2024/11/13

O governo X

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Soube-se hoje que Elon Musk e Vivek Ramaswamy, um antigo candidato presidencial republicano, foram nomeados por Donald Trump para liderar um "Departamento de Eficiência Governamental", uma entidade que, como Trump fez questão de precisar, irá operar "fora dos limites do governo,"  abrindo “o caminho para que o meu governo desmantele a burocracia governamental, reduza o excesso de regulamentações, corte gastos desnecessários e reestruture as agências federais”.

A Forbes, essa Variety do mundo da multimilionaridade, diz que, ao dia de hoje, Musk é o homem mais rico do mundo, com uma fortuna avaliada em 308,1 mil milhões de dólares. Vai fazer parte desta entidade que irá operar fora dos limites do governo, para cortar excessos. Esperemos que se entusiasme e corte o excesso obsceno que constitui a sua fortuna pessoal. 

Os outros multimilionários (só as fortunas dos 10 primeiros totalizam 1817,2 mil milhões de dólares), que fazem parte da lista da Forbes, de acordo com os critérios que norteiam a sua elaboração, não deixarão, certamente, de estar atentos e vão querer intensificar a sua legítima luta por um corte equitativo de excessos, fora dos limites dos respectivos governos. Dispõem agora deste modelo dos "Departamentos de Eficiência Governamental", que se vai, certamente, revelar muito útil. Não se percebe por que razão ninguém se lembrou disto antes e esta gente teve de sofrer tanto tempo, tantos vexames e injustiças, sendo obrigada a conviver com tantos excessos e sendo, por vezes até, vítima de alguns governos, que, para sua desgraça, procuraram operar dentro das margens.

E para que não se diga que não há democracia e falta de oportunidades neste mundo da multimilionaridade, o mutimilionário nº1, Musk, vai ser chefiado pelo multimilionário nº 587, Trump. Cuja fortuna, refira-se, por curiosidade, até está abaixo daquela da muito nossa família Amorim, nº 582, que, esperamos, não deixe de participar também na cruzada. 

Para Marte, em força!

Os acontecimentos de Amsterdão (ou o "mantra" do anti-semitismo)

r/Amsterdam - The Portuguese Synagogue in Amsterdam, illuminated with 1000 candles for the Museum Nacht 🤩
Sinagoga Portuguesa de Amesterdão

Muito se tem falado, por estes dias, sobre os recentes motins em Amesterdão, por ocasião do jogo de futebol entre o clube local (Ajax) e o clube israelita (Maccabi Telaviv), a contar para a Champions League.

Após a indignação geral, causada pela violência inusitada entre adeptos dos dois clubes (onde a acusação de antissemitismo foi a mais citada) começaram a ouvir-se declarações e a dispôr de imagens, que permitem ajuizar com alguma distância o que realmente se passou. E o que se passou, não abona em favor das manifestações dos adeptos israelitas, conhecidos internacionalmente pela violência verbal e física em situações análogas, com está amplamente documentado. No entanto, as primeiras reacções aos acontecimentos nos Países-Baixos (e nos media internacionais) foi a de condenação imediata de uma das partes, no caso a perseguição aos adeptos israelitas após o jogo.

Convém lembrar que o "complexo de culpa" de muitos holandeses, pelo colaboracionismo com a ocupação nazi durante a 2ª guerra mundial, explica muito do apoio governamental à comunidade judaica da cidade (implícito no pedido de desculpas do rei ao governo israelita, logo após os motins da passada semana, ao declarar que os holandeses tinham "falhado o apoio aos judeus, pelas segunda vez"...),

Acontece que a prática dos sucessivos governos israelitas (desde 1967) não deixa margem para dúvidas, no que à estratégia sionista diz respeito: a ocupação permanente de territórios palestinianos, após a "guerra dos seis dias". O aumento constante dos colonatos na Cisjordânia, nos Montes Golã e na própria cidade de Jerusalém, é disso o mais claro exemplo. 

No entanto, e após anos de informação unilateral, a opinião pública neerlandesa parece estar a mudar. Basta consultar a imprensa de referência dos Países-Baixos e os inúmeros vídeos que circulam pelas redes sociais, para constatar que há duas versões distintas dos acontecimentos em Amesterdão: foram os adeptos do Maccabi Telaviv, ainda antes do jogo, que começaram com as provocações (nas palavras do comissário da polícia Holla, em conferência de imprensa) seja através de palavras de ódio contra a população árabe, seja pelo derrube de bandeiras palestinas no centro da cidade ou por ataques a taxistas que recusaram transportá-los.

Que, após o jogo, tenha havido uma contra contra-manifestação e perseguições aos adeptos israelitas, por parte dos apoiantes do Ajax, não desculpa de modo nenhum o anti-semitismo implícito nessas acções. Ambos os actos devem ser condenados, os dos adeptos israelitas e os dos contra-manifestantes. Para que fique claro. 

Só que, o "mantra" do anti-semitismo, começa a ser uma desculpa curta para o estado (sionista) de Israel, agora que a recente guerra em Gaza não desculpa a limpeza étnica levada a cabo contra a população palestina. Até porque, os árabes, também são semitas. Não perceber isto e querer confundir tudo, é não perceber nada do que se está a passar.               

2024/11/06

A minha opinião sobre as eleições na América

A Democracia trouxe com ela a possibilidade de exprimir a nossa opinião, dentro de determinados limites, impostos pelos próprios princípios democráticos. Hoje, no rescaldo das eleições americanas, chovem os comentários de todos os lados. Toda a gente pensa que tem, e tem, de facto, direito a largar a sua sentença sobre o tema. Infelizmente, a esmagadora maioria não faz a mais pálida ideia sobre o que está a falar, mas fica toda contente porque tem esta prerrogativa que a Constituição lhe confere. Na melhor das hipóteses, acaba por desservir uma análise correcta dos factos, mas ajuda a aumentar ainda mais o ruído insuportável a que estamos habitualmente sujeitos.

Ora, como vivemos em Democracia, como sublinhei no princípio, também eu tenho direito a contribuir para o barulho. Eis, pois, o que penso sobre a eleição americana.

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Claro que estou aberto a debate. Vamos ao contraditório...

EUA: o dia a seguir

Imagem REUTERS
Imagem REUTERS

Não há verdadeiramente uma surpresa nos resultados destas eleições. Talvez a vitória esmagadora de um fascista que (et pourtant) apesar do seu discurso xenófobo, racista, misógino e divisionista, conseguiu canalizar as frustrações dos "little men" do Midwest americano. Os votantes do partido republicano não votaram num programa político, mas em Donald Trump, o líder incontestado. Estamos a assistir ao culto do líder, uma constante em todos os partidos autocratas.  

A estratégia (!?) dos democratas foi desastrosa do princípio ao fim: afastamento tardio de Joe Biden, nomeação de uma candidata, sem passar pelo escrutínio das "primárias", pouca preparação de Kamala Harris em assuntos tão importantes como a economia, as relações comerciais com a China e a Europa, a Nato, as guerras da Ucrânia e da Palestina, etc., sobre os quais nunca foi clara e teve sempre um discurso redondo. Um falhanço total que os liberais vão pagar caro. 

Quando apostamos no mal menor, arriscamos levar com o mal maior. É dos livros. Leia-se o Reich da "Psicologia de Massas do Fascismo", escrito em 1933. Está lá (quase) tudo o que devemos saber.

Vem aí o fascismo norte-americano (sempre lá esteve) e, porque tudo o que se passa nos Estados Unidos acaba por influenciar a Europa, também seremos afectados por este resultado. De resto, o fenómeno (do aumento da influência dos partidos de extrema-direita) já acontece um pouco por todo o continente europeu: nalguns países veio de pantufas, noutros de botas cardadas. Por alguma razão, os ditadores de serviço - Putin, Orbán, Le Pen, Erdogan, Netanyhau, Wilders, Abascal ou Ventura - foram os primeiros a regozijarem-se com a vitória do seu homólogo americano.

Será que as forças progressistas, não aprendem?...

2024/11/05

EUA: eleições num país esquizofrénico

How the U.S. election could help shape Canadian politics

Disputam-se hoje as eleições americanas, já consideradas as mais disputadas e, para alguns, as mais importantes da história dos Estados Unidos. 

Não sabemos se assim é, mas uma coisa é certa: um dos concorrentes (Donald Trump) já afirmou não acreditar no resultado eleitoral (!?), enquanto um dos seus principais apoiantes (Stephen Bannon), afirmou que a primeira coisa que Trump deve fazer, é declarar vitória, antes de saber os resultados (!?). Sobre democracia, na primeira democracia do Mundo, estamos conversados.

Nada que surpreenda, num país onde, para além de todas as conquistas e feitos dos últimos oitenta anos (e foram muitas!), o seu lado mais "negro" foi sempre uma constante, dentro e fora das fronteiras. Um política, baseada na doutrina do "pau e da cenoura", onde os aliados são avaliados em função da vassalagem ao modelo liberal (leia-se "mercado livre"), que permite o negócio puro e duro, independentemente de princípios ou ideologias. Há quem lhe chame "Real Politik". Quem a pratica, recebe a recompensa (a cenoura); quem não concorda, é penalizado (com o pau). Uns "democratas", os americanos...

Sobre Bannon, sabemos que é um apoiante do movimento Alt Right e que foi assessor de Trump na Casa Branca, donde sairia após os acidentes racistas de 12 de Agosto de 2017 em Charlotteville (Virgínia), causados pelos movimentos "KKK", "Supremacia Branca" e "Golden Boys", conhecidos pelas suas teorias racistas e de "substituição". O caso provou grande polémica a nível internacional, após o que Bannon se refugiou na Europa, tendo sido acolhido pelo governo italiano de Salvini. onde se dedicou a organizar e a financiar uma internacional europeia de extrema-direita (neo-fascista), com vista a influenciar as eleições europeias de 2019. Este período, está amplamente documentado no filme "The Brink", da realizadora Allison Klayman (2019) exibido no Festival DOCs de Lisboa, em 2020. Pode ser visionado no Youtube, contra o pagamento da módica quantia de $5. Muito educativo. É este mesmo Bannon, entretanto condenado e preso por fraude e peculato, durante a campanha das eleições intercalares americanas de 2018 que, libertado a semana passada, quer declarar à priori a "vitória" de Trump. Para quem tinha dúvidas...

