem existir dois modelos: o de continuar como se nada se passasse (esperar para ver) com a esperança que tudo se resolva; e o de "não há alternativa", segundo o qual os países devem seguir mecanicamente os Tratados, mesmo quando a realidade desmente os modelos aplicados.
Estão, neste segundo grupo, os países do chamado núcleo alemão (Alemanha, Austria, Finlândia e Holanda) que estiveram na origem da criação da "moeda única", cuja paridade, sendo igual no valor facial, é desigual nas economias reais. Ou seja, o valor facial do Euro, não corresponde ao valor real das economias que adoptaram a moeda única.
Esta desigualdade foi-se acentuando ao longo dos anos, entre economias que exportam os seus produtos de valor acrescentado (os países nórdicos) por preços valorizados; e as economias que produzem "commodities" de baixo-valor (países do Sul) com os consequentes desequilibrios das respectivas balanças comerciais. Esta desigualdade, que poderia ser resolvida através de um Banco Europeu, caso este pudesse "emprestar" directamente dinheiro a estados em vez de bancos, não acontece na União Europeia actual (pois esta não é uma Federação de Estados, como os EUA ou a Russia). Da mesma forma, teria de existir um sistema fiscal comum, que não permitisse a existência de "offshores" legais, como na Irlanda, na Holanda ou no Luxemburgo, onde são praticadas taxas de juros abaixo da média europeia e para onde são deslocados os lucros das multinacionais que, dessa forma, fogem aos impostos, penalizando as economias nacionais. É o caso da Holanda, onde 19 das maiores 20 empresas portuguesas cotadas em bolsa, têm as suas sedes fiscais.
Tudo isto é sabido pela Alemanha (o principal beneficiário desta desigualdade), assim como pelos países credores (França, Holanda, Finlândia, etc.) que possuem excesso de liquidez e preferem emprestar a juros acima da média, mesmo sabendo que nunca receberão as totalidades das dívidas soberanas (que vão sendo renegociadas) e continuam a acumular lucros chorudos, através dos juros pornográficos exigidos.
Ora o senhor Dijsselbloem, que sendo parvo não é burro (coisas diferentes), veio esta semana lembrar os "países dos Sul" (curioso epíteto) que devem pagar as dívidas, em vez de "beber copos e andar com mulheres" (!?). Um "lapso freudiano", certamente, que nem sequer é original, pois o primeiro-ministro holandês (Rutte) tinha dito precisamente o mesmo numa cimeira europeia o ano passado, como bem nos lembrou hoje um conhecido canal televisivo. Ou seja, determinados políticos europeus, já nem sequer disfarçam, mas dizem as maiores alarvidades, esquecendo-se que a Europa idealizada faz hoje sessenta anos (quando a maior parte deles não tinha sequer nascido) teve, nos seus primórdios, estadistas com a grandeza suficiente para idealizarem um projecto onde os países e as pessoas eram o mais importante. Um projecto comum, numa casa comum, onde a solidariedade fosse o factor determinante. Aparentemente, nesta Era de monetarismo neoliberal, a economia passou a ser mais importante que as pessoas. Daí, a situação actual, onde a austeridade tem sido comum à maior parte dos países da União, confrontados com uma crise que é, ela própria, resultado do modelo da globalização desregulada. Acontece que a História não terminou e as pessoas têm memória, como se viu nas recentes eleições holandesas, onde os partidos da coligação governamental, da qual fazem parte os liberais de Rutte e os sociais-democratas de Dijsselbloem, foram penalizados com uma derrota sem precedentes (37 lugares perdidos no total!). Razão: cortes no valor de 135 mil milhões de euros nos últimos seis anos de governação, que afectaram principalmente os sectores da saúde, o apoio a idosos, a educação e o emprego jovem (50% dos holandeses entre os 20 e 30 anos não conseguem arranjar emprego, ou têm empregos temporários), para além da cultura (mil milhões de cortes em 5 anos). É verdade, que a economia holandesa apresenta resultados satisfatórios, quando comparada com a de outros países da União: 2,3% de crescimento económico, pouco desemprego (5%) e mais casas vendidas. Mas, estes, são números macro, que não reflectem as expectativas da população, que viu o seu poder de compra diminuir de 87% para 72% nos últimos trinta anos, contrariamente ao lucro das empresas e multinacionais, cujos lucros duplicaram e passaram a ser investidos em países de mão-de-obra barata ou depositados em "offshores" um pouco por todo o Mundo. Ou seja, as desigualdades, dentro da sociedade holandesa, aumentaram, como de resto na maior parte dos países e dentro da União, hoje cada vez mais uma Europa a "duas velocidades".
No entanto, os comentários xenófobos e racistas de Dijssebloem, não têm apenas a ver com "vinho e mulheres do Sul". Devem também ser vistos à luz da sua perda de influência no governo holandês, donde está de saída e da necessidade da aprovação do seu verdadeiro patrão (o ministro alemão Schauble) de cuja opinião necessita para continuar presidente do Eurogrupo. Por alguma razão, as suas polémicas opiniões foram dadas a um jornal alemão. Representam a mesma arrogância ariana, que, no passado, quis dividir os povos em "superiores" e "inferiores" e uma ideologia (neoliberal) que não suporta a ideia da existência de governos, que ousem ensaiar um modelo diferente da cartilha imposta pelo "diktat" de Berlim. Um triste, o Jeroen.

