2011/12/06

Melancholia

Estreou recentemente em Portugal a última obra do cineasta dinamarquês Lars von Trier.
Autor de uma obra polémica ("Europa", "Breaking Waves", "The idiots", "Dancer in the Dark", "Dogville", "Antichrist"), von Trier ama-se ou odeia-se. Não há meio termo.
"Melancholia" não foge à regra. Há quem o considere uma obra-prima (mais uma!) e quem o ache um pretencioso pastelão.
O filme descreve a relação entre duas irmãs, algures num idílico castelo, que aguardam (com sentimentos contraditórios) a aproximação à Terra de um planeta desconhecido (Melancholia). A história divide-se em duas partes distintas: a primeira centrada em Justine, a irmã rebelde e sonhadora, que rompe com o noivo no próprio dia de casamento e se apaixona pelo planeta mistério; e a segunda, centrada em Claire, a irmã bem casada, pragmática e rica, que entra em pânico à medida que o choque do planeta com a Terra se torna inevitável.
Na semana de todas as decisões sobre a Europa, e quando a agência "Standard & Poors" acaba de alertar a zona Euro para a eventualidade de uma descida de notação de 15 dos seus membros (Alemanha e França incluídas!), não podemos deixar de pensar em "Melancholia", a metáfora perfeita para os tempos que correm.
Não sei se von Trier pensou na crise do sistema económico ocidental quando fez o filme. Uma coisa é certa: o pânico está instalado e não há ameias nem castelos que nos protegam do choque inevitável que nos atingirá a todos: da fraca Grécia, à poderosa Alemanha.

2011/11/30

Contradições do sistema

Seis bancos centrais (o Banco Central Europeu, a Reserva Federal dos EUA, o Banco de Inglaterra, o Banco Nacional Suíço e o Banco do Japão) levaram hoje a cabo uma acção concertada, de proporções significativas, para fornecer liquidez à banca. Os "mercados", claro, exultaram e as bolsas pularam.
A justificação dada para esta operação, segundo relata o Público, é a de que era necessário "aliviar os constrangimentos dos mercados e 'mitigar' os seus efeitos no fornecimento de crédito às famílias e empresas, e assim ajudar a animar a actividade económica.”
Vamos lá a saber então: a dívida é boa, afinal? E viver acima das suas possibilidades anima a actividade económica, é? Austeridade, sim ou não? Em que ficamos?

Estranhos silêncios

É paradigmático que o grande problema da vida nacional, a corrupção, tenha estado totalmente ausente do debate sobre o OE2012. Nem uma medida do governo, nem uma proposta da oposição. Nada! Trata-se, pois, de um tema tabu.
Se olharmos para os números da corrupção em Portugal, se nos recordarmos que há quem diga que a corrupção é a origem da presente crise, não podemos senão concluir que se trata de um problema central  e que, nesse caso, o silêncio é estranho.
Enquanto o tema da corrupção não for discutido e o problema não for objecto de resoluções sérias é certo que este país nunca irá passar desta mediocridade permanente que a todos corrói.
Queria somente lembrá-lo aqui...

2011/11/28

A quem serve o medo?

Querem ver como se constrói um clima de irresponsabilidade para minimizar os efeitos da incompetência do governo e do mais que certo fracasso da sua política?
O método baseia-se na criação do fantasma da sublevação popular e mete "terroristas", serviços de informação, polícias e agentes infiltrados. Faz lembrar a célebre "revolta dos pregos" que Angelo Correia, o mentor e tutor político do primeiro ministro, inventou há anos. Haverá, pois, aqui hoje também, dedo de Angelo pela certa.
Para além de Angelo, a manobra tem também contado com o contributo de gente tão insuspeita como Mário Soares, vários membros da hierarquia da Igreja Católica e outras figurinhas, jornalistas, analistas, politólogos e outros "peritos" mais ou menos patéticos. Todos vêem sangue no horizonte. Junta-se-lhes o Ministro da Defesa que vem a jogo pronunciar-se sobre a "ilegitimidade" de manifestações legítimas, só porque estaríamos perante a "legitimidade" de um "programa" que, segundo ele, foi sufragado pelo voto. Para ajudar à festa até Carvalho da Silva, de quem não se esperaria tamanha ingenuidade, vem lançar alertas que devem ter soado como música aos ouvidos do governo. No dia da greve, demarcava-se correctamente, por um lado, dos ainda não totalmente explicados incidentes em S. Bento, afiançando, contudo, que eles constituíam sinais da insatisfação que por aí vai. Uma conversa, no mínimo, politicamente canhestra. Duvido que os provocadores colocados pela polícia no meio da manifestação de dia 24 estivessem a pensar na insatisfação do povo que lhes paga o salário.
Até Fernando Santos, o engenheiro do penta e especialista na difícil arte do biqueiro, logo que lhe colocaram um microfone à frente apressou-se a dizer, lá de longe e do alto da sua respeitável e reconhecida expertise em teoria política, que Portugal não tem a tradição "anarquista" da Grécia, mas os desacatos do dia da greve constituem sinais "preocupantes" de agitação.
É isto: primeiro, lança-se a ideia (de forma deliberada ou ingénua) de que há sinais preocupantes no ar. Depois, quando ocorre uma legítima, significativa e pacífica greve geral, unindo uma grande massa de espoliados do regime, a polícia intervém de forma totalmente despropositada, provocatória e, sobretudo, ilegítima, levando as pessoas a reagir, naturalmente, perante os atropelos grosseiros da lei, cometidos por aqueles que, num regime democrático, devem ser os primeiros a respeitá-la escrupulosamente. De seguida, meia dúzia de pessoas que não se sabe oficialmente quem foram, de onde vêm, o que representam e por quem foram instigados, exibem durante a manifestação que se seguiu à jornada grevista comportamentos marginais, que de forma alguma representam o espírito dos manifestantes, nem a mensagem que pretendem transmitir de protesto contra as medidas que o governo teima em levar a cabo. Finalmente, com a inestimável colaboração da imprensa, ficamos a saber que desta empolgante "primavera à portuguesa" estão recenseados, por um serviço qualquer de informações, uns, certamente, perigosíssimos 60-anarquistas-60. Aí está a revolta popular! Como é diferente o Tahir em Portugal.
Está criado um clima tendente a desmobilizar o protesto legítimo, pelo direito ao qual surgiu o 25 de Abril. De repente, num passe de mágica, a liberdade de opinião transforma-se em delito de opinião. O medo de existir, esse mal português que não despega nem à lei da bala, reinstala-se. A injustiça, a iniquidade, a corrupção e outros traços distintivos da nossa actuação colectiva ganharão tolerância de pronto! Tudo está perdoado, no fundo somos todos uns gajos porreiros.
Mais ainda: toda a leviandade, desonestidade, incompetência e arrogância exibidas pelo governo, todos os seus falhanços, inconsistências, equívocos, toda a sua "moral" de esgoto será perdoada e conquistará intenções de voto. Sacrifícios, quais sacrifícios?
Paulo Baldaia avisava ontem no DN a maioria de idosos deste país que ainda lê jornais: "Desenganem-se os que excluem a hipótese de termos violência na rua, porque isso está em exclusivo na mão dos indignados, entre os quais há muita gente que não tem nada a perder. Os mais radicais já começaram a alimentar essa ideia, vandalizando repartições públicas, colocando na Net um vídeo com alegada violência policial, procurando um efeito viral idêntico ao que se passou noutras partes do mundo. Nessa geração há muito quem não se importe de ter no currículo uma cena de pancadaria com a polícia. Há muito quem acredite que as coisas não mudam pacificamente." Não sei onde Baldaia recolhe a sua informação, não sei onde estava em 62 e em 69, não sei onde estava no 25 de Abril, não sei se alguma vez assistiu a alguma revolução ou a violência a sério, não sei quantos indignados entrevistou, mas o fantasma da agitação nas ruas só serve hoje, objectivamente, para quatro coisas: instituir um clima de medo, manipular a opinião pública, iludir responsabilidades e preparar o perdão à incompetência governativa.

