2011/08/05

Uma questão de educação

Politicamente, estamos numa fase que poderíamos classificar como a das virtudes teologais. Este governo iniciou funções, se bem se recordam, a proclamar  —fazendo coro com Cavaco Silva— que "Portugal não vai falhar." Uma , portanto. Portugal empolgou-se. A fé, sabemo-lo, move montanhas e o imaginário dos portugueses arrebatou-se, estimulado por amplos movimentos de terras.
Mas logo a fé foi substituida pela caridade. Enquanto mostrava a verdadeira face, malhando forte nas condições de vida dos portugueses, o governo dava logo a outra face ao introduzir o seu programa ou plano de emergência social, uma verdadeira cerimónia de lava-PES, a penitência, um amontoado de medidas para aplacar consciências. Um governo feito quermesse de paróquia, constituído por governantes que no seu louvável afã parecem uma brigada da Conferência Vicentina ensaiando a dança de S. Vito. É verdadeiramente patético.
Em vez de quebrar o ciclo, Portugal assiste a tudo isto venerador e obrigado. Uma mão estendida enquanto a outra segura os fios da tanga de domingo que sobra para ir à missa.
No final, com a capacidade de reacção entalada entre a fé e a caridade, lá bem no fundo, fenece a esperança dos portugueses. Por muitos actos de fé e por muita caridade que seja despejada sobre eles, os estudos e estatísticas estão aí para o demonstrar: os portugueses são um povo sem esperança.
Educados nas virtudes teologais, os portugueses, governantes e governados, precisavam de ir muito mais além, para ultrapassar este maldito ciclo do império das virtudes, mas não dão mais do que isto: fé e caridade sem esperança.
As virtudes teologais levaram-nos à crise, as virtudes teologais hão-de tirar-nos dela. É cá uma fé que a gente tem...

2011/08/03

Álvaro

Devo confessar que tenho um "fraquinho" pelo Álvaro. O Santos Pereira. Aquele que é ministro de Economia e Inovação. Vi as intervenções que fez na Comissão de Inquérito da Assembleia da República e fiquei espantado. O homem não tinha carro em Vancouver e ia todos os dias de metro para a Universidade onde leccionava. Mais, aproveitava o tempo da viagem para ler os relatórios que tinha de estudar. Ainda hoje, nem ele nem a família têm automóvel (Imagino que irá de metro ou de autocarro, para o seu ministério). Quando chegou ao governo ficou chocado com as mordomias em que viviam os seus antecessores: os carros topo de gama, as ajudas de custo, os motoristas. Em consequência, já mandou reduzir os gastos. Também já reduziu o número de secretários, assessores e funcionários no departamento.
Acredita em Portugal e tem planos extraordinários para o futuro. Provavelmente, o mais extraordinário de todos é tornar Portugal a "Florida da Europa". Já tinhamos o Portugal "Europe's West Coast" e o "Allgarve", agora teremos os reformados do Norte da Europa com mais calor durante todo o ano. Estou a imaginar o slogan: "Meet the real Camarinha at Algarve's Barlavento".
Isto para não falar do seu tom coloquial: Álvaro para os colaboradores, que essa coisa de títulos é de país atrasado (não podia estar mais de acordo). O homem não pára. Ele é o ministro de quem se fala. Colossal, o Álvaro.

2011/08/02

O futuro de Coelho pode falhar

Ninguém tinha ilusões quanto à capacidade do governo poder controlar a bagunça que por aí vai, mas nunca pensei que o pior cenário se viesse a revelar de uma forma tão abrupta, tão rapidamente. Deste governo exigia-se que fosse como aqueles carros dos quais se diz que atingem os 100 km/h na casa dos poucos segundos. E que tivesse potência para aguentar, já nem digo ultrapassar, essa velocidade. Pelo menos enquanto durasse a gasolina.
As reacções ao aumento dos transportes vieram mostrar que vivemos num equilíbrio extremamente precário. Não as considero tímidas. A qualquer momento o "bólide" gripa.
Em breve, creio, os diversos poderes vão perceber que não basta verter lágrimas de crocodilo por causa da pobreza e repetir, sem convicção, que vivemos numa situação difícil e é portanto necessário fazer sacrifícios. Há um limite para tudo, até para a capacidade de tolerância dos portugueses e o governo parece ignorar que não tem margem de erro. Coelho, Portas e Cavaco estão a falhar.
Sem explicações aceitáveis para os inesperados aumentos e novos cortes, demonstrando de forma cada vez mais clara a falta de trabalho de casa que teria permitido começar cedo a trilhar novos caminhos e a rectificar claramente os erros de gestão mil vezes apontados ao PS, estamos à deriva. O governo parece o Breivik a acertar friamente nas vítimas impotentes, nas vítimas de sempre. Será que Coelho e o seu parceiro de coligação leram mesmo bem —mesmo bem!— os sinais que lhes foram transmitidos pelas eleições?
Se não se põe a pau o governo de Passos Coelho —que susbstituiu a desculpa com o governo anterior pela desculpa com a troika e o "fontismo"— caminha a passos largos para um aparatoso trambolhão.