Quer isto dizer que não existem democratas e defensores acérrimos de uma democracia que, justamente, se orgulha dos princípios que defendem a sua Constituição? Existem e representam cerca de metade dos votantes. Para o bem e para o mal, estes votos estão corporizados na candidata do partido democrata, a liberal Kamala Harris, ainda que esta definição seja, para um europeu, algo diferente daquela que defendem os americanos. Difícil? Talvez não. Afinal, Harris, a democrata, defende a pena de morte, a lei das armas que lhe permite ter um revólver em casa (para o caso de ser assaltada...), que afirma defender a solução de dois estados para o problema da Palestina (enquanto aprova o envio de armas para Israel), mas não tem uma palavra de solidariedade para com o povo palestiniano. Sobre a NATO e a guerra comercial com a Europa e a China, não se lhe conhece uma ideia ou visão consistente. Uma liberal, vá...

Para os europeus (que não podem votar nas eleições americanas), a decisão pertence aos cidadãos americanos. Já as consequências desta votação, terão impacto em todo o Mundo, pelo menos no chamado "Mundo Ocidental".  Só amanhã, saberemos. Enquanto esperamos, faço minhas as palavras de Noam Chomsky: "ainda que os europeus pensem que há dois partidos na América, Republicanos e Liberais, isso não é verdade. Só há um partido: o partido do Capital". 

Mais claro, era impossível.

 

2024/11/02

Ao Camilo Mortágua

Partiu ontem, o Camilo. Na despedida, alguns dos muitos amigos que cultivou ao longa da vida. Uma tarde para recordar, neste Outono chuvoso, em pleno Alentejo.

Em 1961, frequentava eu a Escola Secundária Veiga Beirão quando, num dos intervalos, os alunos foram surpreendidos por uma chuva de papéis que caiam do céu em catadupa. Apressei-me a apanhar um, antes que os contínuos os destruíssem na ânsia de "limpar" o pátio. Deve ter sido o primeiro panfleto que vi na vida. Relembro que tinha algo escrito contra o governo de então e exortava os portugueses a revoltarem-se. Guardei-o religiosamente (fruto proibido, é sempre o mais apetecido). Nessa noite mostrei-o ao meu pai que, depois de lê-lo, aconselhou-me a destruí-lo imediatamente, pois era perigoso ter papéis daqueles, em casa... Mais tarde, leria nos jornais que os panfletos tinham sido atirados de um avião da TAP, desviado por um comando armado que, nesse mesmo ano, tinha capturado o "Santa Maria", naquele que foi considerado o primeiro assalto a um navio, em pleno mar alto. Em ambas as operações, o Camilo estava presente. Como estaria presente noutras acções, então já em nome da LUAR, movimento ao qual aderiu em 1967.

Viria o conhecer o Camilo, em meados dos anos setenta, aquando da sua primeira visita a Amsterdão, no âmbito de uma sessão de esclarecimento, sobre a situação portuguesa pós-25 de Abril. A sessão decorreu numa Associação local e lembro-me de ele ter escolhido um canto da mesa, com as costas encostadas à parede. Dessa forma, dizia, sentia-se mais "protegido"...

Os encontros foram-se repetindo, em Portugal e no estrangeiro, em sessões organizadas em colaboração com a cooperativa Era Nova, por ele fundada e com a qual colaborámos diversas vezes na organização de digressões pelos Países-Baixos na década de oitenta.

Voltaria a encontrá-lo em 1992, quando preparava o meu regresso a Portugal e passei uma semana no Alvito para conhecer a cooperativa agrícola que o Camilo dirigia e na qual eu estava interessado. Por pouco não fui para lá trabalhar, apesar desse ser o desejo de ambos.

Reencontrava-o frequentemente, na Associação José Afonso, da qual era fundador e um dos seus animadores permanentes. Lembro-me das suas longas intervenções, não raramente sublinhadas por um sorriso cúmplice que a todos cativava. Um dinamizador nato, que não necessitava de discursos panfletários para expor as suas ideias. 

Deixa um enorme vazio e uma legião de amigos e admiradores que com ele conviveram. Mais do que revolucionário, foi um homem bom e vertical, o Camilo. Partiu ontem.

2024/10/31

Dos bairros periféricos de Lisboa

Earth appears as a flattened disk against the backdrop of space.

A recente morte de um habitante do bairro do Zambujal, no concelho da Amadora, fez manchetes em toda a Comunicação Social, ainda que não tenha sido esta a primeira vez que um morador (negro), de um bairro (periférico) da capital, tenha sido baleado pela polícia. 

A comoção nacional, desta vez, teve mais a ver com a reacção de alguns moradores destes bairros (que optaram pela violência gratuita, provocando motins na área da Grande Lisboa) do que com a morte de um membro da comunidade africana, num bairro considerado problemático. 

O que se passou, afinal? Aparentemente (e até prova em contrário) o cidadão Odair Moniz, de origem Cabo-Verdiana, dirigia-se para casa na madrugada de segunda-feira, dia 21, quando foi interceptado pela polícia de segurança pública por, alegadamente, ter ultrapassado um risco contínuo. De acordo com a versão policial, teria recusado parar e fugido para um bairro vizinho (Cova da Moura) onde o carro que conduzia embateu em vários carros estacionados, acabando imobilizado. Intimado a sair do carro, recusou deitar-se no chão, para ser algemado e, perante a resistência, a polícia, após dois tiros para o ar, baleou-o com dois tiros mortais. O comunicado oficial da PSP refere ainda, que o suspeito, ameaçou a polícia com uma "arma branca" e conduzia um carro roubado. Esta, a primeira versão dos factos. 

Passada mais de uma semana sobre os acontecimentos, e enquanto decorre o inquérito instaurado pelo MP, vão sendo revelados detalhes importantes. Assim, a versão oficial da polícia revelou-se falsa, já que a vítima não puxou de nenhuma arma branca e o carro não era roubado, mas do próprio (declarações dos policias que o prenderam). Mais, existem vídeos, feitos por testemunhas do acontecimento, que provam os polícias nada terem feito para retirar o corpo baleado do local, quando este ainda apresentava sinais de vida. Uma intervenção rápida, poderia tê-lo salvo. Posteriormente, podiam sempre prendê-lo e iniciar o processo criminal respectivo. Também sabemos que o polícia, que baleou Moniz, era um jovem recruta (22 anos), sem experiência, que patrulhava o bairro há pouco tempo. Está suspenso e foi constituído arguido. 

Como é habitual nestes casos, os habituais detractores, apressaram-se a justificar a morte de Moniz, como um acto de legitima defesa, cometido pela polícia, contra um (ex) traficante de droga. Sim, é verdade que Moniz tinha sido condenado e preso por actividades ilegais. Cumpriu a pena e há oito anos que levava uma vida normal, sendo dono de um estabelecimento comercial e tendo uma actividade de animador social, reconhecida no bairro. 

Que os chamados "bairros problemáticos" existem e a vida neles é tudo menos fácil, é do senso comum. Não só em Lisboa, como em S. Paulo, Luanda, Nairobi, Cairo, ou Bogotá. Mais do que olhar para a árvore, há que olhar para a floresta. Não é isso que fazem os "comentadores de sofá", isolados na suas zonas de conforto, que preferem dividir a sociedade em "bons" e "maus" e colocar a polícia (por defeito) no primeiro grupo. Acontece que existem maus elementos no grupo dos "bons" e vice-versa. Não perceber estas coisas simples, é tramado, mas também há quem negue as alterações climáticas ou afirme que a Terra é plana e não é por isso que o planeta deixa de girar. 

Sim, os bairros são "problemáticos" e vivem neles elementos marginais que não contribuem para a urbanidade desejada e praticada pela maioria dos seus habitantes. Sei do que falo: vivo num bairro, a menos de 500 metros do Zambujal e da Cova da Moura e dou-me com alguns dos seus moradores. Tudo gente normal, que sai diariamente para os seus trabalhos, na construção civil, nas limpezas, nos hospitais, nos lares de terceira-idade, na restauração, etc. São maioritariamente africanos, brasileiros e portugueses, mas também há ucranianos e asiáticos. Nestes, como nos restantes bairros da periferia de Lisboa, a situação é idêntica. Milhares de imigrantes, a maioria com nacionalidade portuguesa, que contribuem com mais de 1600 milhões de euros anuais, para a Segurança Social. Sem eles, a economia portuguesa colapsava. 

Acontece, que a maioria destes bairros foi construída (ilegalmente) após o 25 de Abril, por populações africanas vindas das ex-colónias, em meados dos anos setenta. Privados de tudo, sem conhecerem o país que os acolhia e mal falando português, aceitaram as condições oferecidas e começaram a trabalhar no que surgia, muitas vezes construindo a sua própria habitação aos fins-de-semana, em terrenos camarários e privados. É o caso da Cova da Moura (onde foi baleado Odair Moniz), até há cinquenta anos uma quinta (propriedade da família Canas) de 19 hectares, onde cheguei a jogar futebol quando era adolescente. 

Pergunta: que culpa têm os imigrantes africanos da primeira geração, acolhidos após a descolonização, que as autarquias portuguesas tenham permitido construir casas e bairros inteiros, sem qualquer infraestrutura pré-existente? Alguém imagina, isto ser possível, num país organizado e onde existe um estado forte? Claro que não. Basta comparar as sociedades desenvolvidas do Norte da Europa, com países subdesenvolvidos, como era Portugal em 1974. Hoje, a situação é diferente. As primitivas barracas (quase) desapareceram, mas as populações dos bairros "sociais", construidos nas últimas décadas, ainda continuam à espera de estruturas condignas (escolas, centros de saúde, espaços verdes, associações...) para além de um policiamento de proximidade, que lhes devolva um sentido de comunidade e integração, que não existe e tornou estes bairros verdadeiros guetos. Não é pois, de admirar, que a marginalização produza marginais, aos quais os governantes respondem com mais repressão policial. 

No entanto, há um padrão na actuação da polícia, nos bairros considerados "sensíveis". O cronista do "Público", Manuel Loff, deu-se ao trabalho de inventariar as mortes provocadas pela polícia nestas comunidades: "1987, Fernando Semedo, Queluz;1994, Romão Monteiro, 33 anos, cigano , morto em Matosinhos, enquanto estava detido e algemado; 2001, Ângelo Semedo, 17 anos; 2002, António Pereira 25 anos, operário, membro do Centro Operário Africano de Setúbal, morto no bairro da Bela Vista; 2003, Carlos Reis, 20 anos, morador no Zambujal, baleado na cabeça, por um polícia durante uma operação-stop; 2004, José Carlos Vicente, 16 anos, morador no bairro 6 de Maio, Amadora; 2005, João 17 anos, morador no Bairro Amarelo, Almada, morto pela GNR; 2009, Elson Sanches, 14 anos, Quinta da Laje, Amadora, abatido à queima-roupa; 2010, Mc Snake, rapper, 30 anos, Alcântara, Lisboa, baleado após uma operação-stop; 2013, Diogo Filipe Borges, 15 anos, bairro 6 de Maio, depois de torturado na esquadra de Alfragide; e, agora, Odair Moniz, 43 anos, Zambujal, quatro tiros, dois mortais, à queima-roupa" ("Público", d.d. 30/10/24).