2011/11/27

Fado, Património Cultural Imaterial

É oficial: o Fado foi hoje reconhecido Património Cultural Imaterial pela UNESCO.
O reconhecimento de um género musical que só os portugueses fazem bem - e por isso é parte da identidade nacional - é um justo prémio para a equipa que, durante anos, trabalhou nesta candidatura, não esquecendo os seus principais divulgadores (cantores, instrumentistas, letristas e editores), sem os quais a transmissão da tradição não seria possível. É esta tradição, com cerca de 200 anos, que hoje foi reconhecida na Indonésia. Não que o Fado necessitasse do reconhecimento da UNESCO para ser Património Cultural Imaterial. Já o era e continuará a sê-lo por muitos e bons anos. Mas, o reconhecimento dará mais visibilidade a uma arte, durante muito tempo considerada menor, que hoje tem milhões de adeptos em todo o Mundo. O trabalho de recolha, classificação e divulgação do Fado, iniciado há cinco anos atrás, continuará: agora com mais responsabilidade, mas também com mais certezas. É isto que se espera deste reconhecimento.

O corte e cola orçamental

O Ministro das Finanças comporta-se como um seráfico coveiro da democracia. Para ele a democracia é um álibi da esquerda para bloquear o combate ao défice e o orçamento o teste de uma demonstração de perícia numérica perante o juízo certamente neutro e científico da troika. O objectivo, depois de posta a democracia na gaveta – esta não será apenas a mítica liberdade e outros tê-lo-ão feito com o socialismo – é certamente a harmonia decrescente dos números percentuais da dívida, mas fundamentalmente a sua performance como académico, a confirmação por A mais B de que cortar cegamente faz crescer, uma quadratura numérica do círculo para centro-europeu e polícia financeira global aplaudirem. A margem de erro, para a maravilhosa alquimia de números, sempre mínima, pensará feliz o perito coveiro, zero ponto um ou dois – o orçamento da cultura chegará aos zero vírgula três? E a sua expressão em percentagem do PIB ao zero quê? À soma de zeros enfiados, perfeição matemática, com um vago um no fim da fila?
Conclui-se deste tipo de mentalidade que o orçamento e as suas aritméticas sectoriais são, pela via de manipulações curandeiras, a solução para o nosso problema – mais valia ler nas entranhas das aves, as linhas da vida de uma mão sem emprego ou ir à macumba. Portanto vai de cortar até que as contas dêem certo, se ainda não dão é necessário cortar mais. Se ainda não se chegou lá baixemos mais as calças pois a nota da troika, o exame trimestral, sobe em direcção à possibilidade de exportarmos a solução para a crise por termos atingido a forma paradigmática de a resolver: corte após corte até ao corte perfeito, descoberta e inovação financeira de excelência que praticamos na pátria global dos mercados especulativos. Eis como a solução pode também fazer crescer: vender a arte de talhante financeiro aos parceiros europeus em aflição por contágio, já os do centro da Europa, pois chegou à Bélgica. Exportemos o corte como suprema técnica orçamental, vendamos inteligência quantitativa.
É de facto uma panaceia, esta dos números e o princípio da subtracção a operá-los. Se não acreditarem, dirá o coveiro, ide a outro bruxo da mesma escola. É como em tudo na vida, poupar, cortar, diminuir, amputar, extinguir, reduzir, só traz saúde e faz crescer, principalmente com tudo bem embrulhado numa retórica da racionalidade dos números envolta no vocabulário religioso da austeridade, a palavra sacrifício repetida à exaustão como quem lava as mãos da tragédia que cria – os números são geneticamente ciência e academicamente demonstrações da inevitabilidade da sua intocável abstracção quantitativa. Quando se atira uma percentagem à cara da vida, espetando a faca do corte numa parte do corpo da democracia com a tal neutralidade da visão académica, só se pode espalhar o bem. Primeiro o sacrifício, a morte, depois o maná.
O Ministro das Finanças olha para uma peça de teatro, para um livro, para um libreto de ópera, para uma partitura, para um corpo que fala num palco – aqui não olha porventura, nem lá irá, nunca foi visto - para uma orquestra regional, para uma companhia de teatro, para um documentário, para uma ficção cinematográfica, e vê percentagens, cortes por fazer. Se assim não fosse e justamente em nome da crise, não descobria cortes a fazer onde o investimento é quase nenhum e a expressão numérica no orçamento ridícula. Pegando por exemplo num Beckett, um autor europeu bilingue razoavelmente feito entre nós – não poderão apelidá-lo de propagandista de nada, nem do absurdo e o Paulo Eduardo de Carvalho queria editar as suas obras completas em português, projecto já avançado e europeizado quando faleceu - numa sua peça proposta para ser editada e o Ministro logo contará as páginas que tem a mais e o seu número insuportável de caracteres. Corta-se, dirá logo, este livro, este projecto é realizável aplicando-lhe o princípio do corte, e reparem, não é cego, é o que é, necessário para a perfeição da percentagem final dos números que lhe pertencem a favor da sua colaboração no esforço da dívida - sim, estas páginas são demais nesta conjuntura, cortem-se trinta e oito, assuma-se o imperativo numérico e orçamental. Sim, a troika é um papão bom, um tribunal do Santo Ofício cujo credo está no dogma da Santa Trindade Orçamental, corte-se em nome do pai da dívida, do filho da dívida e do santo espírito desta. E nós, os melhores alunos, quais irlandeses ou gregos, respeitamos e baixamos as calças.Estranho mundo o dos números e estranho mundo os das cabeças que olhando para um orçamento não vêem vida potencial, actividade cultural, criação artística, economia a fervilhar, país e pátria, língua portuguesa, unidade territorial, ordenamento, macrocefalia de novo crescente, interior abandonado, urbanismo acéfalo a necessitar de emenda, inexistência de autonomia alimentar à míngua da força inexistente e politicamente provocada das pescas e da agricultura, vendidas aos prémios e subsídios europeus, esses sim sectores subsidiodependentes. A cultura é a mais das transversais das actividades do real e é um alimento constante do quotidiano dos cidadãos, não tem medida de aferição científica mas tem consequências anímicas, e várias rendibilidades, determinantes da vida e da economia. Não se confunde com o consumo porque é uma actividade que transforma, não é ritual de confirmações e desenvolve o afecto da língua pelo conhecimento da sua diversidade, nada tem a ver com o que são os rituais associados a uma outra expressão da sua existência, a do mercado, a do que é cultura de massas – infelizmente ler Gil Vicente, António José da Silva, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Natália Correia, António Lobo Antunes, por exemplo, não são fenómenos massivos mesmo que sejam muitos os livros vendidos, o problema não é tanto esse, é mais o da leitura e dos modos de ler. Esse é o trabalho da criação e dos profissionais da cultura para além do trabalho dos criadores propriamente ditos. Nem o milhão de espectadores de teatro, números da década que já passou do Instituto Nacional de Estatística – factos numéricos e não cálculo imaginários - é a expressão de um fenómeno massivo, é, isso sim, a multiplicação da existência de inúmeros “teatros de câmara”, de pólos e focos de vida. Se a leitura tem a importância de ser um acto individual, o teatro tem a importância de ser um acto assembleiístico, cidadão, vida democrática emergindo, reemergindo, prática constante da democracia como o parlamento tenta ser, mas voluntariamente frequentado – seria interessante ver o share do canal parlamento. Não se lhe pode fazer o que se faz ao cavalo do inglês, diminuindo-lhe um tanto a ração diariamente para que se habitue, pois acaba por morrer. Esse assassinato lento está em marcha, aqui e agora, como se dizia antes de Abril.
Será assim, pela sua perfeição endógena e articulações internas que o orçamento cumprirá um papel na nossa vida e história, como academicamente professará para si o Ministro na intimidade das suas quantificações proféticas. Na realidade somos o cavalo do inglês, ou melhor somos o cavalo da alemã. Mas mesmo esta, a alemã, acaba de fazer um extraordinário reforço de investimento no sector cultural, um aumento de 5,1% no apoio às artes – artes, berrei – num total de 50 milhões de euros. Pois é, há duas Europas, mesmo três a caminho, sendo que toda ela está num coma de crescimento augurado dir-se-á.

