Boa noite, então para onde vamos?
- Para a Buraca, se faz favor...
Pelo Monsanto, não é verdade?
- Sim, a esta hora, parece-me melhor. Há pouco trânsito...
Pouco trânsito? Isto até parece de dia!
- Sim, é Verão. Há muitos turistas na cidade...
Isto está cheio, amigo. Ainda por cima havia futebol no Terreiro de Paço...
- Também, também...agora, com o Mundial, é todos os dias.
Grande "jogatana", hoje. Viu o jogo?
- Vi, mas gostei mais do jogo de ontem...
O França-Bélgica? Claro. Também eu. Mas, olhe que a Croácia também dá uns "toques"...
- Sim, sim, muito boa equipa, mas penso que não terá grandes hipóteses, contra a França, na final.
Pois não. Devem estar cansados. Tiveram dois prolongamentos, "penalties", um dia a menos de descanso...
- Nunca se sabe, mas tanto faz, agora que Portugal foi eliminado...
E bem eliminado. Não mereciam ter passado da fase de grupos.
- Se calhar, não. Fizeram os mínimos, mas esperava mais.
Olhe, amigo eu gosto muito de futebol, mas a selecção portuguesa já não me entusiasma...
- Pois. Já teve melhores dias, apesar de ser o actual campeão da Europa.
Pois é, mas deviam ter levado outros jogadores. Eu, se fosse treinador, tinha levado o Éder.
- O Éder?...
Sim, o Éder. Não o queria na minha equipa, mas na selecção...nem que fosse para jogar só 10 minutos, eu tinha-o convocado...
- Para ser franco, não me entusiasma nada...
Pois não. Já lhe disse, o Éder nunca faria parte de uma equipa que eu treinasse, mas devia ter ido à Rússia. Como talismã. Entrava, quando os outros estivessem cansados, atrapalhava os defesas e, no meio da confusão, ainda marcava um golito!..
- Quem sabe?...
Era cá uma fé. Não viu no Spartak de Moscovo? Foi ele que marcou o golo que deu o campeonato russo ao Spartak. Os russos nunca mais se vão esquecer dele..levava só o Ronaldo e punha o Éder ao lado, para marcar golos...
- E os outros?
Quais? O André Silva e o Guedes? Mas, jogaram alguma coisa? Só atrapalharam, homem...
- De facto, desiludiram um bocado. Também esperava mais...
Até o Bernardo, que fez uma grande época no Manchester, não jogou metade do que sabe...
- Pois não...talvez estivesse cansado...
Cansado? Nada disso. Os gajos são todos uns "mimados" e passam sempre a bola ao Ronaldo, para não terem responsabilidades se falharem...
- É verdade, esta selecção está muito dependente do Ronaldo...
Essa é que é a questão. O amigo já percebeu que eu adoro futebol...podia estar aqui a falar a noite inteira. Eu também gostava da selecção, mas, de há uns anos a esta parte, não me convence. Olhe que eu cheguei a ir a Inglaterra ver a selecção em 1996. Vi 3 jogos. Nessa altura tínhamos uma selecção de luxo...
- A chamada "geração de ouro"...
Isso, a "geração de ouro": o Figo, o Rui Costa, o João Pinto, o Paulo Sousa, o Fernando Couto...
- Estou de acordo. Todos bons jogadores, mas fomos eliminados...
Sim, com o "chapéu" do Poborsky ao Victor Baía...isso, sim era uma selecção...
- Está a ver: quando jogávamos bem, éramos eliminados, quando jogamos menos, somos campeões da Europa...
Exactamente. Não merecíamos ter ganho o campeonato. Aquela fase de grupos, foi uma lástima...
- Mas, em 2000, também tínhamos uma boa selecção. Eu cheguei a ver um jogo na Holanda, contra a Turquia. A selecção, nesse ano, era treinada pelo Humberto Coelho.
Sim, sim, essa também era boa. Durou até 2002, quando fomos eliminados na Coreia. Aí começou a decadência, com aquele murro do João Pinto...
- Mas olhe que em 2004, com o Scolari, quase que éramos campeões europeus...
Pois, mas convenceram-se que iam ganhar e estragaram tudo. E a "geração de ouro", já estava no fim...o Figo estava a jogar os seus últimos anos e o Ronaldo ainda estava "verde"...
- Sim, houve ali um período de transição menos bom, mas de há uns anos a esta parte, temos uma nova geração de talentos...
Qual talento? Eles são todos muito bons, mas é nos clubes que lhes pagam! Agora, é o Ronaldo, que está muito acima dos outros e mais dois ou três: o Patrício, o Pepe, o Quaresma, vá lá...
- Os veteranos...
Claro. Ainda são os melhores. Não temos grandes talentos, convença-se disso. Daqui a dois ou três anos, já nem esses jogam e, com este treinador, não vamos longe...
- Sim, é verdade, às vezes irrita um bocado, aquele jogo mastigado...
Se irrita! É só passes para o lado, passes para trás...além disso, este ano os adversários já conheciam a forma de nós jogarmos e não conseguimos marcar golos. Marcámos aqueles 3 à Espanha, sem saber como. Se não fosse o Ronaldo, não sei, não sei...claro que contra o Uruguai, já não tivémos hipótese. Têm uma grande defesa e depois, aqueles dois "cavalões" no ataque, o Suaréz e o Cavani...Nós só temos um "cavalão", o Ronaldo...
- É verdade.
Bom, estamos a chegar. Desculpe lá a conversa, mas já deve ter percebido que eu gosto muito de futebol...
- Não faz mal. É sempre bom desabafar. Ficamos por aqui, então. Até uma próxima vez...
Até a uma próxima. E, no domingo, que ganhe o melhor!
- Isso mesmo.
2018/07/12
2018/07/11
A república brasileira é uma banana
O que se passou, afinal?
No passado domingo, o Tribunal Federal Regional de Porto Alegre, aceitou um pedido de "habeas corpus" para a libertação de Lula, que está a cumprir uma pena de 12 anos e um mês por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. O "habeas corpus", fora apresentado na passada sexta-feira, por 3 deputados do Partido dos Trabalhadores (PT), com o argumento de que não existiria fundamento jurídico para a prisão de Lula. Surpreendentemente, o juiz desembargador Rogério Favreto, de turno no fim-de-semana, deferiu o pedido no domingo. A reacção não se fez esperar: o juíz Sérgio Moro, responsável pela investigação e acusação de Lula, no processo Lava Jato, recusou o cumprimento da ordem, argumentando que Favreto (na sua qualidade de juíz de turno) seria "incompetente" para deliberar, sem o acordo do relator (João Gebran Neto) do Tribunal Regional Federal (TRF).
Seguiu-se uma nova ordem de libertação, por parte de Favreto, a exigir a libertação imediata de Lula. Foi nesta altura, que João Gebran Neto, na sua qualidade de relator do processo e instigado por Moro, decidiu suspender a ordem, subscrita pelo desembargador, pela segunda vez. O argumento utilizado, foi o de "evitar maior tumulto para a tramitação do "habeas corpus", dado que a decisão foi tomada durante um turno (plantão)" pelo que só ele a poderia confirmar ou recusar.
Ou seja, Lula esteve "livre", durante duas vezes e, no mesmo dia, "regressou" à prisão, sem desta ter saído. A "saga" parece, no entanto, não ter terminado e aguardam-se os próximos capítulos deste caso singular, sobre o qual o parecer dos especialistas está dividido: enquanto Sérgio Moro, defende a decisão, com base na condenação de Lula em 2ª instância (que, na sua interpretação, permite enviar um acusado para a prisão); outros especialistas, como o juíz Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal de Justiça (que ainda não se pronunciou sobre o caso), considera a prisão ilegal, com base no estado de direito internacional, segundo o qual um acusado é considerado inocente, até o processo transitar em julgado. Como na justiça portuguesa, por exemplo.
Independentemente das interpretações da lei, a verdade é que todo o processo está inquinado desde o início, pois há muito deixou de ser apenas um processo judicial, para tornar-se um processo político, no qual os juízes possuem a sua própria agenda. Mais do que provar quem cometeu crimes de corrupção, de que toda a "elite" brasileira é hoje acusada, os juízes (com Moro à cabeça) aspiram a tornar-se uma força determinante na cena brasileira, a exemplo do que sucedeu em Itália, onde - perante o caos e a desagregação da sociedade italiana - juízes "justiceiros", como Falcone, decidiram "limpar a sociedade de políticos corruptos, com ligações à Máfia". Sabemos o que aconteceu: os partidos políticos tradicionais perderam a pouca credibilidade que ainda tinham e, em sua substituição, surgiu o populista Berlusconi que, após três mandatos e inúmeros processos em tribunal, acabaria por ser condenado por...corrupção.
Mais importante do que isto, no entanto, parece ser a completa desorientação da maioria do povo brasileiro, dividido entre o apoio a um líder popular preso, que poucas hipóteses parece ter neste momento; e um governo impopular, destituído de qualquer moral, tantos são os implicados na corrupção generalizada que atravessa o país.
O que resta?
Muito pouco e mau: à direita, as principais forças políticas estão fragmentadas e não conseguem arranjar um candidato unificador que possa destronar Lula (31% da intenção de voto). À esquerda, é notória a incapacidade em arranjar outro candidato, que não Lula, no qual o PT e as restantes forças parecem apostar todas as fichas. Entretanto, na extrema-direita populista, o candidato preferido parece ser o fascista Jair Bolsonaro (17% na intenção de votos), que é hoje apoiado pela maioria das forças evangélicas, cuja mensagem o candidato passou a utilizar com vista a obter os votos que lhe dêem uma vitória na segunda volta. Como aconteceu com Trump, na América, de resto.
As eleições são já em Outubro e, a menos que surjam novos candidatos para além dos nomes tradicionais, não há ninguém, suficientemente consensual, que possa ganhar numa primeira volta. À excepção de Lula, que está preso. Ora, parece ser essa, precisamente, a questão. Com Lula em liberdade, as probabilidades do ex-presidente se candidatar e ganhar, seriam enormes. Esse é, de resto, o medo da "elite" e da classe média brasileira, que acantonadas nos seus privilégios de classe, querem, a todo o custo, impedir o regresso do PT ao poder.
Entre o medo e o desânimo, a maioria do povo brasileiro parece descrente numa solução que possa melhorar o seu futuro. Se nada de radical mudar, o país pode vir a tornar-se uma república inviável, igual a tantas outras da mesma latitude que, num passado não muito longínquo, determinado fruto ajudou a popularizar.
2018/07/10
Tudo bem, quando acaba bem.
"All well that ends well", diria Shakespeare.
Os jovens tailandeses e o seu treinador, estão a salvo. Os últimos a sair, serão agora os mergulhadores-salvadores, que garantem a operacionalidade nas zonas submersas.
Durante a última semana, o Mundo pôde ver em directo uma das maiores e mais dramáticas operações de salvamento a nível internacional, pese embora a morte, no início das operações, de um mergulhador tailandês. Impossível não pensar nos mineiros chilenos das minas de Atacama que, em 2010, ficaram soterrados no local onde trabalhavam.
Um feito notável, tanto a nível técnico como de entreajuda e solidariedade internacional, sem a qual uma operação desta envergadura muito dificilmente seria possível.
Este acto, verdadeiramente heróico, nunca será demais realçado e passará, a partir de agora, a constituir um "case study" para futuras acções de salvamento.
Pena que os meios e a solidariedade internacional, não estejam sempre presentes em cenários não menos dramáticos e que merecem, igualmente, a nossa atenção. Desde logo, em situações onde crianças e adultos estão - por razões alheias à sua vontade - em perigo: guerras, perseguições ou tragédias climatéricas, hoje um pouco por todo o Mundo. É o caso do drama das vítimas das guerras no Médio-Oriente, dos refugiados do Mediterrâneo ou dos migrantes latino-americanos, que tentam entrar nos EUA, para citar três dos exemplos mais gritantes da última década.