 

2017/03/16

Holanda: da vitória dos liberais à derrota dos populistas


Na Holanda, o partido VVD (direita liberal) venceu as eleições, perdendo deputados (tem agora 31); enquanto o partido PVV (extrema-direita populista) perdeu, ganhando deputados (tem agora 19).
À esquerda, o grande perdedor foi o PvDA (trabalhista), com apenas 9 deputados eleitos; enquanto o partido Groenlinks (Verdes) viu quatriplicar os seus representantes (de 4 para 16) podendo ser considerado o grande vencedor da noite.
Bons resultados, foram igualmente obtidos pelo CDA (democrata-cristão) que tem agora 19 deputados e pelo D'66 (centristas liberais) que obteve 19 lugares. Ambos poderão fazer parte do próximo governo, que necessita de um apoio mínimo de 76 deputados no Parlamento.
Tudo aponta para um longo período de formação governamental, uma vez que, tradicionalmente, não há maiorias absolutas na Holanda e o partido vencedor necessitar agora de 4 ou mais partidos para obter a maioria necessária.
Resumindo: a Holanda irá provavelmente conhecer um governo mais à direita, já que coligação entre os liberais (VVD) e os sociais-democratas (PvDA) deixará de funcionar, devido à estrondosa derrota dos sociais-democratas (perderam 29 lugares). Quanto às hipóteses de Wilders vir a governar, nunca se pôs, uma vez que o "cordão sanitário" criado contra o seu partido, impedia à partida qualquer acordo.
Resta acrescentar que a vitória dos liberais (e da direita em geral) é também uma consequência da recuperação de alguns temas da direita xenófoba e islamofóbica do PVV, como a luta contra a criminalidade atribuida à comunidade muçulmana e aos últimos acontecimentos de Roterdão, quando o primeiro-ministro foi lesto a proibir um comício turco, o que lhe valeu ganhar uma popularidade que estava a perder nas sondagens. A derrocada do PvDA era esperada e deve ser lida como uma penalização dos seus eleitores pelas políticas de austeridade levadas a cabo pelo governo cessante (do qual fazia parte), nomeadamente nos sectores da saúde, no apoio aos idosos, na educação e no emprego jovem. Também aqui, a colagem dos sociais-democratas às políticas neoliberais da direita, não deu frutos e por isso quase desapareceram (efeito Pasok).
Para alguns imigrantes na Holanda (entre os quais um conhecido escritor) que votaram em Wilders por acreditarem estar a votar contra o sistema, uma má notícia: ainda não foi desta que o fascismo passou.        