2011/11/26

Turbulência financeira

Segundo o venerando pai da democracia e principal subscritor do recente "manifesto dos 9", que anda por aí a circular, os governos estão a ser dominados pelos mercados.
A sério? E nós que ainda não tinhamos dado por isso...

2011/11/21

Corrupção: a dimensão do problema

O programa da TVI24 Olhos nos Olhos abordou o tema da corrupção no nosso País. O programa contou com a presença de Paulo Morais da associação Transparência e Integridade. Ficámos a saber que em Portugal, apesar dos 37 anos de regime democrático, da separação de poderes e da proliferação de organismos fiscalizadores de toda a ordem, a corrupção aumentou. Ficámos a saber de leis que geram favorecimentos nas grandes negociatas com o Estado, como se fazem e quem as faz. "As leis são deliberadamente confusas (...), feitas por escritórios de advogados a que pertencem os deputados que depois as votam," afirmou Paulo Morais. "A crise está ligada à corrupção, não tenho dúvida," afirmou ainda. "A constituição do BPN é matéria que devia ser investigada de alto a baixo," acrescentou.
A gente ouve tudo aquilo, pasma e interroga-se. Como é possível termos chegado a este ponto? Como é possível que isto se tenha tornado num fenómeno quase banal? Como é possível que, tendo em conta os mecanismos de que, apesar de tudo, dispomos para combater esta chaga, não exista em Portugal um único condenado por corrupção? Como é possível que estas denúncias, feitas assim publicamente, de forma directa e clara,  não suscitem reacções oficiais imediatas dos órgãos com responsabilidade directa nesta matéria?!
Como é possível que tenhamos pobres, "novos pobres", Banco Alimentar, Misericórdias, Igreja, etc, etc, a distribuir os restos dos ricos (enriquecidos à custa de toda esta situação nojenta) e estes à solta, enquanto chafurdam na gamela da corrupção, rindo-se certamente de tudo isto, e, quem sabe até, contribuindo, para assim disfarçar ou calar as suas más consciências...? Como é possível ouvir certas figurinhas do Estado dizer que aí vêm tempos piores e "futuros pobres" sem lhes ouvir antes falar de uma iniciativa sequer para acabar com este escândalo, uma das causas principais da crise? Como?!!

2011/11/19

AL QUI MIA DE SI LA BAS

Como numa alquimia
As sílabas efervescendo do contacto que costuram
Que faz delas súbitas asas em corpo de palavras
Na pele e entre a página e a respiração
Assim é nas mãos pousar silêncios
Colhê-los com olhos abertos
Desenhar as frases longitudinalmente
Endireitá-las com uma faca de precisão em incisões invisíveis mágicas
Que não as firam às letras e não lhes amputem nem pernas nem acentos e cedilhas
Nem lhes ponham reticências que nas cabeças estão
Suspendê-las
No limite da página na vertigem
Ao encontro da sua própria respiração e latitude

Qualquer arremedo de ficção
Nasce do desencontro entre os ritmos cardíaco o silêncio e as teclas
Desencontro na impossibilidade da tensão harmónica
Que a tensão harmónica faz sono
E para que seria esta
Passa agora um peixe amarelo
Mas podia ser o insecto cor de violino do chileno célebre
Os dedos estão repletos do rasto de letras encavalitando-se à procura do seu sítio
Uma vogal na sombra de uma consoante
E a palavra desejo
A abrir para uns lábios
Ou para o sorriso de que fala Bolano em entrevista recente

