2012/01/06

A minha "loja" é melhor que a tua

A acreditar nos jornais de hoje, 80% dos deputados da AR terão ligações à Maçonaria.
Destes, a maioria faz parte dos três grandes partidos: o PSD, o PS e o CDS. Todos os seus líderes partidários, respectivamente Luís Montenegro, Carlos Zorrinho e Nuno Magalhães, pertencem a uma "loja" maçónica.
Questionados pela comunicação social, nenhum deles confirmou ou desmentiu a sua filiação: Luís Montenegro, sob o qual incide a atenção dos "média", dadas as suas ligações aos Serviços Secretos e destes à Ongoing, responderia que, "provavelmente, os jornalistas sabiam mais sobre a Maçonaria do que ele próprio". Já Carlos Zorrinho, daria uma não-resposta, ao dizer que a sua "vida política sempre tinha sido pautada pela transparência", enquanto Nuno Magalhães considerava "não fazer sentido, para esta ou outras questões, levantar suspeitas infundadas".
Como bem explicou Pacheco Pereira, no programa "Quadratura do Círculo", o secretismo que rodeia a Maçonaria justificou-se durante a ditadura de Salazar (que proibia tudo o que fosse anti-regime), mas não faz sentido em democracia. Ninguém deve ser proibido de pertencer a qualquer seita ou "irmandade", por mais esotérica que seja, mas, se essa pessoa ocupar um cargo político relevante (governante, deputado, etc.), deve declará-lo para evitar tráfico de influências. Até porque, como bem lembrou Pacheco, a Maçonaria não é, necessariamente, uma organização fraterna e filantrópica, mas pode ser uma organização criminosa, como ficou provado nas ligações da Loja P2 à Mafia e à Democracia Cristã italiana.
Para que não haja dúvidas, o general Vasco Lourenço, mestre da GOL (a verdadeira, a da Bayer), veio hoje a terreiro declarar que os bons princípios da Maçonaria estão a ser subvertidos pelos "maus" maçons. A estes chamou de "gangs", que só desprestigiam a irmandade e devem ser combatidos. Não está certo...
Avizinham-se sangrentas guerras de "gangs" nas ruas da capital do reino da hipocrisia.

2012/01/02

As origens da crise e os votos do bispo do Porto

Os primeiros minutos de 2012 trouxeram-me uma surpresa. Estava com um grupo amigos, numa situação informal de celebração da passagem do ano, e a conversa foi parar à crise e ao futuro do país. Um dos presentes falava-nos da filha, economista a trabalhar desde há pouco tempo em Espanha, numa situação de desafogo e privilégio. O pai tinha-lhe pedido que descrevesse o seu novo trabalho. Ela contou-lhe que uma das suas tarefas, no quadro da gestão de "recursos humanos", era despedir pessoal. Em tempo de crise a tarefa não era simples nem agradável, mas tinha de ser cumprida em nome das boas e sacrossantas normas de gestão. Perante uma divergência de opinião sobre este assunto, o pai disse-lhe que quando estivesse a cumprir essa sua função se lembrasse das suas origens. Antes de despedir alguém, ter-lhe-á sugerido, tinha de ver para além dos números e das estatísticas. Só havia uma atitude correcta a ter num caso destes. Tinha de se lembrar que estava perante um ser humano, certamente com família, não de um robô ou de uma qualquer máquina que constasse do imobilizado da empresa.
Algum tempo depois, a filha contava ao pai que tinha sido encarregada de despedir um funcionário, português como ela, originário da mesma região, que a conhecia a si e à sua família. "Tu vais-me despedir," ter-lhe-á dito, "e vais continuar a poder dar de comer aos teus filhos, mas eu vou deixar de poder alimentar os meus." Antes de consumar o despedimento do funcionário, ela apresentou a sua própria demissão.
Fui apanhado de surpresa com este relato, confesso. O pai contava isto com um enorme, óbvio e justificado orgulho. Não há, de facto, nenhuma outra alternativa eticamente defensável.

A Igreja Católica é, em boa parte, culpada desta da caldeirada ética que vai por aí.
Hoje o bispo do Porto lembrava na sua homilia de Ano Novo as premissas para a "sustentabilidade da sociedade," alertando que "voltar atrás nos progressos, na dignificação da mulher, pais, filhos e idosos seria dramático e poderia ter graves riscos para a solidariedade e a paz que têm geralmente na família a sua primeira e indispensável pedagogia." Enquanto lia estas palavras pensava que o maior défice público em Portugal é, com efeito, o da família. A "família, a primeira e indispensável pedagogia" da democracia, como a definiu D. Manuel Clemente. É um facto! A família hoje é descartável, as relações transientes, os laços forjados nas aparências, sustentados por interesses conjunturais, mesquinhos e egoístas. Ter família custa, por isso se desfazem com tamanha facilidade.
O bispo do Porto deve saber que não há nada de sagrado na família hoje. Talvez ele tenha razão:  ao desmoronarem-se as relações familiares abriu-se caminho ao regabofe liberal que hoje domina o ocidente. Talvez, de facto, a destruição da família seja o elemento determinante na geração da crise. Talvez, de facto, seja imprescindível que "a sociedade e o trabalho se organizem em função das famílias e da unidade, não pensando apenas no individual", para que a crise seja superada. Não tenho grandes dúvidas a esse respeito.
Mas, o senhor bispo do Porto devia contudo saber que a sagrada família, hoje, é outra coisa, muito diferente da família que vemos simbolizada nos presépios natalícios. E a nova sagrada família é tão legítima com a velha. Há velhas, mas, também, novas famílias, famílias com membros trazidos por ele ou por ela, famílias também só deles ou só delas, e até famílias de gente que não partilha laços de sangue, mas apenas cumplicidades e desígnios comuns. Nesta empresa, neste clube, nesta instituição "somos como uma família", diz-se frequentemente. Muitas destas famílias não se enquadram neste conceito estreito de família da Igreja, nem são por ela reconhecidas. A sociedade em geral, constituída também por estas famílias, e as suas instituições têm, elas próprias, dificuldade em lidar com esta realidade. E, para complicar ainda mais tudo isto, também há gente sem família, gente que já não partilha laços de sangue com ninguém, gente só, gente cujos vínculos foram quebrados também por outros divórcios, gente que não beneficia de qualquer acto de solidariedade, gente condenada ao eterno desterro.
Em todas as famílias, nas novas como nas velhas, o que conta, porém, é sempre a mesma coisa: os laços são forjadas na solidariedade, no respeito mútuo e no amor incondicional. É assim em todas as verdadeiras famílias que tenho observado, velhas ou novas, hetero, homo, de esquerda, de direita ou de centro, formais ou informais.
O bispo do Porto e a Igreja Católica deviam dirigir este discurso para dentro da própria Igreja porque é daí que parte o maior ataque à família, às famílias, de que há memória. É aí portanto que tem origem boa parte da crise actual.
Muitos membros e seguidores dos princípios da Santa Madre Igreja —não só necessariamente dos que se dizem praticantes, com missa e benzeduras, mas também daqueles em quem foi implantada esta moral, que seguem acriticamente— fazem parte do grupo mais cruel, mais insensível, mais cínico e mais  egoista da sociedade portuguesa. Em genuflexão e com ar compungido, não deixam de constituir um dos  motores principais de toda a crise que hoje está instalada neste país, nos exactos termos em que o bispo do Porto a definiu. São os mais pios e os mais beatos que mais despedem, mais cortam, mais austeridade preconizam e mais famílias, essas mesmo que o bispo refere, lançam no desespero. São os mais pios e os mais beatos que se mostram mais insensíveis à miséria que os rodeia. Não admira numa religião cujo objectivo é o da salvação da alma individual.