2011/08/01

Negócios colossais

Ver Mira Amaral na Televisão justificar a compra do BPN pela ridicula quantia de 40 milhões de euros (quando a maior oferta era de 100 milhões) com o argumento de que aquele era o preço justo no mercado, é demasiado ofensivo para ser levado a sério.
Imaginem só: o banco que foi alvo da maior fraude financeira da história da banca portuguesa, e que custou até agora ao erário público 2.400 milhões de euros, vai despedir 750 dos 1500 funcionários e o governo ainda terá de assegurar 550 milhões para o recapitalizar, antes de entregá-lo ao BIC. A "cereja em cima do bolo" - no caso do banco ter um lucro de 80 milhões no futuro - vai ser a devolução de parte deste valor ao estado (quando?).
Principais accionistas neste negócio leonino: a filha do cleptócrata Eduardo Santos (Angola) e Américo Amorim (o homem mais rico de Portugal), que já detêm o BIC, no qual Amaral exerce a função de administrador principal.
Não é de admirar que o ministro das finanças só encontre "desvios" nas contas do estado. Faltam-me adjectivos para classificar tal negócio. Talvez colossal?

2011/07/30

Os avelinos

Este processo do relógio de ouro de 15 000 euros, oferecido a Avelino Ferreira Torres, não choca pelo valor nem pelo destinatário da "prenda". Avelino Ferreira Torres não engana ninguém e, nesse aspecto, parece até ser o mais "inocente" em tudo isto. O que choca verdadeiramente são os avelinos que tiveram esta ideia. Tremo de pensar nesta malta que desviou dinheiro público, dinheiro nosso, pelo qual era responsável, e o empregou numa operação ilegítima, não orçamentada, sem pestanejar, como se de uma coisa perfeitamente natural, talvez mesmo inevitável, se tratasse. Tremo de pensar que depois disto, para a Justiça Portuguesa, estes avelinos não parecem dignos de mais do que um castigo light, decidido ao fim de um processo mastigado ao longo de vários anos. Uma sentença exemplar, portanto. Tremo, sobretudo, quando penso nos avelinos que votaram nestes, demonstrando com o seu voto tolerar e avalizar tudo isto
E que dizer dos avelinos todos que por aí andam, menos exuberantes, mais discretos, inimputáveis,  apoiantes ou praticantes activos do princípio "em cada relógio de ouro, um amigo?"

2011/07/29

Oslo (2)

O primeiro-ministro norueguês, Jens Stoltenberg, falou hoje numa mesquita de Oslo, naquele que foi considerado o ponto alto das cerimónias oficiais em memória das vítimas dos atentados de há uma semana.
Sem nunca mencionar o nome do terrorista que perpetrou os atentados, Stoltenberg quis mostrar ao seu povo que os muçulmanos, noruegueses ou não, estão na Noruega para ficar, pelo nada mais resta do que entenderem-se.
Se mais razões não houvesse, esta é uma lição para os fanáticos de todos os quadrantes, que justificam os seus crimes com o incitamento ao ódio que sempre os animou.
Resta uma questão dolorosa: o único helicóptero da polícia da capital estava avariado e a unidade de comandos, destacada para a ilha, chegou lá de automóvel e barco, uma hora e meia mais tarde. Num dos países mais desenvolvidos do Mundo, há coisas inexplicáveis. Os noruegueses, certamente um dos povos mais pacíficos do planeta (et pour cause), não o mereciam.