2017/03/12

Eleições holandesas: teste ao populismo



No ano de todas as eleições, a Europa terá o seu primeiro grande teste de 2017 na Holanda, onde, no dia 15 de Março, haverá eleições legislativas.  
Depois dos resultados, algo surpreendentes, do "Brexit" e da vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, as atenções viram-se agora para a Europa que conhecerá, este ano, três actos eleitorais considerados determinantes para o futuro europeu: na Holanda, em França e na Alemanha, todos países fundadores da União.   
No fundo, trata-se de saber se os resultados do Reino Unido e dos EUA, ainda que por razões diferentes, confirmam (ou não) uma tendência internacional que muitos apelidam de populismo, neste caso de direita.
Pesem as especificidades de cada país e os temas dominantes das respectivas campanhas eleitorais, existem traços comuns possíveis de identificar: desde logo, o apelo ao proteccionismo económico em resposta à liberalização dos mercados (que conduziu ao aumento das desigualdades, fruto de desinvestimento nas sociedades ocidentais e da deslocação do capital para países de mão-de-obra barata) com o consequente aumento do desemprego interno (é o caso dos EUA); depois, o apelo ao nacionalismo, como resposta ao crescente centralismo e burocracia do "diktat" de Bruxelas, em cujos métodos grande parte dos países membros não se revêem (são os casos do UK, França e da Holanda); finalmente, o medo do terrorismo islâmico, potenciado pelas recentes vagas de refugiados de países muçulmanos em guerra (como é o caso na UK, França, Holanda e Alemanha).
Não é, pois, de admirar, que em todos estes países, tenham surgido políticos de verbo fácil e discurso demagógico que "cavalgam a onda" da insatisfação (e ignorância) de uma parte significativa das populações, desiludidas por anos de promessas e há muito desconfiadas das "elites" que os governam, a quem acusam de as terem descartado.
Em tempos de incerteza social e competividade no mercado de trabalho (ao qual, muitos destes deserdados da riqueza nacional já não voltam, por serem preteridos por estrangeiros e pela globalização actual) fácil é arranjar "bodes expiatórios", agora que os refugiados chegados à Europa recebem auxílio e são mais um factor da pressão social existente. Juntem-se os atentados dos últimos anos em França, na Bélgica e na Alemanha, todos eles perpretados por residentes nesses países (ainda que com nacionalidade europeia) e temos assim reunidos os elementos para uma "tempestade perfeita". Líderes como Farage no Reino Unido, Le Pen em França ou Wilders na Holanda, são apenas três exemplos desta corrente nacionalista e proteccionista, anti-União e islamofóbica, que ganhou espaço na arena política. Todos eles usam os estrangeiros como moeda de troca, acusando os seus governos de os acolher e proteger, em detrimento dos nacionais, assim como todos eles agitam o espantalho do terrorismo islâmico, como prova última dos perigos inerentes à entrada de mais muçulmanos no espaço europeu.
O discurso xenófobo não se limita, de resto, aos países citados, mas a outros países membros da União Europeia, como a Hungria e a Polónia, onde governos de direita já alteraram as constituições e construiram muros para evitar a entrada de refugiados, numa clara subversão dos valores democráticos e humanistas que deviam prevalecer na Europa. Resta acrescentar, que o actual fenómeno nacionalista e populista na Europa, também foi sendo alimentado por politicas erráticas e pressupostos falsos, dos quais não podem ser excluídos os partidos e governos sociais-democratas que, nas últimas duas décadas, vêem pactuando com as políticas de compromisso que contribuiram para a despolitização e exclusão crescente de grande parte das populações nestes países.
A três dias das eleições holandesas, as possibilidades do partido PVV (extrema-direita, islamofóbica) ser o partido mais votado, são praticamente as mesmas do VVD (liberais de direita, actualmente no governo) que, até este fim-de-semana, tinha uma ligeira vantagem nas intenções de voto. Os grandes penalizados, serão os partidos da esquerda, o PvDA (Partido Trabalhista) e o SP (Socialistas), assim como o D'66 (centristas). O CDA (Democrata-Cristão), ainda que bem posicionado, deve ficar fora do pódio vencedor. Resta acrescentar, que o PvDA e o CDA, partidos que historicamente têm feito parte da governação, foram os "construtores" do Estado Social na Holanda, hoje parcialmente desmantelado pela austeridade e pelos cortes orçamentais dos últimos anos, o que pode explicar muito da insatisfação na sociedade holandesa. Neste contexto, o partido GROENLINKS (Esquerda Verde) uma coligação formada nos anos '90 pelo Partido Comunista, pelo Partido Pacifista e pelo Partido Reformador, a subir exponencialmente nas sondagens, pode tornar-se um dos partidos mais votados nestas eleições, com grande probabilidade de entrar no próximo governo. Uma coisa, parece certa: independentemente de ser (ou não) o mais votado, o partido de Wilders - que este fim-de-semana pode ter ganho novo alento devido aos incidentes entre a comunidade turca e a polícia holandesa de Roterdão - não deverá entrar para o governo. Os restantes partidos já declararam não querer governar com este partido xenófobo e islamofóbico. Dada a composição do actual parlamento (150 lugares) que pode vir a eleger 14 bancadas partidárias, é de esperar um longo período de formação governamental, cujo gabinete poderá ser composto por 4 ou mais partidos.
Na próxima quarta-feira, saberemos mais.

2017/03/01

Trumpalhadas (2)