Essas coisas ficam
Os sorrisos
E deles resta o que os nomeia
E uma certa percepção nervosa a aflorar à face das mãos
Esta coisa de sermos animais tácteis é mesmo mais que sermos racionais
Somos racionais até ao ponto de efervescência das letras na flor da pele
E de uma imagem que amarelece na memória e é diabo no inconsciente
Vagueando nele como o outro pela estrada fora
O inconsciente é sabido: tem as suas avenidas
Este diabo já avistado
Está como as fotos de Marte cada vez mais precisas e preciosas
Ou como outrora a Ásia para Colombo e a Guiné para o Cão
Tudo uma questão de medo
Medo do que se não vê nem conhece
Foi avistado mas dá-nos a volta ao miolo e o psiquiatra pescador
Não lá vai nem com a ciência nem com a conversa
É
Espécie de cauda de cascavel a circular nos sonhos fragmentários que vais sonhando com cada vez maior falta de nitidez e que de repente explodem de nitidez antes que disso tenhamos consciência e não estou a simplificar pois não é exactamente apenas um força mas também um destino que se procura
Que miopia afectará a luminosidade do cinema dos sonhos?
A página um laboratório mesmo
Nesta era digital
Mas ao surgir do papel imaginando-o
Todo o ritual regressa como era
E eis a alquimia da coisa

2011/11/17

A política dos três pilares em versão tuga

O ministro Gaspar, também conhecido por ministro das finanças, congratulou-se ontem, ufano, com a avaliação da troika sobre o cumprimento dos "três pilares do programa de ajustamento, designadamente, a evolução das finanças públicas, a estabilização do sistema financeiro e a concretização da agenda de transformação estrutural." Há uma metáfora sinistra nisto tudo.
Temos três pilares para uma ponte sem tabuleiro. Uma ponte que deliberadamente não une porque já caiu antes de abrir ao tráfego.
Os dois primeiros "pilares" resultam de problemas de contabilidade criativa, que deveriam levar à cadeia quem os provocou e lavrou os resultados em livro de caixa. O terceiro "pilar" é, recordemo-lo, eufemismo para a venda em saldo das participações do Estado em diversas empresas. A satisfação do ministro e os recados da troika deveriam indignar os portugueses.
No fim de tudo isto, e quando o ministro Gaspar der por concluida a sua missão de mero gestor da massa falida e a troika se for embora, deixando um derradeiro elogio sobre o cumprimento do "programa de ajustamento", ficaremos todos exactamente como estávamos antes, sem que se tenham operado quaisquer modificações de fundo que permitam encarar o futuro com outro optimismo. Pagámos para deixar o ministro Gaspar e a troika que o pariu todos contentes.
Tudo isto a troco de um sacrifício sem precedentes do grosso do povo Português. Financiámos os pilares, mas fica-nos a faltar o tabuleiro da ponte para que a possamos atravessar.
Quase que aposto que quando levarmos a sério o projecto de passar mesmo a ponte, o ministro Gaspar não vai ficar na nossa margem...

A Política de Espírito

Pode um Duque ser democrata? Pode, mas não era a mesma coisa...

2011/11/15

Sevilha é uma festa!

Está-se bem em Sevilha.
Não fora o extravio da bagagem, algures em Barajas, esta tinha sido a visita perfeita. Para tal muito contribuiu a disponibilidade da minha anfitriã sevilhana, Rosario Solano, uma "cantaora" de fados que, de há anos a esta parte, vem divulgando a arte fadista no país vizinho. Foi dela o primeiro concerto, subordinado ao título "Fados à Minha Maneira", apresentado num Centro Cultural da cidade, onde contou com o acompanhamento de dois músicos locais: Manolo Imán e Yorgos Karalis.
O dia seguinte seria preenchido com uma visita a Carmona, verdadeira "ex-libris" andaluz, onde as influências islâmicas, judaicas e cristãs, se cruzam ao longo das ruas e casas de um branco alvíssimo. Foi aqui que Francesco Rosi filmou, em 1984, alguns dos exteriores da "Carmen", com Plácido Domingo, naquela que é provavelmente a melhor adaptação cinematográfica da ópera de Bizet. O "parador" da cidade, construído em estilo árabe sobre as ruinas de uma antiga fortificação e vista para a planície imensa, é de cortar a respiração.
A segunda actuação desta curta, mas preenchida visita, seria dedicada ao Flamenco mais tradicional (cante jondo) num dos "tablaos" do bairro de Santa Cruz. Aqui actua regularmente La Choni (irmã de Rosario) uma das "bailaoras" mais promissoras da nova dança flamenca. Um programa rigoroso onde, ao longo de uma hora, passaram em revista os "palos" mais clássicos: "soleás", "seguiryas" e "bulerias", cantadas, dançadas e tocadas por três intérpretes de excepção.
Voltaríamos a ver Choni e Cia Flamenca, na noite seguinte, agora no Teatro Municipal de Palacios, um "pueblo" a 20 quilómetros de Sevilha, onde apresentou o seu mais recente espectáculo "La Gloria de mi Mare". Trata-se de uma peça multidisciplinar plena de humor e dramatismo, onde os quatro actores em cena, para além de teatro, cantam, tocam e dançam. "La Gloria..." ganhou recentemente o Prémio Escenarios de Sevilla 2011 para o melhor espectáculo de Teatro. Duas horas de prazer, onde a qualidade de todos os intérpretes é notável.
A noite não podia acabar sem uma visita a uma das "peñas" mais antigas de Andaluzia, descrita e filmada em diversas obras de referência flamenca. Por ela passaram nomes como D. António Chacon (primeira metade do século passado) e António Mairena, "cantaor" e teórico do Flamenco, cuja foto domina a sala central do edifício.
A visita à capital andaluza não terminaria sem um concerto seminal, na moderna sala do Teatro Central de Sevilha, construído na Cartuja para a Expo de 1992. Nela actuaram, na noite do último sábado, Dave Holland (contrabaixo) e Pepe Habichuela (guitarra flamenca), apoiados por três membros da família Carmona, entre os quais se destaca o guitarrista Josemi Carmona, filho de Pepe. O quinteto interpretou temas do albúm "Hands" e da obra mais conhecida de Habichuela, "Yerbaguena" de 2001. Flamenco-Jazz ao mais alto nível, numa hora e meia do mais puro gozo musical.
Era já noite alta, quando comemos as últimas "tapas" no bairro de Triana. Como dizia a canção, Sevilha tem mais encanto na hora da despedida. Que viva Sevilha!