2011/07/25

Oslo

Vemos as imagens do massacre norueguês e não podemos deixar de compará-las com acontecimentos recentes que atingiram Nova-Iorque, Madrid ou Londres. Da mesma forma que ontem fomos americanos, hoje sentimo-nos noruegueses. Nada, ideologia política ou religião, pode justificar tal barbárie e desprezo pela vida humana. E portanto, mais uma vez, um acto de puro terrorismo paralisou um país e pôe em questão valores sobre os quais as nossas sociedades assentam. Sabemos, de há muito, que o Mal é universal e, nesse sentido, transversal a todas as culturas e sociedades. No entanto, e ao contrário dos atentados radicais islamistas, perpetrados contra sociedades "ocidentais" a partir de "fora", os atentados na Noruega foram executados por um nativo contra os cidadãos do seu próprio país. É uma diferença fundamental, ainda que nenhum fundamentalismo - islamista ou cristão - seja na sua essência muito diferente. Trata-se de um acto (aparentemente isolado) que não é representativo da religião cristã, da mesma forma que os actos terroristas islamistas, não devem ser confundidos com o Islão. Mas, atenção, os sinais de crescente racismo e xenofobia nos países do Norte da Europa são hoje inequívocos. O massacre de sexta-feira passada foi, no seu simbolismo, um acto pensado e executado com a frieza de um convicto nazi, de resto confirmado pela documentação a que vamos tendo acesso. Um acto isolado ou um dos muitos ovos que a serpente nacionalista e xenófoba está a chocar? Essa é a pergunta central e nada garante que países como a Noruega os possam evitar.

Terão sido de facto os mesmos?

José Sócrates foi entronizado em Março último no PS com uma significativa percentagem de 93% de votos favoráveis. Agora, passados apenas 4 meses, é a vez de António José Seguro ser eleito com uma percentagem também significativa de cerca de 70%.
O secretário geral é novo, mas a maioria que o elegeu, como hoje me chamava a atenção um amigo, é a mesma. Ora dá o poder a um, ora muda de opinião e, no espaço de 4 meses, mais coisa menos coisa, dá o poder a outro que se lhe terá oposto. E muda esta opinião sem que se tenha percebido muito bem em que matérias e com que justificação o faz, e sem que se tenha sequer percebido a matriz da qual emanam tamanhas "divergências".
Para que fosse possível aceitar o PS como um partido credível, ideologicamente sólido, politicamente responsável e capaz de constituir uma alternativa de poder séria, seriam devidas muitas explicações ao país e esperar-se-ia um momento de profunda auto-crítica.
Tendo em conta os personagens que continuam a dominar os acontecimentos, o armazém de bric-a-brac ideológico em que se transformou o PS e a capacidade de regeneração da camuflagem dos seus militantes parecem-me exercícios pelos quais vamos todos certamente ter de esperar sentados.

2011/07/20

Da observação da regra

Esta história das indumentárias veio dar alguma visibilidade à Universidade Católica, embora pelos piores motivos. Fez-me lembrar um episódio que ocorreu há uma data de anos, estava eu para fazer um exame de matemática no colégio onde então andava. Umas dezenas largas de alunos, de fato e gravata, como era exigência na época, amontoavam-se no ginásio feito sala de exames improvisada. O calor era insuportável. Um colega "atreveu-se" a pedir ao presidente do júri que nos fosse concedida a possibilidade de tirar o casaco (a gravata ficava...)
O calor era tal que o dito presidente, coberto, ele próprio, de suor dos pés à cabeça, hesitou por um momento e acabou por discutir o pedido colocado com os restantes professores presentes. Havia esperança, pensávamos nós, já que o assunto merecia, pelo menos, debate interno. Em vão. No final do debate, o tal presidente, escorrendo suor por tudo o que era poro, anunciava-nos que infelizmente não iríamos poder tirar o casaco. Eram as regras. Fato e gravata, ele também tinha feito todos os seus exames assim vestido. Ponto final.
Estávamos afinal (só o vim a perceber muito mais tarde!) perante uma experiência científica de grande significado: pretendia-se provar que o cérebro consegue dar conta do recado, apesar de um bloqueio intencional e significativo do afluxo de sangue necessário ao funcionamento deste órgão e que as regras do Cálculo Diferencial são válidas, mesmo em situação de pré-cremação.
O episódio foi de tal maneira traumático que ainda hoje "sinto" aquela agonia e "suo" só de pensar naquele calor. Lembrei-me disto a propósito da história das indumentárias da Universidade Católica.
A Universidade Católica, certamente preocupada com o miserável lugar que ocupa no ranking mundial dos estabelecimentos de ensino superior —e, sem dúvida no intuito de subir uns pontos— veio agora tornar públicas as normas internas para a indumentária de alunos e colaboradores.
São fait divers, dirão. Se calhar, concordarei eu. É uma universidade privada, dita as regras que lhe apetecer, dirão vocês. É bem verdade, anuirei eu, sem hesitar. Mas, é chocante, ridículo, enganador, ripostarão alguns. 'Tá bem abelha, dirão eles... O contributo da UCP para a crise fica-se pelo hábito.
Há restaurantes e estabelecimentos similares que exigem aos seus clientes uma indumentária "digna" para poderem ser neles admitidos. Se o cliente não vier vestido de acordo com as regras da casa, fornece-se, a troco de um extra, indumentária apropriada. A qualidade do restaurante, logo se vê, mas primeiro há que estar vestido a preceito. Sugiro então aos responsáveis da UCP que criem um serviço semelhante. Uma fonte de receita adicional, certamente não despicienda nestes tempos de crise.