De Donald Trump, tudo se espera.
O primeiro discurso, no Congresso, não foi, por isso, particularmente surpreendente.
Para quem tem acompanhado as primeiras semanas do seu mandato, as questões centrais, já anunciadas no dia da tomada de posse, voltaram a ser referidas, ainda que usando uma terminologia mais suave.
Relembremos as principais, que parecem constituir o cerne das políticas que pretende aplicar:
1) A guerra aos média. Para Trump, os jornalistas não são de confiar. Principalmente a CNN, o NYT ou o Washington Post. Já a Fox News, é de elogiar (por alguma razão é a estação televisiva preferida do presidente). O recente boicote aos principais orgãos de informação no "briefing" da Casa Branca foi apenas o culminar de uma guerra que dura há cinco semanas. Um clássico, usado por todos os aspirantes a ditadores e que, num país como os EUA, lhe pode sair caro.
2) O fim da ordem comercial liberal. Trump quer acabar com os tratados internacionais existentes (TTP) e reabrir a negociação da NAFTA, de forma a isolar países com quem os EUA têm acordos e um "deficit" na balança comercial. A ideia é relançar a economia americana a partir de dentro (America First), multando as multinacionais que operam no estrangeiro, com novas taxas alfandegárias e outras penalizações. Uma política proteccionista, que implica um maior investimento estatal, como não se via desde Roosevelt. Para um liberal, aplicar medidas Keynesianas, é uma novidade.
3) A crise com o México. O projecto da construção do muro mantém-se, assim como a perseguição aos ilegais (11 milhões) dos quais grande parte serão mexicanos que trabalham na agricultura, na restauração e nos serviços domiciliários. Sem esta mão-de-obra estrutural, que mantém as grandes propriedades e culturas agrícolas na Califórnia e estados do Sul, não se vê quem possa fazer os trabalhos que os americanos legais não querem fazer.
4) O fecho das fronteiras a muçulmanos. A ideia mantém-se, ainda que as primeiras medidas tenham causado caos nos aeroportos, críticas internas e externas e a sua primeira derrota judicial. Os refugiados serão as primeiras vítimas, mas não só: parte das empresas sediadas em Sillicon Valley, que dependem do "know-how" imigrante, já vieram protestar. Não vai ser fácil.
5) Os inimigos dentro do estado. Trump dispara contra tudo e todos: os tribunais, as secretas e os funcionários, acusando-os de o comprometerem perante a Russia. Os despedimentos prosseguem e dentro em pouco só restarão fiéis a Bannon. Já vimos este filme noutros países e latitudes, nomeadamente em ditaduras.
6) Diplomacia. Trump não pratica a diplomacia. Não sabe o que isso é. As gaffes sucedem-se e o "bullying" é constante. Com Merkel, com o primeiro-ministo australiano, com o primeiro-ministro japonês e inclusive com o Reino Unido, onde circula uma petição (2 milhões de assinaturas) para impedir a sua ida ao Parlamento inglês.
7) Conflito de interesses. Continuam por explicar as suas ligações ao império empresarial que controla e quem fica a dirigir as as suas empresas, agora que é presidente e não pode acumular funções. A família?
8) A conexão russa. A demissão de Michael Flynn, a primeira do seu gabinete, pode indiciar outro tipo de relações e eventuais chantagens sobre o seu governo por parte da Russia. As revelações podem ser comprometedoras.
9) O regresso ao discurso da campanha. É notória a sua dificuldade em lidar com a opinião pública. Mesmo entre os conservadores, como Bush Jr. e McCain, não parece haver consenso. Quem votou nele ainda o apoia, mas por quanto tempo?
10) A governação impulsiva. Tudo em Trump o torna pouco fiável. As suas ameaças, mais não representam do que reacções escapistas perante a realidade do poder. Não conquistou mais adeptos e arranjou mais inimigos. Resta saber, qual a próxima fuga.
No discurso de hoje, anunciou um aumento de 9% (54 mil milhões de dólares) no maior Orçamento de Estado para a Defesa da história dos Estados Unidos! Os cortes serão feitos na saúde (o Obamacare só dá "despesa"), no meio-ambiente e nos apoios internacionais. O regresso às cavernas. Só falta uma guerra para incrementar a industria militar.
Voltaram as mentiras e as meias-verdades: sobre o perigo do terrorismo trazido pelos refugiados (todos os atentados terroristas praticados nos Estados Unidos, desde o ano 2000, foram praticados por americanos ou residentes no país!); a proibição de imigrantes vindos de países que apoiam o terrorismo (Líbia, Sudão, Síria, Iraque, Irão, Iémen ou Somália) é selectiva e não abrange o Egipto e a Arábia Saudita (donde vieram todos os atacantes do 11/9 e com quem os EUA mantém negócios altamente lucrativos); O aumento da violência e dos assaltos nas cidades americanas (o que é uma meia-verdade, é derivada da crise de 2008 e já está a diminuir, o que Trump nunca refere); o desemprego nas industrias tradicionais (construção civil, siderurgias, indústria automóvel) é factual, mas não pelas causas apontadas (governo de Obama) e sim devido à automatização e a factores externos como a entrada da China na OMC, etc...
Enfim, a lista é longa e não faltarão oportunidades para aumentá-la. Trump confirmou tudo o que se conhecia dele antes de ser eleito. A mentira é, nele, compulsiva. Parafraseando John Stewart, numa breve e brilhante aparição televisiva esta semana: "never believe a man who after every sentence says: believe me!".  
         