Há uma agenda ideológica clara por detrás da destruição em curso no país e a Igreja é a sua mais forte fonte inspiradora. Para terem alguma credibilidade os católicos, incluindo o bispo do Porto e a própria Igreja Católica enquanto instituição, deveriam promover uma verdadeira acção católica e fazer como a filha daquele surpreendente pai que referi acima: apresentar a sua "demissão" desta sociedade hipócrita e desumana que criticam, mas que objectiva e materialmente promovem, e colaborar na constituição de uma verdadeira alternativa à crise.

2011/12/31

Honour and Shame

Simin e Nader, um casal de classe média iraniana, têm um conflito conjugal. Ela pretende abandonar o país, por razões que nunca saberemos; ele recusa-se a abandonar o pai, demente com Alzheimer. Simin quer o divórcio e levar a sua filha e esta recusa-se a abandonar o pai, que não concede o divórcio a Simin.
Razieh e Holjat, um casal pobre em dificuldades, estão empenhados com dívidas, o que leva Razieh a procurar trabalho doméstico. Através de uma amiga comum, a professora das filhas de ambos os casais, arranja emprego em casa de Nader, sem saber que o pai deste tem Alzheimer.
Um dia, ao chegar a casa, Nader depara com o seu pai caído no chão, com um braço atado à cama. Razieh não estava e faltava dinheiro no cofre. Nader confronta a empregada com o abandono do pai e o desaparecimento do dinheiro e despede-a. Na discussão que se segue, Razieh, grávida, é empurrada e cai na escada, o que lhe provoca um aborto e a morte do filho. Segue-se um processo em tribunal, onde Holjat acusa Nader da morte do seu filho e Nader acusa Razieh de ter abandonado o seu pai.
O que se segue, é uma verdadeiro processo na procura da verdade, onde o juíz (de acordo com a lei da "sharia") confronta acusadores e acusados com as suas contradições, obrigando-os a reconhecer os factos. O realizador, Asghar Farhadi (fixem este nome) recusa-se a tomar partido e convoca todas as testemunhas factuais: as filhas dos casais, a professora, os familiares e as vizinhas, para deporem, num filme que nos prende e entusiasma do primeiro ao último minuto. Nada fica por escalpelizar: das relações familiares, às classes sociais, do ateísmo à religião, das convenções na vida social e do medo existente na sociedade iraniana. Uma obra, que julgávamos impossível fazer no Irão actual. Definitivamente, um dos grandes filmes do ano. Chama-se "Uma Separação" e só posso recomendá-lo. Boas entradas e melhores filmes em 2012!

2011/12/26

A fé remove montanhas

Passos Coelho diz querer restaurar a confiança dos portugueses, promete mudança, anuncia um tempo novo. É tudo mentira!
São desejos aparentemente motivadores, são palavras fortes, mas é outro o seu valor facial. Suponho que a "confiança" que pretende restaurar seja a que os portugueses perderam inexoravelmente em si e no seu governo. Suponho também que a "mudança" que anuncia para 2012 seja em direcção a uma perseguição ainda mais feroz, mais dissimulada e mais cínica aos trabalhadores, agora que a sua prática —a que gerou a tal desconfiança— lhe fez perder credibilidade, mesmo junto de alguns dos seus mais ferrenhos apoiantes. Suponho ainda que o "novo tempo" que quer ver implementado seja o da instalação dos seus láparos para consolidar este trabalho prévio de teste à resiliência dos portugueses perante a tentativa de destruição do país em curso.
Não percebo como é que com a mesma corrupção, os mesmos protagonistas, os mesmos maus exemplos, as mesmas desculpas, as mesmas irresponsabilidades, a mesma impunidade, as mesmas práticas, as mesmas tentações e os mesmos pecados, sem um plano, sem um pensamento fundador que se possa perceber, mesmo lá muito ao longe, no seu discurso, o senhor Primeiro Ministro quer demonstrar que é capaz de mudar o que quer que seja.
A observação é válida, de resto, também para os seus ministros e afins. O "cientista" e o "economista" (e, lá no fundo, vê-se mal porque está desfocado, o "escritor"), por exemplo, parecem ter esquecido a "teoria" toda que os conduziu ao seu presente estatuto. Não o dignificam. A reflexão que produziram sobre as suas áreas de especialidade foi toda pelo cano abaixo. Agora é tempo de levar a teoria à prática e executar o papel que lhes foi distribuido: manter a mesma corrupção, os mesmos protagonistas, os mesmos maus exemplos, as mesmas desculpas, as mesmas irresponsabilidades, a mesma impunidade, as mesmas práticas, as mesmas tentações e os mesmos pecados, a mesma falta de plano e de um pensamento fundador... sem dinheiro.
Talvez tudo isto não passe então de uma questão de fé. Não me surpreenderia se viéssemos a ver Passos Coelho, acompanhado pelas câmaras da tv, arrastando-se um destes dias de joelhos até Fátima na esperança de que a coisa mude e a confiança volte, enquanto canta "Ó tempo volta p'ra trás..."

2011/12/22

China Shop

A venda a retalho das jóias da coroa portuguesa continua a bom ritmo. Os anéis já foram, agora vão os dedos. Não é todos os dias que se ganham 2.700 mil milhões de euros, ainda por cima, em vésperas de Natal. Para os accionistas da EDP, um verdadeiro negócio da China! Agora que a barragem do Tua corre o risco de ser embargada, era bom que os chineses levassem também o Mexia. Sempre era mais um que emigrava...