2011/07/15

Badajoz à vista...

Realiza-se por estes dias a 4ª edição do festival transfronteiriço "Badasom", um acrónimo de "som de Badajoz", que tem como tema central o Flamenco e o Fado. Trata-se de uma iniciativa da Junta Extremena e do Ayuntamento de Badajoz, patrocinada pelos cafés Delta, do português Nabeiro. O festival tem um orçamento global de 350.000euros sendo o custo das entradas de 6euros para o teatro e 10euros para o auditório.
Lá estivemos, este ano, para rever Esther Merino, uma "cantaora" extremena, que tem a particularidade de cantar José Afonso em...português. Descobrimos esta intérprete espanhola no Palácio Foz de Lisboa, onde se deslocou recentemente a convite de Amilcar Vasques Dias, compositor e pianista, de quem já conheciamos o reportório e que é, normalmente, acompanhado pelo violinista Luís Cunha.
Quando o desafio surgiu, nem hesitámos. Badajoz está a duas horas de caminho e poder rever, ao vivo, este trio de luxo, era um privilégio.
O Festival desenrola-se em dois espaços distintos da cidade, o teatro López de Ayala e o auditório Ricardo Carapeto para os grandes concertos. Um programa de luxo, o do "Badasom", onde em edições anteriores passaram nomes como Mariza, Camané e Cristina Branco, do lado português e Carmen Linares, Miguel Poveda, El Cigala, Vicente Amigo e Enrique Morente do lado espanhol.
Este ano, o Festival tem como tema a figura de "Porrina de Badajoz", um "cantaor" extremeno que mereceu as honras da primeira noite, a cargo de Ramón, "El Português". Seguiu-se uma noite no terraço do Teatro Ayala onde, a par de um jantar volante, pudemos desfrutar de uma noite de "cante" (ao luar), na qual participava Esther Merino que interpretou LLorca, Afonso (Cantar Alentejano) e diversos "palos" flamencos. Uma força da natureza, a Esther, que acaba de ganhar o prémio da melhor "cantaora" revelação do ano. Canta bem todos os estilos e a "seguiriya" com que nos brindou permaneceria um dos pontos altos da noite. O outro seria "Cantar Alentejano", acompanhado ao piano e violino, onde a técnica, aliada à expressividade e dramatismo que só uma grande intérprete pode ter, foi notável. Merino acaba de ser anunciada para actuar no Festival Flamenco de Lisboa, com data marcada para 16 de Setembro, no Coliseu. A todos aqueles que pensam que de Espanha "nem bom vento, nem bom casamento", posso desde já garantir que uma coisa boa vem de certeza: o flamenco!
O programa do "Badasom" continua hoje, com Estrella Morente e Joana Amendoeira, terminando amanhã com "Tomatito" e "El Guadiana". Já não podem dizer que não sabiam...

2011/07/11

O SNS é nosso!