2017/02/22

Memórias do Zeca


Passam, esta semana, 30 anos sobre o desaparecimento de José Afonso.
Sobre o cantautor mais importante da música popular portuguesa, já (quase) tudo foi escrito.
Restam as inúmeras estórias pessoais, daqueles que com ele tiveram o privilégio de contactar.
Lembro-me da primeira vez que o ouvi, nos idos anos sessenta, em tertúlia de amigos, ali para os lados de Alvalade, em casa do único de nós que possuia gira-discos. A canção, que não nos cansávamos de escutar, intitulava-se "Os Vampiros". Como era possível alguém escrever e cantar tal texto num tempo marcado pela censura?
Posteriormente, durante um curto período em que trabalhei numa discográfica, eu próprio vendi clandestinamente muitos EPs onde estava incluída a canção, proibida pelo regime. Do Zeca, ninguém sabia ao certo, ou melhor, dizia-se que vivia em Moçambique, onde leccionava.
Mais tarde, já no estrangeiro, onde me tinha entretanto exilado, recebi todos os LPS do Dr. José Afonso, enviados religiosamente pela família, no dia do meu aniversário.
Teria de esperar até ao dia 28 de Setembro de 1974 - quando o Zeca cantou pela primeira vez na Holanda - para o conhecer pessoalmente. Falámos durante o intervalo daquela que se revelou ser uma sessão histórica (dados os acontecimentos desse dia em Lisboa) e ficámos "amigos".
Entre 1974 e 1981, o Zeca voltaria por mais 4 vezes à Holanda, tendo actuado nas cidades de Utrecht, Haia, Amsterdão (2 vezes) e Nijmegen. Tive o privilégio de organizar a maior parte destas sessões, algumas delas "heróicas", muitas vezes em condições sofríveis, que só a boa vontade do cantor e o despojamento que o caracterizava, tornaram possíveis. Porque, na maior parte das vezes, eram concertos organizados em colaboração com organizações holandesas solidárias com a "revolução portuguesa", lembro-me sempre do Zeca sublinhar esse facto e dizer "éh, pá, se tivéssemos mais holandeses destes em Portugal, a revolução já estava feita...".
Entre 1981 e 1986, os nossos encontros passaram a ter lugar em Portugal, quando o cantor já não viajava, devido à doença que, entretanto, o tinha atingido.
Recebi a notícia da sua morte, na madrugada do dia 23 de Fevereiro de 1987 após um memorável concerto do guitarrista Pedro Caldeira Cabral e da Brigada Victor Jara, na sala "Paradiso" em Amsterdão. A mesma sala, onde o Zeca tinha actuado 6 anos antes. Senti que, nesse dia, se fechava um ciclo da vida portuguesa, aquele que mais intimamente me ligava à utopia de Abril.  
Do seu legado, para além da música e da poesia, resta-nos o exemplo cívico de cidadão empenhado e solidário, na oposição à ditadura e a todas as formas de opressão e injustiça que sempre combateu. O reconhecimento desta atitude perante a vida, grangeou-lhe amigos (muitos) e alguns inimigos, mas a importância do seu exemplo ganhou novos contornos e é hoje mais consensual que nunca. Por isso, o Zeca, apesar de ter partido, continua entre nós e continua a ser lembrado todos os dias, ainda que, de forma mais especial, na data de hoje.
Porque 2017 é um ano especial, estão programados diversos eventos e actividades ao longo de todo o ano. A Associação José Afonso, elaborou um programa subordinado ao título "José Afonso: 30 anos, trinta concertos", que levará a sua música a trinta cidades e localidades diferentes entre Fevereiro e Dezembro. No lançamento desta iniciativa, foi apresentada a publicação "AJA: 30 anos", onde são passados em revista os 30 anos da Associação. Para o dia 25 de Abril está programada a inauguração de um Memorial José Afonso, que ficara situado no Jardim das Francesinhas, ao lado da Assembleia da República em Lisboa. Finalmente, a AJA, com o apoio da SPA, irá reeditar o LP "República", gravado ao vivo em Itália, em 1975, durante um concerto de solidariedade com o jornal português do mesmo nome. Para que a memória não esmoreça. 
 
    
 

2017/02/10

Trumpalhadas

Donald Trump. Era inevitável. Não passa um dia em que não ouçamos falar dele.
Como notava alguém, num recente debate televisivo sobre a actualidade, finalmente voltámos a falar de política! De facto, não há dia em que não sejamos interpelados pelas decisões e atitudes do recentemente eleito presidente dos EUA, ainda que nem sempre pelas melhores razões. Não está em causa o facto das decisões de um presidente americano influenciarem directa ou indirectamente a maior parte da população do globo: essa tem sido uma constante da política externa americana no último século e já vamos estando habituados à sua presença. O que está em causa, é o tipo de decisões tomadas e a forma como estas são postas em prática. Digamos, para usar uma linguagem diplomática que, ao actual homem da Casa Branca, falta algo essencial para exercer o cargo que ocupa, afinal o do homem mais poderoso do Mundo. Não é coisa pouca.
(foto AP)
Philip Roth, consagrado escritor americano, escreveu nos dias que se seguiram à tomada de posse de Trump, não se lembrar de um presidente tão limitado nas suas capacidades cognitivas e com tão reduzido léxico, incluindo Nixon e George Bush Jr., os piores da lista. De acordo com o recente nomeado para o Nobel de Literatura, Trump não utilizaria mais do 77 palavras...
Piadas à parte, a verdade é que o seu discurso de posse foi de uma pobreza extrema (de resto, escrito por Bannon, o homem forte da campanha) e a sua forma de comunicação preferida, os "twitters", são disso a prova. Um presidente do país mais poderoso do Mundo, que opina sobre todas as questões da política interna e externa e reage às críticas através de mensagens que não ultrapassam os 140 caracteres, a maior parte destas com ameaças veladas e "soundbites" destituidos de qualquer nexo ou profundidade, é uma novidade em política e nada nos faz crer que seja boa.
Uma das interpretações avançadas para este comportamento atípico, residirá no seu perfil psicológico, caracterizado como narcisista-obsessivo, que explicará a necessidade constante de receber atenção e a dificuldade notória de funcionar numa equipa (dado que sempre foi o "patrão" de empresas, onde as ordens não se discutem e são para cumprir). Muitos telespectadores lembrar-se-ão ainda do "talk-show" que dirigiu durante anos, onde os concorrentes eram despedidos, após cada eliminatória, com a frase "you're fired!", que o celebrizou. No fundo, a personificação do "boss" tradicional, para quem os lucros da empresa são sempre mais importantes do que os nela trabalham. Não é difícil imaginar tal personagem em reuniões e a tomar decisões com os seus principais conselheiros, ainda que estes tivessem sido escolhidos a dedo e sejam, por por definição, mais cultos e informados (bem mais perigosos) do que o presidente. De resto, não está sequer afastada a hipótese de Trump vir a ser substituido antes do fim da legislatura, seja por razões pessoais, seja por conveniência do "sistema" (partido republicano, Wall Street, corporações várias, industria de armamento) que, nesta fase de destruturação e reordenamento do capitalismo global iniciada em 2008, o estejam a utilizar como "testa de ferro".
Uma coisa é certa: ninguém acreditou que ele se candidataria à presidência e ele candidatou-se. Quando o fez, pouca gente acreditou que poderia ganhar as primárias e ganhou. Mais tarde, quando isso aconteceu, todas as sondagens davam a vitória a Hillary e poucas apostariam na sua vitória. No entanto, acabaria por ganhar as eleições. Com menos votos, é certo, mas vencedor na maioria dos estados representados no colégio eleitoral que o nomeou. Um vencedor incontestável, ainda que contestado.
E agora?
Independentemente dos rótulos encontrados (populista, demagogo, nacionalista, proteccionista, fascista de tipo novo), Trump e o trumpismo vieram para ficar. Para os americanos, que não se revêem nas suas políticas, um verdadeiro "nightmare", que ainda só agora começou. Será na América, de resto, que irá travar-se o maior e mais decisivo combate contra este representante de um sistema financeiro que não olhará a meios para impôr as suas leis. Um presidente que defende o mercado livre, mas que, simultaneamente, defende o "proteccionismo"; que impede a imigração legal, mas necessita de imigrantes qualificados nas áreas da inovação e tecnologia (sem as quais não há desenvolvimento); que quer levantar barreiras alfandegárias, mas necessita de fazer negócios com o México, a Alemanha, o Japão, a Russia ou a China (que detém 45% da dívida pública americana); que quer recuperar as industrias tradicionais, sem ter em conta que os automóveis, as minas e o aço, são mais baratos noutras paragens. Quer "tornar a América grande de novo", mas não sabe bem como. A menos que...a menos que, caso falhem todas estas medidas, esteja em preparação algo de mais terrível, como o que foi experimentado pela maior potência europeia do século passado, quando escolheu a guerra para superar a crise. Não o devemos menosprezar.