Crónica natalícia

Se qualquer um de nós desejar a um amigo ou familiar um "Natal tão bom quanto possível" é natural. Nos tempos que correm isso demonstra cumplicidade, solidariedade e compreensão. Se qualquer um de nós aconselhar um filho ou um amigo a emigrar porque por cá as coisas estão más, isso demonstra realismo e preocupação.
Se o cidadão Cavaco Silva, o cidadão Passos Coelho ou outro qualquer membro do executivo derem conselhos destes, em privado, sugerindo aos seus amigos ou familiares que se ponham ao fresco ou lhes desejarem o "Natal possível" ficará entre eles. Se se vier a saber é notícia, caso contrário a história fica por aí.
Contudo, se o Presidente da República e o Primeiro Ministro se exprimirem nestes termos publicamente, dirigindo-se a todos os portugueses, no cumprimento das suas funções e num âmbito institucional, o assunto muda de figura. Não é notícia, é História.
Não há duas leituras para afirmações como estas. Não são possíveis "interpretações". O que tudo isto significa é que o PR e o PM falharam e continuam a falhar. Pior ainda, capitularam e pedem aos cidadãos que neles confiam que apoiem esta capitulação! Que esqueçam a História.
O PR e o PM não foram eleitos para os respectivos cargos para fazer conversa de café, foram eleitos para agir. Os seus actos deixam rasto. As suas opiniões têm de ser, por inenerência do próprio catgo que exercem, acompanhadas por acções. São eles que têm as ferramentas e o dever institucional de agir. Foram para isso mandatados pelos cidadãos. Não há volta a dar!
Há uma enorme diferença entre opinião e ideologia, no caso de um membro executivo de um órgão de soberania. Por algum motivo se chama "executivo". Quem não perceber isto merece os conselhos e os votos que estas duas aventesmas lhes estão a transmitir.
Dito isto, desejo que todos os que estão tentados a emigrar reflictam e pensem se não será melhor ficar por cá em vez de ir ajudar os outros, contribuindo com a sua energia e o poder de iniciativa, que demonstram ao querer emigrar, para construir um país livre dos problemas que vos levaram a pensar em emigrar. Se calhar basta sabermos o que queremos. Se calhar o "paraíso" fica em Portugal.
E aproveito para desejar a todos o Natal impossível...

2011/12/21

Back to the USA

As "últimas " tropas americanas deixaram o Iraque.
Depois de quase nove anos à procura das famigeradas "armas de destruição maciça" - o argumento formal para a invasão do Iraque - os americanos, certamente cansados, deram-se por (con)vencidos e regressaram a casa.
Para trás, deixaram 4.500 mortos e mais de 30.000 feridos, entre as suas tropas, para além de 100.000 mortos civis e centenas de milhares de feridos e desaparecidos, entre a população iraquiana. Calcula-se (não se sabe ao certo) que milhões de habitantes teriam sido desalojados ou tiveram de fugir para países vizinhos. A devastação do país é inquantificável e levará gerações a recuperar. O país ficou mais dividido e a guerra civil tornou-se uma rotina. A guerra, essa custou a módica quantia de 750.000 biliões de dólares aos cofres americanos, o que explica parte do "déficit" actual da nação com a maior dívida soberana do planeta. Uma ninharia, como sabemos hoje...

2011/12/20

A receita deste governo: manter o paraíso para os poucos que dele têm beneficiado

Haverá quem ache certamente que a acção deste governo é séria (se calhar até mesmo dentro do governo!). Haverá quem ache que as sugestões que têm sido feitas (a última feita pelo próprio primeiro ministro) para que os portugueses procurem no estrangeiro a cura milagrosa para os seus males são legítimas.
A ideia de propor a um português que se vá embora, feita por um alto responsável desse país, eleito com base num determinado programa sufragado nas urnas, é, em si mesma, abjecta. Só esta geração de governantes que é a que presentemente nos dirige, arrogante, ignorante e profundamente estúpida poderia contemplar sequer uma hipótese destas. Talvez nem tudo seja, contudo, estupidez inocente.

Muito se comentou a recente sugestão de Passos Coelho. O incómodo que causou é evidente e generalizado. Por mim, faço a pergunta: que benefício colheria o país de uma hipotética fuga dos seus cidadãos mais qualificados para os novos "paraísos" da economia mundial?
Não seria a emigração desqualificada de outrora esta que agora se sugere, mas sim a fuga desordenada de um conjunto altamente qualificado de gente —"a geração mais qualificada de sempre," como frequentemente é referido— que deixaria um vazio. Uma saída em massa para o estrangeiro de toda esta gente privaria o País, seguramente, do que de melhor temos neste momento.
Nem sequer estaríamos perante o fenómeno do torna-viagem que caracterizou os picos de emigração anteriores. Hoje, quem decide partir, fá-lo sem vontade de voltar a Portugal, mais consciente do que nunca do desamor da Pátria por si e da incapacidade para lhe proporcionar condições de vida, a si que, justamente por causa disso (contradição insanável!), a tem de abandonar.
Neste cenário de divórcio, litigioso e sem remédio, o país não só deixa de poder ver o futuro como deixa de poder contar com as "remessas" de outrora. Uma saída em massa para o estrangeiro apenas iria beneficiar os países de acolhimento, que para além de ganharem esse contributo dos nossos melhores para o seu desenvolvimento, iriam ainda embolsar a receita fiscal daí decorrente.
De resto, para que país voltaria o jovem emigrante, agora que os direitos e regalias, que serviram justamente para fazer regressar os que anteriormente partiram, são diariamente destruídos? Para que passado sem o seu futuro regressaria o jovem emigrante que partisse?
Portugal, diz-se, é um país que precisa de se modernizar, melhorar métodos de trabalho, aumentar a produtividade. Um país para construir quase de raiz, um país que necessita de mudança como de pão para a boca. Ora, a receita do primeiro ministro e desta maldita corrente neoliberal, que papagueia (e mal!) a receita "europeia" e domina a política portuguesa, para mudar o país é simples: em vez de criar as condições de mudança, vamos sugerir o êxodo dos que podem, pela horizonte temporal de que dispõem, pela mentalidade, pela formação e pela energia, operar essa mudança. A receita é: vamos ceder, de borla!, aos outros o nosso futuro. E, pelo caminho, vamos deixar condenar implicitamente todos os que restarem —as vítimas da falta de oportunidades, da idade ou da desqualificação— a uma lenta agonia até ao estertor final.