Nesse sentido, a última cimeira europeia, agendada para discutir o Euro (que não chegou a ser discutido) acabou por se transformar numa cimeira sobre migrações, com cedências impensáveis de Merkel às chantagens do seu ministro do interior, apoiado pelos governos xenófobos da Itália, Áustria, Hungria e Polónia. A Europa "fecha-se" assim, mais uma vez, agora à volta de um "eixo", que cobre todo o território da Itália, o antigo império austro-húngaro e a "grande" Alemanha, a lembrar velhos fantasmas do século passado. Sabemos da história, que o nacionalismo nunca foi boa opção e esteve na origem das duas últimas guerras. Liderados por políticos populistas, que desejam voltar às fronteiras do passado, os países do centro e Norte da Europa dão, desta forma, um exemplo negativo do que deve ser a solidariedade e o cosmopolitismo das sociedades modernas. Resta acrescentar que às (vagas) propostas dos líderes europeus citados - entre as quais a criação de centros de "contenção" e "triagem" dos migrantes que chegam à Europa, nos países a Sul e a Norte do Mediterrâneo - nenhum país ou governo se ofereceu para tê-los nos seus territórios. Sim, existe uma proposta, mas ninguém quer ficar com o ónus desta decisão. Enquanto a Europa não estiver de acordo sobre uma estratégia comum, para tentar solucionar este problema, continuarão a morrer milhares de pessoas, que não terão a atenção do Mundo, como tiveram (e bem) as crianças na Tailândia. O adiar deste problema, certamente um dos maiores da actualidade, contribuirá para acirrar os discursos de ódio e o populismo crescente na Europa. As eleições europeias do próximo ano, só conformarão esta tendência, mas pode já ser tarde.
Uma última palavra sobre as intermináveis reportagens e cobertura das operações de salvamento na Tailândia. Não fora os relatos sucintos e objectivos da Reuters, da SkyNews, da CNN e do The Guardian, estaríamos reduzidos aos comentários em estúdio de dezenas de "experts"que, ao longo da semana, foram passando pelos diversos canais e, na maior parte dos casos, se limitavam a especular sobre as dificuldades sentidas na gruta...Até especialistas, em meditação budista foram ouvidos em estúdio. Já não havia pachorra.
Ainda bem, que tudo acabou bem.
2018/07/05
Na rota do Flamenco (5)
Entre 1992 e 2014, desapareceram quatro dos maiores nomes da "renovação flamenca", a geração surgida no panorama musical espanhol - após a queda do regime franquista - que rompeu com o denominado "flamenco operático" e outros estereótipos do género, popularizados através dos "tablaos" para consumo turístico. Camarón de La Isla (1950-1992), Enrique Morente (1942-2010) no "cante"; Antonio Gades (1936-2004) no "baile" e Paco de Lucia (1947-2014) no "toque", foram as figuras principais desta transição que contribuiu para a renovação do "cante jondo" e a sua projecção internacional. O género deixou de ser uma arte marginal (interpretada por ciganos) e desprezada durante a ditadura, para se afirmar nos circuitos musicais de renome, sendo hoje reconhecido pela Unesco, como Património Imaterial da Humanidade.
Um longo caminho, com mais de 200 anos, onde pontuam nomes como El Planeta, Silverio, Antonio Chacón, Manuel Torre, El Fosforito, Manolo Caracol, La Niña de Los Peines, Tomas Pavón, Antonio Mairena, Fernanda e Bernarda de Utrera, Carmen Amaya, Antonio Gades, Farruco, Ramón Montoya, Sabicas, Pepe Habichuela e tantos outros...
A vitalidade do Flamenco pode ser constatada nos inúmeros locais onde continua a praticar-se, sendo a cidade de Sevilha um bom exemplo desta popularidade. Para turistas apressados, "O Museu del Baile Flamenco" (com sessões contínuas diárias e um corpo de baile residente), situado a meio caminho entre o Centro e o Barrio de Santa Cruz, pode ser uma boa alternativa. Para os mais conhecedores, a "Casa de la Memoria" (Centro Cultural Flamenco) situada em pleno Centro (Calle Cuna), oferece sessões de flamenco tradicional, com actuações de "cante", "toque" e "baile" de muito boa qualidade. Foi lá que vimos a excelente "bailaora" La Choni e, mais recentemente, uma sessão dedicada ao "cante jondo", com Ana Real, David Bastidas e Marta "La Niña" (cante), Yolanda Osuna e Óscar de los Reyes (baile) e Raúl Cantizano (toque). Um programa para iniciados, com incursões polifónicas nas "saetas", "martinetes" e "soléas", de nível. Outra boa opção, é "CasaLa Teatro", um teatro de bolso (28 lugares), situada em pleno Mercado de Triana, no bairro do mesmo nome, junto à Ponte de Isabel II. Vimos lá um trio flamenco constituído por Carmen Lara, Celedonio Garrido e Sergio Gòmez, que valeu bem a visita.
Porque, em 22 de Junho, actuava Miguel Poveda na cidade, não resistimos ao apelo de um dos maiores nomes do Flamenco actual, que ali apresentou o seu último concerto "Enlorquecido", dedicado ao poeta andaluz Federico Garcia Lorca.
O concerto, esgotado com antecedência, teve lugar no auditório "Rocío Jurado" (inaugurado em 1991 para a Exposição Universal de Sevilha) que dispõe de 4000 lugares sentados. Pesem os preços algo exagerados e as deficientes condições de comodidade (cadeiras de plástico), o programa era aliciante e não defraudou as expectativas.
Poveda, velho conhecido do público português, tinha estreado duas destas canções no programa que apresentou aquando da sua última passagem pela Gulbenkian, no passado mês de Novembro. Desta vez, foram doze os poemas de Lorca escolhidos pelo cantor e musicados pelo pianista Joan Albert Amargós, os quais constituem a primeira parte do concerto. Excelentes músicos (13 pessoas em palco), entre os quais Amargós (no piano) e Jesús Guerrero (na guitarra), que também tinham acompanhado Poveda em Lisboa.
Entre os clássicos "Chapéu de Três Bicos" e "Sevilhanas del Siglo XVIII", tempo para novo reportório, com "No me Encontraron", "Alba", "El Silencio", ou o pictórico "Son de Negros en Cuba". Um concerto, misto de flamenco e rock sinfónico, onde o som (óptimo) era apoiado por imagens projectadas em fundo, que sublinhavam a dramaticidade das canções, numa simbiose perfeita entre as diversas técnicas multimédia utilizadas.
A segunda parte, deu-nos a ver o Poveda, cuja carreira acompanhamos há vinte anos. Flamenco puro e duro, onde as "saetas", as "soléas" e as "seguiriyas", foram interpretadas com a mestria de alguém que domina os "palos" básicos do Flamenco como poucos. Nos "encores", tempo ainda para homenagear Camarón e Morente, com uma interpretação épica do hino "La Leyenda del Tiempo". O concerto, que duraria duas horas, terminaria com as tradicionais "bulerías", cantadas e dançadas, por todos os músicos em palco. Um magistral Poveda, no auge da sua maturidade artística.
Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se!
Um longo caminho, com mais de 200 anos, onde pontuam nomes como El Planeta, Silverio, Antonio Chacón, Manuel Torre, El Fosforito, Manolo Caracol, La Niña de Los Peines, Tomas Pavón, Antonio Mairena, Fernanda e Bernarda de Utrera, Carmen Amaya, Antonio Gades, Farruco, Ramón Montoya, Sabicas, Pepe Habichuela e tantos outros...
A vitalidade do Flamenco pode ser constatada nos inúmeros locais onde continua a praticar-se, sendo a cidade de Sevilha um bom exemplo desta popularidade. Para turistas apressados, "O Museu del Baile Flamenco" (com sessões contínuas diárias e um corpo de baile residente), situado a meio caminho entre o Centro e o Barrio de Santa Cruz, pode ser uma boa alternativa. Para os mais conhecedores, a "Casa de la Memoria" (Centro Cultural Flamenco) situada em pleno Centro (Calle Cuna), oferece sessões de flamenco tradicional, com actuações de "cante", "toque" e "baile" de muito boa qualidade. Foi lá que vimos a excelente "bailaora" La Choni e, mais recentemente, uma sessão dedicada ao "cante jondo", com Ana Real, David Bastidas e Marta "La Niña" (cante), Yolanda Osuna e Óscar de los Reyes (baile) e Raúl Cantizano (toque). Um programa para iniciados, com incursões polifónicas nas "saetas", "martinetes" e "soléas", de nível. Outra boa opção, é "CasaLa Teatro", um teatro de bolso (28 lugares), situada em pleno Mercado de Triana, no bairro do mesmo nome, junto à Ponte de Isabel II. Vimos lá um trio flamenco constituído por Carmen Lara, Celedonio Garrido e Sergio Gòmez, que valeu bem a visita.
Porque, em 22 de Junho, actuava Miguel Poveda na cidade, não resistimos ao apelo de um dos maiores nomes do Flamenco actual, que ali apresentou o seu último concerto "Enlorquecido", dedicado ao poeta andaluz Federico Garcia Lorca.
O concerto, esgotado com antecedência, teve lugar no auditório "Rocío Jurado" (inaugurado em 1991 para a Exposição Universal de Sevilha) que dispõe de 4000 lugares sentados. Pesem os preços algo exagerados e as deficientes condições de comodidade (cadeiras de plástico), o programa era aliciante e não defraudou as expectativas.
Poveda, velho conhecido do público português, tinha estreado duas destas canções no programa que apresentou aquando da sua última passagem pela Gulbenkian, no passado mês de Novembro. Desta vez, foram doze os poemas de Lorca escolhidos pelo cantor e musicados pelo pianista Joan Albert Amargós, os quais constituem a primeira parte do concerto. Excelentes músicos (13 pessoas em palco), entre os quais Amargós (no piano) e Jesús Guerrero (na guitarra), que também tinham acompanhado Poveda em Lisboa.
Entre os clássicos "Chapéu de Três Bicos" e "Sevilhanas del Siglo XVIII", tempo para novo reportório, com "No me Encontraron", "Alba", "El Silencio", ou o pictórico "Son de Negros en Cuba". Um concerto, misto de flamenco e rock sinfónico, onde o som (óptimo) era apoiado por imagens projectadas em fundo, que sublinhavam a dramaticidade das canções, numa simbiose perfeita entre as diversas técnicas multimédia utilizadas.
A segunda parte, deu-nos a ver o Poveda, cuja carreira acompanhamos há vinte anos. Flamenco puro e duro, onde as "saetas", as "soléas" e as "seguiriyas", foram interpretadas com a mestria de alguém que domina os "palos" básicos do Flamenco como poucos. Nos "encores", tempo ainda para homenagear Camarón e Morente, com uma interpretação épica do hino "La Leyenda del Tiempo". O concerto, que duraria duas horas, terminaria com as tradicionais "bulerías", cantadas e dançadas, por todos os músicos em palco. Um magistral Poveda, no auge da sua maturidade artística.
Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se!
2018/07/02
Na rota do Flamenco (4)
Reservámos para o fim do nosso curto périplo, a cidade de S. Fernando, vizinha de Cádiz, a capital da província do mesmo nome.
Situada à entrada do istmo, sobre o qual foi edificado o porto mais importante da Andaluzia, San Fernando - também conhecida por "La Isla" - é uma densa urbe de 97.000 habitantes, limitada a sul por uma extensa área de salinas e braços do mar, que é atravessada pelo Caño, o rio da cidade.
Falar de Cádiz e de S. Fernando, é falar de duas das mais emblemáticas cidades flamencas de Andaluzia. De Cádiz partiram (e chegaram) as conhecidas cantigas de "ida e volta", que haveriam de influenciar os "cantes aflamencados", de origem hispano-americana: as "guajiras", as "colombianas", as "habaneras", as "milongas", as "vidalitas" e as "rumbas".
Entre os flamencos notáveis, nascidos nesta província, destaque para Manuel de Falla (compositor) Paco de Lucia (guitarrista), Sara Baras (bailaora), os "cantaores" Niña Pastori, José Llerena Ramos "El Chato" e, o maior de todos, Camarón de La Isla.