(foto EuropaPress/Teatro Central)

2011/11/14

Sobre a evidência

Nada serve carregar a evidência do que a berra
Poderia ser um dito de Keuner
Esse Brecht desavindo com o outro
Empregado na História e por assim dizer tão oficial
Que acampou para a eternidade próximo da campa de Hegel
Se não me engano

Dela se servindo para nela inocular os valores do espectacular
Os videirinhos do drama e da média
Lambem o chantilly do seu salário
Somando sangue ao que é por si encalhado e vistoso
Para satisfazer os níveis de adrenalina sadomasoquista
Que o hiper-consumo de massas naturaliza e o patrão exige

Ao por si da evidência acrescentaram as pirotecnias softwerianas dos meios sofisticados
Da tecnologia ideológica na nossa vida pós moderna
As mediações que multiplicam
Gritante
A evidência na sua proliferação
Como também numa outra natureza diversa do que é
Enervando o que a excede das cores que retintas transbordam
De cromatismo falando e não de rios

A operação necessária é a inversa
A de lhe subtrair
O que nela é mais que ela
E a obscurece de hiper-evidente

As velhas contas do drama
Oitocentista
Fabricavam-se no proscénio
E nessa proximidade
A ruga da actriz
Punha mais drama que a própria intriga tecia
A costura na liga entusiasmava
De como que dizer
Permitir à costureira e ao empregado de escritório
—mesmo ao provinciano actor amador —
Entrar num Olimpo de pacotilha
Que viam como luxo sem limite de estrelas
O tropeçar na sílaba o sotaque arranhado
Tudo coisas que ao rés-do-chão de uma respiração comum
São mais do que a penúria e o desleixo:
Eis porque na tragédia se morria em bastidor
Prevalecendo a notícia à foto do caso
A voz que rugia mais que o esfacelado corpo martirizado
E quando este vinha era já sepulto e longe do acto

Estas estratégias
De deferimento do momento bárbaro
Na Tragédia
Só à inteligência devem o seu modo
E o caso é que quem as compunha
Das guerras tinha a experiência
E por certo da morte em directo
Dela correndo em pensamento quando com ela se deparassem na criação
Do mesmo modo Tucídides fala do Porto de Siracusa:
Um mar pejado de cadáveres
De tal modo
Que estes faziam um chão que o encobria

A luz que tudo torna visível
Não é a que abre os olhos abertos
A luz que torna visível
É a que se alia ao que a sombra pode de contornar
E é a que sabe que os negros de escuro são necessários a qualquer estratégia de clareza
Pausas são respirações e estas são cerebrais
E sendo neuronais são evidentemente cardíacas
E por isso misturando aquela harmonia de uma pitada de empatia
Com uma pitada de crítica d’olho analítico
E uns grafismos de raciocínio em sequência que pertencem à gramática do lance em jogo já que a cada objecto ou situação pertence a sua especificidade estética
Uma natureza morta mimética nada tem a ver com o infinito das janelas em sucessivas camadas de abstracção cosmopolita

Nenhuma evidência é mais trágica do que a do coelho que cede aos faróis que o ofuscam
Deixando a vida num ápice em pleno excesso de luz
Conclui-se não lhe vê a origem
Pois no caso o que luz seria móvel
Massa metálica ameaçando
Máquina de morte sobre quatro rodas
Nem a si se vê o láparo como alvo
Os olhos nos faróis em adeus final
Nem o fora vê nem o dentro acorda o instinto
Olhos na luz hipnotizado
O excesso pára e não esclarece

É este o modo trágico da evidência que é simulacro da clareza
Porque luz
Mas da clareza nada fica
E na retina se instala o que oposto do negro fero
É já menos que este
Pois este não come do mesmo modo o que escuta
A luz que cega é a mesma que ensurdece
E o ouvido na noite cerrada alcança o que no ultra-som alcança a baleia em outro oceano
Ao coelho nem as orelhas salvam dos faróis nem o famoso faro
Nem o futuro em cenoura

Essa candura de banda desenhada dos coelhos
Não pertence ao real
É um modo de tirar ao real
O que ele é
Pintando-o com as cores convenientes da moleza supostamente protectora de uma civilização de peluche
Nada mais útil e didáctico que as arestas

Nem a evidência é por si legível
Pois o por si evaporou-se
Desde logo após os primeiros talheres de sílex
E após a queda da evidência no seu relato
Se as formas de premeio não a refizessem
Ela manteria as qualidades que Vaz de Caminha naquela índia
Descobriu
Na beleza das partes vergonhosas
Expostas quando a lei ministrada de Deus as encobria
E das quais ou de quem não tirou os olhos
Até ao consumar da prosa
O que é evidente desividencia-se com a força do preconceito no corpo desnudo mais a marca do crime aberta luz na foto celebrizada pelo concurso
E seu punctum
Ferida aberta ao culto ritual da nossa impotência sensível

Pode o corpo encenar-se e dar-se a ver aos cordeiros
E abutres
Que do lado de lá do ecrã
Apascentam as suas neuroses
No sossego perturbado do fim da intimidade
Cercados de máquinas e imagens
Nós mesmos no exterior de qualquer hipótese de interior
Paisagens que são um oceano único galgando as margens de todas as singularidades
E empurrando-as para cotas historicamente inimagináveis de egocêntrico anonimato e ausência ruminada num dentro entre o calcinado e o mole
Jogando-nos peixes fora de água no seu caudal de coliformes fecais reluzente nas sucessivas horas de ponta

O corpo abandonado
Quem o ressuscita se apenas a Jesus calhou e não à estudante de treze anos
A quem nenhum terceiro dia acenou
Menos ainda a striper de dezanove
Exposta a sua singularidade num varão para ex Cinderelas
Sejam corpos ou o acidente nuclear
Por exemplo Fukushima ou as quatrocentas e trinta mulheres assassinadas em Ciudad Juarez
Sublinhá-lo de forma aristotélica
Nada clarifica

Que é do comércio da evidência sem o excesso que a torna escândalo
Dirão os mercados
E que é dele sem choque ou sangue ou excesso de luz e crueldades

Porque nada poupam à evidência
Os que dela se servem
Manobrando-a numa transparência suposta que cega
Eis a questão