Só quem não tem, não teve ou finge ignorar ter problemas de saúde, só quem não os experimentou directa ou indirectamente, por doença sua ou de alguém chegado, só alguém assim pode tratar o SNS com leviandade e distância. Nem mesmo o facto de ter muito dinheiro e de poder ir ao estrangeiro quando dói a barriga exime as pessoas de encarar um serviço de cuidados de saúde competente e universal como uma necessidade tão básica como o ar e a água, de o exigir e de lutar para que tenha as melhores condições de funcionamento.
Os pobres porque se encontram duplamente desprotegidos na doença devem ter direito, sem restrições, aos melhores cuidados de saúde. Mas, também os ricos. A doença não vai ver, primeiro, o saldo bancário para atacar. Os seus efeitos também atingem a classe A... Na doença qualquer ser humano está totalmente desprotegido e dependente. Na doença qualquer ser humano está, literalmente, de calças na mão.
Só quem não passou por isso, repito, pensará de outro modo. Na hora da verdade todos (todos!) queremos um especialista competente diante de nós, alguém em quem possamos confiar totalmente, que nos cure ou minimize os efeitos do inevitável. Nesses momentos em que nos sentimos, e estamos de facto, tão vulneráveis e desprotegidos, queremos conforto. Na doença, toda a gente, ricos e pobres, teóricos e práticos, corre a arranjar solução para o seu problema. A história da humanidade, arrisco-me a dizer, tem sido um percurso no sentido de proporcionar uma solução universal e justa para este problema que é universal e injusto: a falta de saúde. Na instituição das Misericórdias no século XV, na criação do SNS no século XX, até na "guerra" de Obama pelo plano universal de cuidados de saúde, lemos continuamente apenas um propósito: o da criação de mecanismos de protecção de todos, sem distinção, no momento em que estão mais frágeis e desprotegidos, o da doença.
Depois de criados esses mecanismos qualquer retrocesso é inadmissível. Ficar desprotegido face à doença depois de ter podido beneficiar da máxima protecção possível é tão absurdo como voltar a fazer fogo esfregando dois pauzinhos. Não se trata de algo fugaz, ditado pela conjuntura política. É um objectivo da humanidade, em marcha desde sempre, explícito ou implícito, cumprido com maior ou menor dose de sucesso, mas imparável.
Se há meta a atingir, inequívoca e indiscutível, se há "projecto" que pode unir todos os portugueses, a saúde para todos é um deles. Nem todos sabem disso, nem todos precisam ou precisaram do SNS, mas aos que não sabem é preciso explicar.
Não é pois possível calar o repúdio pelas "sugestões" de Cavaco Silva. Para além de constituirem, como foi já muito justamente apontado, um grosseiro atropelo à Lei Fundamental que jurou respeitar e que diz ser o seu desígnio enquanto Presidente da República, esperar-se-ia de uma pessoa com as suas funções a defesa e a pedagogia do SNS, não a sua deturpação canhestra. Os portugueses precisam do SNS, precisam de perceber o que o SNS significa para eles e o que representa, numa perspectiva civilizacional, dispôr de um sistema destes. Os portugueses precisam de saber que se trata de um sistema básico, elementar. Os portugueses precisam também de saber, claramente, que este sistema básico custa dinheiro e que, para o assegurar, esse dinheiro tem de ser obtido pelas receitas fiscais de todos. Os portugueses precisam de saber que se o sistema custa mais do que o que as receitas fiscais proporcionam, terão de trabalhar mais e descontar mais para o assegurar sem o deturpar. É isto que é preciso explicar, é esta pedagogia que é preciso fazer e não sugerir a oferta do sistema a privados para garantir o seu funcionamento.
Trata-se de responsabilizar os portugueses por garantir um sistema que é seu e, mais do que isso, constitui um marco civilizacional, não uma frivolidade adquirível a crédito numa qualquer campanha de promoção. O SNS não pode andar para trás. Esta ideia que paulatinamente vai aterrando de entregar o SNS a privados, mesmo que de modo supletivo, é uma aberração, um crime! A saúde, como a morte, não podem, em qualquer circunstância, ser negócio. Não podemos deixar que isso aconteça e não podemos deixar que o governo vá por essa via.
O professor Cavaco Silva tem de corrigir a tremenda argolada que cometeu.
Garantir um SNS efectivo e viável, contribuir com empenho e trabalho colectivo para isso, é a ideia mais forte que qualquer líder político poderia encontrar para mobilizar os portugueses para o futuro. Se já este  facto de ter de trabalhar para pagar os buracos financeiros criados pela irresponsabilidade dos sucessivos governos que temos tido parece absurdo, afigura-se totalmente inaceitável que, no caso da saúde, se transforme um buraco financeiro numa oportunidade de negócio para uns quantos espertalhões. Se há alguém que deva lucrar com a saúde são os portugueses. O dinheiro que os portugueses pagariam para garantir a mais-valia dos privados deve servir para melhorar o sistema, não para os privados se encherem. A resposta aos problemas do SNS pertence aos portugueses, exclusivamente.
Espera-nos a todos a doença e a morte. Até Cavaco Silva vai ter de se colocar um dia nas mãos de um qualquer clínico que lhe trate da saúde. Na hora da verdade confortá-lo-á certamente ter alguém competente, em quem confie. A mim e ao leitor também...