É isto que resultará das políticas do governo Passos Coelho se não forem firmemente travadas. Pensem nisto os que tencionam emigrar e pensem nisto os que, caso o êxodo venha a ter lugar, serão condenados a ficar. Vejam entretanto, uns e outros, quem beneficia de tudo isto...

2011/12/18

Conhecer a dívida para poder pagá-la

Decorreu este fim-de-semana a Convenção "Auditoria Cidadã à Dívida Pública: conhecer para agir e mudar" que, ao longo de dois dias, reuniu cerca de 700 participantes no cinema S. Jorge em Lisboa. Uma iniciativa de representantes da sociedade civil que, a exemplo de acções similares em países como o Equador, a Grécia, a Irlanda, a Bélgica e a França, tem vindo a ser preparada nos últimos meses.
Depois da primeira sessão, centrada na questão "O que é a auditoria cidadã à dívida?", onde participaram Ana Benavente, Éric Toussaint e Costas Lapavitsas, os trabalhos da segunda sessão seriam dedicados às comunicações de diversos especialistas sobre a origem e as especificidades da dívida portuguesa. Finalmente, na terceira e última sessão, foi aprovado o texto final da resolução da convenção e eleita a comissão (constituida por 44 nomes da sociedade civil) que dará seguimento às indicações sugeridas pela Comissão Técnica da Auditoria (ICA).
Espera-se, agora, um apoio alargado da sociedade civil a esta iniciativa, pois, como bem lembrou Éric Toussaint, "encontrar técnicos para nos apoiar nunca será o problema, o problema é o apoio da sociedade civil, o factor determinante de todo o processo". Ou, como é sugerido no preâmbulo da resolução, para pagarmos temos de conhecer a factura detalhada:
"Salários e pensões confiscados, trabalho adicional não pago, mais impostos sobre o trabalho e bens básicos de consumo, mais taxas sobre a utilização de serviços públicos, menos protecção no desemprego, cedência a privados de bens comuns pagos por todos - tudo justificado pela necessidade de servir a dívida pública sem falha. Dizem-nos que cortar a despesa pública, aumentar impostos e taxas, degradar o nível de provisão e de qualidade dos serviços públicos para servir a dívida sem falha, é a "única alternativa". Mas, como pode ser alternativa o que não chega sequer a ser uma solução? A austeridade, o nome dado a todos os cortes e confiscos, não resolve nenhum problema, nem sequer os da dívida e do défice público. Pelo contrário, conduz ao declínio económico, à regressão social e, depois disso, à bancarrota. É chegado por isso o momento de conhecer o que afinal é esta dívida, de exigir a factura detalhada. De onde vem a dúvida e porque existe? A quem deve o Estado? Que parte da dívida é ilegitima e ilegal? Que alternativas existem para resolver o problema do endividamento e do Estado? Tudo isso incumbe a uma auditoria à dúvida pública. Uma auditoria que se quer cidadã para ser independente, participada, democrática e transparente" (do preâmbulo do projecto de resolução da convenção "Auditoria Cidadã à Dívida Pública").
Os trabalhos da comissão podem ser seguidos através do "site": www.auditoriaadivida.pt

2011/12/17

Cesária

Devo ter ouvido falar dela, pela primeira vez, em finais dos anos oitenta, quando o conceito "world music" ainda estava por inventar. Em rigor, ela foi a primeira artista lusófona a entrar no circuito das chamadas "musiques du monde". Os franceses, sempre atentos, tiveram a percepção do seu enorme talento e ofereceram-lhe a possibilidade de gravar e distribuir os albuns que consolidaram a sua fama.
Viria a conhecê-la pessoalmente durante a primeira edição da feira Womex, realizada em 1994 na cidade de Berlim. Lembro-me que falámos longamente no "lounge" do hotel onde a maior parte dos artistas e delegados da feira estavam alojados e de me ter dito que só se sentia bem em palco, pois as pessoas estavam sempre a fazer as mesmas perguntas e que tudo era muito cansativo: as viagens, os hotéis, as entrevistas...
Nessa noite, quando actuou no auditório principal da "Casa das Culturas do Mundo" onde decorriam os "showcases" da feira, esperavam-na os mil privilegiados que conseguiram acesso ao concerto, já que a lotação da sala estava esgotada há muito. Lá me enfiei para o pé do palco (ao nível do chão) e ali ficaria sentado o tempo todo a tirar fotografias para um artigo do João Lisboa, enviado do "Expresso". Um concerto memorável, onde a "diva" cantou, descalça, durante 45 mágicos minutos. No final, a assistência, hipnotizada pela sua voz incomparável, rendeu-lhe a maior ovação da noite. O "showcase" de Cesária Évora seria considerado um dos melhores daquele ano e, no dia seguinte, toda a gente falava desta mulher que, no meio das canções, parava para beber um gole e fumar com a displicência de quem tinha todo o tempo do Mundo à sua frente. Uma actuação inesquecível.
A partir daí, a história é conhecida. Acabou hoje, após setenta anos de vida e de canções que tornaram Cabo-Verde e a sua grande música, reconhecidos em todo o Mundo. Não é coisa pouca. Imortal Cesária.

O mesmo Geppetto

Muito se falou em Pinóquio a propósito do engenheiro Sócrates. As montagens sucediam-se com a foto do então primeiro ministro a mostrar um nariz cada vez mais comprido. As imagens correram por blogs e emails. Recordar-se-ão, certamente.
Pinóquio! Marioneta de pau tosco, neto de um sujeito chamado Geppetto, sinuoso bonecreiro, manipulador de cordel.
Pois, após estes curtos meses de governação de Passos Coelho somos levados a reconhecer que há um novo nariz  que se exibe, exuberante. 
Dois narizes, um só Pinóquio, o mesmo Geppetto.

2011/12/16

Revoltante

Na sua mensagem natalícia publicada na página do Facebook, Cavaco Silva desejou aos Portugueses um ano novo "tão bom quanto possível".
"Virem-se! É o melhor que se pode arranjar. Eu nem tenho nada a ver com isto..." parece querer dizer esta triste criatura, travesti de um Presidente da República.