José Monje Cruz, El Camarón (1950-1992) é hoje o maior legado do Flamenco na cidade. Logo à entrada, na Praça Juan Vargas, deparamos com o monumento em sua honra, uma estátua em bronze, da autoria de Antonio Mota, fundida em 1992 e recentemente decorada com letras garrafais vermelhas, por ocasião do 25º aniversário da sua morte. O departamento de turismo criou, inclusive, um trajecto (La ruta de Camarón de La Isla), assinalado no mapa da cidade: inclui a "Casa-Museu", situada na Calle Carmén, onde nasceu e viveu o cantor; a mítica "Venta de Vargas", a "peña" flamenca onde Camarón começou a cantar aos oito anos de idade; o monumento referido; a "Fragua de Camarón", onde ele aprendeu a profissão de ferreiro; o "Mausoléu de Camarón", situado no cemitério da cidade e a "Peña de Camarón", lugar tradicional do "cante". A marca "Camarón" é, de resto, visível na maior parte dos estabelecimentos e lojas de "souvenirs", desde os artefactos mais simples aos mais elaborados (canecas, cachecóis, t-shirts, porta-chaves, estatuetas, bustos, reproduções do mausoléu...).
Porque era sábado e a "siesta" é sagrada, tivemos de aguardar pelas cinco da tarde, para visitar a Casa-Museu, ex-libris da "ruta Camarón". Trata-se de uma casa renovada, construída sobre as ruínas do pátio, onde a família do cantor viveu com mais seis famílias, em divisões minúsculas, dispondo apenas de uma cozinha e lavabos comuns, num dos bairros mais pobres da cidade. Acontece que a casa estava fechada (!?). No posto de turismo da cidade, uma simpática funcionária, informou-nos que, com a crise, o "ayuntamento" não tinha dinheiro para destacar uma pessoa a tempo-inteiro para a função, pelo que o Museu só abria em dias de festa ou nos meses de Verão, durante os festivais de Flamenco. Depois de nos contar a história da família do cantor, cujos descendentes continuam a habitar a cidade, aconselhou-nos a visitar a igreja matriz, um austero local de culto, onde, de acordo com a "lenda", o cantor ia rezar junto do nazareno vestido de roxo à esquerda da porta principal. Lá fomos, não sem antes termos preenchido o livro de reclamações do posto de turismo, na esperança de poder visitar a Casa-Museu numa próxima excursão a bela cidade de S. Fernando.
A recompensa surgiria em Sevilha, dois dias mais tarde, quando assistimos ao documentário "Camarón: flamenco y revolución", uma longa-metragem de Alexis Morante, com guião de Raúl Santos, narrada por Juan Diego, conhecido actor sevilhano. O filme, realizado em 2017, foi este ano apresentado no festival de Málaga, tendo aí recebido os maiores elogios. Nele se conta a atribulada e fascinante vida do cantor, da qual não são omitidos os aspectos mais dramáticos (dependência de drogas e a ruptura com Paco de Lucia), num estilo moderno e inovador, onde o "flash-back" e as sequências de animação, alternam com imagens de arquivo, nem sempre em ordem cronológica, mas certamente fiéis ao homem que foi El Camarón, por muitos considerado o maior "cantaor" da história do Flamenco.
(continua)
Situada à entrada do istmo, sobre o qual foi edificado o porto mais importante da Andaluzia, San Fernando - também conhecida por "La Isla" - é uma densa urbe de 97.000 habitantes, limitada a sul por uma extensa área de salinas e braços do mar, que é atravessada pelo Caño, o rio da cidade.
Falar de Cádiz e de S. Fernando, é falar de duas das mais emblemáticas cidades flamencas de Andaluzia. De Cádiz partiram (e chegaram) as conhecidas cantigas de "ida e volta", que haveriam de influenciar os "cantes aflamencados", de origem hispano-americana: as "guajiras", as "colombianas", as "habaneras", as "milongas", as "vidalitas" e as "rumbas".
Entre os flamencos notáveis, nascidos nesta província, destaque para Manuel de Falla (compositor) Paco de Lucia (guitarrista), Sara Baras (bailaora), os "cantaores" Niña Pastori, José Llerena Ramos "El Chato" e, o maior de todos, Camarón de La Isla.
José Monje Cruz, El Camarón (1950-1992) é hoje o maior legado do Flamenco na cidade. Logo à entrada, na Praça Juan Vargas, deparamos com o monumento em sua honra, uma estátua em bronze, da autoria de Antonio Mota, fundida em 1992 e recentemente decorada com letras garrafais vermelhas, por ocasião do 25º aniversário da sua morte. O departamento de turismo criou, inclusive, um trajecto (La ruta de Camarón de La Isla), assinalado no mapa da cidade: inclui a "Casa-Museu", situada na Calle Carmén, onde nasceu e viveu o cantor; a mítica "Venta de Vargas", a "peña" flamenca onde Camarón começou a cantar aos oito anos de idade; o monumento referido; a "Fragua de Camarón", onde ele aprendeu a profissão de ferreiro; o "Mausoléu de Camarón", situado no cemitério da cidade e a "Peña de Camarón", lugar tradicional do "cante". A marca "Camarón" é, de resto, visível na maior parte dos estabelecimentos e lojas de "souvenirs", desde os artefactos mais simples aos mais elaborados (canecas, cachecóis, t-shirts, porta-chaves, estatuetas, bustos, reproduções do mausoléu...).
Porque era sábado e a "siesta" é sagrada, tivemos de aguardar pelas cinco da tarde, para visitar a Casa-Museu, ex-libris da "ruta Camarón". Trata-se de uma casa renovada, construída sobre as ruínas do pátio, onde a família do cantor viveu com mais seis famílias, em divisões minúsculas, dispondo apenas de uma cozinha e lavabos comuns, num dos bairros mais pobres da cidade. Acontece que a casa estava fechada (!?). No posto de turismo da cidade, uma simpática funcionária, informou-nos que, com a crise, o "ayuntamento" não tinha dinheiro para destacar uma pessoa a tempo-inteiro para a função, pelo que o Museu só abria em dias de festa ou nos meses de Verão, durante os festivais de Flamenco. Depois de nos contar a história da família do cantor, cujos descendentes continuam a habitar a cidade, aconselhou-nos a visitar a igreja matriz, um austero local de culto, onde, de acordo com a "lenda", o cantor ia rezar junto do nazareno vestido de roxo à esquerda da porta principal. Lá fomos, não sem antes termos preenchido o livro de reclamações do posto de turismo, na esperança de poder visitar a Casa-Museu numa próxima excursão a bela cidade de S. Fernando.
A recompensa surgiria em Sevilha, dois dias mais tarde, quando assistimos ao documentário "Camarón: flamenco y revolución", uma longa-metragem de Alexis Morante, com guião de Raúl Santos, narrada por Juan Diego, conhecido actor sevilhano. O filme, realizado em 2017, foi este ano apresentado no festival de Málaga, tendo aí recebido os maiores elogios. Nele se conta a atribulada e fascinante vida do cantor, da qual não são omitidos os aspectos mais dramáticos (dependência de drogas e a ruptura com Paco de Lucia), num estilo moderno e inovador, onde o "flash-back" e as sequências de animação, alternam com imagens de arquivo, nem sempre em ordem cronológica, mas certamente fiéis ao homem que foi El Camarón, por muitos considerado o maior "cantaor" da história do Flamenco.
(continua)
2018/06/29
Na rota do Flamenco (3)
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Centro Andaluz del Flamenco |
Cidade monumental, onde se destacam a Catedral, o Alcázar e a antiga muralha que circunda parte do casco histórico, concentra - nos bairros de Santiago e de S. Miguel - os principais santuários flamencos. É lá que podemos encontrar grande parte das "peñas", onde diariamente cantam e tocam os intérpretes do género, para além dos "tablaos", mais vocacionados para os turistas em busca do "baile" andaluz. Registámos, só nas ruas circundantes à Plaza del Arenal (onde parámos para as "tapas" e para a "caña" habitual), as "peñas" flamencas, "Buena Gente", "La Buleria", "Antonio Chacón", "Los Cervícalos", "Garranzo" e "Tablao Flamenco Pura Arte"...
A cidade produziu inúmeros "cantaores" de nomeada, mas dois destacam-se dos restantes pela sua excepção na interpretação da arte "jonda": Antonio Chacón e Manuel Torre.
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Don Antonio Chacón |
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Manuel Torre |
Destaque ainda para intérpretes como La Paquera, El Torta, El Pipa e Jose Mercé, este último nomeado para os Grammy Latinos 2012, todos eles filhos de Jerez e grandes intérpretes da "arte jonda", que (à excepção de El Torta, falecido em 2013) actuam regularmente na cidade.
Em Jerez, existe ainda o único instituto de flamencologia de toda a Espanha, objectivo último da nossa visita. O instituto, entretanto rebaptizado de "Centro Andaluz del Flamenco", está alojado num antigo solar, que dá para uma pequena praça, na Calle San Juan. Alberga mais de 5000 registos escritos e fonográficos, para além de filmes, vídeos, trajes e cartazes, considerada uma das maiores colecções iconográficas do país. Porque era sábado (feriado, 31 de Maio), o Centro estava fechado.
Frustração absoluta, para quem tinha viajado mais de 100km. para visitá-lo. Resta-nos, como consolação, ter descoberto uma cidade magnífica e, agora, um novo pretexto para voltar...
(continua)
2018/06/27
Na rota do Flamenco (2)
A pouco mais de 30km de Sevilha, na estrada que liga a capital andaluz a Cádiz, encontram-se três das mais emblemáticas localidades flamencas, naquele que é considerado o triângulo dourado do "cante": Utrera, Lebrija e Las Cabezas. Uma região plana, de grande latifúndio, onde a criação de touros e o cultivo do tomate, constituem as principais actividades da população, considerada uma das mais pobres da região.
Para lá nos dirigimos, na acalentada esperança de um dia compensador, sabendo de antemão que a hora do dia não seria propícia a grandes revelações. Já passava do meio-dia e, quando o sol cai a pique, é melhor procurar outras paragens, como o castelo local, a magnífica Casa da Cultura (onde tivemos direito a uma visita guiada) e ao "Hospitalito", situado no antigo edifício do Convento de las Carmelitas, hoje transformado num museu famoso, onde pudemos admirar o pátio decorado com motivos "mudéjares" e largos espaços onde, em tempos, funcionaram as enfermarias.
Em Utrera, terra de nascimento das míticas irmãs Bernarda e Fernanda, as mais famosas filhas da terra, realiza-se o "Potaje Gitano", o mais antigo festival de Flamenco do Mundo (1957) que tem lugar no último fim-de-semana de Junho. O programa deste ano era de fazer crescer "água na boca", ainda que as temperaturas já ultrapassem largamente os 30 graus positivos, algo comum nesta altura do ano. Lá estarão, a partir de amanhã, El Pele, La Mañanita, Rancapino Chico, Tomás de Perrate, Inés Bacán, Tomasito, Perico El Pañero, El Galli y El Chimenea, acompanhados por Pedro Maria Peña e Antonio Higuero (toque) e Pepe Torres, Farru e María Marrufo (baile). A sessão de abertura estará a cargo de Enrique El Extremeño e haverá um debate dedicado a Enrique Montoya, nos 25 anos da sua morte. Um programa 100% cigano, como é aliás timbre do festival.
Entre "tapas" e "cañas", tempo para deambular pelo bem conservado casco histórico da vila, à procura da "última experiência". Para o fim, estava-nos reservado o melhor. Quis o destino termos ido parar à Pérez Galdós, uma "calle" como as outras, onde, no número 11, está situada a Peña Cultural Flamenca "Curro de Utrera". Para quem não sabe, uma das mais famosas da região e lugar de culto por onde passaram todos os grandes nomes do "cante" flamenco. Um largo espaço, decorado com motivos flamencos, repleto de mesas e com um palco ao fundo, onde têm lugar as actuações e concursos, avaliados por júris que elegem os melhores em cada categoria. Nas paredes, cobertas por fotografias autografadas, lá estava Antonio Mairena (1º "chave de ouro" do "cante"), as irmãs Utrera, Paco de Lucia, Camarón, Carmen Linares ou Mayte Martín, entre dezenas de muitos outros. Os mentores da "peña", ainda que ocupados nos preparativos para a sessão daquela noite, não quiseram deixar os seus créditos por mãos alheias e disponibilizaram-nos toda a informação solicitada, tendo-nos inclusive convidado a regressar este mês, quando o "Potaje" estiver no auge.