    

2017/01/31

Uma semana de Benelux (2)


A distância entre Amsterdão e a capital do Luxemburgo é de cerca de 500km em linha recta.
Pode ser feita de vários modos, mas escolhemos a mais demorada por razões sentimentais. Durante quase uma década, foram inúmeras as vezes que a percorremos em ambos os sentidos, quase sempre de carro ou de comboio. O comboio, tem a vantagem de podermos desfrutar da paisagem das Ardenas, espectacular em qualquer época do ano. Desta vez, os campos estavam cobertos de neve e, à distância, podiam ser observados bandos de corvos e até raposas e doninhas que, afanosamente, procuravam alimento nas terras brancas das colinas à beira da linha férrea. Um deslumbramento.
A parte negativa, foram as mudanças durante o trajecto: à ida, em Maastricht e Liége e, à volta, em Bruxelas-Norte e Roterdão. No total, paragens incluídas, 6 horas de viagem...
Tempo para uma rápida refeição nas gares de transbordo, pejadas de emigrantes de diversas nacionalidades. Em todas elas, um discreto patrulhamento policial, ainda que na Bélgica, por razões conhecidas, a presença dos para-militares fosse uma constante. Dentro do combóio, eram visíveis as patrulhas aos pares, com os policiais a controlar as carruagens, toiletes incluídas. A psicose do terrorismo não desapareceu. Se Amsterdão estava frio, o Luxemburgo estava gelado: menos 10º durante o dia.
Lá fomos apresentar mais uma vez o livro "Exílios", desta vez num centro de documentação dedicado às migrações, situado em Dudelange, na zona sul do país, perto da fronteira francesa. Uma sessão organizada com o patrocínio do Ministério da Cultura e da cidade de Dudelange.
O "Centre de Documentation sur les Migrations Humaines" (CDMH) foi fundado em 1993 e está situado na antiga gare "Dudelange-Usines", que serviu esta região mineira e de siderurgias, encerradas em finais dos anos oitenta. Em redor da antiga gare (agora reconvertida num moderno centro cultural) podem ser observadas as ruínas das antigas instalações industriais, num cenário algo apocalíptico, a lembrar os tempos da industrialização do início do século passado. Foi a esta região que chegaram os primeiros emigrantes, ainda antes da 2ª guerra, maioritariamente italianos, que continuam a constituir a maior comunidade na região. O CDMH está distribuido por dois andares, com um espaço para exposições e uma pequena recepção no rés-do-chão e um centro de documentação e uma biblioteca/auditório, situados no primeiro andar. Foi neste espaço, que três dos colaboradores do livro, falaram sobre a sua experiência de exilados em França, na Holanda e no Luxemburgo, durante os anos setenta. A obra foi apresentada por Thierry Hinger, professor na Universidade do Luxemburgo, especialista em migrações, cuja tese de doutoramento versa a migração portuguesa no Luxemburgo. Excelente sessão, presenciada por uma assistência atenta de portugueses e luxemburgueses, que na sua maioria desconheciam a história de uma geração que recusou a guerra colonial portuguesa em África, já que, à época, o Luxemburgo não aceitava exilados políticos oriundos do nosso país.
De volta a Amsterdão, tempo para visitar o Stadsarchief Amsterdam (Arquivo Municipal), certamente um dos edifícios públicos mais espectaculares da cidade onde, até ao dia 5 de Fevereiro, pode ser admirada a exposição "Amsterdam 1900", com fotografias e filmes dos mais famosos fotógrafos amadores da época. Grandes fotos, na sua maioria a preto e branco, onde a patine do tempo realça a beleza das imagens. Trabalhos de Olie, Breitner, Eilers e contemporâneos, em fotos e filmes, que passam ao longo do dia na sala da cave. A visitar, também pelo edifício, uma das obras de arquitectura mais icónicas de Amsterdão. Se andam por perto, ou contam passar pela cidade esta semana, recomendamos vivamente. 
           