2011/11/11

A síndrome de Gasparger

Ficámos hoje a saber, pela boca do senhor ministro das finanças, que se a política do governo Passos Coelho falhar e se o programa de assistência financeira aprovado pela coligação PS-PSD-CDS e implementado por este governo, der com os burrinhos na água, a culpa não é destas forças políticas e do dito Passos Coelho ou do seu ministro, o Lobito Gaspar. A culpa é... do PCP e do BE pois então! A culpa não será da maioria absoluta do Parlamento, nem do governo por ela apoiado. A culpa não será de quem tem responsabilidade de executar este programa. A culpa será da minoria absoluta que se lhe opõe.
Quem tem culpa não é quem assina o cheque careca, mas quem o recebe devolvido.
Ficámos também a saber outra coisa extraordinária. É que, segundo Gaspar, se esta política falhar e a maioria dos portugueses vier a demonstrar que não se revê nela, a culpa dessa rejeição é de forças minoritárias que conseguiriam assim um feito absolutamente notável para o governo e a maioria que o sustenta: sendo minoritárias conseguiriam porém dominar a maioria! Forças que nem sequer constituem a totalidade da minoria, mas são uma minoria dessa minoria.
Estranha democracia esta (a merecer atenção do senhor PR) em que um governo, sustentado por uma maioria legítima, antevê já deixar-se dominar por uma minoria da minoria que se lhe opõe...
Não senhor ministro Gaspar! Se a política de assistência financeira fracassar a culpa não é de nenhuma minoria de esquerda do parlamento. Não, é totalmente sua! É o senhor que tem de a colocar em execução e terá a cabeça a prémio se falhar. É o senhor e o Caminheiro Coelho que têm a responsabilidade total perante um eventual falhanço.
Como, de resto, terão em caso de "triunfo". Disso não tenha a menor dúvida.

2011/11/08

Acabou-se o "bunga-bunga"

"Allora, che cosa facciamo? Eh, andiamo a lavorare..." (*)

(*) diálogo final do filme "I Vitelloni" de Frederico Fellini (1953)

2011/11/04

O socialismo continua na gaveta

Para que os europeus não pensem que Portugal é a Grécia, o inseguro Tó Zé já indicou o sentido de voto da sua bancada na próxima discussão do Orçamento de Estado 2012. Será a abstenção: na generalidade e na especialidade. Desta forma, não haverá o perigo dos "mercados" nos confundirem com os gregos socialistas...

2011/11/01

Poker Grego

Ao admitir referendar o segundo pacote de ajuda financeira à Grécia, Papandreou não só se colocou numa posição (aparentemente) insustentável, como abriu uma crise que pode vir a afectar toda a zona Euro e, por extensão, a própria Europa.
Desde logo, no seio do seu próprio partido, que hoje mesmo perdeu dois deputados e onde se exige a sua demissão, o que conduziria a eleições antecipadas. Depois, no governo, onde o seu ministro das finanças, que conduz o processo da dívida em Bruxelas, foi completamente ultrapassado pela notícia. Finalmente, na zona Euro, onde o contágio da crise grega parece agora o mais provável.
A avaliar pelas reacções da população grega, a tendência parece ser negativa. Se houver um referendo, o mais natural é o "não" ser maioritário. Nesse caso, a Grécia deixará de receber ajuda, será declarada insolvente e terá de sair do Euro. O regresso ao Dracma e a um longo período de pobreza será, nesse caso, inevitável. A vencer o "sim", o primeiro-ministro grego sairá fortalecido da crise, pois verá o pacote ser aceite pela população, legitimando dessa forma a sua posição.
Restam os "mercados" que, como sempre, ficaram "nervosos". Em Frankfurt, um dos corretores entrevistados dizia hoje que, desta forma, a Grécia teria de sair do Euro, o que já devia ter acontecido há muito tempo...
Acontece que a queda da Grécia arrastará, inevitavelmente, outros países europeus. Portugal, mas também a Irlanda, a Espanha ou a Itália, serão os próximos alvos dos especuladores. Nessa altura, Merkel perceberá que a estigmatização da Grécia, poderá significar a derrota da estratégia alemã. Será este o último "bluff" de Papandreou?

2011/10/29

As contas de Relvas

Esta semana o governo desdobrou-se em declarações sobre o eventual desaparecimento do 13º mês que, actualmente, é pago na maioria das empresas em Portugal. O inenarrável Relvas foi mesmo mais longe e chegou a dizer que, em países como a Inglaterra e a Holanda, não existia sequer 13º mês!
Acontece que já trabalhei em ambos os países: em Inglaterra os ordenados são maioritariamente pagos à semana e, na Holanda, os trabalhadores recebem normalmente 8,5% de subsídio de férias em Maio.
A lógica é fácil de perceber. Tanto num como noutro país, os trabalhadores recebem o 13º mês, seja diluído no ordenado anual, seja como gratificação extra. No caso inglês, a soma dos ordenados anuais é calculado na base das 52 semanas (e não em meses de 4 semanas) enquanto na Holanda os 8,5% correspondem a um mês extra de ordenado.
E em Portugal? Suponhamos que um trabalhador português recebe €700 de ordenado mensal. Ao fim do ano receberá um total de €8400. Se acrescentarmos o 13º mês (+ €700) chegaremos a um total de €9100. Este cálculo não leva em conta que nem todos os meses têm 4 semanas (há meses com 20 dias de trabalho e meses com 22 dias). Se dividirmos o valor mensal (€700) por 4 semanas, chegaremos a €175 por semana. Ora basta multiplicar €175 x 52 semanas, para chegar aos mesmos €9100! Ou seja, o dito 13º mês corresponde aos dias que não são pagos durante os meses de 22 dias. No caso da Holanda, os 8,5% pagos em Maio, corresponde exactamente a um mês extra de ordenado (o 13º mês). Como diria um conhecido primeiro-ministro, "é só fazer as contas"!
Mas, será que esta gente pensa que somos todos burros?