No regresso ao centro, passagem pela Plaza de Altozano, lugar de confluência da população local que, ao fim da tarde, enche as esplanadas e confraterniza ao redor de "cañas" e de "mostachones", o doce local vendido em todas as pastelarias. Por coincidência, ou talvez não, realizava-se a Feira do Livro anual. Não resistimos e adquirimos "La Música Preflamenca", um estudo de José Miguel Hernández Jaramillo, editado pela Junta de Andaluzia, por ocasião da Bienal de Flamenco 2002. O dia estava ganho.
(continua)
Para lá nos dirigimos, na acalentada esperança de um dia compensador, sabendo de antemão que a hora do dia não seria propícia a grandes revelações. Já passava do meio-dia e, quando o sol cai a pique, é melhor procurar outras paragens, como o castelo local, a magnífica Casa da Cultura (onde tivemos direito a uma visita guiada) e ao "Hospitalito", situado no antigo edifício do Convento de las Carmelitas, hoje transformado num museu famoso, onde pudemos admirar o pátio decorado com motivos "mudéjares" e largos espaços onde, em tempos, funcionaram as enfermarias.
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irmãs Bernarda e Fernanda |
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Antonio Mairena |
No regresso ao centro, passagem pela Plaza de Altozano, lugar de confluência da população local que, ao fim da tarde, enche as esplanadas e confraterniza ao redor de "cañas" e de "mostachones", o doce local vendido em todas as pastelarias. Por coincidência, ou talvez não, realizava-se a Feira do Livro anual. Não resistimos e adquirimos "La Música Preflamenca", um estudo de José Miguel Hernández Jaramillo, editado pela Junta de Andaluzia, por ocasião da Bienal de Flamenco 2002. O dia estava ganho.
(continua)
2018/06/20
Na rota do Flamenco (1)
Mais do que um género musical, o Flamenco é um "modo de vida", seguido por milhares de intérpretes e aficionados em todo o planeta, o que o torna simultaneamente universal e uma industria cultural de sucesso. Poucas músicas serão de imediato tão identificáveis e arrebatadoras, seja pela força telúrica expressa no "quejio" dos seus "cantaores", seja pela destreza e coreografias das "bailaoras", elas próprias um verdadeiro ex-libris da região andaluza. Quando ambas as vertentes são acompanhadas por guitarristas de excepção (e eles são tantos!) a magia impõe-se por definição. Nesses momentos, o "duende" acontece. Assistir a um concerto de Flamenco, nos locais onde o género nasceu e se afirmou é, ainda hoje, quase dois séculos passados sobre os primeiros registos conhecidos, uma experiência única que qualquer melómano não deve perder.
Em 2003, durante uma visita a Sevilha, por ocasião da "Feira de Músicas do Mundo" (Womex), tive o privilégio de assistir ao "Festival Mundial de Flamenco" que tinha lugar paredes-meias com a Womex. Durante três dias, pude conviver e assistir a diversos "showcases" dos flamencos participantes e, se até então, a paixão já era indisfarçável, depois dessa data tornou-se uma obsessão. Nesse ano, a Junta de Turismo local, produziu um guia, composto de 1 livro, dois CDs e um desdobrável, sobre as "Rutas del Flamenco de Andaluzia" o qual, para além da história do género e de uma introdução geral sobre os diversos "palos", indicava os trajectos culturais ligados aos estilos popularizados pelos grandes mestres do género, alguns deles ainda vivos.
Por razões que a razão desconhece, e ainda que tenha voltado inúmeras vezes a Sevilha, nunca tinha tido oportunidade de fazer os trajectos sugeridos. Guardei, no entanto, o guia, para a eventualidade de um dia lá voltar. Foi agora, ou melhor, começou este ano e não vai parar...
Ainda que toda a Andaluzia seja, por definição, "terra flamenca", existem dentro das suas fronteiras lugares considerados verdadeiros "cadinhos" da arte. Dos sete trajectos sugeridos pelo guia, iniciámos a nossa peregrinação pela rota 4, intitulada "El compás de tres por quatro: los cantes básicos" (la soleá, la buleria, el flamenco y la sociedad rural). Um vasto triângulo, localizado na planície que se estende ao longo do Guadalquivir e que abrange, para além de Sevilha, Utrera, Lebrija, Jerez de la Frontera e Cádiz.
Iniciámos a nossa visita pela zona de Triana, na margem direita do Guadalquivir, hoje um bairro de Sevilha que, no século XIX, ainda era uma zona portuária afastada da cidade, maioritariamente ocupada por populações rurais e pela comunidade cigana. Foi aí, que teriam surgido as primeiras formas de flamenco, também chamadas de "cante hermético", por serem cantados em espaços fechados, normalmente em casas particulares onde só os iniciados tinham acesso. A grande revolução dá-se a partir de 1850, quando o Flamenco passa a ser cantado e escutado em estabelecimentos públicos, os chamados "cafés cantantes" ou "cafés de cante", que conheceram a sua época áurea entre 1850 e 1936. O mais célebre dos primeiros "cafés cantantes" foi o "Salón de Recreo", dirigido por Luís Botello, nos anos sessenta do século XIX, situado na Rua Tarifa, a que sucedeu uma academia de dança, instalada no mesmo local. A maior parte destes cafés apresentava espectáculos de dança (baile) que nem sempre eram anunciados como Flamenco. Um dos mais famosos, foi o "La Escalleria", criado em 1880 por Silvério Franconetti, que mais tarde abriu o "Café de Silvério". Nesse período, considerado a "idade de ouro do Flamenco", passaram pelos dois cafés os maiores nomes do "cante" andaluz. Para além do próprio Silvério, discípulo de "El Fillo", cantou no café o grande António Chacón, discípulo de outro "cantaor" fundador, Enrique Jiménez (El Melizzo). No café "El Burrero", mais um cantor de nomeada fazia, entretanto, a sua aparição: Francisco Lema "El Fosforito".
No seu apogeu, e só em Sevilha, os "cafés cantantes" eram mais de trinta, Existiam ainda cafés em Cádiz, Jerez, Segóvia, Granada, Málaga e quase todas as cidades andaluzas.
Hoje, já não há cafés. Restam as lápides, onde se assinala a sua existência nos lugares onde há cem anos imperava o "cante" e agora se homenageiam os grandes "cantaores" do passado, como Tomás Pavón (1893-1952), irmão da mítica Niña de los Peines, cuja passagem está assinalada na Alameda de Hércules, um espaço aberto que, em tempos foi um braço fluvial e onde a "movida" sevilhana começa sempre para lá das dez da noite...
(continua)
2018/06/19
O eterno retorno do fascismo
As imagens de milhares de migrantes que diariamente atravessam mares e fronteiras, correndo riscos que só podem ser justificados quando nada mais há a perder; ou de crianças apartadas dos seus pais, enquanto esperam pela deportação num qualquer barracão de uma fronteira norte-americana, são, para além da sua crueldade extrema, um exemplo paradigmático de regimes que, desprezando todas as regras civilizacionais e democráticas, se outorgam o direito de utilizar métodos que julgávamos banidos desde a 2ª guerra mundial. Não que, desde então, noutros países e latitudes, o autoritarismo, o racismo, a xenofobia e a discriminação, não se tenham manifestado, porventura com maior virulência e de forma brutal, como é próprio dos regimes ditatoriais, como sabemos.
O que espanta nos casos mais recentes (emigrantes africanos, abandonados pelo governo italiano e emigrantes latinos expulsos dos EUA) é estarmos perante acontecimentos passados em países e democracias sólidas, elas próprias construídas graças ao esforço e trabalho de milhões de migrantes ao longo de séculos.
Nada disto é, na realidade, novo, mas há um contexto que ajuda a explicar o aumento exponencial de tais atitudes em diversos países ao mesmo tempo.
É verdade que Trump nunca escondeu as suas intenções e anunciou-as vezes sem fim, durante a campanha eleitoral de 2016. Sempre disse que uma das suas primeiras medidas, seria a de construir um "muro", para impedir a entrada de imigrantes pela fronteira do Sul, ainda que tivesse desistido da ideia quando percebeu que o Congresso (republicanos incluídos) não estava disposto a pagar os biliões que custaria tal desvario. Da mesma forma, recuaria em outras tantas proclamações, cada qual mais disparatada do que a anterior, não porque não desejasse pô-las em prática, mas porque alguém mais "avisado" do seu gabinete, ou os próprios "checks and balances" que protegem o sistema democrático americano, o impediram.
O mesmo se passou em Itália, durante a campanha para as últimas eleições, que dariam a vitória aos partidos "Cinco Estrelas" (populista) e à "Liga Norte" (xenófobo e anti-imigração), que tendo feito campanhas anti-Europa e anti-sistema (o que quer que isso seja) desde sempre disseram ao que vinham. E ganharam. Como, de resto Trump (apesar de ter menos votos), ganhou.
Ou seja, apesar dos seus programas nacionalistas e reaccionários, conseguiram aliciar uma parte não negligenciável da população que (na falta de alternativas credíveis e descrentes das elites políticas tradicionais) optaram por votar em líderes populistas, cuja única mensagem era a recusa do "status-quo" e o ódio ao estrangeiro, bode expiatório de todos os males em sociedades com fortes componentes de imigração, ainda fortemente abaladas por uma crise económica e social, da qual não se refizeram.
O mesmo, de resto, está a passar-se na Europa "civilizada" (Hungria, Polónia, Áustria e Eslovénia) onde os respectivos governos, que incluem partidos de extrema-direita, já alteraram as constituições, advogam a diminuição dos direitos civis, querem o registo de minorias (ciganos, etc.) e a expulsão de estrangeiros ilegais. Também na Europa mais a Norte, em países onde governam coligações liberais, assiste-se com apreensão ao crescimento dos movimentos xenófobos e racistas, como é o caso de Le Pen (França), de Wilders (Holanda), ou o novo partido AfD (Alemanha).
O curioso em toda esta história, é que nenhum dos líderes dos partidos mencionados se reconhece nas práticas que caracterizam os partidos fascistas. Como bem nos lembra Rob Riemen, num seminal ensaio sobre a matéria, o fascismo novo, adapta-se aos tempos. Escreve o filósofo holandês: "Em 2004, o eminente historiador americano e especialista em história do fascismo, Robert O. Paxton, publicou a sua notável obra "The Anatomy of Fascism", onde sublinha que no século XXI nenhum fascista se designará a si próprio como tal. Os fascistas não são estúpidos e são mestres na arte da mentira. Os fascistas contemporâneos distinguem-se em parte pelo que dizem, ainda que seja importante o modo como actuam. À semelhança de Togliatti, Paxton afirma que o fascismo, devido à sua angustiante falta de ideias e ausência de valores universais, assumirá sempre a forma e as cores do seu tempo e da sua cultura. Assim, o fascismo na América será religioso e contra os negros, ao passo que na Europa Ocidental será laico e contra o Islão, na Europa de Leste, católico, ou ortodoxo e anti-semita. A técnica usada é a idêntica em toda a parte: um líder carismático, populista, para mobilizar as massas; o seu próprio grupo é sempre vítima (das crises, da elite ou dos estrangeiros); e o ressentimento orienta-se para um "inimigo". O fascismo não necessita de um partido democrático cujos membros sejam individualmente responsáveis; necessita de um líder inspirador e autoritário ao qual se atribuem instintos superiores (as suas decisões não têm de ser justificadas), de um líder capaz de ser seguido e obedecido pelas massas. O contexto em que esta forma de política pode dominar é o de uma sociedade de massas afectada pela crise que ainda não aprendeu as lições do século XX" (Riemen, Rob: "O eterno retorno do fascismo", Bizâncio, 2012).
Só não percebe quem não quer.
2018/06/15
O populismo, pai do hooliganismo
Decorreu um mês sobre o incidente de Alcochete. Nesse dia (15 de Maio), cerca de meia centena de "alegados apoiantes", de um clube da capital, invadiram as instalações de treino da equipa principal de futebol e espancaram selvaticamente os seus jogadores e treinador, tendo ainda, durante a fuga, destruído parte do balneário e outras instalações. Algo nunca visto neste país e que, até hoje, associávamos a outros países e latitudes, normalmente fora da Europa.
Um mês decorrido, sobre este lamentável episódio, que balanço pode ser feito?