2017/01/30

Uma semana de Benelux (1)



Em viagem para o Luxemburgo, no âmbito da apresentação de um livro de memórias, aproveitámos para dar mais um "salto" a Amsterdão, a "dois passos" de distância...
Como era de esperar, o frio, nesta altura do ano, estava de cortar à faca. Valem-nos as aquecidas casas e espaços públicos, sempre em renovação constante de colecções para visitar e revisitar, ou não fosse a capital holandesa uma cidade-museu por excelência.
Lá fomos, no primeiro dia da nossa passagem por esta cidade dos canais, aqui e ali já meio gelados, a prenunciar um Inverno bastante frio, ainda que longe das temperaturas históricas que permitiam ligar, não há muitos anos, 11 cidades do Norte da Holanda através de diversos canais gelados.
O museu escolhido para iniciar o nosso périplo, foi o "Persmuseum" (Museu da Imprensa),  situado na Zeeburgerkade, um largo canal na zona Leste da cidade, perto do Instituto de História Social, um centro de documentação famoso pelo seu acervo, onde, e. o. documentos, podemos encontrar a acta da I Internacional assinada por Karl Marx, a maior colecção de publicações do movimento anarquista espanhol (ali guardado durante a guerra civil naquele país) e uma das colecções mais representativas de cartazes e publicações do PREC português, adquiridos pelo Instituto na década de setenta.
O Museu da Imprensa, está alojado no rés-do-chão de um bloco de apartamentos, virado para o Zeeburgerkade e é composto de três pequenas salas, divididas tematicamente por épocas e factos jornalísticos relevantes dos últimos 50 anos. A exposição temporária é dedicada ao cartoonista Peter van Straaten (1935-2016) recentemente falecido, a quem o Museu dedicou uma sala com uma selecção dos seus melhores "prints", publicados em alguns dos jornais de referência holandeses ao longo de quase meio século. Uma colecção única, representativa do "ar do tempo" em que a Holanda desafiava a moral vigente, sublinhada pelo humor que Van Straaten sempre emprestava aos seus desenhos. As restantes salas, incluem grandes painéis, com fotografias e textos de imprensa, alusivos a momentos singulares da política e vida social holandesa. Fotos históricas de políticos famosos que marcaram a vida do país nas últimas décadas: Den Uyl, Van Mierlo, Wiegel, van Agt, Lubbers, Brinkman, Wim Kok e Pim Fortuijn. Para além da galeria dos políticos, uma das salas inclui dez factos, escolhidos por outros tantos jornalistas, que marcaram as últimas décadas na Holanda: o movimento anarquista "Provo" (65), a revolução sexual (66), o casamento da rainha Beatriz (66), a 1ª crise do petróleo (73), a captura de um combóio por migrantes Molukkers (anos '70), as manifestações contra o nuclear (anos '80), a construção do metro (anos'90), a morte de Pim Fortuijn (2002) e Theo van Gogh (2004). 
Noutra sala, dez factos internacionais formam uma série escolhida por outros tantos jornalistas: a chegada à Lua ('69), a guerra do Vietnam ('72), a queda do muro de Berlim ('89), o ataque às torres gémeas de New York (2001), a guerra do Iraque (2003) e a captura de Bin Laden (2011) permanecem como as mais icónicas. Curiosos são os textos que acompanham as fotos, todos eles desmentindo as versões apresentadas pela imprensa da época.
A visita a este pequeno, mas simpático museu, passaria por um pequeno hall, onde está exposta uma colecção de desenhos e pinturas alusivas à personagem de "Zwart Piet", pagem de St. Claus (o Pai Natal) contestado pelo politicamente correcto actual.
O dia não terminaria sem um passeio de barco através dos principais canais da cidade, para admirar o Amsterdam Light Festival, a decorrer durante os meses de Inverno, onde são expostas diversas instalações multimédia, cujas cores se alteram ao longo do percurso. Excelente iniciativa, muito concorrida por turistas, apesar da hora tardia a que se efectua. O bom ambiente a bordo e o chocolate quente oferecido pela organização (uma fábrica de cerveja artesanal) contribuiriam para a boa disposição. A repetir.               