Ora, nada destas coisas, acontece por acaso. Se é verdade que existem criminosos nos bairros  "problemáticos", não é menos verdade que a maioria das suas populações é gente normal e integrada. Também não se percebe, porque é que a polícia dispara quando, na maioria dos casos, não há resistência, muito menos armada. Estamos perante uma cultura existente nas forças de repressão, que não sendo transversal a toda a corporação, existe e deve ser fruto de análise cuidada por parte da tutela, pois os relatórios internacionais sobre a actuação da polícia portuguesa (denúncia de abusos, tortura, etc...) são conhecidos das próprias autoridades. Ninguém imagina, um português branco, na Avenida de Roma, na Lapa, ou em Telheiras, ser algemado em plena via pública e, muito menos, alvejado a tiro em pleno dia.

Se não é discriminação, parece. É bom que seja reconhecida e atalhada enquanto é tempo. Enfiar a cabeça na areia e continuar a afirmar que não há racismo em Portugal, é a pior das respostas.

2024/10/20

Taxi Driver (34)

When Did Humans Start Waging Wars? | HISTORY

Bom dia, como está?

- Bem, obrigado e o senhor?

Estou aqui há mais de uma hora à espera de um cliente...

- Bom, já tem um. Para o Centro Comercial Colombo. Não é muito longe.

Vamos lá, então. Vai às compras?

- É verdade, sábado, dia de compras...

Eu já fiz as minhas. Os filhos e os netos queriam estar com o avô e eu comprei, ontem, tudo. Os preços, estão pela hora da morte. Polvo a 18 euros o quilo! Nem queria acreditar.

- É verdade. Tudo aumentou nos últimos anos e não vai parar...

Também penso que não. Nos últimos anos, tem sido uma desgraça! É crise, atrás de crise.

- Pois é. Tivemos cá a Troika, depois o Covid e, agora, as guerras. Já são duas e estão para durar...

Não há ninguém que pare isto? Esta gente é doida e nós é que pagamos. Já viu?

- Somos sempre nós, os que não queremos a guerra, que pagamos. Já é assim, há muito tempo...

Esta gentalha, que provoca estas desgraças todas, devia ser presa e posta perante um tribunal de juízes e cientistas, que lhes mostrassem o mal que provocam no Mundo, que só causa morte e destruição. Depois eram julgados, como foram na 2a guerra, e pagavam pelos seus crimes. Fuzilados ou presos à vida, sei lá! Uns sem-vergonha.

-  Não há escrúpulos. Enquanto a guerra der lucro (a indústria do armamento é a indústria que mais dinheiro dá) não vai parar! O lucro, é o motor por detrás desta loucura. Uns perdem com a guerra, para os outros ganharem com ela. Já imaginou o que vai acontecer, se a guerra no Médio-Oriente continuar a alastrar e chegar ao Irão, um dos principais produtores de petróleo no Mundo? O preço do petróleo vai disparar e isso vai afectar o comércio a nível internacional. O preço da gasolina aumenta, o transporte das mercadorias também, e por aí fora...Foi assim em 1973, na guerra Árabe-Israel. Lembro-me bem desse ano. Eu vivia na Holanda e os cortes na gasolina foram tão brutais, que o governo proibiu a circulação dos automóveis aos domingos, para poupar combustível! A crise petrolífera, desse ano, mudou tudo. 

Pois foi. Conheceu o "Diário de Lisboa"? Nessa altura, publicou um desenho, onde se viam vários homens através da História: o primeiro levava uma marreta às costas; o segundo, um arco e uma flecha; depois um, com uma espingarda; o seguinte com um canhão; outro com um tanque e, o último, um com um lança-mísseis. A legenda, era: "Será que, agora, a guerra vai acabar?". Pelos vistos, não.

- Claro que não. Faz parte da natureza humana. A ganância e a luta pelo poder vão continuar e, por isso, são "precisas" guerras. Como escreveu alguém, "a guerra, é a economia por outros meios". Isto, está tudo ligado. Neste momento, ninguém sabe (ou quer) parar as guerras em curso. Estamos à beira de uma catástrofe, que ninguém poderá controlar. Andamos há anos nisto e não se vê soluções.

É isso mesmo. Bem, já chegámos. São €6,20. Se não tiver trocado, dá-me só seis euros. Bom dia e obrigado pela conversa. Tenha um bom fim-de-semana.

Bom fim-de-semana. 

2024/10/11

Os tarados

Atomic bomb in 1945: A look back at the destruction | Gallery | Al Jazeera

Não há margem para dúvida. Se, anteriormente, houve casos em que a atribuição do Nobel da Paz suscitou as maiores reservas (a dupla Obama-Al Gore, Kissinger, por exemplo, entre outros,) o significado do Nobel da Paz 2024 não tem outra interpretação. 

A atribuição do Nobel 2024 a uma instituição dedicada aos sobreviventes dos genocídios de Hiroshima e Nagasaki, a Nihon Hidankyo, que hoje pugna também pelo desarmamento, em particular, pelo fim do arsenal nuclear, contém uma mensagem inequívoca dirigida aos tarados que liquidaram a vida de cerca de 300 000 seres humanos, a maioria deles, civis. Uma vergonha sem precedentes. Os bombardeamentos das duas cidades japonesas pelos americanos constituem o único caso de uso de armamento nuclear num conflito armado. 

É claro que muitos tarados continuam hoje a falar impunemente da utilização de armamento nuclear, a instalá-lo por todo o lado e a ameaçar com o seu uso, tripudiando sobre os tratados de não proliferação deste género de armamento. Embora estejam absolutamente conscientes dos efeitos que esse uso possa ter.

Mas os únicos que se atreveram, de facto, a detonar bombas nucleares foram os americanos. É um facto cujas consequências os mesmos trataram de apagar através das campanhas de lavagem ao cérebro que tão bem dominam.

O Nobel 2024 é uma condenação inequívoca dos Estados Unidos pela sua conduta. Não há branqueamento possível.

2024/09/30

Dr. Strangelove nas Nações Unidas

De acordo com o "Washington Post", citado pelo "Expresso" online de hoje (30/9), o governo israelita terá informado o governo dos Estados Unidos que se prepara para invadir o Líbano nas próximas horas. Ainda de acordo com o diário americano, a operação será "limitada" ao território fronteiriço entre o Líbano e Israel e tem como objectivo criar uma "zona tampão" entre os dois países, para evitar os ataques do Hezbollah naquela região...

Nada que nos deva surpreender, depois do discurso de Netanyahu nas Nações Unidas da passada semana, onde ameaçou tudo e todos, inclusive os poucos presentes na sala, depois da debandada geral dos representantes internacionais durante o seu discurso. 

A "novidade" aqui, reside na informação "à priori" que o governo israelita terá fornecido a Biden, depois deste ter afirmado na passada semana, que desconhecia os planos de Bibi para eliminar fisicamente os dirigentes do Hamas em Teerão e do Hezbollah em Beirute. Não se faz, ocultar informações ao "chefe" e principal doador de fundos para manter a máquina de genocídio, em que se transformou Israel, logo agora que os Estados Unidos tinham aprovado mais uma "tranche" de 30 000 milhões em armamento para o estado sionista. Interrogado, nos dias que se seguiram ao atentado em Beirute, o patético Blinken veio com ar compungido, confirmar as declarações do presidente americano e "jurou" que os EUA tudo estão a fazer para chegar a um acordo diplomático entre as partes, já que o objectivo último continua a ser a criação de dois estados na região...

De acordo com a jornalista Alexandra Lucas Coelho, que segue há anos a questão palestiniana e escreve regularmente no "Publico", o "pobre" Blinken terá ido 11 vezes a Telavive no último ano, para tentar convencer Bibi a terminar com o genocídio em curso, levado a cabo pelas tropas israelitas em Gaza e no Líbano, onde morrem diariamente centenas de civis de todas as nacionalidades: mais de 42.000 em Gaza, mais de 1500 em Beirute numa só semana, para além dos feridos e desaparecidos nos escombros em que se transformaram os territórios bombardeados por Israel. Para os sionistas, ninguém está a salvo na região, pois a protecção do "povo eleito" e a "ira de Deus", tudo justifica! 

Esta foi, de resto, a tónica do discurso de Netanyahu na ONU, ilustrado com dois quadros do Médio-Oriente, um intitulado "The Blessing" (Os Abençoados), pintado a verde (Israel, Egipto, Jordânia, sunitas); e outro, "The Curse" (A Maldição) pintado a negro (Irão, Iraque, Síria e Líbano, shiitas). A simbologia bíblica, fala por si: o "Bem" contra o "Mal", ainda que ambos os lados sejam maus...

Enquanto toda esta encenação decorre, Guterres desfaz-se em apelos à paz e à comiseração, já que os palestinos continuem a morrer, pois não podem sair do seu território. Enredado em contradições e períodos de intermitente lucidez, Biden continua a acenar para os jornalistas e a dizer que um acordo está próximo, enquanto Bliken tenta pela enésima vez a "espargata" do compromisso histórico que (quem sabe?) pode valer-lhe o prémio Nobel da Paz. Também Kissinger tinha as mãos manchadas de sangue (Indonésia, Vietnam, Chile, Argentina...) e não foi por isso que deixou de ganhar o Nobel...

A situação, ainda que dramática, lembra o filme de culto "Dr. Strangelove" (how I learned to stop worring and love the bomb), de Stanley Kubrick (1964), uma comédia-negra sobre a paranóia securitária no tempo da "guerra fria". No filme, Peter Sellers, que interpreta 3 personagens, veste a pele de Dr. Strangelove, um paraplégico, com um braço articulado, que faz a saudação nazi, de cada vez que discursa. Outro dos personagens, interpretado por Sterling Hayden, tem problemas de demência e impotência sexual, que procura subliminar através da guerra. O filme termina com o major King-Kong (Slim Pickens) piloto do bombardeiro B52, a cavalgar a própria bomba que acabou de lançar. Pior, era impossível.