2011/12/06

Melancholia

Estreou recentemente em Portugal a última obra do cineasta dinamarquês Lars von Trier.
Autor de uma obra polémica ("Europa", "Breaking Waves", "The idiots", "Dancer in the Dark", "Dogville", "Antichrist"), von Trier ama-se ou odeia-se. Não há meio termo.
"Melancholia" não foge à regra. Há quem o considere uma obra-prima (mais uma!) e quem o ache um pretencioso pastelão.
O filme descreve a relação entre duas irmãs, algures num idílico castelo, que aguardam (com sentimentos contraditórios) a aproximação à Terra de um planeta desconhecido (Melancholia). A história divide-se em duas partes distintas: a primeira centrada em Justine, a irmã rebelde e sonhadora, que rompe com o noivo no próprio dia de casamento e se apaixona pelo planeta mistério; e a segunda, centrada em Claire, a irmã bem casada, pragmática e rica, que entra em pânico à medida que o choque do planeta com a Terra se torna inevitável.
Na semana de todas as decisões sobre a Europa, e quando a agência "Standard & Poors" acaba de alertar a zona Euro para a eventualidade de uma descida de notação de 15 dos seus membros (Alemanha e França incluídas!), não podemos deixar de pensar em "Melancholia", a metáfora perfeita para os tempos que correm.
Não sei se von Trier pensou na crise do sistema económico ocidental quando fez o filme. Uma coisa é certa: o pânico está instalado e não há ameias nem castelos que nos protegam do choque inevitável que nos atingirá a todos: da fraca Grécia, à poderosa Alemanha.

2011/11/30

Contradições do sistema

Seis bancos centrais (o Banco Central Europeu, a Reserva Federal dos EUA, o Banco de Inglaterra, o Banco Nacional Suíço e o Banco do Japão) levaram hoje a cabo uma acção concertada, de proporções significativas, para fornecer liquidez à banca. Os "mercados", claro, exultaram e as bolsas pularam.
A justificação dada para esta operação, segundo relata o Público, é a de que era necessário "aliviar os constrangimentos dos mercados e 'mitigar' os seus efeitos no fornecimento de crédito às famílias e empresas, e assim ajudar a animar a actividade económica.”
Vamos lá a saber então: a dívida é boa, afinal? E viver acima das suas possibilidades anima a actividade económica, é? Austeridade, sim ou não? Em que ficamos?

Estranhos silêncios

É paradigmático que o grande problema da vida nacional, a corrupção, tenha estado totalmente ausente do debate sobre o OE2012. Nem uma medida do governo, nem uma proposta da oposição. Nada! Trata-se, pois, de um tema tabu.
Se olharmos para os números da corrupção em Portugal, se nos recordarmos que há quem diga que a corrupção é a origem da presente crise, não podemos senão concluir que se trata de um problema central  e que, nesse caso, o silêncio é estranho.
Enquanto o tema da corrupção não for discutido e o problema não for objecto de resoluções sérias é certo que este país nunca irá passar desta mediocridade permanente que a todos corrói.
Queria somente lembrá-lo aqui...

2011/11/28

A quem serve o medo?

Querem ver como se constrói um clima de irresponsabilidade para minimizar os efeitos da incompetência do governo e do mais que certo fracasso da sua política?
O método baseia-se na criação do fantasma da sublevação popular e mete "terroristas", serviços de informação, polícias e agentes infiltrados. Faz lembrar a célebre "revolta dos pregos" que Angelo Correia, o mentor e tutor político do primeiro ministro, inventou há anos. Haverá, pois, aqui hoje também, dedo de Angelo pela certa.
Para além de Angelo, a manobra tem também contado com o contributo de gente tão insuspeita como Mário Soares, vários membros da hierarquia da Igreja Católica e outras figurinhas, jornalistas, analistas, politólogos e outros "peritos" mais ou menos patéticos. Todos vêem sangue no horizonte. Junta-se-lhes o Ministro da Defesa que vem a jogo pronunciar-se sobre a "ilegitimidade" de manifestações legítimas, só porque estaríamos perante a "legitimidade" de um "programa" que, segundo ele, foi sufragado pelo voto. Para ajudar à festa até Carvalho da Silva, de quem não se esperaria tamanha ingenuidade, vem lançar alertas que devem ter soado como música aos ouvidos do governo. No dia da greve, demarcava-se correctamente, por um lado, dos ainda não totalmente explicados incidentes em S. Bento, afiançando, contudo, que eles constituíam sinais da insatisfação que por aí vai. Uma conversa, no mínimo, politicamente canhestra. Duvido que os provocadores colocados pela polícia no meio da manifestação de dia 24 estivessem a pensar na insatisfação do povo que lhes paga o salário.
Até Fernando Santos, o engenheiro do penta e especialista na difícil arte do biqueiro, logo que lhe colocaram um microfone à frente apressou-se a dizer, lá de longe e do alto da sua respeitável e reconhecida expertise em teoria política, que Portugal não tem a tradição "anarquista" da Grécia, mas os desacatos do dia da greve constituem sinais "preocupantes" de agitação.
É isto: primeiro, lança-se a ideia (de forma deliberada ou ingénua) de que há sinais preocupantes no ar. Depois, quando ocorre uma legítima, significativa e pacífica greve geral, unindo uma grande massa de espoliados do regime, a polícia intervém de forma totalmente despropositada, provocatória e, sobretudo, ilegítima, levando as pessoas a reagir, naturalmente, perante os atropelos grosseiros da lei, cometidos por aqueles que, num regime democrático, devem ser os primeiros a respeitá-la escrupulosamente. De seguida, meia dúzia de pessoas que não se sabe oficialmente quem foram, de onde vêm, o que representam e por quem foram instigados, exibem durante a manifestação que se seguiu à jornada grevista comportamentos marginais, que de forma alguma representam o espírito dos manifestantes, nem a mensagem que pretendem transmitir de protesto contra as medidas que o governo teima em levar a cabo. Finalmente, com a inestimável colaboração da imprensa, ficamos a saber que desta empolgante "primavera à portuguesa" estão recenseados, por um serviço qualquer de informações, uns, certamente, perigosíssimos 60-anarquistas-60. Aí está a revolta popular! Como é diferente o Tahir em Portugal.
Está criado um clima tendente a desmobilizar o protesto legítimo, pelo direito ao qual surgiu o 25 de Abril. De repente, num passe de mágica, a liberdade de opinião transforma-se em delito de opinião. O medo de existir, esse mal português que não despega nem à lei da bala, reinstala-se. A injustiça, a iniquidade, a corrupção e outros traços distintivos da nossa actuação colectiva ganharão tolerância de pronto! Tudo está perdoado, no fundo somos todos uns gajos porreiros.
Mais ainda: toda a leviandade, desonestidade, incompetência e arrogância exibidas pelo governo, todos os seus falhanços, inconsistências, equívocos, toda a sua "moral" de esgoto será perdoada e conquistará intenções de voto. Sacrifícios, quais sacrifícios?
Paulo Baldaia avisava ontem no DN a maioria de idosos deste país que ainda lê jornais: "Desenganem-se os que excluem a hipótese de termos violência na rua, porque isso está em exclusivo na mão dos indignados, entre os quais há muita gente que não tem nada a perder. Os mais radicais já começaram a alimentar essa ideia, vandalizando repartições públicas, colocando na Net um vídeo com alegada violência policial, procurando um efeito viral idêntico ao que se passou noutras partes do mundo. Nessa geração há muito quem não se importe de ter no currículo uma cena de pancadaria com a polícia. Há muito quem acredite que as coisas não mudam pacificamente." Não sei onde Baldaia recolhe a sua informação, não sei onde estava em 62 e em 69, não sei onde estava no 25 de Abril, não sei se alguma vez assistiu a alguma revolução ou a violência a sério, não sei quantos indignados entrevistou, mas o fantasma da agitação nas ruas só serve hoje, objectivamente, para quatro coisas: instituir um clima de medo, manipular a opinião pública, iludir responsabilidades e preparar o perdão à incompetência governativa.