2016/12/28

Taxi Driver (12)



Já o tinha visto...estava ali há muito tempo?
- Há uns minutos. Para a António Augusto Aguiar, sff.
Vamos lá ver como está o trânsito, que estes dias tem sido uma loucura...
- Pois, isto com Natal e com férias pelo meio, é mais difícil.
Pelo menos não está a chover. É pena estar tanto frio, mas está um dia lindo.
- Pois está. Mas, quando o céu está mais azul, faz mais frio...
Mesmo assim temos um clima formidável. O pessoal do Norte da Europa, quando cá vem, até se "passa".
- É verdade, sim. Eu vivi dezenas de anos na Holanda e sei o que é o frio. Quando os portugueses se queixam do clima, digo-lhes sempre que deviam passar lá uns anitos, para saberem como é. Temos um dos melhores climas da Europa. O pior são as casas. Passamos mais frio dentro de casa do que fora...
É verdade. É o país que temos...As casas são todas mal construídas e não há garantias. Ninguém vem fiscalizar se estão bem isoladas ou não. Querem é vendê-las rapidamente. Ninguém nos pergunta se gostamos das casas ou não. Mas, também quem trata das casas, são sempre as mulheres. Elas é que põem e dispõem: onde é que fica o sofá, onde é que fica a mesa, os armários, a televisão...
- Quando se vive com alguém, é assim...
Não acredita? Eu já montei duas casas e foram sempre as mulheres que tiveram a palavra final. Onde é que queriam morar, que tipo de casa, que mobiliário, o que devíamos comprar, tudo, tudo! Eu não me meti em nada. E com a actual mulher é a mesma coisa. Veja lá, que até criei dois escritórios, um para mim e outro para ela. O meu está todo desarrumado, mas ela passa lá o tempo todo e está sempre a dizer-me como é que hei-de decorar o espaço. Elas é que mandam, agora. Não sei se já reparou, mas a sociedade está a mudar muito...
- Não sei se elas mandam mais agora, mas é natural que tenham mais direitos. Isso tem a ver com a chegada ao mercado de trabalho, que as tornou mais independentes economicamente e com a pílula, que as tornou mais emancipadas sexualmente, pois já não dependem de um parceiro para terem relações.
Eu sei lá...há coisas que dizem respeito às mulheres e outras aos homens. Eu, por exemplo tenho um grupo de amigos, onde as mulheres não entram. A minha bem me pergunta o que fazemos no grupo, mas eu digo-lhe sempre que também não me meto nos grupos das amigas dela. Mas, elas agora estão em todo o lado. Até já caçam. Às vezes, quando ando a caçar com os meus amigos, aparecem lá mulheres também. Andam lá, no meio da lama, todas sujas, com um camuflado vestido.
- Essa da caça, não sabia...pensava que era um "desporto" de homens. 
Era, era...o senhor já viu os rapazes de agora? Até parece que já não há homens como antigamente. Eu até nem me considero machista, mas estes gajos parecem uns bonecos. Andam no ginásio, todos depilados, meio amaricados, sem pêlos, nem nada...Já não há homens com cabelos no peito. Os gajos são todos uns "nonhas" e fazem tudo o que elas querem... Já viu a vida de um casal, hoje em dia? Trabalham os dois, mas, depois chegam a casa e ele tem de fazer tudo. Se quiser uma camisa passada, tem de ser ele a passá-la; se quiser comer, tem de ser ele a cozinhar; é ele que leva o filho à escola. Então, e a vida a dois? Foi para isto que me casei? Se é pela carne, vou ali ao talho, avio-me e venho-me embora...não é preciso estar casado...
- É a tendência actual e, provavelmente, os casais do futuro, serão cada vez mais independentes. Cada um faz a sua vida, ainda que tenham uma vida em comum...As estatísticas dizem-nos que 1/3 dos casamentos acaba em divórcio nos primeiros cinco anos. Estamos na média europeia...
Sim, nos países nórdicos já é assim. Estive na Holanda e acho que a Holanda é dos países mais livres do Mundo. Estão sempre à frente, em tudo.
- Nos costumes, sim. A maior parte dos jovens torna-se independente muito cedo. Normalmente, aos 18 ou 19 anos, quando acabam o liceu, vão viver em quartos ou em apartamentos de estudantes. Isso também lhes dá uma certa autonomia. Mas, claro, a sociedade está organizada nesse sentido. 
Aí é que está. A minha mulher trabalha na Universidade, onde não ganha mal, eu ando aqui entretido com o táxi, mas os putos têm de viver connosco. Como é que podíamos pagar-lhes uma casa?
- Isto está tudo ligado. Também por isso, em Portugal, os filhos ficam mais tempo em casa dos pais.
Coitados, eles não sabem fazer nada. O senhor já reparou bem nos rapazes de agora? Estão completamente ultrapassados. Eu, quando vou à universidade onde estão os meus filhos, só há mulheres. Elas ganham a maior parte dos concursos para os empregos, têm as melhores notas na universidade, são as mais bem preparadas. Eu não sei onde é que isto vai parar. Os gajos não mandam nada e não sabem fazer nada...
- Ainda por cima não fizeram a tropa...Antigamente, dizia-se que tinhamos de ir para a tropa, para nos fazermos homens...
Claro, pelo menos sempre se aprendia alguma coisa. A ter disciplina, higiene, a cuidar de nós, enfim a ser independentes. É o que eu digo aos meus filhos. É pá vê lá se ganhas juízo, que eu não estou sempre aqui. E o gajo, ri-se. O que é que ele há-de fazer?...
- Bom, já chegámos. Fico por aqui.
Boa tarde e boas festas, para o senhor.
- Boas festas.