Um clássico, premonitório do que está em curso. Ao ouvir Bibi na ONU, imaginei-o em cima da bomba que cavará a sua própria sepultura. Só não saberemos se terá a ver com um desígnio de Deus ou com a impotência sexual.  

 

2024/09/20

Notícias da "Silly Season"(4): incendiários não faltam!

Eucaliptal.

O Verão está a terminar, mas os fogos estão para durar.

Que o digam os residentes na região centro e norte do país, pela enésima vez atingidos por mais uma tragédia que, entretanto, consumiu mais de 120.000hectares de floresta (o equivalente a 120 mil campos de futebol). A quarta maior área ardida neste século, só suplantada pelas tragédias de 2003, 2005 e 2017, que consumiram mais de 400mil, 300mil e 500mil hectares, respectivamente. 

Um cenário dantesco, que as televisões (contrariamente às recomendações governamentais após os incêndios de 2017) teimam em mostrar nos seus aspectos mais sórdidos e caricatos, como as dos repórteres, de plantão no terreno, a perguntar às pessoas que tudo perderam, "o que pensam fazer" (!?). O que pensam fazer?  

Pela enésima vez, lá vieram os comentadores e "experts" do costume às pantalhas, confirmar os dados e os diagnósticos feitos em anos anteriores. Todos os orgãos de comunicação reproduzem as suas informações e os diagnósticos são de todos conhecidos. Só não sabe quem não quer. 

Por exemplo: ao contrário do que o primeiro-ministro fez crer, ao lançar uma atordoada para o ar, numa conferência de imprensa sem direito a perguntas (!?), a culpa dos fogos não é apenas dos incendiários. 

O jornal "Público", publicou esta semana um gráfico elucidativo a esse respeito (dados de 2023), onde se pode ler: 50% das ignições são provocadas pelo uso de fogo (queimadas, churrascos, cinzas ou beatas mal apagadas, etc...); 31% das ignições são provocadas por incendiários (individuais ou a soldo de alguém); 15% das ignições, são devidas a causas acidentais (faíscas, curto-circuitos, moto-serras, etc...). Ou seja, menos de 1/3 dos fogos, serão causados por incendiários (in "Público" d.d. 18/09/24).

Como bem explicou esta semana, a ex-ministra de Coesão Territorial do governo anterior, o país há décadas que se debate com um problema estrutural, que é o do progressivo abandono dos campos pelas populações, que entretanto deixaram a agricultura e emigraram para o litoral ou para estrangeiro. Neste momento, 80% da população portuguesa vive numa faixa costeira entre Viana do Castelo a Setúbal, enquanto os restantes 20% vivem em 3/4 do território. Ou seja, 3/4 do território - "grosso modo" as regiões de Trás-os-Montes, Beiras, Alentejo e Algarve - estão "desertas". Sem população, não há agricultura e pastoreio, nem ninguém cuida da floresta. Os fogos, acontecem maioritariamente em regiões despovoadas, onde o mato cresce desordenadamente e ninguém consegue chegar. Elementar, diria o Watson. 

Acresce, informou a ex-ministra, que o estado só detém 2% da floresta. Os restantes 98% pertencem a particulares. Ou seja, é da responsabilidade desses particulares protegerem as suas terras, seja cultivando algo, seja limpando o mato, para evitar a propagação dos fogos. Mais, a ex-ministra também informou, que 60% da propriedade rural, não está cadastrada ou pertence a proprietários que já morreram. Os herdeiros, muitas das vezes desconhecem as terras que possuem ou, pura e simplesmente, não querem saber destas. As partilhas são difíceis de fazer e podem levar anos, o que desencoraja os processos de heranças. Porque o processo de desertificação, dificilmente será parado, a única solução é a expropriação (em caso de interesse nacional) ou a associação de pequenos agricultores em cooperativas, que permitam a exploração conjunta dos terrenos individuais, de forma a garantir alguma rentabilidade aos proprietários. 

"Last but not the least": as alterações climáticas são uma evidência, pelo que podemos esperar verões cada vez mais prolongados, temperaturas médias acima de 30 graus, humidade abaixo dos 30% e ventos Leste, característicos da zona mediterrânica. A chamada "tempestade perfeita". Exige-se, pois, maior e melhor prevenção.

Toda a gente sabe isto e, depois das tragédias de 2017, foram criados sistemas de protecção mais sofisticados para evitar a repetição do flagelo. A coisa melhorou, mas, a avaliar pelos títulos desta semana, nem tudo resultou: "Reforma florestal derrapou e falha no cuidado dos espaços rurais (a este ritmo, Portugal não alcançará as metas definidas para 2030)", noticiava em manchete o "Público" de 18 de Setembro último. Como assim? Não aprendemos nada? 

É difícil assistir a esta hecatombe com que, anualmente, somos confrontados. Mais difícil ainda, é ter de assistir à total incapacidade do país para resolver problemas centrais do seu ordenamento territorial e a defesa de uma das suas maiores riquezas (a floresta). Que fazer? Responda quem souber. 

Portugal 2.0

Tirando alguns, contributos que têm, de facto, interesse para a humanidade, sobretudo no domínio da ciência e das artes, o legado dos EUA no mundo é, sobretudo, de destruição. Os contributos positivos empalidecem perante a barbárie made in USA. Entre as bolhinhas de gás e as toneladas de aspartame das coca colas e quejandos e os cogumelos nucleares, fica um rasto de destruição soft e hard, que nos envergonha como espécie. Gradualmente, o “American way of life” estendeu-se aos quatro cantos do império. De alguns dos piores aspectos deste “way of life,” não muitos, mas alguns significativos, Portugal esteve preservado até há pouco tempo.

Depois do S. Valentim, do Halloween, dos doughnuts, dos jeans, dos sneakers, t-shirts e skates, do Portugal got talent e do bracinho pousado em cima do peito durante a execução do hino nacional, finalmente, os atentados nas escolas entraram-nos também pela porta adentro. Já ascendemos a este novo patamar civilizacional. Estamos na crista da onda. Apanhámos o comboio tarde, como é costume, felizmente, mas já viajamos nele. A alta velocidade chegou aqui primeiro..


Não é de admirar. A violência a que as crianças têm sido expostas desde tenra idade, dos aparentemente anódinos desenhos animados made in USA, até às brutalidades inacreditáveis exibidas em milhares de filmes, séries, no infotainement, esse conceito obsceno, e mesmo, pasme-se!, de muitos, aparentemente, inocentes videojogos — alguns dos quais são, na sua aparente inocência, de uma violência inaudita — teriam, mais cedo ou mais tarde, de permitir expor às escâncaras, as feridas que vão produzindo subtilmente. Esta nefanda americanização tem décadas. Intensificou-se, e de que maneira, infelizmente, nestes últimos anos, à medida que o império mostra sinais evidentes de decomposição, estrebucha e corre para frente na sua loucura assassina. 


A violência banalizou-se e a resolução de problemas a tiro, à facada ou à pedrada, tornou-se um meio de actuação, quase que se diria, legítimo. Os maus exemplos vêm, não de um povo "primitivo," mas de um povo que se pretende sofisticado, senhor da sua independência, pretenso farol da democracia e dos bons princípios. Séculos de civilização vão, assim, pelo cano abaixo, sem que a maioria das pessoas se pareça importar demasiado.


Tenho sugerido, frequentemente, a amigos e conhecidos de circunstância que façam este simples exercício: peguem no controlo remoto da televisão e façam uma passagem aleatória, rápida, pelos canais de filmes e séries, em momentos diferentes do dia. Repitam o exercício e tomem nota da quantidade de cenas desses breves flashs que contêm cenas com com armas, sangue ou pancadaria. Vão ficar surpreendidos. É inevitável que este massacre audiovisual deixe marcas. Juntem-lhe o massacre informativo, as condições de vida miseráveis, morais e materiais, em que a maior parte das pessoas vive hoje, as desigualdades, a mentira, a hipocrisia, o patético vazio da vidas da esmagadora maioria das pessoas, a desavergonhada barrage informativa (veja este exemplo, de hoje) e está criado o caldo de cultura para que surjam cenas como esta que se passou na escola da Azambuja. Não vai certamente ficar por aqui, agora que foi vencida a última barreira que “legitimou” esta acção infeliz.


Portugal 2.0! Os upgrades vão-se seguir, certamente, a um ritmo mais intenso do que o da saída de novos modelos do iPhone…

2024/09/03

Notícias da "Silly Season"(3): das "férias cá dentro" às promessas do governo


Com o final de Agosto, terminou o "mais querido mês de férias". 

Ainda que possa entender a razão da escolha deste mês para descanso, a verdade é que tudo é pior em Agosto. 

Desde logo, a afluência da população indígena (e estrangeira) ao litoral, com todos os inconvenientes inerentes ao turismo de massas: congestionamentos nas auto-estradas, atrasos nos comboios, "overbooking" nos aviões, alojamentos esgotados, preços inflacionados, piores serviços, mau atendimento, filas intermináveis para poder desfrutar de uma refeição num restaurante ou visitar um museu, etc. A lista é longa...Entra-se cansado e sai-se irritado, com o "stress" acumulado neste mês que, não raras as vezes, dá origem ao reconhecido "síndrome pós-férias", afinal um luxo dos "happy few" que podem gozar (e pagar!) os seus dias de descanso anuais. No entanto, uma coisa é só poder fazer férias em Agosto (filhos nas escolas, empregos na função pública, por exemplo), outra é dispor de tempo livre para férias durante todo o ano e persistir fazê-las em Agosto. Ou, fazê-las em Agosto e no litoral, o que é estranho, num país com mais de 3000 horas de sol anuais...

Pior, só mesmo a situação daqueles que não podem sequer fazer férias fora de casa, independentemente do mês do ano, devido às limitações do seu orçamento. De acordo com a Comunicação Social, "Em 2023, segundo os dados da Eurostat, Portugal apresentava a sexta maior percentagem da população sem capacidade para pagar uma semana de férias, por ano, fora de casa, incluindo a despesa de alojamento e de viagem para a família. Com maiores dificuldades, apenas as populações da Roménia, Bulgária, Hungria, Grécia e Croácia. Nesse ano, mais de um terço da população (38.9%) terá gozado as férias na sua residência habitual, um valor que, desde 2020, tem vindo a aumentar em Portugal, invertendo a tendência decrescente que se registava no nosso país desde 2010" (in "Expresso" d.d. 15 de Agosto). Ou seja, depois de um período de retração durante os anos de intervenção da Troika (e posterior recuperação entre 2015 e 2020), os portugueses voltaram a gozar menos férias fora, ainda que façam férias "dentro" de casa... 