2011/11/27

Fado, Património Cultural Imaterial

É oficial: o Fado foi hoje reconhecido Património Cultural Imaterial pela UNESCO.
O reconhecimento de um género musical que só os portugueses fazem bem - e por isso é parte da identidade nacional - é um justo prémio para a equipa que, durante anos, trabalhou nesta candidatura, não esquecendo os seus principais divulgadores (cantores, instrumentistas, letristas e editores), sem os quais a transmissão da tradição não seria possível. É esta tradição, com cerca de 200 anos, que hoje foi reconhecida na Indonésia. Não que o Fado necessitasse do reconhecimento da UNESCO para ser Património Cultural Imaterial. Já o era e continuará a sê-lo por muitos e bons anos. Mas, o reconhecimento dará mais visibilidade a uma arte, durante muito tempo considerada menor, que hoje tem milhões de adeptos em todo o Mundo. O trabalho de recolha, classificação e divulgação do Fado, iniciado há cinco anos atrás, continuará: agora com mais responsabilidade, mas também com mais certezas. É isto que se espera deste reconhecimento.

O corte e cola orçamental

O Ministro das Finanças comporta-se como um seráfico coveiro da democracia. Para ele a democracia é um álibi da esquerda para bloquear o combate ao défice e o orçamento o teste de uma demonstração de perícia numérica perante o juízo certamente neutro e científico da troika. O objectivo, depois de posta a democracia na gaveta – esta não será apenas a mítica liberdade e outros tê-lo-ão feito com o socialismo – é certamente a harmonia decrescente dos números percentuais da dívida, mas fundamentalmente a sua performance como académico, a confirmação por A mais B de que cortar cegamente faz crescer, uma quadratura numérica do círculo para centro-europeu e polícia financeira global aplaudirem. A margem de erro, para a maravilhosa alquimia de números, sempre mínima, pensará feliz o perito coveiro, zero ponto um ou dois – o orçamento da cultura chegará aos zero vírgula três? E a sua expressão em percentagem do PIB ao zero quê? À soma de zeros enfiados, perfeição matemática, com um vago um no fim da fila?
Conclui-se deste tipo de mentalidade que o orçamento e as suas aritméticas sectoriais são, pela via de manipulações curandeiras, a solução para o nosso problema – mais valia ler nas entranhas das aves, as linhas da vida de uma mão sem emprego ou ir à macumba. Portanto vai de cortar até que as contas dêem certo, se ainda não dão é necessário cortar mais. Se ainda não se chegou lá baixemos mais as calças pois a nota da troika, o exame trimestral, sobe em direcção à possibilidade de exportarmos a solução para a crise por termos atingido a forma paradigmática de a resolver: corte após corte até ao corte perfeito, descoberta e inovação financeira de excelência que praticamos na pátria global dos mercados especulativos. Eis como a solução pode também fazer crescer: vender a arte de talhante financeiro aos parceiros europeus em aflição por contágio, já os do centro da Europa, pois chegou à Bélgica. Exportemos o corte como suprema técnica orçamental, vendamos inteligência quantitativa.
É de facto uma panaceia, esta dos números e o princípio da subtracção a operá-los. Se não acreditarem, dirá o coveiro, ide a outro bruxo da mesma escola. É como em tudo na vida, poupar, cortar, diminuir, amputar, extinguir, reduzir, só traz saúde e faz crescer, principalmente com tudo bem embrulhado numa retórica da racionalidade dos números envolta no vocabulário religioso da austeridade, a palavra sacrifício repetida à exaustão como quem lava as mãos da tragédia que cria – os números são geneticamente ciência e academicamente demonstrações da inevitabilidade da sua intocável abstracção quantitativa. Quando se atira uma percentagem à cara da vida, espetando a faca do corte numa parte do corpo da democracia com a tal neutralidade da visão académica, só se pode espalhar o bem. Primeiro o sacrifício, a morte, depois o maná.
O Ministro das Finanças olha para uma peça de teatro, para um livro, para um libreto de ópera, para uma partitura, para um corpo que fala num palco – aqui não olha porventura, nem lá irá, nunca foi visto - para uma orquestra regional, para uma companhia de teatro, para um documentário, para uma ficção cinematográfica, e vê percentagens, cortes por fazer. Se assim não fosse e justamente em nome da crise, não descobria cortes a fazer onde o investimento é quase nenhum e a expressão numérica no orçamento ridícula. Pegando por exemplo num Beckett, um autor europeu bilingue razoavelmente feito entre nós – não poderão apelidá-lo de propagandista de nada, nem do absurdo e o Paulo Eduardo de Carvalho queria editar as suas obras completas em português, projecto já avançado e europeizado quando faleceu - numa sua peça proposta para ser editada e o Ministro logo contará as páginas que tem a mais e o seu número insuportável de caracteres. Corta-se, dirá logo, este livro, este projecto é realizável aplicando-lhe o princípio do corte, e reparem, não é cego, é o que é, necessário para a perfeição da percentagem final dos números que lhe pertencem a favor da sua colaboração no esforço da dívida - sim, estas páginas são demais nesta conjuntura, cortem-se trinta e oito, assuma-se o imperativo numérico e orçamental. Sim, a troika é um papão bom, um tribunal do Santo Ofício cujo credo está no dogma da Santa Trindade Orçamental, corte-se em nome do pai da dívida, do filho da dívida e do santo espírito desta. E nós, os melhores alunos, quais irlandeses ou gregos, respeitamos e baixamos as calças.Estranho mundo o dos números e estranho mundo os das cabeças que olhando para um orçamento não vêem vida potencial, actividade cultural, criação artística, economia a fervilhar, país e pátria, língua portuguesa, unidade territorial, ordenamento, macrocefalia de novo crescente, interior abandonado, urbanismo acéfalo a necessitar de emenda, inexistência de autonomia alimentar à míngua da força inexistente e politicamente provocada das pescas e da agricultura, vendidas aos prémios e subsídios europeus, esses sim sectores subsidiodependentes. A cultura é a mais das transversais das actividades do real e é um alimento constante do quotidiano dos cidadãos, não tem medida de aferição científica mas tem consequências anímicas, e várias rendibilidades, determinantes da vida e da economia. Não se confunde com o consumo porque é uma actividade que transforma, não é ritual de confirmações e desenvolve o afecto da língua pelo conhecimento da sua diversidade, nada tem a ver com o que são os rituais associados a uma outra expressão da sua existência, a do mercado, a do que é cultura de massas – infelizmente ler Gil Vicente, António José da Silva, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Natália Correia, António Lobo Antunes, por exemplo, não são fenómenos massivos mesmo que sejam muitos os livros vendidos, o problema não é tanto esse, é mais o da leitura e dos modos de ler. Esse é o trabalho da criação e dos profissionais da cultura para além do trabalho dos criadores propriamente ditos. Nem o milhão de espectadores de teatro, números da década que já passou do Instituto Nacional de Estatística – factos numéricos e não cálculo imaginários - é a expressão de um fenómeno massivo, é, isso sim, a multiplicação da existência de inúmeros “teatros de câmara”, de pólos e focos de vida. Se a leitura tem a importância de ser um acto individual, o teatro tem a importância de ser um acto assembleiístico, cidadão, vida democrática emergindo, reemergindo, prática constante da democracia como o parlamento tenta ser, mas voluntariamente frequentado – seria interessante ver o share do canal parlamento. Não se lhe pode fazer o que se faz ao cavalo do inglês, diminuindo-lhe um tanto a ração diariamente para que se habitue, pois acaba por morrer. Esse assassinato lento está em marcha, aqui e agora, como se dizia antes de Abril.
Será assim, pela sua perfeição endógena e articulações internas que o orçamento cumprirá um papel na nossa vida e história, como academicamente professará para si o Ministro na intimidade das suas quantificações proféticas. Na realidade somos o cavalo do inglês, ou melhor somos o cavalo da alemã. Mas mesmo esta, a alemã, acaba de fazer um extraordinário reforço de investimento no sector cultural, um aumento de 5,1% no apoio às artes – artes, berrei – num total de 50 milhões de euros. Pois é, há duas Europas, mesmo três a caminho, sendo que toda ela está num coma de crescimento augurado dir-se-á.