Foram detidos cerca de trinta indivíduos, que participaram nesta acção, faltando ainda apurar quem são e onde se encontram os vinte restantes; não são conhecidos formalmente os cabecilhas da acção, apesar da maioria das denuncias apontarem na mesma direcção (os líderes de uma das claques e, por extensão, a direcção do clube em causa, que autorizou e incentivou tais formas organizadas dentro das suas instalações). Finalmente, a ligação dos membros desta claque, ao tráfego de drogas, extorsão e associação criminosa, com extensões a movimentos de extrema-direita, como a própria polícia reconhece e vem a alertar há anos a esta parte.
Entretanto, no clube em causa, as recriminações sucedem-se: parte dos orgãos sociais já se demitiu, metade do plantel rescindiu unilateralmente os seus contratos e o próprio treinador (também ele, um dos agredidos) rumou a outras paragens. Os prejuízos, materiais e não só, são agora difíceis de calcular, mas irão afectar gravemente, não só o clube, mas todo o futebol português por extensão, já que o que se passou na Academia de Alcochete, podia ter-se passado noutro clube, onde a maioria dos "hooligans" (que compõem as claques) são apoiados pelas próprias agremiações e incentivados a comportamentos que extravasam o simples meio desportivo. Quando é o responsável máximo de um clube a criticar os seus jogadores e a incentivar os sócios contra a própria equipa, não nos devemos admirar dos efeitos destes discursos demagógicos e populistas nas claques apoiantes, muitas delas ligadas a práticas violentas e com cadastro criminal conhecido das autoridades. É o caso do "skinhead" Mário Machado, líder e fundador do Partido neo-nazi português (entretanto proibido) acusado e preso por diversos crimes, entre os quais o da morte do cabo-verdiano Alcindo Monteiro, no dia 10 de Junho de 1995, sobre cuja morte passou esta semana mais um aniversário (ver artigo de Rui Tavares in "Público" de 13 de Junho de 2018).
Monteiro, que passeava com outros amigos em Lisboa, foi barbaramente espancado por um grupo de "cabeças rapadas", sem motivo aparente, apenas por ser negro. O caso, muito badalado à época, terminou com a acusação e prisão dos 15 implicados nestas agressões, entre os quais Manuel Machado, condenado a dez anos de prisão, dos quais cumpriu apenas seis. Encontra-se actualmente em liberdade, tendo há poucos meses sido visto (e entrevistado por uma estação de televisão!) à saída de um restaurante, onde acabara de participar numa refrega, contra outro grupo da extrema-direita, por alegadas disputas sobre territórios de tráfego de droga. Ora, foi este mesmo Manuel Machado que - após a prisão do ex-líder da claque, que invadiu a Academia de Alcochete - anunciou, em comunicado, querer candidatar-se a líder dessa mesma claque (!?). Lemos e não acreditamos.
Os acontecimentos de Alcochete deixaram marcas e, porque um dos seus principais culpados morais se encontra ainda em funções (deu ontem mais uma conferência de imprensa, transmitida em horário nobre pelos principais canais de televisão) é de admitir que, daqui a um mês, ainda estejamos a ouvir falar das consequências desta situação verdadeiramente aberrante, a que toda a comunicação social continua a dar cobertura, contribuindo para incendiar paixões, que há muito extravasaram o simples clubismo. O futebol profissional (não só em Portugal, de resto) deixou de ser apenas um desporto, para se tornar uma industria, que gera milhões e encobre negócios ilícitos (tráfego de influências, corrupção, fugas ao fisco, lavagem de dinheiro de drogas, etc.), como é conhecido de toda a gente.
Ora, o que fazem os governantes portugueses, perante factos e provas irredutíveis desta criminalidade organizada (dirigentes, bancos, máfias, neo-nazis), que gira à volta do futebol profissional português há décadas? Recusam falar sobre tal matéria, remetendo as questões polémicas para a justiça, para não ferir susceptibilidades, não vá o poderoso mundo do futebol (um estado dentro do estado) insurgir-se contra as críticas. Só esta semana, quatro dos principais governantes portugueses portugueses (o presidente da república, o primeiro-ministro, o ministro da educação/desporto e o presidente da Assembleia da República) irão à Russia "apoiar" a selecção nacional e, implicitamente, bajular Putin, um ditador sem escrúpulos, que é hoje o grande vencedor desta competição que se chama campeonato mundial de futebol. A promiscuidade entre o futebol e a política é total e não pode ser ignorada. Assim, não vamos lá.
Um mês decorrido, sobre este lamentável episódio, que balanço pode ser feito?
Foram detidos cerca de trinta indivíduos, que participaram nesta acção, faltando ainda apurar quem são e onde se encontram os vinte restantes; não são conhecidos formalmente os cabecilhas da acção, apesar da maioria das denuncias apontarem na mesma direcção (os líderes de uma das claques e, por extensão, a direcção do clube em causa, que autorizou e incentivou tais formas organizadas dentro das suas instalações). Finalmente, a ligação dos membros desta claque, ao tráfego de drogas, extorsão e associação criminosa, com extensões a movimentos de extrema-direita, como a própria polícia reconhece e vem a alertar há anos a esta parte.
Entretanto, no clube em causa, as recriminações sucedem-se: parte dos orgãos sociais já se demitiu, metade do plantel rescindiu unilateralmente os seus contratos e o próprio treinador (também ele, um dos agredidos) rumou a outras paragens. Os prejuízos, materiais e não só, são agora difíceis de calcular, mas irão afectar gravemente, não só o clube, mas todo o futebol português por extensão, já que o que se passou na Academia de Alcochete, podia ter-se passado noutro clube, onde a maioria dos "hooligans" (que compõem as claques) são apoiados pelas próprias agremiações e incentivados a comportamentos que extravasam o simples meio desportivo. Quando é o responsável máximo de um clube a criticar os seus jogadores e a incentivar os sócios contra a própria equipa, não nos devemos admirar dos efeitos destes discursos demagógicos e populistas nas claques apoiantes, muitas delas ligadas a práticas violentas e com cadastro criminal conhecido das autoridades. É o caso do "skinhead" Mário Machado, líder e fundador do Partido neo-nazi português (entretanto proibido) acusado e preso por diversos crimes, entre os quais o da morte do cabo-verdiano Alcindo Monteiro, no dia 10 de Junho de 1995, sobre cuja morte passou esta semana mais um aniversário (ver artigo de Rui Tavares in "Público" de 13 de Junho de 2018).
Monteiro, que passeava com outros amigos em Lisboa, foi barbaramente espancado por um grupo de "cabeças rapadas", sem motivo aparente, apenas por ser negro. O caso, muito badalado à época, terminou com a acusação e prisão dos 15 implicados nestas agressões, entre os quais Manuel Machado, condenado a dez anos de prisão, dos quais cumpriu apenas seis. Encontra-se actualmente em liberdade, tendo há poucos meses sido visto (e entrevistado por uma estação de televisão!) à saída de um restaurante, onde acabara de participar numa refrega, contra outro grupo da extrema-direita, por alegadas disputas sobre territórios de tráfego de droga. Ora, foi este mesmo Manuel Machado que - após a prisão do ex-líder da claque, que invadiu a Academia de Alcochete - anunciou, em comunicado, querer candidatar-se a líder dessa mesma claque (!?). Lemos e não acreditamos.
Os acontecimentos de Alcochete deixaram marcas e, porque um dos seus principais culpados morais se encontra ainda em funções (deu ontem mais uma conferência de imprensa, transmitida em horário nobre pelos principais canais de televisão) é de admitir que, daqui a um mês, ainda estejamos a ouvir falar das consequências desta situação verdadeiramente aberrante, a que toda a comunicação social continua a dar cobertura, contribuindo para incendiar paixões, que há muito extravasaram o simples clubismo. O futebol profissional (não só em Portugal, de resto) deixou de ser apenas um desporto, para se tornar uma industria, que gera milhões e encobre negócios ilícitos (tráfego de influências, corrupção, fugas ao fisco, lavagem de dinheiro de drogas, etc.), como é conhecido de toda a gente.
Ora, o que fazem os governantes portugueses, perante factos e provas irredutíveis desta criminalidade organizada (dirigentes, bancos, máfias, neo-nazis), que gira à volta do futebol profissional português há décadas? Recusam falar sobre tal matéria, remetendo as questões polémicas para a justiça, para não ferir susceptibilidades, não vá o poderoso mundo do futebol (um estado dentro do estado) insurgir-se contra as críticas. Só esta semana, quatro dos principais governantes portugueses portugueses (o presidente da república, o primeiro-ministro, o ministro da educação/desporto e o presidente da Assembleia da República) irão à Russia "apoiar" a selecção nacional e, implicitamente, bajular Putin, um ditador sem escrúpulos, que é hoje o grande vencedor desta competição que se chama campeonato mundial de futebol. A promiscuidade entre o futebol e a política é total e não pode ser ignorada. Assim, não vamos lá.
2018/05/16
O hooliganismo, filho do populismo
O que se passou ontem, em Alcochete, não tem classificação possível.
Foi, desde logo, um acto bárbaro e terrorista, praticado por um grupo de delinquentes que, em grupo e disfarçados, agrediram atletas de um clube em plena academia de treino.
Trata-se, sem dúvida, de um acto criminoso, perpetrado nas "barbas" da comunicação social, que estava presente e "condescendeu" em abandonar as instalações, sob a ameaça dos "hooligans". Desde logo, matéria para averiguação policial que, entretanto, já prendeu e levou a tribunal mais de uma vintena de implicados que se encontram em prisão preventiva. Resta, agora, aguardar pelas suas declarações e procurar perceber o que esteve por detrás desta acção colectiva, pois o acto em si indicia ter havido uma preparação prévia, o que aponta para uma "organização do terror".
Depois, e esta não é uma matéria de somenos, onde há grupos organizados há líderes, pelo que caberá à polícia esclarecer este ponto, pois podemos estar em presença de algo mais sofisticado do que uma simples claque de futebol. Não seria a primeira vez que uma claque tivesse sido infiltrada por elementos de extrema-direita (vulgo neo-nazis) um fenómeno frequente no Norte europeu e que, em Portugal, não tem tido a dimensão de outros países.
Aqui chegados, e esta é uma tarefa dos associados do clube em causa, devemos questionar-nos sobre o comportamento leviano (a roçar a psicopatia) de um presidente, que se tornou um verdadeiro incendiário das próprias hostes, qual Nero a quem só parece interessar ver "Roma a arder".
A personalidade tem antecedentes e há tratados sobre o perfil psicológico destes demagogos e populistas, que não hesitam em criar o caos para, na confusão gerada, melhor poderem exercer o seu autoritarismo. Pelos vistos, a loucura compensa e os referendos organizados só fortaleceram a legitimação do cargo. Se os sócios apoiam, é porque deve estar certo, é o raciocínio.
Finalmente: independentemente da investigação e (espera-se) pena exemplar aplicada aos prevaricadores e consequente "limpeza" dos orgãos sociais do clube, vítima destes personagens, é de esperar que as autoridades (o estado português) aproveite a ocasião para "limpar" o sujo mundo do futebol e, de uma vez para sempre, termine com esta vergonha, ainda que a tarefa não pareça fácil. Na Inglaterra e na Holanda, que foram confrontados com este fenómeno, foi possível, logo deve ser possível, também, em Portugal. Assim haja vontade e coragem política.
2018/04/26
Entrevista a Varoufakis
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foto Cyprus Mail online |
Segundo Varoufakis, a nudez, de resto e pelos vistos, mantém-se, apesar da nova liderança...
Varoufakis desceu a Avenida neste 25A.
Varoufakis desceu a Avenida neste 25A.
Ler aqui.
2018/04/17
E o Brasil aqui tão perto...
Há vinte quatro horas que o país assiste, incrédulo (falo por mim) a uma transmissão televisiva da SICn onde, a todas as horas, são emitidos diversos excertos de três interrogatórios, feitos pelo juiz de instrução Carlos Alexandre ao ex-ministro José Sócrates, no âmbito da "operação marquês", onde este é acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e fuga ao fisco.
Não tenho qualquer simpatia por Sócrates e é-me completamente indiferente que seja condenado ou não, desde que as provas e métodos, usados na investigação, sejam credíveis.