2011/10/24

Cadáveres incómodos

Os vídeos que diariamente vão surgindo e nos mostram a captura e o corpo, já sem vida, de Kadhafi, confirmam o que se imaginava: o coronel foi assassinado pela turbe que o capturou, vá lá saber-se se a mando de alguém...
Esta é uma história que se repete amiúde, ainda que alguns ditadores tenham tido mais "sorte" do que outros: há aqueles, como Salazar, Franco, Pinochet, Estaline ou Mao, para quem a morte foi um alívio. Outros, como Hitler, que escolheram o suicídio, para não darem oportunidade aos seus inimigos de os julgarem; e há aqueles que não puderam escapar ao julgamento terreno. Kadhafi, faz certamente parte deste último grupo, onde podem ser incluídos títeres como Mussolini, Ceauscescu e Saddam, executados por populares ou tribunais que, de justiça, tiveram muito pouco.
Há ainda um quarto grupo, onde se incluem os "inimigos de estimação", como Guevara, Bin Laden e, porque não (?), o coronel líbio, que interessou manter vivo enquanto foi útil ao Ocidente. Kadhafi podia ter fugido da Líbia, como chegou a ser proposto por vários dirigentes africanos, seguindo o exemplo do presidente da Tunísia, exilado algures no Médio Oriente. No entanto, preferiu morrer no seu país, como de resto sempre afirmou. Isso não faz dele um personagem mais simpático, nem apaga o regime de terror que instaurou na Líbia onde ditou as suas leis durante mais de 40 anos.
O que é extraordinário nisto tudo é o cinismo e a hipocrisia dos dirigentes ocidentais que, após anos de convívio e amizade com o regime pária do coronel, lhe voltaram as costas quando perceberam que o vento estava a mudar no Médio Oriente.
Sim, a morte de Kadhafi era inevitável. De preferência, sem julgamento. Não tinha Hillary Clinton, aquando da sua visita à Tunisia, pedido aos "rebeldes" líbios a captura do coronel vivo ou morto? A semana passada, estes fizeram-lhe a vontade.

2011/10/23

Porcos

Depois de ter sido denunciado publicamente que as pensões dos antigos titulares de cargos políticos não iriam ser abrangidas pelas medidas restritivas do OE 2012, o ministro Vítor Gaspar reagiu apressadamente admitindo a rectificação dessa situação. Hoje foi a vez do ministro Miguel Macedo vir anunciar que renuncia ao subsídio de alojamento que lhe foi atribuido para pagar a sua casa de Lisboa (ele diz que vai "abdicar de um direito"), depois desta situação ter sido amplamente denunciada.
Foi preciso criar algum alarido para depois corrigir estes dois casos particulares e, muito provavelmente, se estas denúncias continuarem ainda abatemos mais uns milhões no défice do Estado.
O problema tem, porém, outras ressonâncias, talvez mais graves.
Para ordenhar a teta dos impostos até à última gota o governo não hesitou em criar, ele também, alarido à volta da ideia de que "vivemos acima das nossas possibilidades"! Repetida até à exaustão, a conversa lá vai convencendo os portugueses a aceitar o facto de terem de ficar sem os seus legítimos subsídios, salários, pensões, etc. Há muitos —muitos até, certamente, que nunca gastaram um tostão acima das suas posses— que repetem como papagaios e como se fosse uma prece sua, o slogan que lhes foi subtilmente gravado no inconsciente pela máquina da propaganda.
Fomos todos apanhados nesta rede, cuidadosamente tecida. Mas, infelizmente, não gozamos da mesma protecção que permite ao ministro Macedo vir impunemente, com ar convicto e num passe de mágica, transformar uma situação inquestionavelmente abjecta, protagonizada por um membro de um governo que saca tudo o que tilinta à sua volta, numa atitude eticamente louvável, quiçá, patriótica.
É que falta aos portugueses em geral a chance de escolher entre o deixar-se ou não esbulhar dos seus legítimos proventos e de poder dizer, como faz Macedo, que "por decisão pessoal minha, amanhã mesmo, vou formalizar a renúncia a este direito que a lei me dá."
Episódios como estes sintetizam bem o nojo que é a classe política portuguesa e a qualidade moral dos nossos governantes.
"Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros," decretavam os porcos da Animal Farm de Orwell. Temo que o fariseu Coelho acredite nisso e não venha, desta vez, pedir desculpas aos portugueses.

2011/10/22

Alfredo Bruto da Costa

A pobreza é um problema vergonhoso neste país. Alfredo Bruto da Costa é certamente uma voz a escutar atentamente, se queremos dar ordem ao pensamento sobre este tema.
Não são de hoje as suas análises sobre as causas e as consequências da pobreza em Portugal e não são de hoje os alertas que tem lançado sobre a deterioração constante da situação do país nesta matéria. Há uma série de artigos e entrevistas que é oportuno ler ou reler. Ouça-se esta entrevista recente da TSF, veja-se esta outra, veja-se ainda esta outra, leia-se esta ou esta, ou ouça-se esta.
A sua entrevista de há poucos dias ao TVI24 foi um momento de raro valor televisivo. Simples, sem tiques nem demagogias, usando palavras totalmente ausentes hoje dos discursos públicos (quem fala de dignidade? Quem entende sequer o que é dignidade?!), Bruto da Costa revisitou de A a Z as causas do problema da pobreza em Portugal e desmontou as manhas e o embuste do OE2012. Fê-lo de um modo sereno, quase zen. Foi demolidor.
Pena que a TVI24 não disponibilize esta entrevista. Vale uma manif, bem concorrida.

2011/10/20

Ruptura, precisa-se!