2011/07/07

Quem com ferro mata...

O coro indignado que se manifestou contra o "downgrading" de Portugal por parte da agência Moody's desafina. Só falta vê-los acampados no Rossio...
Não são estas mesmas vozes que vêm há anos insistindo nas virtudes do "mercado" e no carácter sagrado da "iniciativa privada"? Não foram estas vozes que conseguiram contrariar, com inegável sucesso, qualquer outra solução fora desses "mercados"? Pois bem, o "mercado", esse boxeur, manifestou-se, a "iniciativa privada", essa terrorista, tomou o território que para ela foi preparado por estes mesmos que agora manifestam a sua indignação... Fosse genuina a indignação e não fosse dar-se o caso de termos de ser nós a pagar tudo isto, só lhes poderia dizer: é bem feita!
A agência Moody's, por seu lado, exclui Portugal, como já tinha feito com a Grécia, do clube do consumo. O que é bom, porque foi o consumo que justamente levou o país ao estado em que está. Se calhar, a atitude da Moody's é, nesta perspectiva, boa. E se os critérios usados nas classificações da Moody's e das outras agências são objectivos, ao restringir o consumo dos países-lixo, estão a contribuir para  restringir inexoravelmente o mercado dos países por ela bem classificados e a lançá-los num futuro incerto, o que ainda é melhor. Os caminhos da Moody's são insondáveis, mas promissores...
A nós portugueses, contudo, o que verdadeiramente interessa esclarecer é uma outra dúvida. Se, como a Moody's afirmou hoje, e ao contrário do que sugeriu o novo ministro das finanças, o novo imposto já foi tido em linha de conta na atribuição desta classificação, se mesmo assim esta medida não consegue contrariar o score, e essa agência continua a considerar que Portugal não tem capacidade para cumprir os seus compromissos financeiros, o buraco deve ser afinal maior do que se imagina. E, se assim é, que outro sinal se pode dar aos mercados que não seja o do empenhamento total numa profunda reforma da nossa capacidade produtiva?
Onde estão as medidas para proceder a essa reforma? Digam-me uma, para além daquelas declarações pífias sobre o valor do mar ou dos "produtos de valor acrescentado" que ninguém ainda percebeu o que é! Que outro desígnio, que valor mais forte do que o exercício da capacidade de trabalho e da criatividade poderia aliás contar com um empenhamento verdadeiro dos portugueses? Quem é que deseja pagar mais impostos ou ver o seus rendimentos cortados, sem critério e com a certeza de que todo o seu sacrifício não servirá para nada?
Os "mercados", pelos vistos, não acreditam que simples medidas de contenção da despesa sejam suficientes. É isto: os portugueses preparam-se para deitar para o lixo 800 milhões de euros.  A Igreja Católica acha bem, mas eu deixo a pergunta: para que vai, de facto, servir então este corte no subsídio do Natal?
Mais importante ainda: independentemente de podermos considerar as agências de rating grupos mais ou menos criminosos, envolvidos em jogos de interesses mais ou menos sujos, a verdade é que, tudo o leva a crer, a situação em que estamos metidos é ainda mais negra do que aquilo que se suspeita. Precisamos de conhecer a dimensão rigorosa do estrago das nossas contas, independentemente da correcção que vier a ser feita e do apuramento das responsabilidades na sua génese, e precisamos de sabê-lo directa e claramente da boca dos nossos dirigentes eleitos, com um programa de acção pronto, para inverter este estado de coisas. Não precisamos de ficar a saber tudo isto como resultado da acção indirecta de organismos que não elegemos.
O coro dos indignados soa-me neste contexto como uma coisa altamente suspeita...