2011/11/26

Turbulência financeira

Segundo o venerando pai da democracia e principal subscritor do recente "manifesto dos 9", que anda por aí a circular, os governos estão a ser dominados pelos mercados.
A sério? E nós que ainda não tinhamos dado por isso...

2011/11/21

Corrupção: a dimensão do problema

O programa da TVI24 Olhos nos Olhos abordou o tema da corrupção no nosso País. O programa contou com a presença de Paulo Morais da associação Transparência e Integridade. Ficámos a saber que em Portugal, apesar dos 37 anos de regime democrático, da separação de poderes e da proliferação de organismos fiscalizadores de toda a ordem, a corrupção aumentou. Ficámos a saber de leis que geram favorecimentos nas grandes negociatas com o Estado, como se fazem e quem as faz. "As leis são deliberadamente confusas (...), feitas por escritórios de advogados a que pertencem os deputados que depois as votam," afirmou Paulo Morais. "A crise está ligada à corrupção, não tenho dúvida," afirmou ainda. "A constituição do BPN é matéria que devia ser investigada de alto a baixo," acrescentou.
A gente ouve tudo aquilo, pasma e interroga-se. Como é possível termos chegado a este ponto? Como é possível que isto se tenha tornado num fenómeno quase banal? Como é possível que, tendo em conta os mecanismos de que, apesar de tudo, dispomos para combater esta chaga, não exista em Portugal um único condenado por corrupção? Como é possível que estas denúncias, feitas assim publicamente, de forma directa e clara,  não suscitem reacções oficiais imediatas dos órgãos com responsabilidade directa nesta matéria?!
Como é possível que tenhamos pobres, "novos pobres", Banco Alimentar, Misericórdias, Igreja, etc, etc, a distribuir os restos dos ricos (enriquecidos à custa de toda esta situação nojenta) e estes à solta, enquanto chafurdam na gamela da corrupção, rindo-se certamente de tudo isto, e, quem sabe até, contribuindo, para assim disfarçar ou calar as suas más consciências...? Como é possível ouvir certas figurinhas do Estado dizer que aí vêm tempos piores e "futuros pobres" sem lhes ouvir antes falar de uma iniciativa sequer para acabar com este escândalo, uma das causas principais da crise? Como?!!

2011/11/19

AL QUI MIA DE SI LA BAS

Como numa alquimia
As sílabas efervescendo do contacto que costuram
Que faz delas súbitas asas em corpo de palavras
Na pele e entre a página e a respiração
Assim é nas mãos pousar silêncios
Colhê-los com olhos abertos
Desenhar as frases longitudinalmente
Endireitá-las com uma faca de precisão em incisões invisíveis mágicas
Que não as firam às letras e não lhes amputem nem pernas nem acentos e cedilhas
Nem lhes ponham reticências que nas cabeças estão
Suspendê-las
No limite da página na vertigem
Ao encontro da sua própria respiração e latitude

Qualquer arremedo de ficção
Nasce do desencontro entre os ritmos cardíaco o silêncio e as teclas
Desencontro na impossibilidade da tensão harmónica
Que a tensão harmónica faz sono
E para que seria esta
Passa agora um peixe amarelo
Mas podia ser o insecto cor de violino do chileno célebre
Os dedos estão repletos do rasto de letras encavalitando-se à procura do seu sítio
Uma vogal na sombra de uma consoante
E a palavra desejo
A abrir para uns lábios
Ou para o sorriso de que fala Bolano em entrevista recente