Recordemos: a "operação Marquês", que dura há 4 anos, começou por ser uma investigação à situação financeira do ex-primeiro-ministro, quando este deixou o cargo e foi estudar para Paris, onde levava uma vida considerada "acima das suas possibilidades", num apartamento de luxo, supostamente propriedade do amigo Santos Silva (dono do grupo de construção Lena) que receberia e pagaria avultadas somas de dinheiro a Sócrates. Numa fase inicial, foram detidos e ouvidos quatro suspeitos de envolvimento neste alegado caso de lavagem de dinheiro (Carlos Silva, Sócrates, o advogado e o motorista), tendo Sócrates ficado preso preventivamente (Novembro de 2014) ao abrigo da lei (perigo de fuga, contacto com os restantes arguidos e perturbação do processo). Após dez meses de prisão preventiva, o ex-primeiro ministro foi posto em liberdade e aguarda, desde então (Setembro de 2015) pelo início do processo, que ainda continua em fase de instrução.
Entretanto, nos quatro anos que mediaram desde o início deste caso, o "foco" da acusação deixou de ser Santos Silva e o grupo Lena (considerado um "testa de ferro", usado na "lavagem" de dinheiro) e passou a estar centrado noutras personalidades e empresas (PT, TVI, BES, Empreendimento Vale do Lobo) alegadamente envolvidas num esquema de corrupção mais alargado, à frente do qual estaria Ricardo Salgado (BES) e fomentado durante o governo de Sócrates. Graças a este esquema, o ex-primeiro ministro teria recebido qualquer coisa como 36 milhões de euros de subornos, que serviriam para facilitar os negócios de Salgado.
A "operação Marquês" transformou-se, assim, num "mega-processo", já que o juiz instrutor optou por juntar todos estes casos, aparentemente sem qualquer conexão, o que atrasou as diligências do MP e obrigou a sucessivos adiamentos na instauração do caso, que continua a aguardar uma data concreta para o início das audições. A data-limite, para a defesa dos arguidos "abrir" o processo, é agora o dia 3 de Setembro próximo e as audições em tribunal (dezenas de milhares de páginas e centenas de testemunhas arroladas) só deve iniciar-se em inícios de 2019.
Escusado será dizer que, apesar do "segredo de justiça" existente, já toda a gente conhece o conteúdo da acusação, colocada de forma cirúrgica nos principais orgãos de comunicação social do país, com destaque para o "Correio da Manhã", "Expresso" e os canais televisivos CMTV e SICn.
Ou seja, mesmo muito antes da defesa de Sócrates ter acesso ao processo, já este era conhecido nos seus detalhes pela opinião pública.
Posto isto, resta saber se o "segredo de justiça" é algo que ainda valha a pena defender e, como só há uma possibilidade do processo ter chegado à comunicação social (através do MP), perguntar o que se pretende através desta prática, completamente ao arrepio de um estado de direito que se preze.
As imagens a que estamos a assistir nas últimas 24horas, são porventura o "último degrau" na devassa da vida de um cidadão acusado, independentemente dos crimes que possa ter cometido. É também, o "último degrau" na credibilidade da justiça portuguesa, que há muito perdeu qualquer neutralidade. Quando tal é possível (não nos lembramos de ter visto algo semelhante em Portugal, muito menos num processo tão complexo como este) vem-nos à memória o Brasil de "má memória", um país onde a arbitrariedade e o atropelo dos direitos civis já faz parte da paisagem de corrupção que atinge toda a sociedade. Ainda que Portugal não seja o Brasil, nem o juíz Alexandre tenha o poder de Moro (um juiz digno da Inquisição, que usa a "delação premiada", como "prova" de acusação), a verdade é que já estivemos mais longe. Porque estas as coisas estão todas ligadas, resta saber quem está interessado em que as imagens da SICn, sejam divulgadas. A acreditar na jornalista "responsável" (!?) pela divulgação destes interrogatórios, a direcção da estação televisiva ponderou e analisou profundamente o interesse público da "cacha", antes de torná-la pública. Imaginem, se o mesmo lhe acontecia a ela, ou a qualquer de nós?...
2018/04/08
No país do pontapé de bicicleta
No país do "pontapé de bicicleta", um dos canais "informativos" (!?) mais populares, passou um excerto de uma longa entrevista do presidente Marcelo Rebelo de Sousa a um jornal galego, onde este considerou as boas "performances" económicas de Portugal, um "milagre a dois tempos" (!?): a coragem do governo anterior, ao enfrentar a crise; e os sacrifícios do povo português, que soube "compreender" (!?) a austeridade exigida. De acordo com o presidente "milagreiro", sem estes dois milagres, não haveria mérito do actual governo...
No país do "pontapé de bicicleta" e apesar da "página da austeridade ter sido virada", os sacrifícios continuam, como alguns títulos, desta mesma semana, confirmaram: a falta de meios para a cultura e para as artes, onde um orçamento miserável de 19 milhões de euros (0,98% do PIB) é a única resposta do governo à crise do sector; a falta de meios humanos e financeiros nos hospitais; a falta de pessoal nas escolas; ou os crimes contra o meio-ambiente, para citar apenas alguns exemplos mais gritantes.
No país do "pontapé de bicicleta" e apesar da "página de austeridade ter sido virada" (como atestam a reposição de salários, reformas e pensões dos funcionários públicos, do "déficit" ter diminuido, da economia ter crescido e do desemprego ter baixado), o salário mínimo continua abaixo de 600euros brutos (verba prometida em 2011); o desemprego camuflado continua com precários e contratados a prazo e andará à volta dos 15% na realidade (a terceira maior percentagem da UE); o mercado de arrendamento, nas grandes cidades, tornou-se uma quimera só ao alcance de ricos (com rendas médias de 850euros em Lisboa e no Porto); a manutenção de serviços públicos (protecção civil, hospitais, escolas, transportes urbanos, meio-ambiente, etc.) deixa cada vez mais a desejar, como os repetidos acidentes, neste último ano, têm vindo a confirmar: basta lembrar o drama dos fogos (ligados à desertificação e à falta de ordenamento do território e da floresta); a crónica falta de meios humanos nas escolas e nos hospitais (que provocam esperas de anos nalgumas especialidades), ou à poluição dos principais rios portugueses, (este um verdadeiro crime ambiental, permitido por quem de direito), não falando já da falta de manutenção nos transportes públicos.
Ou seja, pesem os bons resultados (inquestionáveis) da macro-economia, a verdade é que o país continua a funcionar a duas velocidades: por um lado, conseguem-se resultados invejáveis e elogiados por toda a Europa (o tal "milagre" de que fala o presidente); e, por outro, continuamos a "marcar passo" em áreas tão vitais para o bom funcionamento da sociedade, como as referidas acima, quando (em tese) o "saldo primário" (excedente contabilístico) obtido nos dois últimos anos, daria para investir e recuperar muitas dos atrasos estruturais de Portugal.
Porque é que isto, então, não é feito?
Muito simplesmente, porque o actual governo (na pessoa do seu ministro das finanças) considera mais importante diminuir o "déficit" e a dívida odiosa, para obter empréstimos com juros mais baixos nos mercados internacionais, do que libertar verbas do Orçamento de Estado para dinamizar o investimento e, por consequência, a própria economia.
Um plano arriscado (a chamada quadratura do círculo), onde o governo procura manter a imagem e comportamento de "bom aluno" no clube dos ricos (na procura das boas graças do Eurogrupo), ao mesmo tempo que procura manter a paz social, distribuindo migalhas do orçamento, para contentar os sindicatos e os partidos à sua esquerda, sem os quais não poderia governar.
Dado que o "jogo" (leia-se o futebol) segue dentro de momentos, as pantalhas vão voltar ao "serviço público" que melhor sabem fazer: dar mais minutos aos "pontapés de bicicleta" que é, como quem diz, continuar a "chutar a bola para canto". No fundo, a táctica das equipas medíocres. Assim, não vamos lá...
2018/04/06
Brasil: o poder dos juízes
As "tias" e os "tios" de S. Paulo, que foram para a rua bater panelas, têm saudades da ditadura...
Uns tristes, estes brancos urbanos da classe-média brasileira, que odeiam negros e tudo o que cheire a emancipação das classes mais desfavorecidas e querem fazer de Lula o "bode expiatório" de uma sociedade podre de corrupta, desta vez, com o apoio do justiceiro Moro e de um sistema justicialista ao serviço do poder político vigente.
O Brasil, a caminho de um regime populista de direita, apoiado pelos militares saudosistas de 1964.
Pobre país...
Uns tristes, estes brancos urbanos da classe-média brasileira, que odeiam negros e tudo o que cheire a emancipação das classes mais desfavorecidas e querem fazer de Lula o "bode expiatório" de uma sociedade podre de corrupta, desta vez, com o apoio do justiceiro Moro e de um sistema justicialista ao serviço do poder político vigente.
O Brasil, a caminho de um regime populista de direita, apoiado pelos militares saudosistas de 1964.
Pobre país...
2018/03/20
Marielle, presente!
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foto Esquerda.net |
O ocorrido com Marielle, infelizmente, não é um facto isolado. Em cada 100 pessoas assinadas no Brasil, 71 são negras. Em cada 100 mulheres assassinadas, 66 são negras. Tão pouco é incomum a violência contra lideranças de movimentos sociais: vide o assassinato de Paulo Sérgio Almeida Nascimento - líder da Associação de caboclos, indígenas e quilombolas da Amazónia - no Pará, há quatro dias.
O Brasil tornou-se um país tenebroso, onde o fascismo avança a passos largos. O terror é parte desta estratégia e visa a instauração de um estado de excepção, com vista a implementação de uma ditadura (militar) "desejada" e aceite pela população que vive, há muito, num clima de medo.
Começou com a farsa do "impeachment" de Dilma, (para impedir processos como o Lava-Jato, onde estão envolvidos muitos dos governantes do país, a começar pelo presidente Temer); seguiu-se a sua destituição, num processo que muitos apelidaram de golpe constitucional; prosseguiu com as acusações a Lula, (muitas das quais baseadas em delações, sem que algum facto tenha sido provado), tentando, dessa forma, impedi-lo de concorrer às próximas eleições, onde é indicado como favorito; e, finalmente, há um mês, concretizou-se com a ocupação militar do Rio de Janeiro, onde o exército passou a desempenhar as funções da polícia da cidade.
Temer, o grotesto vampiro, ensaia, deste modo, uma "fuga para a frente", tentando satisfazer uma burguesia branca e urbana, que há dois anos batia panelas pela demissão da presidente democraticamente eleita, reclamando medidas contra a "corrupção". Uns tristes, estes brasileiros da classe média, que não aprenderam nada com o Chile de Pinochet.
O assassínio de Marielle (um, entre milhares no último ano) é mais um passo nesta escalada do terror, com vista a incutir o medo na população e a evitar o aparecimento de líderes carismáticos que critiquem o sistema.
A canadiana Naomi Klein, num extraordinário livro (A Doutrina do Choque) explica bem como funciona esta estratégia, utilizada pelo capitalismo desregulado e predador, em situações de caos e calamidade: perante a perda da margem de lucro e na eminência da falência do "sistema" que sempre protegeu os seus ganhos e mordomias, cria (artificialmente) um clima de caos (a criminalidade, apoiada pelas milícias para-governamentais, faz parte deste cardápio) não hesitando em eliminar todos aqueles que denunciam o estado de violência consentido por um estado fraco. Desta forma, procuram assegurar a manutenção da "Ordem e Progresso", tão de agrado das classes dominantes, apenas interessadas num mercado a funcionar "normalmente".
No Brasil, morrem anualmente 60.000 pessoas por homicídio (um record mundial!) A maior parte, vítima de assaltos e do crime organizado (máfias de drogas, etc.). Os crimes políticos (24, no último ano), são de natureza diferente, pois visam atingir aqueles que denunciam esta situação e servir de exemplo para outros que ousem criticar o "sistema". Uma estratégia conhecida, utilizada em diversos países sul-americanos, nas décadas de setenta e oitenta (Operação Condor), quando quase todo o continente esteve sujeito a ditaduras militares de direita.
Aparentemente, alguns brasileiros nada aprenderam com a História e já esqueceram a ditadura militar sob a qual viveram entre 1964 e 1985. Não foi o caso de Marielle que, como muitos outros brasileiros, continuam a lutar por um país mais igualitário, onde a exclusão social, o racismo, o machismo e a homofobia, não tenham lugar.