O "querido mês de Agosto", no entanto,  não é só o mês das férias por excelência, é também o mês da "rentrée" política, no qual os partidos políticos propõem "novas soluções" para velhos problemas, mesmo sabendo que a maioria dos anúncios não passam de "wishful thinking" partidário.

Confortado com o excedente orçamental deixado pelo anterior governo (mais de 4.000 milhões) e pelas verbas dos programas europeus 20-30 e PRR, o governo anunciou as principais medidas no palco do Pontal onde, reza a tradição, "o pão se transforma todos os anos em circo". Quanto mais não fosse, e também por essa razão, é sempre aconselhável evitar o Algarve nesta época do ano. 

Passámos por lá em Julho e o panorama não mudou relativamente ao Verão passado: Faro já estava inundada de turistas estrangeiros, os restaurantes mais caros e a abarrotar, atrasos nas ligações ferroviárias e serviços medíocres numa região que devia ser a "jóia da coroa" da industria que mais contribui  para o PIB nacional. Paradoxalmente, nos cafés e restaurantes que frequentámos, exibiam anúncios a pedir pessoal, sendo que em todos, sem excepção, a maioria do pessoal era estrangeira. Perante tal discrepância, indagámos da razão e foi-nos respondido que "no Algarve, ninguém quer trabalhar" (!?). Daí o recurso aos imigrantes. Muito bem, nesse caso, o governo que regularize os 400.000 imigrantes que aguardam no AIMA a sua legalização, para que a procura se ajuste à oferta. Do turismo e não só. Resta saber quais as condições em que a maioria desses imigrantes trabalham (salários, horários de trabalho, alojamento), pois em Outubro voltarão ao Fundo de Desemprego ou aos seus países de origem, enquanto aguardam pela nova temporada em Portugal. Um ciclo vicioso, herdado de governos anteriores, que não acautelaram o "boom" turístico anunciado e, à boa maneira portuguesa, esperaram para ver, pois alguma solução haviam de arranjar...

Voltando ao Pontal: este ano, o primeiro-ministro guardou para a praia da Quarteira, o anúncio das principais medidas do governo. Destacamos quatro: um passe anual de comboio por 20 euros; um aumento único de pensões até 1500 euros (já previsto na última reunião de ministros); a reestruturação do Serviço Nacional de Saúde (mais uma!); e a regularização de imigrantes com processos pendentes, ainda que muitos deles trabalhem e descontem para a Segurança Social há anos. 

De todas as medidas, a mais badalada foi a do passe ferroviário anual, por um preço ao alcance da bolsa dos portugueses. Todos os comboios ficam abrangidos, à excepção do Alfa Pendular, que faz o trajecto Braga-Porto-Lisboa-Faro. Em si, uma medida social e positiva, que deve ser aplaudida. Acontece que, na ânsia de anunciar reformas, Montenegro esqueceu-se da realidade, talvez por desconhecê-la, uma constante dos governantes portugueses. 

Vejamos: há mais de 30 anos (desde Cavaco) que Portugal deixou de investir na ferrovia, apostando na rodovia. Construíram-se auto-estradas e fecharam-se mais de 1000 km de linha férrea. Um disparate completo, ao arrepio da tendência actual europeia. Só muito recentemente (por iniciativa do, então, ministro Pedro Nuno Santos), o país voltou a apostar na ferrovia, seja através da recuperação de material antigo, descontinuado pela CP, seja na modernização das linhas da Beira-Baixa, do Oeste e do Norte, para além da extensão Évora-Caia, que permitirá a ligação a Badajoz (80 km de via nova). Paralelamente, foi aberto um concurso internacional para a aquisição de 117 novas composições (já terminado), mas em fase de contencioso, aberto por duas das concorrentes estrangeiras. Entretanto, o actual governo recuperou o plano de Alta-Velocidade (TGV) para a linha do Norte enquanto anunciava a redução da encomenda das 117 composições (!?). Por coincidência, ou talvez não, a empresa Barraqueiro, no mesmo dia, propunha-se explorar a linha do Norte com 8 composições novas...

Sem oferta melhorada, sem linhas ou comboios novos e com passes a 20 euros, é fácil deduzir que iremos assistir a uma corrida aos passes e à utilização dos comboios por grande parte da população. Em tese, um habitante de Braga, poderá fazer todas as semanas a viagem Braga-Faro e volta (1200km) no Intercidades, por 20 euros, menos de metade do preço cobrado por metade da viagem! Ou seja, todos os comboios (Intercidades, incluído) passarão a andar cheios e não darão resposta ao aumento da clientela. Um evidente desfasamento entre a oferta e a procura. Foi o que aconteceu na Alemanha, que teve de recuar numa medida semelhante, em que oferecia passes nacionais a 49 euros e não tinha comboios e serviços suficientes para responder à procura gerada. Uns crânios, os nossos dirigentes políticos, que falam antes de pensar, utilizando a demagogia para enganar o pagode. No Pontal e por esse país fora...

2024/08/15

Notícias da "Silly Season"(2): medalheiros olímpicos

Muito se falou, nas últimas semanas, dos Jogos Olímpicos (JO) de Paris.

À falta de melhor distração, e com a política a "banhos", nada mais revigorante que um mergulho no Sena poluído. Que o digam os atletas portugueses do triatlo, alguns deles infectados por uma bactéria que pode ter tido proveniência na água engolida durante a prova. De resto, houve mais queixas de outros concorrentes, o que leva a crer que os mil milhões de euros, gastos na despoluição do rio, não foram suficientes para limpá-lo. Nem seria possível, como é óbvio. 

Com tantos locais para organizar a prova, porquê escolher o centro de Paris, onde os ratos sobem diariamente à superfície para se alimentarem? Quem foi o "criativo" que pensou em tal ideia? A explicação mais plausível, é a dos franceses quererem mostrar Paris e "épater les bourgeois" o que, a avaliar pelas reacções à posteriori, deve ter sido conseguido. De resto, não faltaram os "crooners" de serviço, desde Celine Dion a Lady Gaga, passando por Tom Cruise (o actor que recusa "duplos"!) para abrilhantar a "festa". No fim todo o Mundo aplaudiu. Os Jogos terminaram, vivam os Jogos! Daqui a 4 anos, em Los Angeles, há mais.    

Já a delegação portuguesa saiu dos JO com um sabor agridoce, pesem as 4 medalhas conseguidas (1 de ouro, 2 de prata e 1 de bronze), um número equivalente à última prestação de Tóquio, em 2021. Não estão aqui contabilizados os 8 "diplomas de honra", atribuídos aos oito primeiros classificados nas respectivas provas. Dos atletas com possibilidades de conseguir uma medalha, só três estiveram abaixo das suas próprias marcas (Ribeiro na natação, Fonseca no judo e Pimenta na canoagem). Nenhum deles tem de provar nada, já que todos são recordistas ou campeões do Mundo nas respectivas modalidades, mas ninguém gosta de perder. Haverá outras oportunidades e todos esperam melhores resultados no futuro. Em grande nível, estiveram Pedro Pichardo (medalha de prata no triplo-salto) e a dupla Iuri Leitão e Rui Oliveira (dupla medalha de ouro no ciclismo), para além da medalha de prata para Leitão (ciclismo) e da medalha de bronze de Patrícia Sampaio (no judo).  

Curiosas, foram as declarações de alguns atletas e dirigentes, à chegada ao aeroporto. Enquanto Ribeiro se queixou da má organização e do pouco espaço dos dormitórios (aparentemente, a única coisa que funcionava bem em Paris, eram os autocarros entre a aldeia olímpica e a piscina das provas!); Pichardo, queixou-se da falta de apoio ao atletismo português (deixando no ar a hipótese de desistir da competição!); enquanto o chefe da delegação portuguesa aos Jogos (Marco Alves), concluiu que Portugal tinha tido uma boa prestação. Segundo ele, ficámos sensivelmente a meio da tabela (lugar 50) e, se dividirmos o número de medalhas pela população temos, proporcionalmente, o mesmo número que os Estados Unidos! Extraordinária comparação. 

Há várias formas de comparar títulos (medalhas) nos Jogos Olímpicos: 1) a classificação (oficial), que privilegia as medalhas de ouro; 2) a classificação (nacional), que privilegia o número total de medalhas; e a classificação que privilegia o "ratio": número de medalhas versus número de habitantes. Qualquer delas é válida, dependendo do que queremos comparar. Percebemos a posição de Marco Alves, ao defender a "sua dama", mas é pena que o chefe da delegação portuguesa, não tenha utilizado outra explicação.

Fomos comparar, utilizando o "ratio": número total de medalhas versus países com número de habitantes equivalente e/ou menor (census populacionais de 2022):

Portugal: 10.041 milhões de habitantes (4 medalhas), Dinamarca: 5.903 (9 medalhas), Bélgica: 11.069 (10 medalhas), Geórgia: 3.713 (7 medalhas), Hungria: 9.643 (19 medalhas), Bulgária: 6.465 (7 medalhas), Grécia: 10.043 (8 medalhas), Suécia: 10.049 (11 medalhas), Noruega: 5.457 (8 medalhas), Checa: 10.006 (5 medalhas), Croácia: 3.009 (7 medalhas), Suíça: 8.776 (8 medalhas), Áustria: 9.042 (5 medalhas), Sérvia: 6.664 (5 medalhas), Irlanda: 5.127 (7 medalhas), Nova-Zelândia: 5.124 (19 medalhas), Hong-Kong: 7.346 (4 medalhas), Cuba: 11,021 (9 medalhas), Azerbeijão: 10.014 (7 medalhas), Barhein: 1.472 (4 medalhas)...

Podíamos, nesta lista, incluir ainda os Países-Baixos, um "estudo de caso" de um país do tamanho do Alentejo, com 17.700 milhões de habitantes, que obteve 34 medalhas no total e a sexta posição em medalhas de ouro (15). Extraordinária prestação. 

Que concluir disto tudo? 

Que Portugal, um país pobre, investe pouco no desporto (escolar e profissional) é uma verdade indesmentível. À excepção do futebol, que seca tudo à volta, poucos são os praticantes em Portugal, pelo que não nos devemos admirar dos resultados. Mas não é só no desporto que investimos pouco. Também na cultura, na saúde, na educação, na habitação, nos transportes, ficamos aquém dos objectivos. A delegação portuguesa aos JO (a maior de sempre) representou a média nacional. É pouco.  Tivesse o chefe da delegação portuguesa usado outras variáveis e, possivelmente, chegaria a outras conclusões. Quando torturadas, as estatísticas acabam sempre por confessar... 