Essas coisas ficam
Os sorrisos
E deles resta o que os nomeia
E uma certa percepção nervosa a aflorar à face das mãos
Esta coisa de sermos animais tácteis é mesmo mais que sermos racionais
Somos racionais até ao ponto de efervescência das letras na flor da pele
E de uma imagem que amarelece na memória e é diabo no inconsciente
Vagueando nele como o outro pela estrada fora
O inconsciente é sabido: tem as suas avenidas
Este diabo já avistado
Está como as fotos de Marte cada vez mais precisas e preciosas
Ou como outrora a Ásia para Colombo e a Guiné para o Cão
Tudo uma questão de medo
Medo do que se não vê nem conhece
Foi avistado mas dá-nos a volta ao miolo e o psiquiatra pescador
Não lá vai nem com a ciência nem com a conversa
É
Espécie de cauda de cascavel a circular nos sonhos fragmentários que vais sonhando com cada vez maior falta de nitidez e que de repente explodem de nitidez antes que disso tenhamos consciência e não estou a simplificar pois não é exactamente apenas um força mas também um destino que se procura
Que miopia afectará a luminosidade do cinema dos sonhos?
A página um laboratório mesmo
Nesta era digital
Mas ao surgir do papel imaginando-o
Todo o ritual regressa como era
E eis a alquimia da coisa

2011/11/17

A política dos três pilares em versão tuga

O ministro Gaspar, também conhecido por ministro das finanças, congratulou-se ontem, ufano, com a avaliação da troika sobre o cumprimento dos "três pilares do programa de ajustamento, designadamente, a evolução das finanças públicas, a estabilização do sistema financeiro e a concretização da agenda de transformação estrutural." Há uma metáfora sinistra nisto tudo.
Temos três pilares para uma ponte sem tabuleiro. Uma ponte que deliberadamente não une porque já caiu antes de abrir ao tráfego.
Os dois primeiros "pilares" resultam de problemas de contabilidade criativa, que deveriam levar à cadeia quem os provocou e lavrou os resultados em livro de caixa. O terceiro "pilar" é, recordemo-lo, eufemismo para a venda em saldo das participações do Estado em diversas empresas. A satisfação do ministro e os recados da troika deveriam indignar os portugueses.
No fim de tudo isto, e quando o ministro Gaspar der por concluida a sua missão de mero gestor da massa falida e a troika se for embora, deixando um derradeiro elogio sobre o cumprimento do "programa de ajustamento", ficaremos todos exactamente como estávamos antes, sem que se tenham operado quaisquer modificações de fundo que permitam encarar o futuro com outro optimismo. Pagámos para deixar o ministro Gaspar e a troika que o pariu todos contentes.
Tudo isto a troco de um sacrifício sem precedentes do grosso do povo Português. Financiámos os pilares, mas fica-nos a faltar o tabuleiro da ponte para que a possamos atravessar.
Quase que aposto que quando levarmos a sério o projecto de passar mesmo a ponte, o ministro Gaspar não vai ficar na nossa margem...

A Política de Espírito

Pode um Duque ser democrata? Pode, mas não era a mesma coisa...

2011/11/15

Sevilha é uma festa!

Está-se bem em Sevilha.
Não fora o extravio da bagagem, algures em Barajas, esta tinha sido a visita perfeita. Para tal muito contribuiu a disponibilidade da minha anfitriã sevilhana, Rosario Solano, uma "cantaora" de fados que, de há anos a esta parte, vem divulgando a arte fadista no país vizinho. Foi dela o primeiro concerto, subordinado ao título "Fados à Minha Maneira", apresentado num Centro Cultural da cidade, onde contou com o acompanhamento de dois músicos locais: Manolo Imán e Yorgos Karalis.
O dia seguinte seria preenchido com uma visita a Carmona, verdadeira "ex-libris" andaluz, onde as influências islâmicas, judaicas e cristãs, se cruzam ao longo das ruas e casas de um branco alvíssimo. Foi aqui que Francesco Rosi filmou, em 1984, alguns dos exteriores da "Carmen", com Plácido Domingo, naquela que é provavelmente a melhor adaptação cinematográfica da ópera de Bizet. O "parador" da cidade, construído em estilo árabe sobre as ruinas de uma antiga fortificação e vista para a planície imensa, é de cortar a respiração.
A segunda actuação desta curta, mas preenchida visita, seria dedicada ao Flamenco mais tradicional (cante jondo) num dos "tablaos" do bairro de Santa Cruz. Aqui actua regularmente La Choni (irmã de Rosario) uma das "bailaoras" mais promissoras da nova dança flamenca. Um programa rigoroso onde, ao longo de uma hora, passaram em revista os "palos" mais clássicos: "soleás", "seguiryas" e "bulerias", cantadas, dançadas e tocadas por três intérpretes de excepção.
Voltaríamos a ver Choni e Cia Flamenca, na noite seguinte, agora no Teatro Municipal de Palacios, um "pueblo" a 20 quilómetros de Sevilha, onde apresentou o seu mais recente espectáculo "La Gloria de mi Mare". Trata-se de uma peça multidisciplinar plena de humor e dramatismo, onde os quatro actores em cena, para além de teatro, cantam, tocam e dançam. "La Gloria..." ganhou recentemente o Prémio Escenarios de Sevilla 2011 para o melhor espectáculo de Teatro. Duas horas de prazer, onde a qualidade de todos os intérpretes é notável.
A noite não podia acabar sem uma visita a uma das "peñas" mais antigas de Andaluzia, descrita e filmada em diversas obras de referência flamenca. Por ela passaram nomes como D. António Chacon (primeira metade do século passado) e António Mairena, "cantaor" e teórico do Flamenco, cuja foto domina a sala central do edifício.
A visita à capital andaluza não terminaria sem um concerto seminal, na moderna sala do Teatro Central de Sevilha, construído na Cartuja para a Expo de 1992. Nela actuaram, na noite do último sábado, Dave Holland (contrabaixo) e Pepe Habichuela (guitarra flamenca), apoiados por três membros da família Carmona, entre os quais se destaca o guitarrista Josemi Carmona, filho de Pepe. O quinteto interpretou temas do albúm "Hands" e da obra mais conhecida de Habichuela, "Yerbaguena" de 2001. Flamenco-Jazz ao mais alto nível, numa hora e meia do mais puro gozo musical.
Era já noite alta, quando comemos as últimas "tapas" no bairro de Triana. Como dizia a canção, Sevilha tem mais encanto na hora da despedida. Que viva Sevilha!

(foto EuropaPress/Teatro Central)