 Para quem tem dúvidas sobre o tipo de regime que é imposto aos Portugueses —o regime que nos conduziu até ao actual estado de coisas—, basta atentar na reacção dos partidos com assento na AR ao OE2012.
Numa altura em que até gente que conheço, simpatizante fiel do CDS, demonstra sinais de enorme descontentamento, desconforto e apreensão, numa altura em que ocorrem manifestações por todo o país, se anuncia uma greve geral, organizada pelas duas centrais sindicais, e há uma agitação latente e indisfarçável, o que vemos nós?
Uma direita arrogante, a tentar naturalmente explicar aos portugueses o inexplicável —sem grande sucesso diga-se—, perdida, sem consenso, dissonante, exaurida, a direita do foste-tu!, que mete nojo. Sempre meteu, mas agora mete mais... 
Mas, também, uma esquerda estúpida, encolhida, acomodada, amorfa, sem criativiadade, sem coragem para se impôr pelas suas ideias. Uma esquerda que demonstra um indesculpável "medo de exisitir".
Do lado do PS, uma espécie de esquerda-direita-op-dois, incapaz de colocar fim à política do uma no cravo e outra na ferradura, sempre à procura da via, terceira, quarta, que só pega de marcha atrás. O OE2012 é a morte do País? Contem connosco para o viabilizar, grita Seguro. Nisto estão todos de acordo: a morte do País merece consenso entre os partidos do "arco do poder". O PS finge que é oposição, mas esparrama-se diante da direita como uma ninfomaníaca, cobarde, incapaz de aproveitar a ocasião para se diferenciar finalmente dessa direita, comprometido que está com os tabus e as catacumbas deste regime. Não há qualquer esperança de ver um PS diferente. 
Mais à esquerda, encostados às tábuas, vemos um BE light e um PCP ensosso. Esquerdas que não se percebe bem o que andam a fazer, acomodadas, subjugadas ao dízimo que o regime lhes proporciona, inexplicavelmente agarradas às liturgias do sistema, formais, alinhadinhas, penteadinhas, totalmente incapazes de aproveitar o descontentamento generalizado e de captar para a sua causa importantes sectores da sociedade portuguesa, vítimas objectivas das tropelias do poder, que finalmente perceberam que não são, nem nunca foram classe dominante e que a Classe A também se abate. Uma esquerda que elegeu a falta de gravata como único sinal visível e material do seu "inconformismo". De resto, zero! 
A incapacidade da esquerda para segurar o momento e ser motor desta ruptura necessária é confrangedora.
Numa altura em que ruptura é a única resposta possível à "crise" a que nos condenam as forças mais obscuras da sociedade, numa altura em que é preciso reunir todas as forças para combater esta política  escandalosa que empurra o povo português para a quase barbárie, em que as circunstâncias estão maduras, como jamais estiveram, para produzir as mudanças profundas e necessárias, os partidos que se auto-proclamam de esquerda mostram-se sem iniciativa, quando muito reactivos, acomodados, amorfos, impreparados, sem criatividade. 
A narrativa de esquerda está de tal forma carcomida pelo bicho que até o CDS e alguns dos seus militantes aparecem por vezes com o discurso mais progressista que se ouve hoje em Portugal. Algo está profunda e preocupantemente mal quando assim acontece. A narrativa de esquerda está de tal forma de rastos que até um personagem sinistro como Cavaco Silva se atreve a pegar em valores de esquerda, apropriar-se deles e pregá-los desavergonhadamente, como se estivesse a jogar em casa! É inaudito!
O exemplo da Madeira é particularmente chocante e ilustra bem o que se passa à esquerda da vida institucional portuguesa. Derrotada em toda a linha, por via de uma actuação política verdadeiramente dasastrosa e vergonhosa, derrotada por um personagem que não devia existir, que em qualquer sociedade civilizada teria já sido declarado interdito, a esquerda, as esquerdas da Madeira deviam simplesmente fazer seppuku. A sua derrota humilhante diz bem da "superioridade moral" de que esta esquerda impotente e serôdia se reclama... 
É necessária ruptura, mas faltam políticos para a produzir. À esquerda, nas esquerdas, está faltando gente com tomates!

2011/10/19

O bom católico e a má luterana

A actual crise, que desde 2007 afecta parte significativa do Mundo Ocidental, tem dado para tudo. Depois do "subprime", que teria estado na origem da crise financeira dos EUA, seguiu-se a crise económica dos países directamente afectados pela primeira e, actualmente, encontramo-nos na terceira fase, a da crise social que atinge milhões de cidadãos em todo o Mundo. Uma das zonas mais afectadas, depois dos Estados Unidos, é precisamente a zona Euro, onde Portugal está inserido.
Desde a desenfreada "especulação bolsista", às "famigeradas agências de notação", passando pelos "nervosos mercados" e as "populações a viverem acima das suas possibilidades", não têm faltado interpretações dos "amaciadores da opinião pública" que, diariamente, passam pelos canais da televisão a que vamos tendo direito. Depois dos economistas e dos politólogos, para não falar dos políticos em exercício, ninguém tem faltado à chamada. Ontem foi a vez de Freitas do Amaral.
Discursando num congresso de economistas, o que veio dizer esta pitonisa de serviço?
Que a crise, de contornos desconhecidos, é também culpa da falta de líderes europeus à altura das circunstâncias e que, neste contexto, o "falhanço" da Alemanha se deve à sua chanceler, a Sra. Merkel. A explicação, segundo Freitas, é simples e deve ser procurada nas origens reformadoras-cristãs de Merkel. Esta, educada na Alemanha de Leste, é uma luterana e, como é sabido, os luteranos professam uma fé que não conhece intermediários. Os pecados devem ser expiados na Terra, pois só nós somos responsáveis pelo nosso destino. Essa é a razão pela qual, países como a Grécia e Portugal, devem pagar pelos seus desvarios financeiros. Temos de ser punidos. Primeiro, pagar. Só depois poderemos ser ajudados. Esta é a razão que estará na origem da inflexibilidade alemã.
Freitas, como bom católico que é (pode sempre confessar-se e voltar a pecar) disse esperar ainda por um raio que caia literalmente em cima de Merkel e a ilumine de vez, única forma de sairmos disto...
Terei de consultar o Nostradamus, mas aposto que deve lá estar uma profecia parecida. Esta não lembrava ao careca!

A incógnita (2)


Em junho passado vislumbrei uma incógnita nos céus de Lisboa e dei disso conta aqui. Hoje vejo outra  incógnita, maior, desenhada nos céus aqui da minha terra. Maior e mais nítida. Certezas, certezas, só as pode ter o governo e o seu PR: se é tumulto que receiam, é tumulto que lhes vai cair em cima pela certa. Infelizmente, penso que não nos livramos disso.
Ainda há bocado, no café onde habitualmente vou, passavam imagens na televisão, em directo, dos tumultos desta manhã na Grécia. O dono do café, pessoa bastante conservadora e nada dada a "tumultos", pelo que percebo, dizia-me com ar nada surpreendido: "ah! afinal é na Grécia, pensava que já era aqui!" Será um que não ficou convencido da bondade das palavras do Álvaro ontem quando disse que "há mais vida para além da austeridade," mais um que já só espera o pior.
Nesta equação de tumultos a várias incógnitas, há umas já resolvidas e outras em vias de resolução.

A careca do presidente

"Há limites para os sacrifícios que podem ser pedidos," diz o PR.
Too little, too late, Mr. President.
Continua o embuste, com os condenados de antanho a fingir agora que são juízes.
Há de facto limites para os sacrifícios que se podem pedir aos portugueses, mas estes limites não estão na sua capacidade de sacrifício —que parece infinita— nem na sua arte para apertar cintos. Os limites estão na sua capacidade para entender as origens desta crise e na qualidade da manha que tem sido usada para disfarçar responsabilidades. Uma manha feita de um ciclo vicioso, de um jogo de empurra o empurrado e volta a empurrar, para voltar tudo à primeira forma e manter o status quo intocável, como é norma desde o início da vigência desta Constituição.
Há quem esteja acima da crise. É só olhar à volta.
A tudo isto é preciso dizer chega! Quando a maioria que elegeu o senhor Presidente finalmente tirar as suas conclusões, ninguém se safa e não fica pedra sobre pedra.
"Mudou o Governo, mas eu não mudei de opinião," acrescenta o PR. Percebemos, mas percebemos também que não é por coerência. É apenas o medo de que a maioria descubra finalmente a careca do presidente e a verdadeira natureza da sua "coerência".