2024/08/13

Notícias da "Silly Season": assim se vê, a força da CP...

Faço mensalmente o percurso Lisboa-Faro-Lisboa de comboio, utilizando o Intercidades e o Alfa, dependendo dos horários e lugares disponíveis. Tem sido assim, nos últimos seis anos, a uma média de duas viagens por mês. Faço-o por comodidade, relação preço-qualidade e tempo para ler ou trabalhar enquanto viajo. Prefiro o comboio ao automóvel ou avião, ainda que reconheça maior flexibilidade nos horários e mais rapidez nas deslocações nestes meios de transporte.

Acontece que, de cada vez que me desloco ao Algarve e vice-versa, os comboios nunca partem ou chegam a horas. Arriscaria a dizer que, em 8 de cada 10 vezes, há atrasos. Estes começam logo nos avisos prestados através dos altifalantes, por uma voz de hospedeira de bordo, a informar que "o comboio que deveria dar entrada na linha X, em direcção a Y, circula com um atraso de Z minutos. Do facto pedimos desculpa". A palavra-chave aqui é deveria (no condicional) ao pôr-nos de sobreaviso para a notícia que vem a seguir: o comboio que deveria dar entrada, já não dá...

Já esperei cinco, dez, quinze minutos, meia-hora e, no passado dia 27 de Julho, 1 hora e 30 minutos! Um recorde absoluto, pensava eu, sentado na estação de Sete-Rios, enquanto esperava pelo comboio das 14.14h para Faro, quando a mesma voz cálida, anunciou outro atraso, este em sentido contrário (Faro-Lisboa) que circulava com um atraso de 3horas (três horas!). 

Porque a frequência dos atrasos é preocupante, para não dizer escandalosa, interroguei o revisor do comboio a que se deve tal desvario. Olhou-me com espanto e retorquiu: "o comboio teve uma avaria, como é que queria que chegasse à hora?". De facto, há cada pergunta...

O pior é que não foi a primeira vez, pois a linha do Sul é de via única e, em caso de avaria, os comboios têm de ser desviados para um ramal que nem sempre está próximo. Contou-me um ex-funcionário da EMEF que, no passado mês de Julho, o Alfa, onde ia, teve de ser desviado para o ramal de Alcácer do Sal, que não permite velocidades acima dos 30km. Dado que o condutor do Alfa (cuja velocidade pode atingir 200km) não possuía uma licença de velocidade reduzida (!?), teve de esperar por um colega maquinista com as condições requeridas, que conduziu o comboio na linha paralela a 30km à hora! Resultado: um atraso de 3horas e meia, à chegada a Faro! 

Porque a paciência tem limites, quando cheguei a Faro preenchi uma reclamação pelos serviços prestados, o que neste caso mais que se justificava. A funcionária que me atendeu, foi-me informando que tinha direito ao reembolso do bilhete, dado que o atraso tinha sido superior a uma hora. Já sabia, mas, o que mais me surpreendeu, foi a passividade dos restantes passageiros (a maioria estrangeiros) que aceitaram o atraso como fazendo parte da tradição ("very typical", devem ter pensado). 

No dia 30 de Julho, tinha um email da CP na minha caixa de correio. Lamentavam o sucedido, reconhecendo que, por vezes, surgem ocorrências que os impedem de cumprir compromissos assumidos com os clientes. Apresentavam as desculpas pelos transtornos causados e informavam que o comboio referido (Intercidades 572) sofreu um atraso à partida e à chegada na estação de Faro, de 1h e 30´. O atraso devia-se a um impedimento da via e era da responsabilidade da CP-Comboios de Portugal.  Aconselhavam-me a pedir o reembolso, bastando para isso enviar a cópia do bilhete e o meu IBAN. 

P.S. Hoje, recebi um segundo Email da CP-Reclamações, com um texto semelhante, acrescido da informação que "são esperadas melhorias no serviço, após a conclusão das obras de modernização a decorrer na linha do Algarve, da responsabilidade da IP-Infraestruturas de Portugal. A electrificação da linha, na sua totalidade, vai permitir a utilização de comboios de tracção eléctrica, mais modernos e ambientalmente sustentáveis". 

Olha que bom!

2024/07/26

A insustentável leveza da hipocrisia


Há tempos, corria por aí um abaixo assinado reclamando a exclusão de Israel dos Jogos Olímpicos. Não sei qual foi o número final de assinaturas, mas na altura que o assinei eram já muitas dezenas de milhar. Este abaixo assinado era apenas uma das muitas manifestações visando a exclusão de Israel dos JO.

Confesso que nunca mais me lembrei do assunto. Mas hoje a curiosidade levou-me a tentar confirmar o que se passa no domínio das exclusões. Israel foi autorizado a participar, depois de ter liquidado (tenho a certeza que de forma pouco desportiva) centenas de atletas palestinianos.

Quando fui confirmar a lista de países participantes (já que pela transmissão da televisão essa informação não pareceu clara) veio nova surpresa: a Rússia e a Bielorússia foram banidas dos JO2024. A alternativa engendrada pelo COI foi a de convidar atletas dos dois países, a título individual, com o estatuto de Individual Neutral Athletes, com bandeira e hino próprios. Isto depois de passarem uma série de complicadíssimos testes. De apenas 60 atletas convidados, uns meros 15 aceitaram o vexame. Habitualmente, as delegações destes países incluem centenas de atletas, entre eles alguns dos mais valorosos nas respectivas modalidades. 

A delegação israelita inclui o atleta Peter Paltchik, "que assinava bombas lançadas contra os palestinianos com a frase “de mim, com prazer”". Hoje lá estava uma delegação israelita e uma delegação palestiniana, a passar na bizarra cerimónia de abertura no Sena. Russos e ucranianos não poderão competir em paz e em espírito desportivo.

Que ganhem os melhores.

Assim vai o mundo...


2024/07/25

O carniceiro de Telavive

Se dúvidas houvesse sobre para que lado pende o poder americano, seja qual for, na questão da Palestina, basta ver o acolhimento dado ao Netanyahu no congresso americano, ontem e o desvelo com que foi saudado. Dir-se-ia que uma vasta maioria aplaudiu o facínora de pé.

Bastante significativo o desplante dele ao criticar os pouquíssimos congressistas que tiveram a coragem de se manifestar contra o carniceiro de Telavive, exibindo pequenos cartazes com o título que afinal lhe assenta melhor: war criminal. Sabe-se também que 70% dos israelitas o quer fora do poder e muitos acham que esta visita ficou aquém das expectativas, no que respeita à situação dos sequestrados.

E para quem tenha ilusões sobre a próxima eleição dos gringos e ao que a Kamala vem, saibam os mais incautos que não deixa de ser particularmente significativo que ela se tenha apressado a manifestar ontem contra manifestantes que tiveram coragem de chamar a Netanyahu o que ele é: um criminoso de guerra. Hoje, para completar o ramalhete, houve encontro entre ela e o nazi israelita (também com Biden e Trump). Diz ela que não ficará em silêncio perante o que se passa em Gaza. O que raio quererá isto dizer? Vai-se juntar aos manifestantes pró-Palestina a quem hoje ralhou? 

Por cá, faz dó ver alguns portugueses a vibrar com a nova candidata, como se se tratasse de política local e a Kamala fosse a nova Wonder Woman.

Basta!

2024/07/13

Um espectáculo de marionetas, de qualidade duvidosa

Claro que não se podemos afirmar que o problema é de hoje, daqui ou dali, em particular. Este que temos perante nós, agora, tem a ver com o apodrecimento crítico do sistema em que vivemos. Nem as palavras que se seguem serão verdadeiramente originais. Gente melhor do que eu e mais bem preparada do que eu, vem repetindo isto há décadas. Estas palavras pretendem ser apenas um desabafo, em consequência de factos recentes.

Assistimos nestes últimos dias a um número de variedades, abrilhantado pela orquestra da chamada "comunicação social", de tal forma nauseante, que nem todo o antiemético produzido no mundo nos pode valer.  É, portanto de vómito que vos falo.

Logo a seguir a um debate, amplamente divulgado para todo o mundo, em que vimos um presidente de um país, dito o mais poderoso do mundo (que quer fazer crer aos seus compatriotas que controla a sua recandidatura,) a fazer uma figura tristíssima perante um antigo presidente (que quer, igualmente, fazer crer que controla a sua recandidatura,) voltámos a ver o actual presidente, no encerramento do encontro de uma organização que se auto designa como a força de segurança do mundo, a repetir a mesma triste figura. 

Não estão em causa as gaffes. É um assunto sem importância. 

Biden está a concorrer, não o esqueçamos, contra o Trump. Trata-se de um corrida entre duas figuras patéticas, uma que, em circunstâncias normais, estaria num lar e outro, que, em circunstâncias normais, estaria na prisão. Mesmo que Biden acabe a ser substituído, esta “corrida,” as suas vicissitudes e a marca que está a deixar, dizem já bem do estado a que chegou aquele país.

Quando ouvimos falar no país mais poderoso do mundo, na economia mais forte, etc. e tal, é bom que a gente se vá lembrando em que mãos esse poder vai acabar a ser entregue. E é bom que não nos esqueçamos que esse poder é delegado pelos oligarcas, que o controlam verdadeiramente. O que revela a sanidade mental e a sua qualidade ética desta oligarquia.

Não há "luta pelo poder." Nenhum desses oligarcas vai perder. Não é por acaso que os fundos para as respectivas campanhas oscilam, para um lado ou para o outro, conforme as conveniências. Ainda há pouco se lia que estará em curso uma canalização dos fundos da campanha democrata para a republicana, perante a iminência de uma substituição e de garantida derrota.

Há o argumento estafado de que esta gente é colocada no poder pelos milhões que neles votam. É um argumento completamente tolo, insultuoso até para quem acredita verdadeiramente na Democracia. Primeiro, porque a escolha que é proposta aos votantes é falsa. Na verdade, não se trata de escolha entre duas candidaturas, mas sim de um condicionamento, meticulosamente executado, que fractura, fazendo crer que os eleitores estão perante duas visões diferentes do poder, mas que provoca divisões e desigualdades fatais, sem sustentação política legítima, entre povos, entre povos e governos e entre governos, pelos quatro cantos do mundo. Depois, e mais importante, porque, seja qual for o resultado, a marioneta de serviço, qualquer que ela seja, vai executar um e um único script. O sistema está totalmente viciado à partida. Não há escolha, não há voto útil, não há representatividade, não há diferentes visões da sociedade, não há debate, não há, em suma, Democracia. Como falamos de fantoches é legítimo falarmos de fantochada. O apoio ou rejeição dos cidadãos a qualquer uma destas candidaturas não faz qualquer diferença e o voto útil é tão fútil quanto o mergulho de Empédocles no vulcão.