2011/06/30

A indignação da esquerda mole

O novo governo foi hoje ao Parlamento apresentar o seu programa. Para que não haja dúvidas, entrou logo a matar: uma redução extra de 50% em todos os subsídios de Natal (vulgo 13º mês) acima dos 485 euros. A justificação para este corte, que não estava previsto no programa governamental, deve-se alegadamente à "derrapagem" das contas públicas, que revelam uma diferença de 2% entre as projecções do anterior governo e os números actuais.
Nada que surpreenda, habituados como estamos à mentira compulsiva dos governantes portugueses. Interessante mesmo, foi ver a "indignação" na bancada do PS, o partido do governo que, supostamente, teria as contas em dia. A indignação dos candidatos à presidência do partido, não deixou dúvidas: o PS não apoiará medidas para além daquelas anunciadas no Memorando. Uns "castiços", estes oposicionistas indignados. Mas, então ninguém sabia que havia mais gastos (ou menos receitas) do que o previsto?
Como perguntava um deputado esta tarde no hemiciclo: para onde foi o dinheiro, sr. primeiro-ministro? Confesso que também gostava de saber...

2011/06/28

Inside job II

O lobby "Inside Job"  continua a insistir: Christine Lagarde acaba de ser nomeada directora-geral do FMI. Vamos ver o que o futuro lhe reserva. Um conselho: evitar hotéis em NYC...

2011/06/26

Uma oposição sem ética

António José Seguro, candidato à presidência do PS, veio esta semana declarar que defende um capitalismo com ética. Ou seja, o candidato à presidência do partido (que se diz socialista) quer o capitalismo. Com ética. Ficamos sem perceber quem é que, nesta história, não tem ética: o socialismo ou o José Seguro.

2011/06/22

O medo de falhar

Ouvimos este apelo insistente e patético em todos os discursos da tomada de posse do governo: "Portugal não pode falhar". O glamour destas cerimónias cai: estes gajos estão à rasca.
Mas, que raio de "Portugal" é este? Quem é que não pode falhar?
De quem estão a falar quando falam em "falhar"? Quererão dizer que reconhecem que as vítimas das falhas anteriores sabem hoje claramente quem foram os seus agentes? Quererão os autores da expressão dizer que reconhecem que se falharem irão ser irremediavelmente apeados?
Quem é que pode ter a última chance? É este regime que está em causa. É este regime que tem a última chance.
"Portugal não pode falhar" poderia parecer uma expressão saudavelmente mobilizadora. Eu leio-a antes como um recado para dentro do regime, como um sério aviso dos agentes em risco aos seus pares. No precaver é que está o ganho. O medo de falhar significa a certeza de que o regime está, mais do que nunca, consciente das suas malfeitorias.
"Ninguém está imune à crise," disse, dramático, Cavaco (nesta altura eu ouvi os contrabaixos, graves, e três golpes fulminantes de tímpanos...), sublinhando o ninguém, qual Frei Luís de Sousa. Resta saber quem é quem neste ninguém, e com que graus de imunidade se faz este dégradé...
Não, Portugal não vai seguramente "falhar". Quem pode falhar, quem pode estar com medo de falhar, são aqueles que falharam até agora, aqueles que dominaram, continuam a dominar o regime e que dele abusam. Hoje sabe-se quem falhou e é claro para todos que, a continuarem a ocorrer "falhas", desta vez, não haverá brandura para com este regime e os seus beneficiários. Sabemos quem é que tem a última chance.
Tem o primeiro ministro toda a razão: Portugal não falhará.

2011/06/21

A incógnita



No céu surgiu hoje, subitamente, à hora da tomada de posse do governo, o X, a incógnita que a foto documenta.
O X da incógnita Cavaco Silva. Depois do discurso absolutamente desastroso e despropositado de hoje, não sabemos nós, nem Passos, o coelho que Cavaco vai tirar da cartola. Fiquei com a dúvida se Cavaco teria assinado na tomada de posse como presidente ou já como primeiro ministro. Uma lástima.
X representa também a incógnita Passos Coelho. A troika, já se sabe, viciou a equação e a margem de manobra é estreita, para não dizer nula. Não contente com isto, Cavaco decidiu dificultar tudo ainda mais com o seu discurso. Confesso que não espero grande coisa de Passos Coelho. Mas não é que o jovem tenor (ainda lhe falta muito para chegar a barítono...) conseguiu, pelo menos em palavras, dar uma resposta que, a mim, causou alguma surpresa. Surpresa logo ampliada com a escolha para a presidência da AR, um remendo mais que airoso para o desastre Nobre.
Cavaco não terá ficado muito agradado com o catarro do Coelho e a troika ficou certamente mais atenta.
Um X no céu de Lisboa...