2017/11/16
Diz-me como comunicas, dir-te-ei...
Apesar das gritantes deficiências no que à oferta diz respeito, hei-de sempre preferir o comboio para as minhas deslocações no país.
Não se percebe, pois, não sendo o caminho de ferro uma solução privilegiada para a política de transporte do País e sendo tão limitada a oferta actual, que o que existe não seja de primeiríssima qualidade.
Explico: se tivéssemos milhares de comboios a circular diariamente, uma oferta massiva a toda a hora, mais horários, mais movimento e mais linhas, poderia compreender algumas falhas de qualidade, atrasos, etc.. Sendo a oferta tão limitada, dificilmente encontro explicação para que não tenhamos um serviço de luxo, dentro deste leque magrinho de opções que é o nosso. Pelo menos isso: pouco, mas então (muito) bom.
Explico: se tivéssemos milhares de comboios a circular diariamente, uma oferta massiva a toda a hora, mais horários, mais movimento e mais linhas, poderia compreender algumas falhas de qualidade, atrasos, etc.. Sendo a oferta tão limitada, dificilmente encontro explicação para que não tenhamos um serviço de luxo, dentro deste leque magrinho de opções que é o nosso. Pelo menos isso: pouco, mas então (muito) bom.
Uma das áreas em que a CP falha de forma lamentável é no modo como comunica com o público. Se os maquinistas, por exemplo, conduzissem o comboio com o mesmo profissionalismo com que nos comunicam o nome da próxima estação ou o cuidado que temos de ter com a distância entre o comboio e a plataforma, nunca chegávamos ao destino. Não têm de ter treino de locutores profissionais, mas têm de haver um mínimo (mínimo!) de critério nisto da comunicação com os utentes.
Mas há pior!
Mas há pior!
Nos altifalantes da estação de Aveiro, ouvia eu, há poucos minutos, a informação sobre um determinado comboio regional. que estaria a circular com não sei quantos minutos de atraso. "Pedimos a VOSSA compreensão", dizia a voz do robot, "para OS INCÓMODOS CAUSADOS"...
Imagino que os passageiros afectados pelo atraso compreendam, sem qualquer dificuldade, os incómodos que o atraso lhes provocou. Já me custa, a mim, compreender por que razão a CP não pede na sua mensagem, claramente, desculpa, como é seu dever, pelo incómodo por eles causado, e que sugira, desta forma enviesada, aos passageiros afectados, que tentem compreender, eles, a natureza do seu próprio incómodo.
Não existe um serviço de relações públicas que ponha ordem nisto, escrevendo guiões claros e correctos, que possam ser simplesmente lidos pelas seus funcionários e cumpram, sem ambiguidades os deveres da empresa? Seria muito complicado ter um redator competente, a escrever, em Português de lei, as mensagens que têm de transmitir aos seus utentes? Não seria oportuno aproveitar para regravar estas sacudidelas da água do capote e dar uma imagem séria da empresa?
É uma sugestão que aqui fica. Grátis.
PS- veja-se este caso, contrastante, passado no Japão, de um comboio que saiu 20s antes da hora marcada...
2017/11/13
Panteão
2017/11/11
Postais da Holanda (2)
A Mauritshuis é, de há muito, um dos mais famosos museus de arte na Holanda. O Museu alberga o Gabinete Real de Pintura, constituido por 841 objectos, sendo a maior parte pinturas da Idade de Ouro da pintura holandesa.
As colecções contêm trabalhos de Johannes Vermeer, Rembrandt van Rijn, Jan Steen, Paulus Potter, Frans Halls, Jacob van Ruysdael, Hans Holbein, para além de muitos outros.
Originalmente, o edifício foi a residência do Conde John Maurice de Nassau. Actualmente é propriedade do governo da Holanda e está incluído nos 100 lugares de Herança Histórica Holandesa. Em 1822, a Mauritshuis abriu ao público para alojar o Gabinete Real de Pintura e o Gabinete Real de Raridades. Em 1875, o Museu tornar-se-ia disponível para pintura, tendo sido privatizado em 1995. Em 2007, o Museu anunciou o seu desejo de expandir e, em 2010, foi apresentado o "design" definitivo para as futuras instalações. A renovação iniciou-se em 2012, o que obrigou a um encerramento temporário do Museu, tendo ficado concluida em 2014. Durante a renovação, mais de 100 pinturas foram temporariamente transportadas para o GemeenteMuseum da cidade. Cerca de 50 outras pinturas, incluindo a famosa "Rapariga com o Brinco de Pérola" de Vermeer (provavelmente, a mais famosa peça do Museu), foram emprestadas para os Estados Unidos e Japão, onde estiveram expostas.
O Museu seria reaberto em 27 de Junho de 2014, ocupando agora uma área que quase duplica a original e que liga dois edifícios, através de uma galeria subterrânea, onde estão instaladas as bilheteira, vestiário, loja do Museu e outros apoios. Um elevador transparente liga os diversos andares, que podem ser visitados aleatoriamente, dado que estão ligados por uma escadaria central que atravessa todo o edifício. Graças ao mecenato, o Museu adquiriu recentemente 10 novas peças representativas do período clássico e contemporâneo, entre os quais devem ser destacados quadros de Rembrandt, Karel Appel e uma escultura de Picasso. Muitos destes quadros pertenciam a particulares e organismos vários que o estado holandês, numa meritória iniciativa, adquiriu para enriquecer a colecção do Museu.
É difícil destacar as obras que mais admiramos e que sempre nos surpreendem a cada visita. Que mais pode ser dito sobre obras como "A lição de anatomia do Dr. Nicolaas Tulp" (Rembrandt), "Vista de Delft" (J. Vermeer), "The Young Bull" (Paulus Potter) "Laughing Boy" (Frans Halls) "Self-Portrait" (Rembrandt), "Night Scene" (Rubens) ou a "Rapariga do Brinco de Pérola" (Vermeer), para citar alguns dos mais famosos?
Uma revelação permanente, a Mauritshuis, na melhor tradição holandesa de museus e de pintura, ao qual regressamos sempre, com redobrado prazer.
2017/11/07
Postais da Holanda (1)
Maria Esmeralda Mendes (1943-2009) era portuguesa e viveu na Holanda, para onde se exilou em 1971. Enfermeira de profissão, foi detida pela PIDE, após ter participado numa greve da classe, no hospital onde trabalhava. Devido às ameaças recebidas, decidiu sair do país, primeiro para Paris e, posteriormente, para Amsterdão, onde acabaria por radicar-se durante 38 anos.
Durante a permanência na capital holandesa, a sua actividade inicial dividiu-se entre a enfermagem, que exerceu nos primeiros anos de residência e uma activa participação junto da comunidade de portugueses exilados, ao tempo organizados no Comité de Refugiados Portugueses na Holanda.
Após um acidente de trânsito, que a obriga a ficar em casa sem ocupação, redescobre uma antiga paixão pelo desenho e pela pintura, desenvolvida na Escola António Arroio, que chegou a frequentar.
Segue-se um período de grande produção, onde a par da pintura (naíve), desenha e escreve para publicações locais e para Portugal. A sua primeira exposição, tem lugar em 1983, por iniciativa de Vitor da Silva Tavares, editor da & Etc., que publicou igualmente o seu primeiro livro "Rigor Mortis".
Os anos oitenta, são os mais produtivos da sua curta, mas intensa carreira, com inúmeras exposições em galerias e museus na Holanda, Bélgica e Portugal, onde o seu trabalho começa a tornar-se reconhecido. É convidada a ilustrar diversas publicações holandesas e são dela todas as capas de uma série, dedicada a autores portugueses, da editora De Prom. Na mesma época, a prestigiada revista literária holandesa "Maatstaf", dedica-lhe um portofólio, onde sobressai um elogioso texto do escritor, radicado na Holanda, Rentes de Carvalho.
Estamos no início da década de noventa e as suas pinturas (maioritariamente sobre mulheres) tornam-se icónicas e são disputadas por coleccionadores dentro e fora do pais. De novo, a doença, impede o desenvolvimento natural da sua carreira, o que a obriga a reduzir a actividade, assim como o ritmo das exposições. Alarga o campo de interesses e criatividade a outras áreas, como a gravura e a escultura, que desenvolve, a par da pintura, do desenho e da escrita.
Os seus últimos anos, são parcialmente passados em Caminha (Alto Minho), onde se refugia por períodos cada vez mais longos. As suas pinturas reflectem, agora, temas ligados à natureza que a rodeia, iniciando uma nova fase na sua profícua actividade, sem que o traço e a cor percam a força e a coerência. É entrevistada por Maria António Fiadeiro para o JL, que com ela realiza um documentário televisivo e colabora com a escritora Luísa da Costa, para quem ilustra o livro "Os Magos".
Na área do teatro, colabora na feitura dos cenários da peça "Ensaio Geral" (Horovitz) levada à cena pela Companhia do Chiado, em finais dos anos noventa.
Todas estas informações e muitas outras, foram este ano publicadas em livro por Dirk Baartse, seu companheiro ao longo de 38 anos, autor do texto e da composição gráfica de "Maria Mendes, uma biografia", em edição bi-lingue, cuja tradução portuguesa esteve a cargo de Rui Mota.
O livro foi, recentemente, apresentado na Biblioteca do Complexo De Hallen, em Amsterdão, perante uma assistência maioritariamente composta por amigos holandeses e portugueses da pintora. A organização esteve mais uma vez a cargo da agência Q-Arts (Teresa Pinto) e contou igualmente com a presença do prof. Fernando Venâncio, que faria uma comunicação sobre "Autores e rivalidades na literatura portuguesa, ao longo da História", para além da projecção do filme "Sonhar não custa dinheiro", um docu-drama sobre mulheres portuguesas (e.o. Maria Mendes) na Holanda.
Uma sessão evocativa, que justificou a viagem a um passado recente, numa cidade onde tivemos o privilégio de conhecer e conviver com a homenageada. A memória, também se faz destas coisas.
Durante a permanência na capital holandesa, a sua actividade inicial dividiu-se entre a enfermagem, que exerceu nos primeiros anos de residência e uma activa participação junto da comunidade de portugueses exilados, ao tempo organizados no Comité de Refugiados Portugueses na Holanda.
Após um acidente de trânsito, que a obriga a ficar em casa sem ocupação, redescobre uma antiga paixão pelo desenho e pela pintura, desenvolvida na Escola António Arroio, que chegou a frequentar.
Segue-se um período de grande produção, onde a par da pintura (naíve), desenha e escreve para publicações locais e para Portugal. A sua primeira exposição, tem lugar em 1983, por iniciativa de Vitor da Silva Tavares, editor da & Etc., que publicou igualmente o seu primeiro livro "Rigor Mortis".
Os anos oitenta, são os mais produtivos da sua curta, mas intensa carreira, com inúmeras exposições em galerias e museus na Holanda, Bélgica e Portugal, onde o seu trabalho começa a tornar-se reconhecido. É convidada a ilustrar diversas publicações holandesas e são dela todas as capas de uma série, dedicada a autores portugueses, da editora De Prom. Na mesma época, a prestigiada revista literária holandesa "Maatstaf", dedica-lhe um portofólio, onde sobressai um elogioso texto do escritor, radicado na Holanda, Rentes de Carvalho.
Estamos no início da década de noventa e as suas pinturas (maioritariamente sobre mulheres) tornam-se icónicas e são disputadas por coleccionadores dentro e fora do pais. De novo, a doença, impede o desenvolvimento natural da sua carreira, o que a obriga a reduzir a actividade, assim como o ritmo das exposições. Alarga o campo de interesses e criatividade a outras áreas, como a gravura e a escultura, que desenvolve, a par da pintura, do desenho e da escrita.
Os seus últimos anos, são parcialmente passados em Caminha (Alto Minho), onde se refugia por períodos cada vez mais longos. As suas pinturas reflectem, agora, temas ligados à natureza que a rodeia, iniciando uma nova fase na sua profícua actividade, sem que o traço e a cor percam a força e a coerência. É entrevistada por Maria António Fiadeiro para o JL, que com ela realiza um documentário televisivo e colabora com a escritora Luísa da Costa, para quem ilustra o livro "Os Magos".