Faz parte também da função da marioneta americana, que presta este serviço ocasional, escolher as "nossas" marionetas. Na Europa, a situação ainda é, talvez, pior: escolhe-se by proxy. As "escolhas" que condicionam a vida de todos nós, aqui na nossa terra, são entre duplas de marionetas pré formatadas, manobradas lá de longe, dando uma falsa imagem de luta pelo poder ou, pior ainda, de falsas duplas, co-optadas, como é o caso das estruturas de poder da UE.  

As marionetas encarregadas do poder na Europa são, desde há muito, as marionetas escolhidas pelas marionetas americanas. Que foram, recorde-se, escolhidas pelos oligarcas americanos, que não têm qualquer pejo em dar a "escolher" aos americanos um débil mental e um assaltante de estrada. O que diz bem, repito, dos seus valores e da sua sanidade mental. É a eles que, no fim, pagamos a nossa gasolina, os nossos carros, os nossos alimentos, as nossas portagens, é para eles que trabalha a maioria esmagadora da população, que vive nas cidades por eles controladas, nos bairros por eles desenhados, que circula nas estradas por eles construídas para chegar aos empregos por eles criados e destruídos, conforme a sua lógica perversa, que vive a vida na lógica deles, não na sua.

Não há, no mundo, lugar seguro, que nos proteja desta gente.

O resto é netflix, hbo, nyt, noite dos oscars, world series, foxnews, washington post, hollywood, cnn, e muitas outras ficções do género, para distrair o pagode. E futebol! Muito futebol! E quando o futebol vai a banhos, Jogos Olímpicos, para animar a malta e apaziguar conflitos e tensões internacionais...

2024/07/12

A torre de Pisa é bem mais estável...

Ontem, depois de ver aquela charada que foi a conferência de imprensa do presidente americano (obriguei-me a ver o espectáculo deprimente, mas tive de recorrer a um fortíssimo antiemético...), não sabia se havia de rir ou chorar. 

O bufão parecia um mau ventríloquo dele mesmo. 

Bufão será, mas não nos podemos esquecer, contudo, que se trata de um tipo perigoso, que tem o dedo permanentemente no gatilho. 

Não lhe conseguem encontrar alternativa e vai mesmo concorrer, contra… o Trump!

Diz tudo sobre o estado daquela nação.

2024/07/11

Teremos sempre Paris...

Numa semana marcada por duas das mais importantes eleições europeias do ano - no Reino Unido e em França - a vitória sorriu à esquerda, ainda que, no caso britânico, o resultado dos "trabalhistas" fosse, de algum modo, esperado. Já em França, onde Macron ensaiou uma "fuga em frente" (com a marcação de eleições antecipadas) as coisas não podiam ter corrido pior para o presidente francês. Depois da derrota nas europeias de 9 de Junho, onde se viu ultrapassado pela extrema-direita de Le Pen, o seu partido caiu, desta vez para a terceira posição e, surpresa das surpresas, a vitória caberia à (Nova) Frente Popular, constituída há menos de um mês.

No ano de todas as eleições, os resultados obtidos por forças progressistas em países como a Espanha, a Polónia, o Reino Unido e a França, mostram que o avanço das forças nacionalistas e populistas de extrema-direita, pode ser travado, ainda que nada esteja definitivamente ganho neste campo. Para que isso seja possível, há que reverter muitas das políticas actuais da União Europeia, onde a prioridade deixou de ser a inclusão e o combate às desigualdades, que durante anos constituiu um dos pilares da Europa, para passar a ser a defesa dos grandes monopólios e a discriminação social e étnica de parte significativa da população. 

São portanto estes dois vetores (economia e situação social) os que mais pesam na decisão final dos eleitores na hora da votação. Perante as urnas, os votantes pensam duas vezes: com a carteira e com a cabeça. Nada de novo aqui, ainda que a demagogia e (sede do) poder de alguns governantes os tornem insensíveis às reivindicações populares. 

Veja-se o caso do Reino Unido, onde uma decisão demagógica de Cameron conduziu a um Referendo (que ninguém pediu) sobre a permanência do Reino na União Europeia. O resultado do Brexit é conhecido e, oito anos depois, a maioria (53%) dos britânicos votaria hoje contra a saída da União Europeia. Entretanto, todos os índices económicos pioraram, o custo de vida aumentou exponencialmente, a exclusão social aumentou, a emigração ilegal também e a fuga de cérebros (brain drain) não parou desde então. Não é de admirar que, neste contexto, os 14 anos de governação "torie" tenham deixado o país em estado de negação que, se traduziu numa vitória esmagadora de um partido trabalhista e de um líder, sem carisma e reformista que baste.  

O mesmo processo se passou em França, ainda que as causas sejam algo diferentes. Depois de anos de alternância democrática, durante os quais republicanos e socialistas tentaram governar ao centro (desprezando as classes mais desfavorecidas e os direitos de minorias) os movimentos populistas e extremistas de direita cresceram. Paulatinamente, Marine Le Pen foi renovando o partido criado pelos seguidores de Pétain (entre os quais, Jean Marie Le Pen, seu pai) alterou o discurso e modernizou o "aparelho". Ela própria, que perdeu duas vezes para Macron, deixou a direcção do partido a um "jovem turco", que a substituiu e ganhou as eleições europeias do mês passado. Estava dado o mote para a ascensão da União Nacional ao governo de França, com a mais que provável candidatura de Le Pen à presidência em 2027. 

Macron, um presidente autoritário, que virou contra ele meia-França, depois do aumento da idade da reforma para os 66 anos, do aumento do preço dos combustíveis (que desencadearam as greves nacionais dos "coletes amarelos" e dos agricultores) e que nunca conseguiu apaziguar os guetos minoritários, onde grassa a exclusão social e a criminalidade, foi penalizado pela sua arrogância. 

Hoje, os conservadores britânicos e os liberais franceses, lamentam as derrotas e "lambem as feridas" das políticas erróneas seguidas nos últimos anos. Não foi por falta de avisos. Tantas concessões fizeram à (extrema) direita, que esta os ultrapassou. Um clássico: quando alimentas um crocodilo, arriscas-te a ser comido por ele.          

Acresce que, os anos de pandemia, a guerra da Ucrânia e a inflação (destas derivada), não vieram ajudar os tempos, já de si, difíceis. Tempos negros, que podem piorar, caso Trump seja eleito nos Estados Unidos. 

Entretanto, a esquerda (meia desfeita) tenta reerguer-se. Não será fácil, depois de anos de oposição em que não soube renovar-se e continuou a confiar nos velhos métodos. As ideologias dos anos sessenta e setenta, nas quais assentam muitos dos seus pressupostos, não disfarçam a incapacidade de lidar com os novos desafios. A utopia mantém-se, mas temos de ir sempre em frente, mesmo que o horizonte se afaste. Neste sentido, a vitória da "Nova Frente Popular" em França (quem diria?) é, para além da surpresa, um estímulo. Para já, mostrou que a unidade na acção é possível. Foi possível. Para que não se transforme numa "vitória de Pirro", há que continuar, se possível evitando os mesmos erros. 

Moral desta história: nunca devemos menosprezar os franceses. No futebol e na revolta. Por isso, lá voltamos sempre, à França da Liberdade, para podermos dizer, como Bogart: "we'll always have Paris..."


2024/06/28

Assange

Agora que Julian Assange se encontra (aparentemente) a salvo, não faltarão longos e elogiosos artigos sobre a sua postura e resiliência, demonstradas ao longo de 12 anos de cativeiro que passou em Londres. Primeiro, na embaixada do Equador (7 anos) onde lhe concederam asilo político e, mais tarde, na prisão de alta segurança de Belmarsh (5 anos), onde aguardou o desfecho do processo de extradição instaurado pelos EUA.

Um longo caminho, seguido por milhões de cidadãos em todo o Mundo, ainda que as notícias tenham sido parcas e nem sempre veiculadas da mesma forma pelos media internacionais. Hoje, percebe-se melhor porquê: Assange, através da agência Wikileaks (da qual é co-fundador) tornou-se o whistleblower mais famoso do Mundo, ao denunciar os crimes de guerra praticados pelas tropas norte-americanas no Iraque e no Afeganistão, factos comprovados e nunca desmentidos, que os media oficiais, coniventes com a guerra em curso, não publicavam. Milhares de documentos e vídeos encriptados, obtidos pela Wikileaks e postos à disposição dos media interessados na sua publicação. 

A história, para quem não a conhece, descreve-se em poucas palavras. Conta-a o El Pais, na sua edição de 26 de Junho último, ao longo de quatro páginas, para guardar, sob o título: "Uma cave, milhares de papéis e horas de investigação":

"Alguns dos jornalistas que, em finais de 2010, trabalharam na maior filtragem de documentos, a que tinha tido acesso à data El Pais, nem sequer conheciam aquela cave situado no Piso -1, da sede do periódico em Madrid. No dia 1 de Novembro daquele ano, Julian Assange, tinha convidado o periódico a juntar-se ao The Guardian, The New York Times, Le Monde e Der Spiegel, numa macro investigação com milhares de telegramas diplomáticos norte-americanos. Três andares abaixo da redacção, foi posta em marcha uma equipa com dezenas de repórteres, muitos chegados com recados de responsabilidade de meio-mundo, sem saber com o que iam confrontar-se. Havia que trabalhar contra-relógio para descodificar  alguns dos segredos da política externa dos Estados Unidos, antes do dia 28 de Novembro, data da publicação. O que aí teve lugar, foi um esforço de colaboração entre jornalistas e meios internacionais, sem comparação. O fenómeno Wikileaks tinha chegado ao seu cume, "uma montanha na Flandres", para um tempo novo no jornalismo de filtros (leaks) e investigação. O material que a Wikileaks pôs a disposição destes títulos, foi tal que obrigou a estabelecer mecanismos para garantir a total confidencialidade do projecto. Ninguém, nem fora nem dentro daquela cave, podia saber do que se tratava. Os documentos, mais de 250.000 telegramas do Departamento de Estado, só podiam ser examinados naquele espaço e nunca ultrapassar as suas portas. A comunicação com a equipa de Assange, então com 39 anos, fazia-se através de mensagens encriptadas. Um método a que não estavam acostumadas, à época, algumas das redacções, mas que, 13 anos mais tarde, se aceita com toda a naturalidade". 