2011/06/20

Passos perdido...

Quem tinha medo de ficar sem motivo de conversa, agora que Sócrates se prepara para experimentar a cicuta, pode ficar descansado. Passos Coelho sofreu uma clara derrota com este processo da candidatura Nobre a presidente da AR. Derrotada foi a sua ideia e toda a sua estratégia. Derrotada foi a sua argumentação centrada na coerência e na obediência a princípios. Derrotado foi o seu PSD no desenlace deste episódio triste. Uma derrota interna e uma clara derrota também no plano externo, num momento que devia ser de celebração de vitória.
Nada mau para a estreia. Se a condução do país for semelhante à condução deste processo, podemos estar descansados. Estamos bem entregues...
À velocidade a que as coisas correm no momento, em que a vida política vai frenética, mas não segura, e com esta malta em derrapagem ainda antes da posse, há uma coisa certa: não nos vão faltar momentos de excelente entretenimento.

2011/06/18

Um ano sem Saramago

"Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a núvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo...e, já agora, privatize-se a puta que os pariu a todos."

José Saramago in "Cadernos de Lanzarote", Diário III, Pág. 148

2011/06/17

A grande pepineira

A Avenida da Liberdade foi ocupada por uma cadeia de hipermercados com o apoio da municipalidade lisboeta, numa mega manifestação onde também haverá canções pelo ídolo das donas de casa, o incontornável Tony. O fim último deste mega evento, anunciado em "outdoors" espalhados por toda a cidade, é a promoção dos produtos agrícolas nacionais, sendo o remanescente doado a instituições de ajuda social. Os promotores - cadeia de hipermercados e município de Lisboa - anunciam este mega "pic-nic" como um evento de apoio à produção nacional que, em tempo de crise, deve merecer a nossa solidariedade.
Vamos lá ver se eu entendi: Belmiro de Azevedo, dono do "Continente" e apoiante do PSD, promove uma acção de publicidade conjuntamente com o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa do PS, para apoiar os agricultores. Mas, então, não foram estes partidos os responsáveis pelos acordos do PAC de 1992, que estão na origem na destruição da nossa agricultura, obrigando-nos a importar 60% daquilo que consumimos? Devem estar a brincar connosco...

2011/06/15

A Chapelada

José Lello, personagem por quem não nutro qualquer simpatia, pronunciou-se negativamente sobre a validação dos votos dos emigrantes recolhidos por um jornal do Rio de Janeiro. Os votos foram colectados por um jornal que fazia propaganda aberta pela candidatura do PSD e, posteriormente, enviados num contentor para Portugal a expensas do jornal em causa.
Na opinião do deputado do PS pela emigração, o Presidente da República devia impugnar a validação destes votos. Não posso estar mais de acordo. Para chapeladas já bastam as do antigo regime. Se estes votos forem validados, o descrédito de Cavaco só aumentará. Ele, que no dia das eleições, veio pronunciar-se sobre os eleitores fantasmas das listas eleitorais. Haja vergonha!

Liberdades

Enquanto na Grécia o fogo alastra (veja aqui, aqui, aqui e aqui) e em Espanha alastra o fogo —com os Indignados e agora com a "Plataforma de Afectados por la Hipoteca"— (veja aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), em Portugal sua Excelência o PR acaba de indigitar o dr. Passos Coelho para Primeiro Ministro da  República, enquanto Nuno Gomes termina contrato com o Benfica e anuncia, em comunicado, que é um jogador livre.

2011/06/07

Jorge Semprún (1923-2011)

"Este hacinamiento de cuerpos en el vagón, este punzante dolor en la rodilla derecha. Dias, noches. Hago un esfuerzo e intento contar los dias, contar las noches. Tal vez esto me ayude a ver claro. Cuatro dias, cinco noches. Pero habré contado mal, o es que hay dias que se han convertido en noches. Me sobran noches; noches de saldo. Una mañana, claro está, fue una mañana cuando comenzó este viaje"

El Largo Viaje (1963)