Na área do teatro, colabora na feitura dos cenários da peça "Ensaio Geral" (Horovitz) levada à cena pela Companhia do Chiado, em finais dos anos noventa.
Todas estas informações e muitas outras, foram este ano publicadas em livro por Dirk Baartse, seu companheiro ao longo de 38 anos, autor do texto e da composição gráfica de "Maria Mendes, uma biografia", em edição bi-lingue, cuja tradução portuguesa esteve a cargo de Rui Mota.
O livro foi, recentemente, apresentado na Biblioteca do Complexo De Hallen, em Amsterdão, perante uma assistência maioritariamente composta por amigos holandeses e portugueses da pintora. A organização esteve mais uma vez a cargo da agência Q-Arts (Teresa Pinto) e contou igualmente com a presença do prof. Fernando Venâncio, que faria uma comunicação sobre "Autores e rivalidades na literatura portuguesa, ao longo da História", para além da projecção do filme "Sonhar não custa dinheiro", um docu-drama sobre mulheres portuguesas (e.o. Maria Mendes) na Holanda.
Uma sessão evocativa, que justificou a viagem a um passado recente, numa cidade onde tivemos o privilégio de conhecer e conviver com a homenageada. A memória, também se faz destas coisas.
2017/11/05
Dias Maus
De acordo com o advogado de defesa de um dos "seguranças" da discoteca "Urban Beach" (o nome é todo um programa), o seu cliente teve um "dia mau", o que explicará os pontapés que deu na cabeça do jovem atingido por três defensores da "ordem e tranquilidade" na praia urbana. De resto, e ainda segundo o mesmo advogado, trata-se de equimoses "sem grande importância": um olho negro, um lábio rachado, um dente partido, uma perna esfacelada, dores no corpo, três semanas de recuperação médica, tudo coisas fáceis de "sarar", como se depreende...
O que é isto, comparado com as agressões sofridas por dois jovens em Coimbra, barbaramente espancados perante testemunhas e provas irrefutáveis, gravadas em vídeo, como aliás já tinham sido testemunhadas e gravadas as agressões da mais famosa "praia portuguesa"? Certamente, um "dia mau" dos agressores, que continuam a monte, apesar da gravidade do acto (passível de uma pena por tentativa de homicídio até 25 anos) como foi sublinhado por todos especialistas ouvidos neste caso.
O mesmo, ainda que com outros contornos, se passou com aquela mulher que teve o azar de ser raptada pelo seu ex-companheiro e ser igualmente espancada pelo ex-marido, num caso de extrema violência doméstica, que um acordão anedótico equiparou a "punição bíblica".
Dias maus.
Imaginemos que todos nós - que temos maus dias - saíamos à rua e desatávamos aos pontapés nos primeiros cidadãos que encontramos para, dessa forma, libertarmos a frustração pelos dias menos bons, que a nossa pacata vida encerra?
Nem quero imaginar.
Pior do que tudo isto, em si já extremamente preocupante, é saber que estamos dependentes de agentes da justiça (advogados, magistrados, polícias...) que continuam a interpretar a lei e a sua aplicação de forma a garantir o máximo de protecção para os (confessados) agressores e o mínimo de garantias para o comum dos cidadãos.
Não por acaso, a violência gratuita (doméstica e no espaço público) tem vindo a aumentar na sociedade portuguesa, como se depreende dos inúmeros relatórios e provas (filmes) com que somos confrontados diariamente nas redes sociais. Certamente, uma consequência da proliferação dos "smartphones", que permitem em tempo real divulgar muita da violência que campeia nas escolas e não só.
O que todos estes casos parecem revelar, é a existência de um caldo cultural que, a banalizar-se, pode tornar-se um "modo de vida" (a banalidade do mal), cujas consequências são de todo imprevisíveis. Uma coisa é certa: onde falham as instituições (o estado) cresce a criminalidade. É dos livros.
Não faz sentido que um estabelecimento comercial (neste caso uma discoteca) tenha sido alvo de 38 queixas no último ano, por violência privada, a cargo de uma qualquer empresa de segurança (!?) que se comporta como um "estado dentro do estado", sem que nada tivesse acontecido.
Trinta e oito dias, são dias maus demais.
2017/10/17
Quando ninguém é culpado, somos todos culpados...
Menos de quatro meses depois, daquela que já é considerada a maior tragédia do último século, o país viu-se, uma vez mais, confrontado com outra vaga de incêndios de proporções gigantescas. Quando escrevemos este texto, estavam contabilizados 41 vítimas mortais e mais de 70 feridos, entre os quais alguns em estado grave. Ou seja, em apenas dois dias de fogos florestais (17 de Junho e 15 de Outubro), morreram mais de 100 pessoas! Não estão aqui contabilizadas as perdas materiais (casas, alfaias, colheitas, animais) calculadas em qualquer coisa como 500 milhões de euros, para além da própria área florestal, da qual arderam 400.000 hectares, a maior área europeia este ano!
Uma catástrofe sem igual, que devia fazer pensar os gestores da coisa pública sobre as estratégias de prevenção e combate aos fogos, pensadas e aplicadas nas últimas décadas e que, ano após ano, continuam a falhar sistematicamente.
Algo está profundamente errado em tudo isto e não vale a pena lamentarmo-nos mais uma vez sobre esta calamidade, ou esperarmos por mais um relatório, para saber o que está mal e quais as origens do problema (são várias) ou os antídotos para solucionar (ainda que parcialmente) este problema.
O diagnóstico está feito e não são necessários mais pareceres e grupos de estudo para delinear uma estratégia nacional (a dez, vinte anos) que tenha a concordância dos sucessivos governos, pois se há causas nacionais, esta é uma delas.
Todos sabemos - e os técnicos repetiram-no esta semana - que as causas profundas residem na desertificação do território (acelerado com a emigração e guerra colonial), na falta de ordenamento (de que toda a gente fala e ninguém quer saber), na falta de cadastro das florestas (não existe acima do Norte do Tejo) e no desaparecimento progressivo da agricultura de sobrevivência e do pastoreio (menos rebanhos, menos pastores), que foi trocada pela plantação desordenada de espécies exógenas (eucaliptos e pinheiro bravo) que ardem depressa e dão muito dinheiro a ganhar aos madeireiros e à industria de celulose. Acresce, que muitas autarquias não cumprem o obrigação da limpeza das matas e muitos habitantes, das zonas do interior, continuam a fazer queimadas, piqueniques e lançar foguetes em zonas proibidas, sem que alguém os proiba. Uma questão cultural, portanto.
Em Verões de extrema seca (como tem sido a maior parte, neste século) e com os pinhais sem vigilantes (acabaram com os guardas florestais e cantoneiros) não é para admirar que muitos fogos (90% são de origem humana) possam ser ateados, mesmo que sem dolo. Resta uma pequena percentagem (10%?) que comprovadamente foram actos de pirómanos e/ou terrorismo, a soldo de interesses vários (vinganças, económicos, políticos, etc.).
Ora, o que os fogos de domingo vieram demonstrar (mais de 500 ignições num só dia!) é que a prevenção falhou redondamente. Para além das causas naturais conhecidas (temperaturas excessivas para a época do ano, humidade relativa baixa e ventos ciclónicos) a verdade é que muitos dos dispositivos no terreno voltaram a claudicar na sua função mais importante: o aviso e a prevenção das populações. Falhou o famigerado SIRESP (mais de 500 milhões de custos), as famigeradas calhas onde passam as fibras ópticas que, supostamente, deviam estar enterradas para não derreter com o calor do fogo, a coordenação das equipas no terreno, os aviões e helicóperos em número insuficiente e "last but not least", o nível "Charlie" (alerta vermelho) que foi desactivado no dia 30 de Setembro, por ser considerado o último dia da "época de fogos" (!?).
É, por isso, incompreensível que, perante tanta inépcia e incompetência, o governo se limite agora a lamentar as mortes ocorridas e que use uma esfarrapada desculpa de um relatório, para não tomar, em tempo, medidas práticas de curto prazo.
Não, os fogos não podem ser todos controlados e não se pedem "milagres" aos governantes. Mas, pede-se, isso sim, a assumpção de responsabilidades que, neste caso, ninguém parece querer assumir. Uma melhor prevenção, não evita os fogos, mas limita a sua proliferação e diminui o risco implícito. Alguém tem de dar o "corpo às balas" e assumir responsabilidades por esta vergonha nacional. Quanto mais não seja, porque nem todos têm a mesma responsabilidade. Ora, como sabemos, quando ninguém é culpado, somos todos culpados. Já chega!
Uma catástrofe sem igual, que devia fazer pensar os gestores da coisa pública sobre as estratégias de prevenção e combate aos fogos, pensadas e aplicadas nas últimas décadas e que, ano após ano, continuam a falhar sistematicamente.
Algo está profundamente errado em tudo isto e não vale a pena lamentarmo-nos mais uma vez sobre esta calamidade, ou esperarmos por mais um relatório, para saber o que está mal e quais as origens do problema (são várias) ou os antídotos para solucionar (ainda que parcialmente) este problema.
O diagnóstico está feito e não são necessários mais pareceres e grupos de estudo para delinear uma estratégia nacional (a dez, vinte anos) que tenha a concordância dos sucessivos governos, pois se há causas nacionais, esta é uma delas.
Todos sabemos - e os técnicos repetiram-no esta semana - que as causas profundas residem na desertificação do território (acelerado com a emigração e guerra colonial), na falta de ordenamento (de que toda a gente fala e ninguém quer saber), na falta de cadastro das florestas (não existe acima do Norte do Tejo) e no desaparecimento progressivo da agricultura de sobrevivência e do pastoreio (menos rebanhos, menos pastores), que foi trocada pela plantação desordenada de espécies exógenas (eucaliptos e pinheiro bravo) que ardem depressa e dão muito dinheiro a ganhar aos madeireiros e à industria de celulose. Acresce, que muitas autarquias não cumprem o obrigação da limpeza das matas e muitos habitantes, das zonas do interior, continuam a fazer queimadas, piqueniques e lançar foguetes em zonas proibidas, sem que alguém os proiba. Uma questão cultural, portanto.
Em Verões de extrema seca (como tem sido a maior parte, neste século) e com os pinhais sem vigilantes (acabaram com os guardas florestais e cantoneiros) não é para admirar que muitos fogos (90% são de origem humana) possam ser ateados, mesmo que sem dolo. Resta uma pequena percentagem (10%?) que comprovadamente foram actos de pirómanos e/ou terrorismo, a soldo de interesses vários (vinganças, económicos, políticos, etc.).
Ora, o que os fogos de domingo vieram demonstrar (mais de 500 ignições num só dia!) é que a prevenção falhou redondamente. Para além das causas naturais conhecidas (temperaturas excessivas para a época do ano, humidade relativa baixa e ventos ciclónicos) a verdade é que muitos dos dispositivos no terreno voltaram a claudicar na sua função mais importante: o aviso e a prevenção das populações. Falhou o famigerado SIRESP (mais de 500 milhões de custos), as famigeradas calhas onde passam as fibras ópticas que, supostamente, deviam estar enterradas para não derreter com o calor do fogo, a coordenação das equipas no terreno, os aviões e helicóperos em número insuficiente e "last but not least", o nível "Charlie" (alerta vermelho) que foi desactivado no dia 30 de Setembro, por ser considerado o último dia da "época de fogos" (!?).
É, por isso, incompreensível que, perante tanta inépcia e incompetência, o governo se limite agora a lamentar as mortes ocorridas e que use uma esfarrapada desculpa de um relatório, para não tomar, em tempo, medidas práticas de curto prazo.
Não, os fogos não podem ser todos controlados e não se pedem "milagres" aos governantes. Mas, pede-se, isso sim, a assumpção de responsabilidades que, neste caso, ninguém parece querer assumir. Uma melhor prevenção, não evita os fogos, mas limita a sua proliferação e diminui o risco implícito. Alguém tem de dar o "corpo às balas" e assumir responsabilidades por esta vergonha nacional. Quanto mais não seja, porque nem todos têm a mesma responsabilidade. Ora, como sabemos, quando ninguém é culpado, somos todos culpados. Já chega!
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