E o articulista (Óscar Gutiérrez) continua: "El Pais foi o último, dos cinco media implicados, a receber os papéis. O desafio, em apenas algumas semanas, foi gigantesco. A direcção do projecto necessitou de envolver uma equipa técnica para que aqueles milhares de arquivos em texto corrido, fossem digeríveis pelos jornalistas. Os responsáveis tiveram de lidar com as pressões e versões da parte invocada, a administração de Barak Obama. O portal da Wikileaks foi vítima de pirataria informática. Finalmente, um erro de distribuição transportou alguns exemplares da revista alemã Der Spiegel aos quiosques, antes de tempo. O lançamento, teve de ser antecipado. Às sete da tarde, a informação estava no ar: falava de espionagem, manobras ocultas e corrupção; de dirigentes como o russo Vladimir Putin, o venezuelano Hugo Chaves, o iraniano Mahmud Ahmadineyad, o francês Nicolas Sarkozy, o chinês Hu Jintao, o italiano Sílvio Berlusconi, a alemã Angela Merkel... Criou, por fim, outro precedente: pela primeira vez, uma exclusividade histórica era publicada na internet. A Rede era o "habitat" de Assange e foi aí que surgiram, pela primeira vez, muitos dos seus filtros" (ibidem).

A partir daqui, a história, é conhecida. As sucessivas publicações Wikileaks, suportadas e filtradas com documentação comprometedora para diversos regimes do Mundo (em particular para o envolvimento dos Estados Unidos na guerra do Iraque e do Afeganistão, à revelia das leis internacionais), fizeram de Julian Assange o "inimigo a abater". Em Abril de 2010, sete meses antes de Assange ter compartilhado os documentos diplomáticos, a Web publicou o vídeo gravado por um helicóptero dos Estados Unidos, durante um ataque a Bagdad, no qual morreram 11 iraquianos entre os quais um fotógrafo da agência Reuters. Um ano depois desta notícia, o El Pais voltou a participar na divulgação de novos "filtros" do portal, desta vez mais de 700 ficheiros sobre a prisão de Guantánamo.              

"O trabalho, em 2010, destes cinco títulos com os telegramas do Departamento de Estado, disponibilizados pela Wikileaks, serviu, pelo menos, para duas coisas: em primeiro lugar, para abrir de novo a porta aos chamados whisteblowers ou "gargantas fundas", os informadores que, como a soldado Chelsea Manning (a origem desta macro-filtração) querem tornar públicas as actividades ilícitas da organização para a qual trabalham. A União Europeia aprovou precisamente uma directiva para protecção destas pessoas em finais de 2019; em segundo lugar, o Cablegate, lançou  uma nova era de jornalismo de colaboração entre grandes medias, que eram, a priori, competidores. A Manning seguiu-se, em 2013, Edward Snowden, ex-analista norte-americano da agência de espionagem NSA que filtrou informação sobre o programa de vigilância global dos EUA aos diários The Guardian e The Washington Post . Três anos mais tarde, outra aliança de media, publicou os chamados Panama Papers, a partir de documentos de uma firma de advogados do Panamá, especializada em paraísos fiscais. A análise desta investigação contou com a colaboração do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ na sua sigla inglesa). Em 2021, a ICIJ coordenou, com a colaboração de uma equipa do El Pais, juntamente com jornalistas de 17 países, a investigação de uma filtragem de 11,9 milhões de arquivos internos sobre fiscalidade opaca, os Pandora Papers, um dos melhores exemplos, até à data, deste novo panorama de filtragens e investigação com que a Wikileaks e Assange sacudiram o jornalismo naquele Novembro de 2010, a partir de uma cave de uma redação para o Mundo inteiro" (ibidem). 

Em todo este percurso, não faltaram detractores de Assange e dos seus métodos. Muitos jornalistas não gostavam dele e acusavam-no de ser um tipo antipático; depois, confrontados com notícias que não podiam desmentir, acusaram-no de não ser jornalista, mas apenas um "hacker" com acesso a servidores do estado e informação classificada; mais tarde, disseram que as suas informações punham em perigo as embaixadas e diplomatas dos países envolvidos; finalmente, e perante a evidência de factos (que nunca foram desmentidos) começaram os ataques ad-hominem, sobre uma pretensa misoginia e a violação de duas call-girls em Estocolmo, que lhe valeu uma acusação do tribunal sueco, o qual exigiu a sua presença naquele país para ser julgado. Assange não se recusou a depor perante o tribunal, mas recusou fazê-lo na Suécia, receando ser extraditado para os EUA, que também tinha pedido a sua captura. A própria Hillary Clinton, que perdeu as eleições contra Donald Trump, atribuía a sua derrota ao Wikileaks, por esta plataforma ter divulgado emails confidenciais do seu servidor em vésperas de eleições, um argumento que está por provar, já que a própria candidata não tinha o apoio unânime do partido democrata e muitos apoiantes preferirem Bernie Sanders, o outro candidato democrata. 

Voltando ao El Pais e a um artigo de Javier Moreno, director do jornal em 2010, quando se publicaram as informações baseadas nos telegramas filtrados por Wikileaks, com o título "Considerem-se avisados":

"Finalmente, o calvário do fundador do Wikileaks resulta em intimidação suficiente para os Assanges das próximas décadas. Limitará a investigação jornalística baseada em informação classificada. Quanto deixaremos de saber sobre o funcionamento do estado profundo? Em quem vamos delegar a fiscalização de tudo isto? No próprio estado e nas suas agências? Se as partes do estado que vemos e podemos examinar, raramente funcionam bem, porque havemos de supor que as que não vemos, funcionam? Se nas partes que observamos, se cometem abusos, como não suspeitar do que sucede naquelas em que não o fazemos? E esta última questão, mais do que aos jornalistas, afecta-os a todos, estimados leitores. Portanto, considerem-se avisados" (ibidem).

2024/06/26

A hipocrisia, em episódios


O que se segue vem propósito deste vídeo, que chegou ao meu conhecimento através do meu companheiro de redacção, Rui Mota. 

Os russos acabam de ordenar a suspensāo da RTP e dos sites do Público, do Expresso e do Observador. Estamos em 2024.

Desde 2022 (Dois mil e vinte e dois!) que na terra da « liberdade de expressão » os canais russos RT e 1Russia estão bloqueados, por via do Regulamento UE 2022/350. A UE em estado de hipocrisia.

Não há ilusões: de cada lado deste conflito, os canais informativos difundem a informação que lhes interessa. Mas a terra da « liberdade de expressão » deveria, acho eu, dar o exemplo. Cada um de nós que decida. No caso português, aliás, liberdade de expressão é apontada, muito justamente, como uma das conquistas de Abril, depois de décadas de vergonhoso lápis azul. Eu, por mim, gostava de poder escolher as minhas fontes de informação, sem constragimentos. Sobretudo se estou a pagar por um serviço, como é a televisão por cabo. A sensação que dá é a de que os distribuidores de televisão de cabo se transformaram numa coisa a fazer lembrar aqueles restaurantes de prato único. Podes escolher desde que seja o prato do dia.

Ora, na RTP 3, ontem, a apresentadora de um dos serviços noticiosos questionava o correspondente da RTP na Rússia, um tal Evgueni Mouravitch. Perguntava ela, com ar pimpão, ao Evegueni: « Moscovo está a isolar os russos? » E o camarada Evgueni lá foi respondendo dizendo, entre outras coisas, que as pessoas têm medo das câmaras… A Rússia é um país em guerra, se calhar as câmaras não são aquilo que os russos mais temem neste momento. Mas o Evgueni inspira este temor, é sabido. 

Portugal, por outro lado, é um país que anda, há muito, apenas numa guerra sem quartel consigo próprio… Permitir ao povo português saber o que se passa no mundo, disponibilizando as ferramentas necessárias para averiguar a fundo todos os lados destes conflitos, que não são nossos, seria um dever elementar. Constitucional, diria até.

Conclusão do camarada Evgueni: a proibição do poderoso broadcaster, instituição a quem toda a comunidade internacional tira o chapéu, tal o seu peso no mundo mediático, que é a RTP, é « propaganda russa, ao estilo da URSS ». A proibição dos canais russos em Portugal é, por seu lado, perfeitamente legítima, certamente, uma ordem dos deuses, reunidos no Olimpo… Poderíamos perguntar, assim, da mesma forma, quem é que a UE quer então isolar, ao proibir a RT e a 1Russia. A RTP em estado de hipocrisia.

O camarada Evegueni fala de tudo isto, com ar grave, mas sofrido, mostrando umas olheiras que lhe conferem um ar apropriadamente amedrontado. Fala de tudo, incluindo das "enormes dificuldades" do seu esforçado trabalho, directo de Moscovo, sem que vejamos, porém, qualquer cano de espingarda apontado à sua cabeça ou um agente do KGB, por detrás dele a sabotar a emissão… E fá-lo há anos. O testemunho do camarada Evegueni está aqui. Aposto que o camarada Evegueni vai ter as suas credenciais renovadas.

Voltando ao vídeo...

Assange está livre. Celebrar a sua libertação passa por perceber a essência do que ele aqui refere. Estas palavras são um complemento do que refiro acima, relativamente à proibição de órgãos de informação, quer do lado da chamada “comunidade internacional” quer do lado da Rússia. Os objectivos são os mesmos, embora a UE, que apregoa outros valores, tenha sido pioneira na tomada desta medida. 

O exercício que nos pode levar a perceber melhor as causas dos diferentes confrontos e tentativas de confronto que ocorrem hoje por todo o mundo, não é fácil e esbarra, sobretudo, desde logo, nos imensos preconceitos que cada um de nós carrega. Se entrarmos nele com ideias feitas nunca chegaremos a qualquer conclusão útil. E tudo isto se agrava com a absolutamente intolerável e hipócrita sonegação das ferramentas. Portanto, ouvir estas palavras do Assange e celebrar, ao mesmo tempo, a sua libertação será sempre um acto de repugnante hipocrisia. 

A libertação de Assange foi fruto de uma intensa campanha dos povos do mundo. “As guerras são quase todas resultado das mentiras dos média”, diz ele. A falta de solidariedade desses média para com ele, ao longo destes anos explica muita coisa…